Presença de Yukito



Capítulo 3
 
 

Espero que ele não possa me sentir aqui, eu não o sinto. Mas será que Cerberus pode perceber, por mais longe que esteja, a presença de Frost? Cerberus nunca percebeu... A presença de Yukito. Mas eu sim. Não pára de chover, e já anoitece, não há mais um único rastro de luz que possa entrar pelas janelas das escadarias de onde moro. Não há nada aqui que possa impedi-lo de entrar, Cerberus, apesar de suas intenções, não é um ser maligno.

Agora é uma questão de paciência.

Eu o abraço com força, sentado no chão ao seu lado e temendo mais pela sua vida do que pela minha. Frost não demonstra mais medo, nem raiva, somente aquela expressão tão adulta e fria que ele adquire em alguns momentos. Levanto trazendo-o comigo, não posso ficar com ele por mais tempo aqui. Estamos encharcados e exaustos. Ele sofre mais com isso do que eu. E também, não é educado deixar visitas esperando. Sim, minha visão abriu-se de tal modo e tão bruscamente que sei que somos esperados, em meu apartamento. E posso até dizer quem é.

Por isso não me assusto com o a verdadeiro freak show que nos espera além da porta aberta, para não dizer escancarada do meu apartamento.

Eriol está muito à vontade, sentado, me esperando, e ao seu lado está Rubymoon, mais ambíguo do que nunca, seus olhos vermelhos estreitados e furiosos, e do outro, Spinel Sun, mostrando-se em uma perturbadora forma humana, um rapaz de aparentes vinte anos, de olhos solidamente violetas e pele azeitonada quase tão negra quanto seu cabelo. Se Sakura visse isso ia ficar mais de uma semana sem conseguir dormir. Perturbador, assim como Rubymoon e Yue, mas muito bonito, sem dúvida.

"Eu disse que não queria mais ver você nem pintado."

"Se fosse mais educado ao telefone saberia que não deveria ter ido ao hotel. Por que acha que eu não fiquei lá?"

"Por que não me disse, Eriol?"

"Você ia acreditar? Você só acredita no que vê, e eu acho que tem visto bastante, ultimamente."

Fico olhando para ele tentando saber o que Eriol veio fazer aqui. Ele sabe que não está seguro, por isso está com seus dois guardiões.

"Por que Cerberus quer matar o seu aluno?"

"Ele não é mais meu aluno. Na verdade nunca foi."

"Você tramou isso, por que eu não percebi?"

"Não tramei. Destino. Coincidências." – Frost ignora o olhar fixo de Eriol, sua voz . - "Dívidas, penitências..."

"Não existem coincidências, apenas o inevitável. Você fez com que tudo isso acontecesse?"

"É o que Mizuki diz... Mas não, eu não fiz. Eu fiz com que Frost se perdesse, mas eu não poderia adivinhar que você justamente iria encontra-lo. Acredite... isso não é do meu feitio."

"Não?"

Frost treme de frio ainda, ele não tem reação alguma com as palavras e a presença de Eriol. Apenas suspira, cansado.

"Por que Cerberus quer matá-lo?"

"Chame isso de vingança. Se achar que a palavra é mais bonita."

Perco um longo tempo achando que não escuto isso. O rosto de Frost é calmo e triste, como não cabe à expressão de alguém da sua idade ou da sua natureza. Quase posso esquecer que ele não é humano. Vingança.

"Ou chame de Destino, se agora acredita nele, depois de ter visto com seus próprios olhos do que ele é capaz."

"Ah, que me importa? Afinal, eu decidirei pelo que fazer. Saia daqui, Eriol..."

"No final, a decisão não será sua." – Ele não sorri e nem insinua nada com seu olhar escuro e cinzento, seu terno de corte clássico demais para sua idade o faz mais estranho do que seus próprios servos. – "E eu não irei embora por que você quer que eu vá. Eu irei depois que você veja o que tem aqui."

Ele mete uma das mãos dentro do paletó e tira uma velha fita de vídeo do bolso. É igual a tantas outras, não tem etiqueta alguma, somente o plástico cristal de uma de suas faces trincado, os cantos do plástico gastos e quebrados também.

"O selo que prendia Cerberus ao livro foi destruído, deve saber o que isso quer dizer."

"Não, não sei." – Seguro a fita em minha mão.

"Eu não irei estragar a sua surpresa, então... Não me olhe assim. A culpa com certeza não foi minha, não da morte de Sakura. Talvez das coisas que levaram a isso, pensando bem..."

"E esta fita? O que tem aqui?"

"Tomoyo costumava gravar tudo o que Sakura fazia, quanto mais se fosse algo a ver com os círculos de magia... Seria natural que ela houvesse feito isso naquela noite, não acha?"

Li, aquele pirralho escondeu a fita da polícia e quase enlouqueceu os investigadores, mentindo sem dó nem piedade. A quem ele estava protegendo? O que estava escondendo? Ele sabia desde o princípio... Por que eu não percebi isso antes?

"Por que ag..."

"Porque isto sim é inevitável." – Ele se levanta e traz Rubymoon ao seu lado, com um braço em sua cintura, possessivamente. – "Não me pergunte mais nada. Seja qual for a minha resposta, você não gostará de ouvir. E eu não sou o mais indicado para tomar partido de qualquer lado, neste momento."

"..."

"E se Cerberus erguer sua espada contra você, não erga a sua. Quebre-a."

Olho para a fita novamente, e quando Eriol passa por mim, Spinel Sun o seguindo, eu o vejo, sem me surpreender, adquirir sua forma de animal mais uma vez, e receber um leve afago de Frost sobre sua cabeça. Eles se reconhecem, sem dúvida. Mas Rubymoon não escasseia ao menino mais um olhar enviesado, e a mim, um repleto de despeito. A despedida de Eriol para Frost é sem palavras, sem explicações, somente um longo olhar de cobiça, que brilha em seus olhos por detrás de seus óculos. Um cavalheiro, mesmo com atitudes mundanas, mas sem dúvida, ele é um cavalheiro, tem a baixeza e sordidez que cabe às pessoas de classe: evidentes. Frost por sua vez parece aliviado, creio que ele nunca esteve bem perto de Eriol, nunca deve ter se sentido seguro ou o estivesse por vontade própria, mas ele, que foi seu professor, não hesita em me dizer, fazendo com que eu o olhe no rosto, segurando-me firme pela nuca:

"Toya, não faz idéia de como eu o invejo."

E mais uma vez consegue me roubar um beijo, quase tão longo e molhado quanto o primeiro, na verdade, Eriol mostra-se de tal forma que quase me derruba no chão. Depois disso, olha uma última vez para Rubymoon, que agora voltou a ser alguma coisa chamada Nakuru, e ele ri, deliciosamente. Seu riso é incrivelmente cínico e contagiante, mas eu fico no mesmo lugar, sem reagir, sem falar, somente olhando para isso. Ele não sabe como me irrita, ou talvez saiba, por isso faz o que faz. Talvez por isso de alguma forma ele o faça para assombrar Frost, que discretamente se esconde detrás de mim quando vê Eriol muito perto. Deve ter seus motivos, mas eu não os questiono. Não preciso saber. Se tiver de saber, que seja por que ele quis que eu soubesse.

A porta se fecha e nós ficamos, mais uma vez sozinhos, para nos defender-nos de um estranho inimigo que tem o poder de um sol. E tudo o que ele me manda fazer é quebrar uma espada, e certamente ele se refere a que um dia pertenceu a Li, mas não sei como fazer isso, ou se devo realmente. É o único artefato mágico que tenho, e nem sei se ele terá poder o bastante para nos ajudar. E eu, assim como Eriol, não sei qual partido tomar, eu nem sei quem é Frost. Errado. Eu sei que foi ao seu lado que eu dormi, foi sua boca que eu beijei, todavia, não sei de quem são de fato aqueles olhos que vejo em seu rosto.

Realmente, não estou interessado nisso. Vamos, eu o suspendo pela cintura, observando bem de perto como ele é bonito e estranho, e está tremendo de frio ainda, mando que ele tire aquelas roupas. Frost faz que sim com a cabeça e não tenta dissimular sua preocupação. Ele sabe muito bem que não há segurança nenhuma aqui, e tudo é uma aposta às cegas de que Cerberus espera somente por nós lá fora, uma vez que não sendo de sua natureza, ele não seria tão ardiloso para invadir este lugar, e até a cilada do hotel foi armada com cuidado e zelo para que Frost estivesse sozinho.

Cerberus não pode me matar, e não há um motivo que eu conheça para isso... Ele falou em Sakura, e Eriol falou em vingança. Ah, Frost, por que você é o que é? Mas se eu me apaixonei por você assim... Se pelo menos eu o entendesse. Não faça assim, este rosto de criança perdida, seu corpo de adolescente palpita inteiro ao longo do meu, seus pés estão inertes, acima do chão, mas não tenho coragem, percebo que meu beijo não vale nada, que qualquer coisa que eu faça é pouca para mostrar o que sinto, e eu não consigo nem lhe dizer isso. Vamos, eu o ponho no chão, me sentindo pequeno, perverso e mesquinho, com os sentimentos de nós dois, e o mando se trocar de uma vez. Ele corre de mim e some dentro de meu quarto. Digo ainda que deixe a porta aberta, para saber que tudo está bem.

Quando me vi sozinho, me vi também completamente vazio de qualquer sentimento, e aquela fita na minha mão... Eu esperei treze anos para saber o que havia nela, mesmo sem ter certeza de que ela poderia existir. O que eu não poderia ter dado para saber quem matou minha irmã? Para saber quem matou Yukito?... Não tenho mais dúvida alguma de que foi a mesma pessoa, ou a mesma coisa.

"Fique no quarto, venha quando eu chamar." – Digo para Frost, e escuto minha cama ranger quando ele certamente se atira sobre ela. Ele reclama baixo que está com fome, pergunta se podemos comer "aquele macarrão com pauzinhos de nome estranho" de novo.

Eu seguro uma risada, lembrando de meu próprio embaraço quando Frost me roubou aquele beijo.

É uma pena que ele me faça tão bem, e que esse peso em mim seja tão grande que nem isso consiga me fazer esquecer da (maldita) fita. Não sei o que há aqui, penso quando a ponho no aparelho de vídeo e ligo a televisão quase sem uso, e nem sei se quero saber, ainda, a sensação de tocar em uma coisa que um dia foi de Tomoyo, que mostra exatamente o que se passou ante os olhos dela. Devem ter sido cenas terríveis, capazes de no mínimo enlouquecer alguém. O cartucho por pouco não foi destruído.

A fita começa a passar, antes em azul, depois em estática, zumbidos, mais azul e surge então uma placa de papel: um letreiro com desenhos de criança, muito coloridos, uma caricatura de Tomoyo e uma de Sakura, e voz de ambas em risos misturados, e Tomoyo anunciando uma nova aventura. Minha irmã, em seus últimos momentos. Ela aparece em várias cenas tremidas, rindo, correndo, lutando com Li pelo chão, desenhando os círculos e os símbolos pelo chão como se estivesse desenhando uma amarelinha. Ela não sabe o que vaio acontecer. Li manda que ela pare de brincadeiras e seja rápida, "antes que o chato do seu irmão volte". São só garotos, nenhum deles tem quinze anos completos... Estão rindo, bebendo refrigerante, trocando pedradas de farelos de bolo, não sabem mesmo o que vai acontecer. Sentam-se, depois, dentro do círculo, desenhado com giz no chão. Sakura está de pijamas. Li segura as mãos dela, está um de frente para o outro, ajoelhados, e entre eles uma vela acesa. Parece ser um ritual simples. Eles estão... Chamando aquele que... matou Yukito. Tomoyo continua filmando, e a imagem balança, entre trecos moídos e sacolejos, ao redor deles, e Tomoyo os filma bem de perto. Estão na sala de estar da casa, a luz está apagada para não chamar a atenção dos vizinhos. Isto me dá uma sensação terrível... As velas ao redor, a espada de Li não está perto dele, somente o báculo de Sakura está por perto, e longe de seu alcance, quando acontecer... as cartas estão espalhadas ao redor, ao longo do círculo de giz.

Por que eu preciso ver isso? Eu sei como tudo vai terminar, sei tão bem quanto se eu estivesse estado em casa nesta hora? Minha cabeça parece que vai explodir, as palavras de invocação que Sakura usa não me são de todo estranhas. Tapo os ouvidos, mas não é o suficiente. Continuo vendo, as imagens se distorcendo, no entanto, voltando a ser nítidas, e mais, é inevitável. Não quero ver isso. Baixo a cabeça e fecho fortemente os olhos para não ver. Eu sei o que está acontecendo. Esperei dez anos para saber quem a matou e quando escuto o nome de seu assassino, mesmo que eu não queira ouvir, eu não acredito. Dez anos para escutar sua alegria em vê-lo. Sim, ela o amava, o respeitava e admirava, e ele a matou. Sakura não tinha medo algum, por isso ela não quer escutar quando Li manda que ela não saia do círculo do chão. Seu riso... Seus gritos, os gritos de Tomoyo, os de Li, chamando seu nome, e chamando o nome de quem a matou. Sem dúvida, foi a mesma pessoa que matou Yukito, porém, Sakura não se vingaria. Jamais. A fita está moída, quando eu torno a olhar, somente há a imagem de um pedaço de chão de mármore que eu conheço bem, por que eu o lavei, pois era o sangue de minha irmã que estava sobre ele. As velas estão tombadas e rolaram de seus lugares, e as cartas, assim como todo o centro da sala, está tomado de fogo, e a lente da câmera, está quebrada. A fita está moída. Após isso, tudo o que eu vejo é um grande azul, que se estende até o fim dela.

Tiro as mãos dos ouvidos. Dez anos para ver minha irmã morrer pelas mãos de... Não pode ser, mas eu não questiono, esta verdade não foi manipulada, eu sinto o medo que estava neles quando aconteceu, eu sei o tamanho da decepção que Sakura sentiu quando se viu traída por quem menos esperava. Eu esperei anos para descobrir isso, e também descubro que não valeu a pena.

Meus olhos ardem muito, mas eu não vou chorar. Jurei que não ia chorar. Não posso chorar agora. Há muito que fazer, eu não posso pensar na minha dor. Frost precisa de mim.
 
 
 
 
 
 

Fico longos momentos olhando para a tela preta da televisão desligada, até me decidir o que fazer agora, que tenho a verdade em minhas mãos e confirmada em todas minhas sensações. Não consigo me surpreender quando Frost aparece do meu lado. Acho que ele viu, ou ouviu tudo. Não pergunto, não quero saber, e ele deve imaginar o motivo, ou assim o demonstra ou ignora. Ele fica na minha frente, em pé, vestido apenas naquela minha mesma camisa que usou para dormir na noite passada, e ele parece tão pálido e luminoso que não me lembro de que as luzes deste cômodo estão apagadas. Ele ilumina a minha noite. Tão sério, me olhando com seus olhos de adulto, os braços soltos ao lado do corpo.

É insuportável ver que ele está ficando triste, e pior ainda, que é por minha causa. Não sei lhe sorrir, nem dizer nada apropriado. Passo um dedo sobre seu nariz arrebitado e Frost sorri, pestanejando. Que sorriso... O que eu faço com você? Bato na sua cara ou o levo para o quarto para terminar o que começamos na madrugada? Ele fica sério mais uma vez, quando eu me levanto e o levanto pela cintura, estreito a mim, seus pés descalços balançando lentamente.

"Está me olhando daquele jeito mais uma vez. Como se me atravessasse..."

"Desculpe."

"Suas roupas estão molhadas."

"Eu sei."

Passo a mão mais uma vez em seu cabelo quase louro, sentindo cada fio escapar, frio e liso, entre meus dedos, toco suas sobrancelhas castanhas, seus cílios longos, seu rosto de anjo, a pele suavemente fria. Assim eu o deixo no chão. Seu corpo está nu embaixo dessa camisa que fica quase em seus joelhos, e eu sei disso, reconheço cada curva como se já houvesse tomado este corpo mil vezes antes, reconheço este suspiro como se meu nome sempre houvesse estado na sua boca.

Não posso fazer isso com ele. Não vou agüentar saber que eu o magoei, se descobrir que não o amo, e sim o desejo, e ambos são muito parecidos e quase o mesmo, quando ele está perto de mim. Eu espero que ele entenda que eu o amo. Não sei se da mesma forma como amei Yukito, a casca de Yue, ou o próprio Yue, mas tão intensamente quanto, e meu medo é que apenas esteja vendo num inumano Frost o rosto que um dia pertenceu a eles.

Engulo em seco meus pensamentos, finjo mais uma vez que não está acontecendo nada e digo-lhe que vá procurar o que comer, na cozinha, enquanto estiver ocupado. Ele faz que sim, sem sorrir, mas com alívio. Deve estar faminto e cansado. Quando você crescer, Frost... Não vai precisar olhar para cima quando eu falo com você. E eu não vou precisar economizar meus carinhos, e nem ficar medindo até onde minhas mãos podem ir quando eu o tocar...
 
 
 
 
 
 

Saio do banheiro enxugando o cabelo, e terminando de fazer o nó do roupão, mas não muito refeito do que vi. Embora eu tente me distrair com outras coisas, aquela revelação que não vi nem ouvi, mas que tomei parte parece ressurgir em cada canto. Escuto o barulho da torneira da pia da cozinha. O apartamento não é grande, e Frost parece saber se virar sozinho numa casa. Está lá ainda, na cozinha. Deve ter feito uma bagunça memorável.

Se agora ele ficará comigo, pelo visto por nossa mútua decisão, vou ter de me acostumar. Estou satisfeito por isso, mas inquieto ao mesmo tempo.

Fico escutando o silêncio que há entre a torneira ser desligada e seus passos leves e descalços virem até o quarto. Ele surge na porta, primeiro seu rosto, seus olhos sorrindo, depois, ele entra, vem direto para mim e senta-se na cama, indiferente ao bigode de leite que está sobre seus lábios. Mais uma vez tenho de resistir bravamente a apertar suas bochechas...

Vou para ele, sem pensar muito seriamente em resistir a qualquer de seus cruéis apelos, ou atender a qualquer de suas negativas. Seu beijo agora tem gosto de leite e chocolate. Ele não resiste quando minha língua procura a sua, nem quando trago seus braços para cima de meus ombros. Frost se larga completamente, inerte, os olhos fechados, totalmente meu. Seus lábios não são frios como o resto de sua pele, e seu rosto fica vermelho quando eu me afasto para saber se não o estou machucando. Ele abre um par de olhos de gelo, quentes de todas as perguntas que eu tenho a fazer, respondidas com um suave e profundo...

"... Sim... "

Meu peso o sufoca, mas Frost não me pede para parar, nem quando meu abraço se torna possessivo demais para ele. Eu não deveria fazer isso, mas eu fiz tantas coisas que não deveria... Frost é o meu pecado mais sórdido. Faço um rastro de beijos e suspiros entrecortados por seu queixo e seu pescoço, sem me preocupar com os poucos botões que restam na camisa que o veste. Os lençóis se repuxam nesse movimento, e nas mãos crispadas dele.

Perdoe-me por te amar, Frost.

Quando beijo seu ombro, eu percebo o que estou fazendo. O que um menino como ele tem o que decidir? Estou me deixando levar mais uma vez. Mas ele quer tanto, seus olhos úmidos, seu coraçãozinho acelerado, que eu quase posso escutar, seus joelhos afastados, que me acolhem com uma terrível familiaridade entre eles, agora. Ele geme meu nome, não diz mais nada, somente meu nome. Minhas mãos se apertam na sua carne virgem e macia, e ele solta um ruído longo de êxtase que enche meus ouvidos. Ele quer me enlouquecer. Não quer se entregar, somente me enlouquecer, se esfrega contra a minha coxa, arfando violentamente, enquanto eu o acaricio, beijo seus ombros delicados. E permito que faça isso, sem esquecer o terror que causei-lhe antes, na primeira noite. Jasmim, em seus cabelos revoltos, espalhados no lençol embaixo de nós, em seu corpo todo, no seu fino suor. Aperto-o com mais força sobre a cama, que range, e fecho os olhos porque sinto que meu prazer é tanto em lhe dar prazer que é como se eu estivesse lhe fazendo amor.

A respiração de Frost pára por um momento, ele todo se faz em um arco, afundando no colchão, e suas unhas abrindo novamente os arranhões que já estavam feitos em mim. Ele geme, e se esfrega mais, ansioso, contra minha perna. Ante meus olhos fechados, as palavras de Eriol tomam uma inusitada imagem: eu vejo a espada de Li se quebrando, e isso me surpreende tanto que eu me afasto de Frost num salto, fechando o roupão, respirando fundo para tentar raciocinar o que está havendo. O menino de olhos azuis se senta na cama, perplexo, sem vergonha de sua nudez, seu corpo suave e branco todo exposto ao meu olhar surpreso.

"Vamos procurar por ele. Cerberus está muito perto de nós."

Frost cora e, ofegante, acena que sim. Não me questiona. Talvez se eu não houvesse feito isso, ele o fizesse. Ele parece me entender. O desejo nos matará, Frost, não duvide. Você será meu, quando eu tiver paz para isso, mas agora, não. Você, sua presença, aliviam minha dor, mas não me fazem esquece-la. Sua presença...
 
 
 
 
 
 

Andamos firmemente pela rua afora, está tudo vazio, e eu poderia jurar que a primeira neve do inverno que se aproxima está vindo esta noite. É perto de meia noite, não sei qual importância isso pode ter, mas meu instinto diz que alguma. Frost segura minha mão com força, se apressando para seguir meu passo, e eu abraço a espada de Li, que está dentro de meu casaco, quase com a mesma paixão com que abracei o corpo de meu anjo de gelo.

Não precisamos falar. Nosso entendimento é perfeito no silêncio que nos acompanha. Só preciso estar ao seu lado para saber que tudo posso, e você, espero que saiba que ao meu lado tudo farei por você.

Vez por outra consigo escutar um rosnado baixo, que vem da garganta do leão que invisível e de muito perto nos acompanha. Às vezes eu apresso tanto o passo que já corremos, sem olhar para trás, seguindo o rumo que Cerberus, ou a sensação de tê-lo por perto, nos faz correr. De vez em quando eu sinto as garras de Cerberus passarem sobre o tecido do meu casaco, sem poderem me tocar.

Desta forma chegamos à igreja, velha, escura, poeirenta e abandonada. Entramos pela porta da frente, aberta como se nos esperasse, fechada depois que entramos, solidamente, como se este lugar tivesse uma vida secreta e quisesse nos tomar para si. Não tenho medo. Pouco do luar que está do lado de fora entra pelos vitrais, quebrados ou inteiros. Não tenho nenhum tipo de receio, apenas obstinação. Não há nada aqui que possa impedi-lo de entrar, Cerberus, apesar de suas intenções, não é um ser maligno. Não nego o alívio que percebi quando vi Frost entrar aqui ao meu lado, sem que nada sentisse. Não foi conjurado para e pelo mal.

A espada de Li é a última garantia de que Frost saia desta perseguição insana com vida, e eu, com minha sanidade intacta. Não sei a quem procurar, pois neguei a Eriol tentar me ajudar, quando disse que não queria mais vê-lo. Espero, do fundo do coração, rezando ao Deus que é dono deste templo que não deixe que o anjo de olhos azuis que me acompanha pague o preço de minha covardia, ou da minha arrogância. Não posso permitir que mais alguém que eu amo me abandone, não por medo da solidão, mas pela crueldade que eu estaria cometendo se assim o deixasse, sem nada tentar para impedir, da mesma forma como tantas outras aconteceram.

Penso em seus olhos, frios e azuis, sinto o seu olhar em mim. Ele não odeia Cerberus, talvez não o conheça e nem o entenda. Não posso lhe fazer perguntas, nunca posso.

"Há muitos anos que não ponho os pés em um lugar assim. Você deve mesmo ser um anjo para me fazer vir aqui."

"Por que você não vinha?"

"Eu tinha medo de ser julgado."

"Ainda tem medo?"

"Sim, eu tenho." - Não nos mexemos, e entre cada pergunta e cada resposta, há um silêncio longo e profundo, e nossa voz e baixa e trêmula no eco da grade nave vazia e escura da igreja.

Ele escapa de debaixo do meu braço que envolvia seus ombros estreitos e caminha até o meio da igreja vazia, os bancos estão amontoados rés às paredes, em uma montanha de madeira gasta e apodrecida. Tudo aqui é coberto de pó e tem mais de cem anos, e as pedras sob nossos pés, certamente devem ter mais de duzentos. Estamos de frente para o altar. Vou andando e tentando não fazer ruído nenhum, para ficar perto dele. Não há mais imagem alguma, em lugar algum desta igreja, não há mais nem um santo, ou anjo... Para que quero ver imagens de anjos, se Frost já se parece com um? Ele é tão pálido que posso vê-lo mesmo com o escuro que nos cerca e envolve.

O que eu não daria para saber afinal o que ele é?...

"Ele irá entrar. Você não pode dar sua vida para poupar a minha."

"Morrerei ao seu lado."

"Morrerá comigo. Você morreria por mim, To-ya?" - Ele pergunta, ainda sem olhar para mim. Eu não tenho resposta. Recordo brevemente que Frost disse que havia vencido a morte para estar comigo. Do que ele estava falando? Tenho tantas coisas a perguntar...

Como posso salva-lo? Minha única chance é arriscar a partir do fato que Cerberus não quis me matar. Ou ele não pode me matar.

Não me volto para olhar, mas um arrepio que há exatos quatorze anos não me sacode voltou com força total. A última pessoa que eu achei que poderia me encontrar agora entra pela porta da igreja, profana por sua existência, pelo que é, e por quem foi o responsável por isso, mas não a profana pela forma que veste e nem pelo seu objetivo. Cerberus adentra esta igreja através da pesada porta de madeira, sem, no entanto abri-la, ele atravessa o carvalho e o metal secular como se atravessasse uma cortina de fumaça. Não preciso olhar para saber que ele está aí, a cinco passos atrás de nós.

Ele chama meu nome e pede, com calma, com suavidade, que eu deixe-o terminar o que deve. Nesta hora nossos olhares se cruzam, por cima de meu ombro, quando eu volto meu rosto para ele. Suas asas brancas quase o envolvem totalmente, Cerberus aponta para Frost, num gesto simples e sem manifestar nem um mínimo de sua força e diz que eu não sei o que há ao meu lado, que eu não vejo o que Frost é, simplesmente porque não quero ver. Ele diz que é evidente. E me pede, com uma fria calma que nunca o vi em momento algum adquirir, enquanto ele estava com Sakura, que eu deixasse Frost morrer.

Aceno que não, quando ficamos frente a frente. Ele parece se sentir traído. Cerberus não sabe mentir, ele é tão puro que não sabe o que é isso, e até sua raiva de Frost parece um ódio infantil, agora. Seus olhos são grandes e rasgados como os de um leão, e seus cabelos são cheios e louros, como uma juba. Ele tem tanto poder que nunca soube até onde ele poderia ir. Clow nunca o permitiu, eu sinto isso quando nos encaramos, Frost escondido atrás de mim, olhando desconfiadamente, por trás de meu braço.

Não vou ataca-lo. Sakura nunca gostaria disso. Eu mesmo não gostaria de machucar Cerberus, mas uma pergunta que está em mim há muito não pode ser calada, não quando o tenho à minha frente, neste agora, que já conheço a verdade:

"Cerberus, por que você matou minha irmã?"

Seus olhos dourados se arregalam um momento, e ele baixa os olhos.

"Assim você retribuiu tudo o que ela lhe deu? Você era tão grato a ela a ponto de fazer isso?"

"Gratidão nada teve a ver com isso."

"Então, o que era?" – As palavras correm como há dez anos atrás deveriam ter sido as lágrimas que nunca derramei. – "Você lhe tinha ódio?"

"Nunca tive ódio por Sakura. Ela era... a minha irmãzinha. Eu a tinha como... uma irmã, como uma protegida..." – Sua voz tão poderosa se torna um sussurro. Ele não levanta seus olhos para me encarar, Cerberus olha para o chão, para seus pés descalços sobre o piso sujo, tocando-o sem se sujar. – "Eu a amei mais do que você."

"Eu sei disso. Foi você quem enxugou as lágrimas dela, quando ela sabia que não poderia contar comigo, ainda que eu pudesse ajudar." – Paro um longo momento, controlando a vontade louca de chorar por ela que aperta meu peito, bem debaixo de onde sinto o frio da lâmina da espada atravessar minhas roupas. – "A minha frieza... a minha aspereza... má vontade... egoísmo." – A última palavra é a pior de todas, quase engasgo quando a digo em alto. – "Eu deveria ser muito grato a você, Cerberus, por nunca tê-la deixado sozinha... por protege-la. Mas quando eu imagino que ela não esperava receber a morte das suas mãos... Eu tenho vontade de matá-lo. De machucá-lo. Como você pôde? Se não lhe tinha ódio, por que fez isso a uma menina que o amava mais do que a mim?"

"Não sabe o que eu senti." – Seus olhos faíscam quando afinal ele me devolve o olhar.

"Eu não sei mesmo. Mas qualquer coisa que tenha sentido, foi tarde demais para fazê-lo." – Um gosto salgado invade minha boca. Meus olhos estão secos, mas eu choro por dentro, amargamente, tardiamente. – "Você chorou por ela? Você chorou quando a matou?"

"Sim."

"Você derramou uma lágrima sequer quando matou Yue, o seu irmão?"

Quando estas palavras o atingem, é como se ele todo se tornasse luz, pronto a atacar, emanando calor, mas também contendo isso, uma emoção que não é humana e nem pode ser medida, sufocando a si mesmo com tanta intensidade, necessidade de se conter, que Cerberus cai de joelhos no chão, os olhos rasos de arrependimento e raiva. Ele não responde, somente contém duramente o tamanho de sua raiva ao escutar que sei que ele também matou Yue.

Fico olhando para Cerberus sem conseguir odiá-lo, mas também sem achar como perdoar o que ele fez...

"Já pensou quantas vidas você destruiu? Li, Tomoyo, eles tinham tanto futuro, um futuro maravilhoso, e agora só tem o medo que você colocou no coração deles... Eu mesmo, nosso pai... Agora eu lhe pergunto: por que?"

"..."

"Por que matou Sakura? Ela nunca o castigaria..." – Eu acredito em minhas palavras. Estou sendo sincero com ele e comigo. –"Ela o amava. Por pior que fosse seu erro... Cerberus, ela o perdoaria."

"Mas ela nunca iria querer saber meus motivos. Ela, assim como qualquer mestre, simplesmente não se importava." – Sua voz se eleva, revoltada, triste. Ele sofre como eu, posso perceber. Está chorando. Suas asas se agitam de uma forma selvagem, e uma pluma branca se solta, e fica flutuando entre nós. Baixa a cabeça e soluça, sem esconder nem dissimular nem um instante de sua dor: - "...Ela, assim como Clow... simplesmente nunca se importou."

"Está enganado. Ela se importava mais do que qualquer outro..."

"Sakura... Ela cometeria os mesmos erros de Clow... Ela... minha irmãzinha...!" – Ele lamenta, dolorosamente.

Um silêncio profundo se faz entre nós. Se eu tivesse de castiga-lo, seria inútil. Ele sofre tanto...

"Por que você a matou?"

"Ela estava cavando a própria sepultura, desejando vingar o Juiz..." – Suas lágrimas caem no chão, quando ele se apóia nos punhos cerrados, trêmulo e desesperado. – "Sakura ia me aprisionar... eu sei."

"Ela também gostava dele."

"O suficiente para não me querer mais como seu guardião... Para não me dar liberdade... Poder escolher... Viver..."

"Por isso você matou Yue?"

"Yue..." – Quando ele repete o nome de Yue, não disfarça um certo nojo e desprezo. – "O Juiz... Todos o amavam, você sabia? Você não foi o único a amá-lo. Mas ele nunca amou ninguém. Simplesmente por que ele não tinha um coração! Dentro de seu peito só havia um pedaço de gelo e um encantamento. O resto... era a destruição que ele causava. A todos nós."

"Você se destruiu por que o matou."

"Eu não o matei. Matei seu aspecto humano. O Juiz, ele..."

Ele soluça, com as mãos sobre os olhos e volta a inflamar-se, mas novamente não faz nada. Desaparece lentamente, até ficar trêmulo no chão, sua túnica vermelha espalhada ao seu redor. Não termina suas palavras.

"Chega de julgamentos. Ele nos destruiu." – Diz por fim, respirando fundo, levantando um rosto e é como se ele se iluminasse.

"Valeu a pena?"

Cerberus olha para mim, com estranheza.

"Você o matou. A sua dor por odiar o que ele fazia não diminuiu. Você matou Sakura e quebrou definitivamente o selo que poderia aprisiona-lo naquele livro, queimou as cartas... Isso tudo valeu a pena?"

"Eu não entendo..." – Ele olha para as mãos, esfrega-as sobra a túnica, como se tentando limpar um sangue que não estivesse lá.

"Você está preso a este mundo, não tendo mais o selo que era a sua entrada para o livro. E está preso a mim, que sou o irmão de sua mestra, por eu ter poder..."

"Não..." – Ele tenta protestar, confuso, traído, e ele se sente cada vez mais deste modo, a cada palavra que eu digo. E eu me sinto pior do que ele, por ter de ser tão duro com um ser que apesar ou por tudo, não merece a minha raiva. Ele matou a minha irmã, e eu não sei sentir raiva dele, somente pena e um vazio enorme e opressor.

"... justamente por eu ter poder e nunca ter usado-o, justamente por isso eu tenho poder para mantê-lo preso a mim, Cerberus." – Eu digo tudo isso, assim como resto, muito pausadamente, e trago Frost para meu lado, arriscando nossas vidas apenas nesta chance mínima, que minha intuição consegue me dar, respostas que deveriam ter sido óbvias desde o princípio, agora reveladas em minhas próprias palavras. – "Justamente por eu nunca ter erguido meu poder contra nada e nem ninguém... justamente por isso, você está preso a mim... e eu poderia destruí-lo se eu quisesse."

"..." – Ele não diz nada. Baixa sua cabeça como um bom e obediente servo.

Clow deveria lhe dizer estas palavras, lembra-lo a cada momento que poderia destruí-lo, pois a forma como ele reage a ouvir isso de mim é estranha. Cerberus sorri amargamente.

O que estou fazendo? É o mesmo erro de Clow, evidente por sua reação. Não posso prendê-lo a mim, ou estarei acabando com o que resta do Cerberus em que Sakura tanto confiava. Não vou fazer o mesmo que seu criado fez... Fico olhando seu sorriso desaparecer e um enorme conformismo surgir em seu rosto inumano.

"Fique com a sua dor. Eu continuarei com a minha." – E acaba por escapar mais uma coisa, sem querer, eu digo mais uma coisa que não poderia negar: -" Eu entendo cada um dos seus motivos, até os que você quer manter em segredo. Eu não vou perdoá-lo. Eu sinto muito. Mesmo."

Cerberus se curva sobre si mesmo, como se uma dor profunda o cortasse ao meio. Sua mente é fechada para mim, mas eu bem gostaria de saber o que o faz tão inquieto, tão angustiado. Entre as mechas de seu cabelo, um olhar de raiva profunda é dirigido sempre no rumo de Frost. Ele vê a criatura que se esconde em Frost, mas eu não, de fato, admito, porque não quero ver.

"Deixe os mortos descansarem onde estiverem, Cerberus. Você está..." – Solto a mão de Frost por um momento, e me abaixo na frente dele para fazer Cerberus levantar, e por isso não termino de dizer o que quero.

"Menos um último, meu mestre..."

Ele levanta o rosto, encarando-me mais uma vez com o olhar selvagem e irado que o conheci no hotel, me afasta de si num empurrão e tudo o que ele havia sufocado, aquela emanação total e incrível de poder e magia que o tomava, volta, quase cegando, assustando-me de tal maneira que não reajo. Ele aponta a mão para Frost. Seu olhar me perguntava se eu morreria por ele. Minha resposta silenciando de novo. Todo o interior da igreja abandonada está iluminado como se fosse meio dia, e o centro desta luz quente e lindíssima e fatal é Cerberus.

O olhar de Frost não tem medo nenhum, apenas uma pergunta silenciosa que somente eu poderei responder.

Eu o amo.

Eu morrerei por ele.

A espada se quebra em meu coração.

O estalo do metal é alto como se ele invadisse a igreja e sufocasse a luz, e Cerberus tomba no chão, com um grito entrecortado de dor, suas penas soltas caindo pelo piso. Frost apenas cai, sobre os tornozelos, agora sim, trêmulo de um medo real, e fechando os olhos a escuridão que reina nesta igreja. Ele tem medo de escuro. É só uma criança.

Levo as mãos ao peito, tocando onde a espada estava, como se eu houvesse morrido de fato, a dor estava lá. Era como se a espada me houvesse atravessado, mas ela está quebrada, sua lâmina está dividida em duas. Não há sangue. Em alguns minutos a dor desaparece como se nunca houvesse existido. Este é o poder que nem mesmo eu sabia ter? A espada está quebrada, Cerberus não pode mais fazer nada.

"Cerberus, você está livre. Chega."

Quando escuto meu próprio sussurro quebrar o silêncio da igreja, o luar cheio que entra pelos vitrais e clarabóias me mostra do que minha vontade é capaz, quando eu ergo o poder que me foi tomado por Yue. As asas de Cerberus se abrem como se num espasmo de dor, ele parece um anjo caído sendo castigado. Mas eu não faço isso com essa intenção. Eu não quero que ele seja castigado, que ele perca sua pureza. Eu quero que ele cresça, que ele veja o quanto foi amado. O quanto ainda pode ser. Eu o fiz livre de mim, de ser meu servo, mas eu não havia feito-o livre do peso de ser o que é. E isso poderá destruí-lo, mais ainda.

Solta um grito curto e entrecortado de pura dor e alívio, quando num esguicho, como se alguém usasse a mesma espada invisível que o derrubou para decepar suas asas. O sangue se espalha pelo chão, cada asa tomba para um lado, e ele arranha o chão, enquanto não tem forças para gritar. Ninguém o tocou, mas suas asas foram cortadas. Ele cede em seu próprio peso, e pelas costas nuas de sua túnica, nós vemos a marca cicatrizar, na forma asas, como se elas estivessem agora pintadas sobre sua pele. As asas inertes se desmancham, algum tempo depois, em um amontoado de plumas que enche o ar, flocos brancos e cintilantes, que desaparecem quando eu tento toca-los, na minha perplexidade. Frost corre para mim, e eu o recebo com gratidão por confiar em mim, eu o aperto como um juramente de que nunca mais iremos nos separar. Eu o amo, não tenho dúvidas, e quero acreditar que ele também não as tem.

Cerberus se ergue, tonto, daquele desmaio. Coloca-se nas mãos, sentado. Olha ao redor como se tudo fosse muito novo para ele. Olha para as próprias mãos. Toca os próprios cabelos. Está ofegante e cansado. Fica sentado um longo momento, tocando suas roupas, que se transformou nas mesmas que ele vestia quando estava em sua forma humana, antes de se revelar no hotel. Olha o sangue espalhado ao redor, que some, como se também fosse pó. Vira-se para mim, e, apreensivo, sustenta meu olhar.

"Você está livre. Eu não quero que você me seja meu servo. E nem de mais ninguém. Está livre, pode escolher o que quer fazer, e ninguém mais irá mandar em você." – Engulo em seco, está acabado. Tudo é tão simples agora. Minha dor parece tão pequena, eu me sinto tão pequeno perto do resto. – "Tudo o que você vai fazer será por você mesmo. Volte ao Japão, e tente consertar os erros que puder. Seus erros. Somente assim, você verá o quanto você era amado, a quantos que você magoou."

Ele abre os lábios para falar, mas hesita. Não olha mais com raiva para Frost, apenas com um duro conformismo, vendo que eu escolhi isso, e não adianta que ele tente mudar as coisas, o Destino quis assim. O Inevitável. O que Cerberus pode saber e eu não sei, acabarei por descobrir, ainda que tarde demais.

"Cuide de Li. Faça Tomoyo cantar novamente, faça companhia a meu pai. Alegre-os. Nunca diga seu nome verdadeiro. Cerberus está morto. Você escolherá sua vida a partir de agora. Leve isto." – Quase caio na tentação de sorrir quando ponho em suas mãos o pedaço da espada, a lâmina. O lado que tem o cabo ficará comigo. – "Em um ano vamos nos ver de novo, queiramos ou não, é inevitável. Então você poderá escolher qual vida o agrada mais. Espero que até lá perceba o tamanho do que fez, e do amor do qual abriu mão."

Uma lágrima, única, a primeira lágrima humana daquele que um diz chamou-se Cerberus, escorre por seu rosto, e ele sorri timidamente, sem dizer nada. Segura o pedaço da espada, bem junto a seu peito. Fica ali, de pé, pensativo. Não há mais nada o que posso fazer. Libertando-o, eu me liberto.

Toco os ombros de Frost e trago-o comigo, vamos sair daqui. Ele precisa ficar sozinho, e com certeza não precisa de nós. Vamos voltar para casa. Está acabado.

Frost fica olhando para trás, sério como o adulto que ele consegue parecer, quando fica com o olhar duro assim... Ele se solta de mim e corre de volta para o humano que Cerberus se tornou. Ficam parados um na frente do outro, aquele rapaz e aquele adolescente pálido, mas não há hostilidade, nem raiva e nem medo, quanto menos. Pena que eu não possa saber o que se passa em suas mentes inumanas, mas creio que eles se entendem, a seu modo.

Frost, antes de voltar para mim, deixa algo entre as mãos dele, que olha, surpreso, assombrado, para o que fica segurando. Antes do anjo de gelo me levar pela mão para fora dali, eu ainda consigo ver o que é, não menos surpreso do que ele.

É uma flor de cerejeira. A flor que dera o nome de minha irmã.
 
 
 
 

CONTINUA



Epílogo
Presença de Yukito
Card Captor Sakura