A IGREJA FOI DURANTE SÉCULOS
FAVORÁVEL AO ABORTO?
(PERGUNTE
E RESPONDEREMOS, outubro de 1996, n. 413, pág. 451)
Em síntese: A Igreja sempre foi contrária ao aborto, ou seja, ao
morticínio de uma criança contida no seio materno. Já no século I se
encontra um testemunho deste repúdio na Didaqué. Os Concílios regionais,
desde o de Elvira (início do século IV), foram impondo penas severas aos réus
de aborto. O Direito Canônico hoje vigente, fazendo eco às diretrizes do
passado, prevê a excomunhão latae sententiae para quem provoque o aborto
(seguindo-se o efeito).
Todavia até época recente os cientistas hesitaram sobre o momento
em que tem início a vida humana: seria imediatamente após a concepção ou
após a fecundação do óvulo? Ou haveria, conforme pensava Aristóteles,
um intervalo (de 40 ou 80 dias) entre a concepção e a animação do feto?
A hesitação da ciência, bem compreensível, dada a falta de meios de
pesquisa, fez que vários teólogos católicos julgassem com menos
severidade a eliminação do feto antes do 40.º dia (no caso dos indivíduos
masculinos) ou antes do 80.º dia (no caso dos indivíduos femininos).
Note-se bem: sempre foi condenada a ocisão de uma criança; a hesitação
versava apenas sobre a questão de saber se já existe verdadeiro ser humano
desde o momento da concepção.
Nos recentes debates públicos sobre o aborto tem sido considerada a posição
da Igreja em termos que deixam interrogações na mente da sociedade brasileira.
Entre outras coisas, diz-se que a Igreja não tem autoridade para impugnar o
aborto, pois que ela o permitiu desde o século IV até o século XIX. A afirmação
é realmente surpreendente e exige esclarecimentos e retificações.
Encararemos, a seguir, o assunto, tratando primeiramente dos pronunciamentos
oficiais da Igreja sobre o aborto através dos séculos; após o quê
voltar-nos-emos para a questão do início da vida humana, que deixou dúvidas
em escritores de todos os séculos até época recente.
1. Os Pronunciamentos da Igreja
1. Desde o século I manifesta-se na Igreja a consciência de que o aborto
é pecaminoso. Assim, por exemplo, reza a Didaqué, o primeiro Catecismo cristão,
datado de 90-100:
"Não matarás, não cometerás adultério... Não matarás criança
por aborto nem criança já nascida" (2,2).
"O caminho da morte é... dos assassinos de crianças" (5,2)
Na segunda metade do século III; o autor da Epístola a Diogneto
observava:
"Os cristãos casam-se como todos os homens; como todos, procriam,
mas não rejeitam os filhos" (V 6).
O autor da Epístola atribuída a S. Barnabé no século II e depois
Tertuliano († 220 aproximadamente), S. Gregório de Nissa († após 394), São
Basílio Magno († 379) fizeram eco aos escritores precedentes.
2. A legislação da Igreja oficializou esse modo de pensar, estipulando
sanções para o crime do aborto.
Assim o Concílio de Ancira (hoje Ancara) na Ásia Menor em 314, cânon
20, menciona uma norma que os conciliares diziam ser antiga e segundo a qual as
mulheres culpadas de aborto ficam excluídas das assembléias da Igreja até a
morte; o Concílio atenuou o rigor dessa penalidade, reduzindo-a para dez anos:
"As mulheres que fornicam e depois matam os seus filhos ou que
procedem de tal modo que eliminem o fruto de seu útero, segundo uma lei antiga
são afastadas da Igreja até o fim da sua vida. Todavia num trato mais humano
determinamos que lhes sejam impostos dez anos de penitência segundo as etapas
habituais" (Hardouin, Acta Conciliorum; Paris 1715, t. I, col. 279)1
Outros Concílios repetiram a condenação do aborto: o de Elvira
(Espanha) em 313 aproximadamente, cânon 63; o de Lerida, em 524, cânon 2; o de
Trullos ou Constantinopla, em 629, cânon 91; o de Worms em 869 cânon 35...
Em 29/10/1588, o Papa Sixto V publicou a Bula Effraenatam: referindo-se
aos Concílios antigos, especialmente aos de Lerida e Constantinopla, condenou
peremptoriamente qualquer tipo de aborto e impôs severas penas a quem o
cometesse, penas que só poderiam ser absolvidas pela Santa Sé. Além disto, a
Bula não distingue entre feto não animado e feto animado por alma intelectiva,
distinção esta de que falaremos às p. 454-456 deste artigo e que na época
parecia muito importante.
Tal Bula era rigorosa demais para poder ser observada, principalmente pelo
fato de reservar à Santa Sé a absolvição das penas infligidas aos réus de
aborto. Por isto foi substituída poucos anos depois pela Bula Sedes Apostolica
de Gregório XIV, datada de 31/05/1591; este documento distingue entre feto
animado e feto não animado por alma humana: o aborto de feto animado ou
verdadeiramente humano seria punido com a excomunhão para os culpados, mas sem
reserva da absolvição à Santa Sé; quanto ao aborto de feto não animado ou não
humano, ficaria a questão como estava antes da Bula de Sixto V (seria passivo
de sanção menos severa do que o aborto de feto animado).
Como se vê, a questão da animação mediata ou imediata era ardente na
época. Diante das posições extremadas que alguns autores professavam, o Papa
Inocêncio XI condenou em 02/03/1679, como escandalosas e na prática
perniciosas, as seguintes sentenças:
"34. É lícito efetuar o aborto antes da animação para impedir
que uma jovem grávida seja morta ou desonrada.
35. Parece provável que todo feto carece de alma racional enquanto está
no seio materno; só é dotado de tal alma quando é dado à luz. Em conseqüência,
deve-se dizer que nenhum aborto implica homicídio" (Denzinger-Schönmetzer,
Enquirídio de Símbolos e Definições n. 2134s.).
Como se vê, o Papa não quis abonar a tese do aborto sob pretexto de que
não afeta um ser humano propriamente dito. Embora não se soubesse com certeza
no século XVII quando começa a vida humana, Inocêncio XI não se prevaleceu
desta incerteza para legitimar a eliminação do feto contido no seio materno.
No século XIX o Papa Pio IX renovou a condenação do aborto, sem
distinguir animação mediata ou imediata:
"Declaramos estar sujeitos a excomunhão latae sententiae (anexa
diretamente ao crime) reservada aos Bispos ou Ordinários, os que praticam
aborto com a eliminação do concepto" (Bula Apostolicae Sedis de
12/10/1869).
Esta sentença categórica persistiu na Igreja até o Código de Direito
Canônico atual, que prevê a excomunhão para o delito:
"Cânon 1398. Quem provoca o aborto, seguindo-se o efeito,
incorre em excomunhão latae sententiae".
Vê-se, pois, que a Igreja desde os seus primórdios se manifestou contrária
ao morticínio de uma criança contida no seio materno. Existia, porém, para os
teólogos a grave questão de saber quando começa a vida humana; a falta de
conhecimentos genéticos adequados levava alguns a crer que, em determinadas
circunstâncias, não havia verdadeira vida humana no seio materno. É o que
passamos a examinar mais detidamente.
2. Animação mediata ou imediata?
Os seres vivos são compostos de um corpo organizado e um princípio vital
(chamado anima, em latim). Animação, portanto, é o ato de se unirem o princípio
vital (anima) e o corpo organizado. No homem, animação ocorre quando a alma
(anima) é criada por Deus e infundida nos elementos materiais orgânicos, aptos
a exercerem as funções da vida humana (que é vegetativa, sensitiva e
intelectiva). Pergunta-se, pois, quando se dá a animação: logo por ocasião
da fecundação do óvulo pelo espermatozóide? Tem-se então a animação
imediata... Ou a certo intervalo após a fecundação? Tem-se assim a animação
mediata.
Vejamos como os pensadores responderam à questão.
Na antigüidade pré-cristã somente o filósofo grego Aristóteles (†
322 a.C.) tratou do assunto. O seu raciocínio não é claro, mas parece
defender a animação mediata: o embrião humano teria primeiramente um princípio
vital meramente vegetativo; depois seria animado por um princípio vital
vegetativo e sensitivo, e só posteriormente por um princípio (anima)
vegetativo, sensitivo e intelectivo ou por uma alma humana propriamente dita.
Passemos agora aos pensadores cristãos, distinguindo gregos e latinos.
2.1. Os escritores gregos
A maioria destes era partidária da animação imediata.
Foi principalmente S. Gregório de Nissa († após 394) quem marcou a
tradição grega. Rejeitava a teoria da preexistência seja da alma, seja do
corpo, e afirmava a origem simultânea de um e de outro elemento; desde o
primeiro instante da existência do embrião, a alma encontra-se nele com todas
as suas potencialidades, que se vão manifestando à medida que o corpo se
desenvolve.
São Basílio Magno († 379), irmão de S. Gregório de Nissa, adotou o
pensamento deste. Por isto considerava assassinos os que provocam o aborto de um
feto.
São Máximo Confessor († 662) abraçou a mesma tese, fundamentando-se
do seguinte modo: se o corpo existe antes de ter uma alma, é um corpo morto,
pois todo vivente possui uma alma. Se preexiste à alma racional, tendo uma alma
meramente vegetativa ou sensitiva, segue-se que o ser humano gera uma planta ou
um animal irracional — o que é impossível, pois toda planta provém de outra
planta e todo animal irracional nasce de outro animal irracional, e não do
homem.
Entre os defensores da animação mediata, está Teodoreto de Ciro (†
466 aproximadamente). Apela para o livro do Gênesis, onde lhe parece que Moisés
propõe a formação do corpo humano primeiramente e só depois a infusão da
alma humana (cf. Gn 2,7).
É certo, porém, que entre os gregos prevaleceu a tese da animação
imediata.
2.2 Os escritores latinos
Entre estes destaca-se Tertuliano († 220 aproximadamente). Era favorável
à animação imediata, argumentando, porém, a partir de um princípio que lhe
valeu a réplica dos pósteros. Com efeito; Tertuliano defendia a animação
imediata, julgando que as almas dos genitores desprendiam de si uma semente (tradux)
da qual se originaria a alma da prole; por conseguinte, juntamente com os óvulos
e os espermatozóides, os genitores transmitiram sementes de alma humana. Esta
doutrina, chamada traducianismo, não preservava devidamente a espiritualidade
da alma, mas reduzia a psyché humana à materialidade. Por isto os escritores
latinos, desejosos de ressaltar a espiritualidade da alma, puseram-se a combater
o traducianismo e, com este, a doutrina da animação imediata. Afirmavam: a
concepção é obra dos genitores, mas a animação é obra direta de Deus, que
cria e infunde a alma humana. Para bem distinguir uma da outra, distanciaram-nas
também cronologicamente: a animação se daria tempos após a concepção da
criança.
O autor do livro De spiritu et anima falsamente atribuído a S. Agostinho
(† 430) afirmava que o corpo vive a vida vegetativa e cresce no seio materno
antes de receber a alma intelectiva ou humana. Outro autor anônimo, que foi
confundido com S. Agostinho, comparava a formação de cada ser humano à formação
de Adão: Deus só daria a alma intelectiva ao corpo humano depois que este
estivesse formado, como aconteceu no caso de Adão (Quaestiones ex Vetere
Testamento c. XXIII). Cassiodoro († 580) raciocinava do mesmo modo e
acrescentava o testemunho dos médicos que estabeleciam a animação do corpo
humano no quadragésimo dias após a concepção (De anima c. VIII). Cassiodoro,
porém, observava que, em assuntos tão obscuros, seria melhor confessar a própria
ignorância do que falar com temeridade arriscada.
Na Alta Idade Média a sentença da animação mediata foi reforçada pela
difusão das obras de Aristóteles a partir do século XIII. S. Tomás de Aquino
(† 1274) a adotou com outros pensadores da época, estipulando a infusão da
alma humana ou racional no 40.º dia para os indivíduos masculinos e no 80.º
dia para os indivíduos femininos. Houve também aqueles que, seguindo uma
insinuação do médico grego Hipócrates, estabeleciam o 30.º dia para o sexo
masculino e o 40.º para o sexo feminino.
A partir do século XIII, algumas vozes, principalmente dentre os médicos,
começaram a se fazer ouvir contra a hipótese dos pensadores medievais, de modo
que aos poucos foi predominando a sentença da animação imediata. A Genética
contemporânea, com seus apurados estudos, só contribui para confirmar
definitivamente esta noção científica. Ver o testemunho do Dr. Jérôme
Lejeune em PR 305/1987, p.457-461.
Os defensores da animação mediata apelaram para três textos bíblicos,
cujo alcance nos compete agora considerar.
3. Três textos bíblicos
Vêm ao caso Êx 21,22s.; Lv 12,2-5 e Jó 10,9-12.
3.1 O texto de Êx 21,22s.
Segundo a tradução grega dos LXX, este texto supõe que um homem
imprudente dê um golpe numa mulher grávida e provoque o aborto. Se a mulher
morre ou se o fruto de seu ventre estava formado, a punição para o delinqüente
será a morte ("morte por morte"). Se porém, a mulher não morre e
seu fruto não estava formado, o réu pagará apenas uma multa. Este texto
parece supor que existe feto formado, plenamente humano, e feto não formado, não
plenamente humano. S. Agostinho e outros autores latinos (que usavam a Bíblia
traduzida do grego para o latim) e gregos se apoiaram em tais versículos bíblicos
para propugnar a animação mediata; cf. S. Agostinho, In Heptateuchum, II c.
LXXX.
Em resposta, deve-se observar que a tradução grega citada não
corresponde ao texto original hebraico, nem às versões latina (da Vulgata),
samaritana, síria, árabe. Eis o mais verossímil teor do texto segundo o
original hebraico:
"Se homens brigarem e ferirem mulher grávida, e forem causa de
aborto sem maior dano, o culpado será obrigado a indenizar o que lhe exigir o
marido da mulher, e pagará o que os árbitros determinarem. Mas, se houver dano
grave, então dará vida por vida".
Esta lei quer dizer o seguinte: se o delinqüente provocar expulsão do
feto, mas sem morte nem da mãe nem da criança, a punição será uma multa.
Se, porém, houver morte ou da mãe ou da criança, o réu será condenado à
morte. Como se vê, não há aí distinção entre feto formado e feto não
formado.
O próprio texto dos LXX, ao falar de "feto formado" e
"feto não formado", não tem necessariamente em vista os períodos de
pré-animação e de animação; pode apenas referir-se à fase em que o embrião
ainda é quase indiferenciado e àquela em que já pode ser identificado como
ser humano.
Como quer que seja, só pode ser utilizado, no caso, o texto hebraico como
instrumento de argumentação, e não o texto grego.
3.2. Os dizeres de Lv 12,2-5
A Lei de Moisés prescreve quarenta dias de purificação às mulheres que
tenham dado à luz um menino, e oitenta dias no caso de terem gerado uma menina.
— Ora esta lei nada tem que ver com períodos de formação do feto no seio
materno; mas foi por numerosos autores antigos considerada como símbolo de
fases de animação. Esta consideração, porém, nada prova, pois um símbolo não
é demonstração nem prova.
3.3. As palavras de Jó 10,9-12
Eis os dizeres de Jó:
"Lembra-te de que me fizeste de barro, e agora me farás voltar ao
pó? Não me derramaste como leite e me coalhaste como queijo? De pele e carne
me revestiste, de ossos e de nervos me teceste. Deste a vida e o amor, a tua
solicitude me guardou".
Neste texto o autor sagrado menciona primeiramente a formação do corpo
(pele, carne, ossos, nervos) e, depois, a entrega da vida como dom da misericórdia
divina. Por conseguinte, a alma humana teria origem posterior ao corpo. Esta
conclusão parece corroborada pelo paralelismo que o texto tece entre a formação
do corpo de Jó e a do corpo de Adão, ambas partindo do barro, que só depois
de plasmado recebeu a alma humana.
Em resposta, notamos que o autor sagrado quer apenas referir a ordem que
vai do menos importante (corpo) ao mais importante (princípio vital); não há
aí sucessão cronológica de fases de formação do ser humano. De resto,
sabemos que o autor sagrado não tencionava oferecer uma descrição científica
dos fenômenos que ocorrem na origem de uma criatura, de modo que é
despropositado querer deduzir de tais dizeres uma sentença de Genética ou de
Embriologia. Adão e Jacó são comparados entre si não sob o aspecto
geneticista ou biológico, mas, sim, na medida em que ambos são objeto da
Providência Divina.
4. Conclusão
Como se deduz das declarações dos Concílios e dos Papas atrás citados,
a Igreja sempre foi contrária à ocisão de uma criança no seio materno.
Acontece, porém, que não sabendo quando o feto se torna criança (ser humano)
propriamente dita, os doutores antigos distinguiam a eliminação do feto antes
do 40.º ou 80.º dia e o aborto propriamente dito. Não chegaram a legitimar ou
aprovar aquela, mas julgaram que não podia ser considerada com tanto rigor como
o aborto propriamente dito; veja-se a intervenção de Gregório XIV em 1591 (p.
??? ). Na verdade, a extração de um elemento não humano não pode ser tida
como aborto.
Os antigos estavam, pois, condicionados pelo seu insuficiente conhecimento
de Genética, mas por certo não toleravam o morticínio de uma criança, por
mais incômoda que parecesse aos pais. Hoje em dia tal condicionamento
desapareceu, de modo que se pode com mais nitidez e firmeza repudiar o aborto
desde a concepção no seio materno, qualquer que seja a fase de evolução do
feto.
A propósito ver:
BEUGNET, A., Avortement, em Dictionnaire de Théologie
Catholique II/2, cols. 2644-2652.
CHOLLET, A., Animation, em Dictionnaire de Théologie
Catholique I/2, cols. 1306-1320.
CONFERÊNCIAS EPISCOPAIS, A Igreja e o Aborto. Ed. Paulinas,
1972.
HÄRING, B., Ética Médica. Roma 1973.
Medicina
e Manipulação. Ed. Paulinas 1977.
VARGA, ANDREW, Problemas de Bioética. Unisinos, São Leopoldo
1982.
VIDAL, MARCIANO, Ética de Atitudes, vol. 2º, Ed. Santuário,
Aparecida 1979.
1. "De mulieribus quae fornicantur et partus suos necant, vel quae
agunt secum ut utero conceptos excutiant, antiqua quidem definitio usque ad
exitum vitae eas ab Ecclesia removet. Humanius autem nunc definimus ut eis decem
annorum tempus secundum praefixos gradus paenitentiae largiamur."
Voltar