Lejeune: A genética como arte de curar
Muitas pessoas conhecem o nome do Dr. Lejeune, o pesquisador francês que
identificou a origem genética da chamada Síndrome de Down. Mas, no Brasil,
pouco se sabe sobre sua vida, suas pesquisas e sua personalidade. O Dr. Lejeune
foi uma pessoa extraordinária e um exemplo de servidor fiel. Este pequeno
artigo reúne algumas informações sobre sua vida e seu exemplo.
O professor Jérôme Lejeune nasceu em 1926, na cidade de Montrouge, França.
Cresceu no seio de uma família muito unida, o que lhe permitiu desenvolver suas
aptidões físicas, intelectuais e espirituais. Muito reconhecido, ele
manifestou uma constante veneração por seus pais, que permitiram a cada filho
realizar seus talentos com toda liberdade. "Minha família foi a maior
recompensa recebida em minha vida", dizia Lejeune.
Durante seus estudos, seu pai sempre o orientou, não no sentido de armazenar
conhecimentos enciclopédicos, mas a desenvolver suas capacidades intelectuais
pelo exercício das mesmas. Nessa perspectiva, sua formação humanística foi
muito grande. Ele se consagrou particularmente aos estudos de latim, grego,
religião, filosofia, literatura, matemática e geometria. Concluiu seus estudos
secundários em 1946. Sua adolescência foi marcada pela guerra. Como a de todos
de sua geração.
O Dr. Lejeune começou seus estudos de medicina, desejando ser um médico de
zona rural. Isso determina, durante certo tempo, suas escolhas de estágios de
formação. Mas, rapidamente, ele se interessou pelo enigma do mongolismo
e manifestou sua vontade de trabalhar sobre os mecanismos e a caracterização
dessa doença. Uma doença cujos segredos ele desejava penetrar, como explicou,
em 1951, para um colega médico que cumpria o serviço militar com ele, o Dr.
Lucien Israel, do Pelotão de Oficiais da Reserva para os Serviços de Saúde.
Ao aprofundar seus estudos de genética, o Dr. Lejeune seguirá o objetivo de
toda sua carreira: aliviar o sofrimento, tratando - e curando - na medida do
possível, fiel ao juramento de Hipócrates.
Apresentamos aqui, um resumo das principais etapas de sua carreira como
pesquisador:
Em 1952, ele decidiu se dedicar à pesquisa científica
e começou sua carreira como estagiário no Centro Nacional de Pesquisas Científicas
da França, o CNRS. Progressivamente, ele galgou todos os cargos, até o de
diretor de pesquisas.
Em 1953, ele descreveu as anomalias palmares nos
portadores da síndrome de Down. Essas pesquisas acabaram por levá-lo a
descrever a primeira doença genética conhecida.
Em 1958, como conta sua esposa, ao levar a família
de férias para a Dinamarca, ele não parava de comentar: - Eu fiz uma
descoberta! E é na Dinamarca que ele fará revelar as fotos de cromossomos,
obtidas em seu laboratório na França. Entusiasmado, ele as publicou num jornal
local, em agosto de 1958! Em setembro, na Universidade de S. Gill, de Montreal,
Canadá, ele expõe sua hipótese do determinismo cromossômico da síndrome de
Down. Em dezembro, ao estudar os cromossomos de três meninos "mongolóides",
ele confirmou sua hipótese. Ainda em 1958, ele já foi chamado para ensinar genética
humana, como professor convidado da Universidade de Stanford, nos Estados
Unidos.
Em janeiro de 1959, ele publicou seus resultados na
revista da Academia de Ciências da França, junto com dois colegas: Marthe
Gauthier e Raymond Turpin. Pela primeira vez no mundo estabelecia-se um vínculo
entre um estado de deficiência mental e uma aberração cromossômica.
Em 1960, todos os resultados desses trabalhos de
pesquisa foram o objeto de seu doutorado (Doctorat es Sciences).
Em 1961, apareceu um famoso artigo, no The Lancet,
assinado por 19 pesquisadores. Eles propuseram a substituição do termo
mongolismo por trissomia 21. Uma reação dos autores anglo-saxãos insistirá
na denominação síndrome de Down, em homenagem àquele que assimilou, em 1866,
a distrofia congenital a uma tara racial! Lejeune não busca associar seu nome
à descoberta. Ele mantém o termo trissomia 21, para colocar em evidência, que
a doença é causada por um acidente genético, no qual os pais não têm
nenhuma responsabilidade.
Em 1963, ele demonstra diante da Academia de Ciências
da França, que a falta de um determinado segmento do genoma (monossomia)
poderia determinar uma doença clinicamente identificável. Nisso, é
reconhecido como um dos fundadores da citogenética humana.
Ele esperou até 1964 para que sua descoberta da
trissomia 21 lhe abrisse as portas da Faculdade de Medicina de Paris,
beneficiando-se do Código de Napoleão (algo muito francês!). O código abre a
possibilidade da carreira universitária para quem faz avançar os conhecimentos
de forma notável. Ele foi professor de genética humana na Faculdade de
Medicina Necker e dirigiu pesquisas em citogenética e patologia cromossômica
humana. Também ajudou na formação de centenas de pesquisadores, sendo mais de
200 estrangeiros, de mais de 30 países.
As pesquisas do professor Lejeune não se limitaram a
trissomia 21. Ele descobriu, em 1964, que uma enfermidade conhecida como
"Miado do Gato" resultava da falta de um segmento no cromossomo 5.
Em 1966, identificou a síndrome do cromossomo 18 q-
e descobriu o fenótipo Dr, síndrome de malformação ligada ao
cromossomo 13. O Dr. Lejeune e sua equipe identificaram, ainda, diversas outras
trissomias (a do 9 em 1970 e a do 8 em 1971).
No início dos anos 70, a comparação sistemática
das conseqüências respectivas dos excessos (trissomias) ou faltas (monossomias)
de um segmento de genoma o levaram a propor a noção de tipo e contratipo. Ele
emitiu a hipótese de que um cromossomo sobrenumerário deveria levar a um
excesso das enzimas que ele controlava e vice versa.
Em 1974, essa hipótese foi verificada quando ele
constatou um excesso de atividade da enzima superóxido-dismutase nos portadores
da trissomia 21. O Dr. Lejeune e sua equipe exploraram uma série de correlações
entre déficit de inteligência e atividade enzimática. Suas pesquisas abriram
várias pistas terapêuticas, como a da regularização do metabolismo dos
monocarbonos etc.
Esses resultados inspiraram e ainda inspiram uma série de terapias, no campo
das multivitaminas e da medicina ortomolecular, já existentes e em
desenvolvimento atualmente. Apesar de ser uma doença genética, o Professor
Lejeune nunca desistiu da idéia de encontrar uma cura para a doença, uma forma
de "desativar" ou "desligar"o cromossomo sobrenumerário.
"Pouco importa que seja eu ou outro que descubra como curar os trissômicos.
O importante é de encontrar a cura o mais rápido possível. (...) Colocar ao
serviço dos pacientes os progressos técnicos de cada dia é certamente uma das
tarefas mais difíceis da pesquisa médica, mas ela é ao mesmo tempo sua
nobreza e sua única razão de ser", lembrava sempre o Dr. Lejeune.
Ele também pesquisou sobre o câncer, já que a leucemia aguda atinge vinte
vezes mais as crianças portadoras da trissomia 21. Várias relações inéditas
entre as células constitucionais e as neoplásicas foram identificadas pelo Dr.
Lejeune. Nos últimos dias de sua vida, no leito de hospital, ele insistia em
reunir e discutir com seus colegas alguns eixos de pesquisa sobre os mecanismos
de aparecimento das células neoplásicas e sobre determinismos, que ligam a
vulnerabilidade ao câncer ao funcionamento do sistema nervoso.

O professor Lejeune faleceu no sábado da Páscoa de 1994.
"Um único critério mede a qualidade de uma civilização: o respeito
que ela prodiga aos mais fracos de seus membros. Uma sociedade que esquece disso
está ameaçada de destruição. A civilização está, muito exatamente, no
fornecer aos homens o que a natureza não lhes deu. Quando uma sociedade não
admite os deserdados, ela dá as costas à civilização" (J. Lejeune).
Suas posições éticas e morais, em defesa da vida e dos indefesos,
fizeram-no odiado pelos que pretendem mudar a sociedade atribuindo-se o direito
de vida e de morte sobre seus semelhantes. Lejeune dizia "A história nos
demonstra, que não são os que aceitam que se matem doentes e indefesos os que
aportam as soluções para esses problemas."
O professor Lejeune obteve, entre várias honrarias e títulos, os de doutor Honoris
Causa das universidade de Dusseldorf (Alemanha), Pamplona (Espanha), Buenos
Aires (Argentina) e da Universidade Pontifícia do Chile. Ele era membro da
Academia de Medicina da França, da Academia Real da Suécia, da Academia Pontifícia
do Vaticano, da American Academy of Arts and Sciences, da Academia de Lincei
(Roma) entre outras. Participou e presidiu várias comissões internacionais da
ONU e OMS. Foi o primeiro presidente da Academia Pontifícia para a Vida.
Sua morte foi objeto de numerosas manifestações: uma longa carta do Papa João
Paulo II à sua família, elogios em várias academias de ciências, discursos
de autoridades políticas, científicas e culturais. Milhares de cartas chegaram
do mundo inteiro. Uma frase apareceu, em comum, entre muitas cartas de pais:
"Ele nos ensinou a amar nossa criança."
Evaristo Eduardo de Miranda: Doutor em ecologia, professor da USP,
pesquisador do Núcleo de Monitoramento Ambiental da EMBRAPA, conselheiro da
Fundação Síndrome de Down e autor dos livros "Água, Sopro e Luz -
Alquimia do Batismo" e "Agora e na Hora - Ritos de passagem à
Eternidade" (Ed. Loyola).
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