Um antropólogo em Marte
Oliver Sacks
O autismo foi descrito quase que
simultaneamente por Leo Kanner e Hans Asperger nos anos 40,
mas o primeiro parecia vê-lo como um desastre consumado, enquanto
o segundo achava que podia ter certos aspectos positivos e compensatórios
- uma "originalidade particular de pensamento e experiência, que
pode muito bem levar a conquistas excepcionais na vida adulta".
Fica claro, mesmo
nesses primeiros relatos, que existe uma vasta gama de fenômenos
e sintomas no autismo - e muitos outros podem ser acrescentados aos que
foram listados por Kanner e Asperger. A grande maioria das
crianças examinadas por Kanner é retardada, em geral gravemente;
uma proporção significativa tem convulsões e pode
sofrer de sinais e sintomas neurológicos "suaves" - toda uma gama
de movimentos automáticos ou repetitivos, como espasmos, tique,
balanços, giros, brincadeiras com os dedos ou batidas com as mãos;
problema sde coordenação e equilíbrio; dificuldades
peculiares, por vezes ao iniciar um movimento, semelhante ao que se vê
no mal de Parkinson. Também pode haver, com muita proeminência,
um amplo espectro de reações sensórias anormais (
e com freqüência "paradoxais"), com algumas sensações
intensificadas ou mesmo intoleráveis, outras ( que podem incluir
a percepção da dor) diminuídas ou aparentemente ausentes.
Pode haver, se a linguagem for desenvolvida, distúrbios lingüísticos
complexos e estranhos - uma tendência à verborragia, conversa
vazia e um discurso dominado por clichês e fórmulas; a psicóloga
Doris Allen descreve esse aspecto do autismo como uma "deficiência
semântico-pragmática". Em contraposição, as
crianças do tipo examinado por Asperger têm em geral uma inteligência
normal (e por vezes muito superiores) e menos problemas neurológicos.
Kanner
e Asperger trataram o autismo clinicamente, fazendo descrições
com tamanha riqueza e precisão que mesmo hoje, cinqüenta anos
depois, é difícil superá-los. Mas foi apenas nos anos
70 que Beate Hermelin e Neil O' Connor e seus colegas em
Londres, formados na nova disciplina da psicologia cognitiva, dedicaram-se
à estrutura mental do autismo de uma maneira mais sistemática.
Seu trabalho ( e o de Lorna Wing, em particular) sugere que existe
um problema essencial, uma tríade consistente de deficiências,
em todos os indivíduos autistas : deterioração da
interação social com os outros, da comunicação
verbal e não verbal e das atividades lúdicas e imaginativas.
O surgimento dessas três juntas, segundo eles, não é
fortuito; todas são expressões de um distúrbio único
e fundamental de desenvolvimento. Eles sugerem que os autistas não
têm nenhum conceito verdadeiro, ou sentimento, em realção
às outras mentes, ou às suas próprias; eles não
têm, no jargão da psicologia cognitiva, qualquer "teoria da
mente". No entanto, esta é apenas uma hipótese entre várias;
nenhuma teoria, até agora, abarca a totalidade do conjunto de fenômenos
vistos no autismo. Kanner e Asperger continuavam, nos anos
70, a refletir sobre as síndromes que tinham delineado mais de trinta
anos antes, e todos os profissionais de ponta de hoje passaram vinte anos
estudando-as. O autismo como tema toca nas mais profundas questões
de ontologia, pois envolve um desvio radical no desenvolvimento do cérebro
e da mente. Nossa compreensão está avançando, mas
de uma maneira provocadoramente vagarosa. O entendimento final do autismo
pode exigir tanto avanços técnicos como conceituais para
além de tudo com o que hoje podemos sonhar.
O quadro
do "autismo infantil clássico" é terrível. A maioria
das pessoas ( e, de fato, dos médicos) se questionada sobre o autismo,
faz uma imagem de uma criança profundamente incapacitada, com movimentos
estereotipados, talvez batendo com a cabeça, com uma linguagem rudimentar,
quase inacessível : uma criatura a quem o futuro não reserva
muita coisa.
É
verdade que, curiosamente, a maioria das pessoas fala apenas de crianças
autistas e nunca de adultos, como se de alguma forma as crianças
simplesmente sumissem da face do planeta.
Mas embora
possa haver de fato um quadro devastados aos três anos de idade,
alguns jovens autistas, ao contrário das expectativas, podem conseguir
desenvolver uma linguagem satisfatória, alcançar um mínimo
de habilidades sociais e mesmo conquistas altamente intelectuais; podem
se tornar seres humanos autônomos, apotos para uma vida pelo menos
aparentemente completa e normal - mesmo se encobrindo uma singularidade
autista persistente e até profunda.
Asperger
tinha uma idéia mais clara que Kanner sobre essa possibilidade;
daí nos referirmos hoje a esses indivíduos autistas com "altos
desempenhos" como portadores da síndrome de Asperger.
A diferença
definitiva talvez seja que as pessoas com a síndrome de Asperger
podem nos falar de suas experiências, de seus sentimentos e estados
interiores, ao passo que aquelas com autismo clássico não
são capazes disso.
Com o autismo
clássico, não há janelas, e podemos fazer apenas inferências.
Com a síndrome de Asperger, há uma consciência de si
e aos menos algum poder de introspecção e relato.
Se a síndrome
de Asperger é radicalmente diferente do autismo infantil clássico
( numa criança de três anos, todas as formas de autismo podem
parecer as mesmas), ou se há uma continuidade entre os casos amis
graves de autismo infantil ( acompanhados, talvez, por retardo mental e
vários problemas neurológicos) e os indivíduos mais
dotados e com altos desempenhos, ainda é motivo de discussão.
(Isabelle Rapin, uma neurologista especializada em autismo, frisa
que as duas condições podem ser diferentes a nível
biológico mesmo se por vezes se assemelham a nível comportamental
). Também não está claro se essa continuidade deveria
ser estendida para incluir a posse de "traços autistas" isolados
- preocupações e fixações intensas e peculiares,
em geral associadas a uma relativa distância e recuo social -, como
se percebe em uma quantidade de pessoas convencionalmente chamadas de "normais"
ou vistas, no máximo, como um pouco estranhas, excêntricas,
pedantes ou reclusas."