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BELLO MONTE, ECOETERNO

 Hilmar Ilton Santana Ferreira - 1997

 

I – ANTECEDENTES

-- Bom Dia, Senhor Barão Rejeabamo. Nós esperávamos vosmecê para começar a apartação e a ferra. O gado está todo no curral, com a vaqueirada esperando.

Saudando o patrão, Raimundo permitia-lhe a passagem com a montaria, deslocando um a um os mourões horizontais da cancela.

-- Muito bem, Raimundo. Vamos ao trabalho.

-- Como o Senhor sabe, patrão, este ano a produção foi pequena. A seca destiorou demais o gado. A perda não foi maior graças aos seus cuidados. Valeu muito a obra da represa. A água tem dado prá trazer até este mês de junho. Talvez dê para chegar até as trovoadas de outubro a dezembro. Tomara que 78 seja melhor que 77. Este ano foi duro. A experiência de Santa Luzia deu ruim: meio ano de seca. Não choveu até o dia de São José, o inverno vai ser ruim. Tá sendo. Nem teve milho pro São João. Se o gado do vizinho continuar bebendo aqui, sei não, viu! Pode não dar para as trovoadas.

-- Se preocupe não, Raimundo. O plantel de mais peso é o do Cel. Souza. É dele que pode vir o maior consumo. Mas não virá. Ele vai transferir parte de seu rebanho prás terras do lado de Villa Nova da Rainha. Terras boas. Molhadas. Estão sempre frescas. Mas não negue adjutório a quem quer que seja, viu, Raimundo. Só com ajuda mútua a gente pode vencer as dificuldades.

-- Tá bom, seu Barão, assim tem sido. Nosso pessoal tem ajudado o de lá. E sido ajudado. Não só no campear do gado, que tá todo junto, aproveitando os pastos e as ramas deste mundão de terra, do oco do mundo. Nós temos ido buscar boi desgarrado até a dez léguas de distância. Já aconteceu. Animal de uma das fazendas. Mas vai a vaqueirada de todas. Uns ajudando os outros. Como eu dizia, não só nas lidas da pecuária, mas também tem havido ajuda, mutirão nas tarefas da lavoura. Quando o inverno permite. Até mesmo alguns escravos têm participado. Às vezes sem a permissão do Senhor. Tem dado muito rolo.

Enquanto conversavam patrão e empregado, todos desempenhavam seu papel nas lides da ferra e da apartação. E exerciam pioneiramente naquelas bandas e naqueles tempos a relação da quinta . Os jovens animais eram contados em grupos de cinco, dos quais quatro eram derrubados no laço ou no braço dos agregados, e ferrados com o ferro do Barão de Rejeabamo. O quinto não era ferrado. Raimundo ainda não tinha ferro. Só quando fosse um fazendeiro. O quinto era dele. Os demais fazendeiros das redondezas, tirante o Cel. Souza, ainda se valiam do trabalho escravo. Com prejuízos para eles. Já que escravidão

E vaqueiragem não iam bem. Vaqueiro gosta de liberdade, chão sem fronteiras. Renovação de horizontes. Só nas campeadas longas ele se realiza.

Ao fim da labuta, dia se findando, retirou-se o Barão. Inspecionara todo o rebanho. Conversara sobre cada animal com Raimundo. Determinando providências novas e cobrando as velhas. Os novos animais ferrados, batizados, tiveram suas fichas de controle inauguradas. Aqueles que ficariam como reprodutores e matrizes. Os demais, tão logo terminada a cria, seriam passados adiante, junto com os idosos descartados. Ganhariam as estradas para as terras grandes.

Raimundo quedou-se num canto, acocorado como pseudorelaxadamente costumava descansar. Relaxou-se por inteiro, usufruindo em todas as células o repouso decorrente do cansaço produtivo e gratificante. Em sua mente em repouso iam-se formando idéias, juízos, raciocínios sobre a sua vida e o seu meio. Esta falta de chuva bem que poderia ser resolvida trazendo água para as plantações. O patrão lhe dizia da arte da irrigação na agricultura. A chuva a gente faz quando preciso. Mas de onde viria a água? Ora, do Rio São Francisco, sempre cheio. Do Vaza Barris, bastando fazer barragens. Maiores que a feita pelo patrão. Com essas águas a seca até que não seria ruim. E por que os patrões não fazem isto? Nestas redondezas todas só o Barão fez uma coisinha. Mesmo assim, pequena e mais para o gado do que para as plantas. Toda essa coronelzada aí nada fez. Não seria o caso de o Imperador mandar fazer ou dar condições de fazer? A produção seria enorme. O sofrimento menor. Feijão, arroz, milho, verduras, frutas, ficariam mais fácil de conseguir. Mas também tinham que plantar mais estas plantas que tanto dão só com as chuvinhas daqui. E que o povo só faz usar sem repor. É o umbu. Eta frutinha boa. Doce, umbuzada, tanta coisa boa. É a faveleira, com a semente boa de fazer farinha rica. É verdade que tem uns espinhos danados e esta história dos frutos estourarem a semente longe dá lugar a muito cuidado na colheita. E o juazeiro, bom pros dentes, hein? Como há coisas a serem feitas...Se houvesse uns dez homens como o Bom Jesus Conselheiro trabalhando por estes sertões...

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-- Senhor Meu Deus! Meu D. Sebastião! Meu Santo Antonio dos Mares! Convertei este povo do pecado, da luxúria, da ganância, para que de novo nos venha a bonança. Chega de tanto castigo, Senhor. Dai-nos de novo a chuva e a fartura.

Ajoelhado em pleno sol de inverno seco e frio de 1877, Argemiro termina sua demorada oração e começa a se mover, movendo o mundo. Mais o mundo de sua imaginação. Que este está em rebuliço. Que este Cel. Januário é um miserável e miserento. Tem fome de terra. Quer muito mais do que os sete palmos de que vai precisar. E prá ganhar mais e mais terras tem mandado muita gente para aquele tanto de palmos. Ele e a cambada toda desses donos de terra. Não perdoam. Não deixam pequeno sossegado. Tanto fazem que vão tomando suas rocinhas e entre eles mesmos, grandes, estão sempre armando intrigas, sem tréguas, de terra. Terrintrigas, intrigas de terras. Quantos têm movido por isto.

Jagunços, cabras, moradores, inocentes e culpados. Se não bastasse a dificuldade da seca. E este ano está difícil. Ainda há os empecilhos dos donos. Essa maldito Cel. Januário – igualzinho aos outros patrões – não me deixa plantar nada. Não ajuda. Não dá semente. E quando a gente consegue vencer as dificuldades e plantar um milhinho ou um feijãozinho ou uma mandioquinha, lá vem ele prá levar um despotismo da produção. Na maioria das vezes proíbe mesmo, lavouras que não as dele. E dessas não aproveita nada prá nós, os empregados. Os escravos estão até melhores. Têm a bóia certa, embora seja uma porcaria. Nosso ganho é pequeno. Não dá. Ainda bem que há a caça. Minora a fome. E olha que esse coronel poderia ser menos pão-duro.. Tem tanto negócio. Compra peles de todos os cantos da região. É de boi. É de cabra. É de carneiro. Junta tudo e manda prá Juazeiro. Prá Feira de Santana. Prá Bahia. Até pro estrangeiro. Que é prá fazer couro e sapato. E prá cá nada volta. Villa Nova da Rainha também é lugar para onde vai essa mercadoria. Aí pega a estrada de ferro de Juazeiro para a Bahia. Se montassem os curtumes aqui, as sapatarias aqui, bem que poderia ser bom. Tinha trabalho. Corria dinheiro. Emprego. Vão tudo pro oco do mundo e nós aqui ficamos só no oco. No outro. Foi cruel a briga do Cel. Januário com o Cel. Antonio. Que perdeu tudo. Pro outro. Este daqui. Estas terras mesmo onde moro eram do outro. A sina da chacina. E como sofremos nós os moradores destas terras. Os escravos são poucos. Sofrimento mesmo é de nós vaqueiros, dos moradores, agregados, as mulheres e os filhos. E os poucos velhos, pais e avós, que conseguem envelhecer. Temos que rezar muito. Ir a Itapicuru. Lá está um homem bom e que dá bons conselhos e coragem à gente. Como conforta o exemplo do nosso Santo Antonio do Mares. Como o povo começa a ir aos magotes onde ele se acha, aí os patrões ficam mordidos. Até inventaram que o nosso Peregrino tinha matado a própria Mãe. Ano passado levaram-no à sua terra no Ceará, preso, com essa acusação. Ficou provado que é inocente. E voltou para cá, prá Itapicuru , onde já estava, consolando e ajudando o povo a viver. Construindo e consertando igrejas e cemitérios. E fazendo milagres. E lá pros lados do Ceará, de onde veio este santo homem, há muitos missionários cuidando do povo de Deus. Além do Padre Mestre Ibiapina, com tanto trabalho não só no Ceará, com seus beatos, há um padre começando trabalho muito rico no lugar chamado Juazeiro, perto do Crato. Não é esse aqui vizinho, da Bahia. É o do Cariri. Terra onde não há seca. E esses maçons querendo acabar com a religião. Perseguindo os padres e os bispos. Mas eles não perdem por esperar. Não vão poderes de Deus. D. Vital já voltou. Os bispos foram libertados pelo governo. Mas a religião não pode ficar só do lado desses coronéis, não. Tem que olhar para o resto do povo. Para os mais fracos. Mas pro Norte o povo tem a seu favor o Jesuino Brilhante, cangaceiro que defende os despossuidos contra a fome canina de riqueza desses patrões. Cabra bom esse Jesuino. Pena que ele não ande por aqui. Na certa no futuro, lá prá meus netos, vamos Ter por aqui cangaceiros como ele para brigar por nós. Ficam esses coronéis se comportando como se fossem donos do mundo. Mas não são, não. Nem nunca foram. Esses terrenos todos eram dos Tapuios. Valentes e brigões. Enfrentaram os tais dos bandeirantes que de São Paulo pegaram as terras daqui. E os soldados que ganharam a guerra contra os holandeses e que também queriam as terras dos Tapuios. Papai, Mamãe, Vovô e Vovó contavam as estripulias feitas por aqui, nos tempos antigos, que eles nem pegaram. Era sempre a mesma fome de terra. Se mata e se morre por ela. A maior parte desses coronéis é filho, é neto desses tipos sujos, bandeirantes e soldados. Não adianta essa pose de limpinhos. E aqui prá nós a coisa tá cada vez mais difícil. Mesmo tendo saído tanta gente para a guerra do Paraguai. Os Voluntários da Pátria. Que iam na marra. Não diminuiu o problema de tanta gente para tão pouco trabalho. Acho que só eu indo a Itapicuru. Ouvir o Peregrino Santo Antonio dos Mares. Muita gente está dizendo que ficar com ele é bom e resolve os problemas maiores dessa pobrezona toda. Acho que eu devo ir. E o coronel? Aviso pra ele? Que nada. Ele vai ser o último a saber. Como ele faz com a gente.

 

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II - ENTES

 

 

21 de novembro de 1895 no calendário gregoriano. Mais um ano de rotina – o terceiro - em Bello Monte. As mães de filhos cuidando dos filhos; as mulheres e os homens que trabalham nas roças, todos indo às suas tarefas. Harmonia, clima confortável de sinergia na Sociedade. Honório Vilanova, o memorialista do arraial, experienciava sua vivência, que no futuro seria contada assim (1): "Canudos era um pedaço de chão bem-aventurado. Não precisava nem mesmo de chuva. Tinha de Tudo. Até rapadura do Cariri. Grande era o Canudos do meu tempo. Quem tinha roça tratava da roça na beira do rio. Quem tinha gado tratava do gado. Quem tinha mulher e filhos tratava da mulher e dos filhos. Quem gostava de rezar ia rezar. De tudo se tratava porque a nenhum pertencia e era de todos, pequenos e grandes, na regra ensinada pelo Peregrino. Eu e o compadre Antonio tínhamos a nossa loja, mesmo defronte do Santuário. Era um formigueiro de gente, zeladora e ordeira nos seus bons costumes, onde não havia uma só mulher prostituta. Do balcão eu via em derredor a quietude e a paz em que findavam os dias. Reinava o Peregrino. A sua palavra era ouro de lei. A sua mão suave. O bastão era apenas para se apoiar o corpo moído de tanto sacrifícios e rezas. Mais nada. O Peregrino era de boa paz. Nunca acreditou que os soldados do governo viessem matar os homens e esbandalhar as mulheres. Muita gente dizia, mas ele teimava em não acreditar. Era pacífico. O Peregrino jamais obrigou alguém a freqüentar devoções. Não permitia, isso sim, desordens, mancebias, depravações, bebedeiras, pagode dentro do arraial. Às orações na latada iam as mulheres, em maior número, e os homens mais tocados do espírito religioso. O resto cuidasse dos seus haveres, deveres e obrigações sem malquerença a ninguém. Assim era a vida. As beatas rezavam o dia inteiro. Estavam sempre ajoelhadas no oratório, desfiando os rosários, cantando as ladainhas. Até mesmo de madrugada. De manhã era o ofício. As novenas de Santo Antônio. Cantavam-se os benditos. Não aprendi nenhum, porque só uma vez ou outra aparecia pela Igreja. O Peregrino estava sempre presente e sempre pronto a repetir os mandamentos da Lei de Deus e a aconselhar o povo. Tudo que ele proferiu antes da guerra nós vimos. Não era homem para acreditar em bruxarias. Lia a sua Missão Abreviada. Tinha uma letra fina, botava a folha de papel na mão e escrevia sem parar, até quando o vento a dobrava. Páginas e páginas de profecias e orações. Durante a guerra quase não sobrava tempo para as rezas no santuário. Mas no tempo de paz, tudo era alegria em Canudos. De vez em quando aparecia o padre Sabino, vigário do Cumbe, que vinha celebrar, batizar e casar na Igreja do Peregrino. O reverendo gostava de Canudos e ali ficava mais de um dia e era muito bem recebido. Depois ia embora com a bolsa regalada. Os mascates que chegavam a Canudos viam a nossa paz, prosperidade e riqueza e saíram propalando pelo mundo. Padre Sabino de Cumbe, que ia muito a Canudos, foi por isso mesmo muito judiado pelo Moreira César, o corta-cabeça, e salvo de ser fuzilado pelo Coronel Tamarinho(sic)".

--- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!, Pai Conselheiro.

--- Para sempre seja louvado tão nobre Senhor! Como vai Irmão Raimundo? A família está boa? Os filhos e os netos? Irmão Raimundo, mandei lhe chamar para conversarmos sobre nossa situação de mantimentos e da agricultura. Nosso arraial recebe muitos irmãos novos a cada dia. Assim é preciso produzir mais pão. Com a Graça Divina, o nosso trabalho tem sido frutífero. E vai continuar sendo.

--- Os meus familiares estão bem, meu Pai. Com a Graça de Deus, todos estão sadios, pois seguindo os conselhos de meu Pai Bom Jesus, de modo que estão usufruindo do bom da vida. E o povo todo faz o mesmo. Bendito seja o dia em que resolvi deixar as terras do bom Barão de Rejeabamo. Nossas lavouras e criações atendem às necessidades do nosso santo arraial. O clima tem ajudado. O trabalho dos irmãos continua denodado. De modo que temos tido produção suficiente para nós e para fazer dinheiro. Desde a fundação de Bello Monte, meu pai, nestes dois anos, o trabalho dedicado, conjunto, um ajudando o outro, tem funcionado bem. Do jeito que trabalhamos, nossas forças ficam multiplicadas. Conseguimos mais assim do que quando trabalhávamos nas roças dos coronéis. É outra coisa. Ocupamos áreas de vazante do Vaza Barris, outras na Caatinga mesmo. Estamos produzindo muito alimento. Tanto das plantas como dos bichos. Temos feijão, temos mandioca e farinha e beiju, temos milho, temos arroz. Estamos ainda aproveitando das plantas nativas o umbu, com todos os seus produtos, umbuzada, doces, vinho, a farinha da semente da faveleira tem sido um rico alimento produzido por grupo de nossos agricultores que trabalham na Caatinga. Dá trabalho catar no chão as sementes, mas é valiosa a farinha. Temos a produção de carne indo bem. Principalmente de bodes e carneiros. Mas também de bovinos, de menor rebanho. O leite tem vindo tanto das cabras, das miunças, como das vacas. Temos feito queijos, de muitos tipos, de leite de cabra e de leite de vaca. Manteiga de garrafa. Coalhada. A própria umbuzada. O leite é de grande e variada aplicação. Não só produzimos, mas fazemos chegar o produto onde .é necessário. Temos um bem montado trabalho que distribui os produto com todas as famílias. Ninguém fica sem o seu quinhão. Nosso Conselho de Agricultores cumpre bem seu papel. E graças a distinção de Vosmicê, tenho estado acompanhando e estimulando o trabalho de todos para produzir e servir à irmandade. Como Vosmicê mesmo sabe e tem acompanhado. Posso garantir ao meu Santo Antonio Aparecido que não haverá de faltar comida para os bellomontanos. Mesmo que a população continue crescendo, que passem das 30 mil almas – já que todos se sentem bem e melhor junto ao meu Santo Antonio dos Mares do que agregados aos donos da terra -, teremos suficientes meios para alimentar a todos. Já temos as contas feitas. Temos conseguidos e vamos continuar conseguindo também suprir outras precisões que não comida. Sabe muito bem meu Santo Pai Bom Jesus que temos obtido de fora os produtos indispensáveis que não produzimos aqui. Tanto usamos os nossos mascates, o Vilanova, o Mota, o Macambira, como os de fora que aqui vêm e os estabelecidos em Cumbe, Monte Santo, Juazeiro, Vila Nova da Rainha e na Bahia. Temos mandado para fora peles e couros de animais e artesanatos aqui produzidos. E nessas transações em geral temos crédito junto aos negociantes. Mercê de Deus somos econômicos e não somos chegados a desperdícios. De modo, meu Santo Pai Peregrino, que posso lhe assegurar que Bello Monte tem cada vez mais motivo para ficar sempre mais belo.

--- É isso, Irmão Raimundo. É assim que vejo. Acima de tudo Nosso Senhor Jesus Cristo quer o nosso bem estar. Multiplicando os peixes e o pão para a fartura de seu povo. Ensinou que o talento bem aplicado é aquele que é posto a se reproduzir e não o que é simples e avarentamente guardado. Há que trabalhar e trabalhar muito e bem, Irmão Raimundo. Disciplina, organização, pertinência e persistência são qualidades básicas do trabalho. O pecado é a contradição disso. É a distorção. O pecado assume várias formas, mas no fundo é egoísmo. É preciso abrir mão da ganância, da usura. Um homem com alma limpa fica mais produtivo, mais feliz e menos exigente com os cuidados pessoais supérfluos. A penitência não é um castigo. É uma benção. É o estado que produz alegria. Riqueza íntima e exterior. O Bello Monte conseguiu acrescentar à vida parcimoniosa de seu povo o labor associado, o trabalho conjunto, com finalidade de todos. A grande diferença entre os resultados daqui e os de lá de fora se deve principalmente à forma como se encara a tarefa e o parceiro trabalhador nos dois lugares. E o Irmão Raimundo não ignora – como ressaltou na sua conversa – a importância do Conselho de Agricultores.

--- Verdade, meu Pai Peregrino. Nessa nossa peregrinação neste mundo tem muito valor o trabalho junto. E quanta coisa ficamos sabendo no Conselho. O progresso que vem das terras grandes para nos ajudar na produção. Como no caso de melhorar a terra de vazante com o uso da cal extinta e das cinzas para alimentar as plantas. Como no caso da escolha das plantas mais produtivas para reproduzir na safra seguinte. Tanto na vazante como na caatinga. Essas melhorias no nosso trabalho têm sido importantes para o bem estar do povo do arraial. Não podemos esquecer também, meu Pai Conselheiro, o grande resultado que vem da nossa organização do trabalho. Todos têm interesse de fazer o melhor. E assim têm-no feito. Cada um se sente parte da comunidade. E assim temos o menor desperdício possível, nas várias fases da produção ao consumo.

--- Mas, Irmão, insisto em saber sobre sua família.

--- Vai bem, meu Pai. Os que estão sobre a minha proteção vão tendo vida normal. No entanto o Senhor é que me pode é informar como vai o Pedrão. Ele sempre foi um menino rebelde e de gênio difícil. É o filho que mais me deu trabalho. Mas desde que veio para a Guarda Católica, sob os cuidados do Irmão João Abade e do Irmão Argemiro, acredito que ficou mais disciplinado, o Senhor concorda?

--- Eu creio que o Pedrão vai bem. A Guarda Católica está bem disciplinada e treinada. Como sabe o Irmão, esse governo de maçons e protestantes tem sido cruel com o Brasil e com quem defende o Imperador, como nós. Não se esqueça que em Masseté eles atentaram contra nós. É muito provável que pelo primeiro pretexto eles tentem agredir o Bello Monte. Temos que estar preparados. Gente destemida como o Pedrão é necessária para a nossa defesa. Mas eis aí quem melhor pode lhe informar, nosso Irmão Argemiro. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, Irmão Argemiro.

--- Para sempre seja louvado tão nobre Senhor, meu Pai Conselheiro e meu Irmão Raimundo.

--- Irmão Argemiro, o Irmão Raimundo aqui presente pede notícias sobre seu filho Pedrão, engajado na Guarda Católica.

--- Meu Pai Peregrino, meu Irmão Raimundo, o Pedrão vai muito bem. Eu tenho visto pelo seu comportamento e o Chefe do Povo João Abade tem me dito muito bem dele. É valente e disciplinado, como toda nossa Companhia do Bom Jesus. Com ela o nosso Santo Arraial está bem protegido. E precisava muito disso. Conforme missão confiada pelo meu Santo Pai Conselheiro, tenho acompanhado a evolução de nossa tranqüilidade. Desde os tempos passados em que era agregado do Cel. Januário, conheço bem como esses senhores agem. Os coronéis fazem qualquer coisa para defender seus interesses. E eles estão com o nosso Arraial Santo como espinha atravessada na garganta. Não perdoam a perda de pessoal. Muitos trabalhadores continuam a sair das fazendas para vir buscar a esperança junto a meu Pai Santo Antonio Aparecido. Eles vão armar alguma tramóia contra nós. Temos que estar preparados e de fato estamos. A Companhia do Bom Jesus, sob o comando do Irmão João Abade e contando com homens como Pedrão, e bem armada, está pronta para garantir o Santo Arraial. Agora, meu Pai e meu Irmão, vejam as ironias da vida. O Irmão Raimundo, de vida pacata, tem um filho guerreiro como o Pedrão. Eu, que tenho uma história de luta e briga, tendo como filho, embora de criação, uma criatura mística e beata como o Antonio Beatinho. Quero saber com ele vai lhe cuidando, meu Pai.

--- Ele vai bem, Irmão Argemiro. Cuida muito bem das minhas coisas pessoais e das imagens do Santuário, que são cada vez em maior número. É uma criatura de ótima disposição. Mas, Irmãos, não julguemos as coisas e as pessoas pelas aparências. O papel de cada uma é importante para nosso povo. E, meus Irmãos, temos que estar bem unidos para enfrentar os quatro fogos federais que vêm.

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III – CONSEQÜENTES

--- Oi, Almir! Quanto tempo, rapaz! Há trinta anos que a gente não se vê, não se fala e não se ouve! Você mudou pouco, homem. Só o cabelo grisalho e umas poucas rugas. No mais é o mesmo estudante de Agronomia de l964 a l967. Que boa nossa turma de 1967, hein homem? Tenho três filhas, duas delas agrônomas, uma fazendo mestrado e já se encaminhando para o doutorado. Você, rapaz, está com quantos filhos?

--- Osmar, cara! Você também tá ótimo! Conservado no álcool, hein? Veja como se esvai o tempo. Trinta anos não são trinta dias. Tenho dois meninos e uma moça. Estudam ainda. Todos na universidade. Pois é, nossa turma saiu-se e vai se saindo bem na profissão. Que Deus tenha em bom lugar nossos quatro colegas já falecidos! Conseguimos localizar onde todos estão. Os vivos, claro. Depois de tanto tempo sem notícias de tantos. Infelizmente nem todos quiseram ou puderam vir a uma festa de trinta anos. Estou sabendo que você é fazendeiro lá no Agreste Pernambucano. Espero que esteja indo bem.

--- Pois é, Almir, estamos lá entre São Joaquim do Monte e Garanhuns, cuidando das fazendas e da pecuária bovina. Com a graça de Deus temos ido bem. E você, continua no Sertão de Canudos, não é? Pelo menos nós dois nos conservamos fieis às origens. A maior parte da turma trocou de região, saindo para outras áreas diferentes da de onde veio ou da zona de influência de Juazeiro-Petrolina. E a criação deste Curso de Agronomia em Juazeiro pretendia preparar profissionais para estas região...

--- Sim, Osmar. Desde que terminei o curso que trabalho na Extensão Rural na minha terra, em Canudos. Isto é, no novo município de Canudos, antes, Cocorobó. Saí apenas pouco tempo para fazer cursos de especialização ou de mestrado. De modo que minha vida é mesmo o Sertão, com seus desafios, suas lutas, sua história e suas belezas. Quanto à turma ter ido embora, é isso mesmo. Isso é bom. Ajuda na integração nacional. Gente das diversas regiões criando raízes em outras. Veja que das todas 31 turmas formadas aqui, sempre alguns colegas ficaram na região. Mas o mais importante na criação de um Centro desse é gerar um núcleo que estude, pense e aja sobre os problemas regionais, aplicando métodos tecno-científicos. É assumir de modo mais consciente seu próprio destino. Se você não aceita este argumento, então aceite o do José Américo, que, ao instituir a Escola de Agronomia de Areia, Paraíba, sua terra natal, dizia aos seus conterrâneos: --- "Meus compadres, se esta Escola não servir para nada, vai pelo menos servir para casar nossas filhas!" E olhe que, neste sentido, tanto Juazeiro quanto Petrolina foram muito bem servidos, você não acha?

--- Sem dúvida! Quantos colegas casaram por aqui! Mas é claro que aceito a motivação da liderança tecno-científica como o maior atributo da nossa Escola de Agronomia. É infelizmente uma tese que não foi perseguida com a gana e a determinação necessárias, concorda comigo?

--- Concordo em gênero, número e caso!! Tem sido sempre assim. É o tal negócio da História sendo repetida. Há cem anos atrás – veja: este ano ocorre o centenário da destruição do Bello Monte, ou de Canudos, como o chamavam os adversários – o Bello Monte precisava de luz e de estudo e lhe mandaram "o professor Comblain e o argumento definitivo da bala". Meu caro Osmar, será que você, nestes trinta e quatro anos de formação e trabalho profissional, já percebeu o grande paradoxo que a gente vive: é riquíssima a nossa pobreza? Nossa vivência aqui tem sido um microcosmo do macrocosmo que é a humanidade ou as humanidades de todos os tempos, se você o preferir. Na nossa santa e ingênua ignorância, nos temos reproduzido todo o drama da espécie. Você há de convir que, guardadas as proporções, vivenciamos os grandes os grandes gestos da História, lances de heróis e de bandidos: de santos e de cafajestes! E para que lado tem pendido a balança? Ora prum lado, ora pro outro. Com predominância de qual? Cada um que responda, considerando o quadro em volta. Pedantemente eu chamaria esta tragédia a "síndrome da inércia passivo-retroativa descendente": somos uns grandes inertes, nada fazemos (ou fazemos muito pouco) para melhorar nossa situação, só agimos em resposta a algum estímulo, não tomamos iniciativa e estamos no geral indo para baixo. O Santo Peregrino Conselheiro chamou isso simplesmente de Pecado. O drama da nossa região, o drama do semi-árido é o drama da humanidade. Veja o que ocorre com a agricultura em todo o orbe. O homem vive em cima e na dependência de "meia dúzia" de vegetais. E para aumentar ainda mais esta outra tão pouco lembrada concentração ( a da terra e da renda, um estoque e um fluxo de riqueza, têm sempre os seus batalhadores contra ), tais oligarcas vegetais são de um mesmo táxon, as ex-gramíneas e atuais poáceas.

--- Mas você não muda, hein Almir! Continua o mesmo...

--- Calma, calma! Não me interrompa. Como eu dizia, a gente vive de umas poucas gramíneas, arroz, trigo, milho, mais umas outras tantas leguminosas, feijão, soja. A maior parte destas culturas vêm dos tempos bíblicos ou são mais remotas. E nem procuramos atualizar o potencial que a flora nos oferece. Antes, nem procuramos conhecer cientificamente, com gana, este potencial. Como investimos pouco nisto. Agora em armas... Em compensação ( e que compensação!), antes de conhecer, estamos destruindo. Quantas espécies vegetais ( e animais, hein?... ) se extinguem por ano! Quantas ameaçadas! Potências que nunca serão ato. Para sempre. E quanto poderíamos obter das plantas em termos de alimentos, fibras, proteção, agasalho, óleos, fármacos, materiais de construção e diversos, energia...puxa! Não acaba mais. A Agronomia, desde que surgiu em meados do século XIX, se aceitarmos que a descoberta da nutrição mineral de von Liebig marca o início da nossa ciência, neste 150 anos, fez imensos progressos verticalmente, sobre algumas poucas espécies. Mas pouco avançou horizontalmente.

E esse é um desafio. Aqui também a síndrome pedante funciona. O que Darci Ribeiro disse uma vez para os cientistas sociais vale para todos: somos todos mestres em zelar pelo que tem menos importância e descuidar do essencial. Nos preocupamos mais com a metodologia, materiais e métodos, do que com os objetivos. Sem dúvidas, nestes trinta anos houve progresso. Criou-se na região um sistema de agricultura irrigada. O subsetor de tomates industriais aqui, por exemplo, chegou a superar São Paulo em volume de produção. E assim, com outras plantas. Mas sente-se no ar que falta algo. A caatinga ainda é pouco utilizada. Ainda não pode sustentar muita gente.

--- Realmente, Almir, pouco tem sido gasto com pesquisa e extensão nesta área. Impressionante esta falta de sensibilidade. Mas também o dinheiro vai todo para pagar dívidas. O neoliberalismo está aí mesmo, provocando o FEBEAMUN...

--- FEBEAMUN? O que é isto?

--- "Festival de Besteira que Assola o Mundo".

--- Ah... Stanislau Ponte-Preta. Concordo. E como estamos no mundo... Você não acha que o nosso homem do campo da caatinga enfrenta os mesmos problemas da comunidade conselheirista? Só que o de hoje com as desvantagens de não ter a coesão e a força dada pela fé no Conselheiro?

--- Acho sim. E você tem razão a respeito da inércia. Lembra-se que há trinta anos nós os estudantes tivemos que greve para estagiar nos programas de agricultura irrigada oficiais que por aqui começavam? Por certo que então só tivemos êxito devido a lideranças locais ativas...

--- Me lembro como se fosse hoje.

--- Puxa, como é difícil avançar! Agora andar prá trás... Ei! Com respeito ao Conselheiro, há uma tese por aí segundo a qual ele não morrera no arraial, mas sim teria fugido para Minas Gerais, onde tivera uma vida pacata até a morte natural.

--- Mas isto é um absurdo! Querem acabar com este símbolo nosso! É idéia de maluco. Com toda as provas que a quarta expedição colheu, inclusive a foto do cadáver exumado e a própria cabeça do dito cujo levada como troféu e objeto de estudo! Qual é! Curioso é que há quem diga o mesmo de Lampião. E também para Minas Gerais. Mas isto não faz o menor sentido. Além do que é pouco divulgado. Felizmente. Estou ouvindo sobre isto pela primeira vez. O Bello Monte é o nosso paradigma de fibra, de luta, de garra. Do desafio eterno do nosso ecúmeno, do nosso ecossitema, da nossa economia. Você não acha que na época do segundo centenário da destruição do Santo Arraial outras pessoas estarão discutindo as mesmas coisas, expondo as mesmas teses, sob as mais diferentes formas, tal como hoje?

(1) MACEDO, N. (1969)- "Memorial de Vilanova" – Rio – O Cruzeiro – citado por BARROS, L.O.C. (1989) – "A Terra da Mãe de Deus – um estudo do Movimento de Juazeiro do Norte" – Rio – Francisco Alves – 329 pp.