Renato Russo
(1960-1996)
Ligo o rádio do carro. "Faroeste Caboclo", bem no comecinho. "Não tinha medo, o tal João de Santo Cristo...". Começo a cantar junto. Pra variar. Teve uma época que todos sabiam cantar esta música, menos eu . Não que eu não gostasse. Minha prima comprou "Que País É Este?" no dia do lançamento, logo que abriu as lojas. Adorei "Faroeste Caboclo" logo de cara. Mas achei que nunca tocaria nas rádios devido a longa extensão de 9 minutos. Seria o meu hit pessoal. Mas a música explodiu e tocava em tudo quanto é canto, com todos sabendo a letra de cor. Achei que tinham roubado a música de mim, e só de raiva não aprendi a cantá-la. "... meu Deus mas que cidade linda, no ano novo eu começo a trabalhar...". Alguns anos depois, acho que entre os álbuns "Quatro Estações" e "V", teve um revival da música que voltou a ficar entre as mais pedidas. Fiz as pazes e passeia a canta-la inteirinha. "...já no primeiro roubo ele dançou e pro inferno ele foi pela primeira vez. Violência e estupro do seu corpo. Vocês vão ver eu vou pegar vocês..." E agora toda vez que ouço eu canto. Às vezes dou uma tropeçada, mas continuo cantando. "...ele dizia que queria se casar, e carpinteiro ele voltou a ser. Maria Lúcia, pra sempre eu vou te amar. E um filho com você eu quero ter..." Percebo que é uma versão ao vivo. Lembro-me do show no Ginásio do Ibirapuera em 94. Recentemente fiz um ranking com todos shows que assisti. Seriam só shows internacionais, porque as bandas nacionais estou sempre vendo. Abri uma exceção para o Sepultura, banda brasileira de carreira internacional, e para a Legião Urbana, devido a raridade de shows. Havia perdido o show de 90 no Palmeiras, pois havia marcado com um pessoal que acabaram desistindo, e eu não quis ir sozinho. Em 94 não encontrei ninguém para ir para o show comigo, mas falei desta vez eu não vou perder. Estava sem dinheiro e fui de arquibancada. O show foi um delírio. A cada música, parecia que o estádio viria a baixo, uma vibração fantástica. Faltou "Faroeste Caboclo" e "Índios". Tudo bem. Um show que está entre os dez melhores que vi na vida. Dá próxima vez eles tocam, e eu vou de pista. "...ele queria é falar pro presidente, para ajudar toda esta gente que só faz sofreeer". A locutora da rádio fala "...'Faroeste Caboclo' em versão ao vivo gravada em São Paulo em 1990...". E eu penso. Merda, eu tinha que perder este show... Ela continua "... infelizmente...", e eu penso "...ela vai falar que não tem show da Legião para este ano, coisa e tal. Tudo bem. Eu espero. Mas ela falou "... infelizmente foi confirmada a notícia que Renato Russo morreu à 1:15 de hoje." Isso. Seco. Renato Russo morreu. Não é possível. Deve ser mais um boato. Mas aquele "notícia confirmada" me desconcertou. Fico procurando em outras rádios por mais informações, e em algum ponto obscuro do dial encontro um sujeito falando "... era um grande letrista, uma perda irreparável para a música brasileira...". É a confirmação. E continua citando letras da Legião, elogiando o grande poeta que Renato era, coisa e tal. Mas o detalhe mórbido me persegue. Será que foi suicídio? Será que foi AIDS? Quando já estou desligando o carro o locutor fala "...infecção pulmonar levou Renato Russo...". Ah, foi AIDS. Caminho pelas ruas do centro, e cada loja de disco toca Renato Russo: "Strani Amori", "Eu Era Um Lobisomem Juvenil", "Eduardo e Mônica"... Esta última foi um marca na minha vida. Começo da adolescência, as músicas até então não tinham sentido nenhum para mim, sorvia e descartava todas que passavam por mim, sem nenhuma atenção. Tinha em casa apenas discos de música infantil. De rock, eu gostava de músicas engraçadas, tipo Ultraje a Rigor. Encarei "Eduardo e Mônica" como uma dessas músicas. Mas eu gostava muito desta música, foi a primeira que eu queria ouvir toda hora. Um amigo meu comprou o "Dois" e eu fui gravar. O toca disco dele não tinha cassete, então levei um gravador e coloquei do lado do som. Era para ser só "Eduardo e Mônica", mas acabei gravando o disco inteiro. Fui hipnotizado por aquela fita com gravação de baixa qualidade (tinha um ponto em que se ouvia o irmão do meu amigo chamando ele) e músicas como "Daniel na Cova dos Leões", "Tempo Perdido", "Índios" e "Quase Sem Querer", a minha favorita do Legião até hoje. Legião Urbana foi a primeira banda a se fixar na minha mente, e a agregar sentimentos à música. Volto para a garagem, ligo carro e ainda no escuro "Angra dos Reis". Me dá um nó no coração e meus olhos ficam úmidos. Em 89, quando fui fazer intercâmbio nos EUA, levei fitas com gravações dos três discos da Legião até então: "Legião Urbana", "Dois" (aquela mesma que gravei de meu amigo) e "Que País É Este". Um dia fiquei mostrando músicas para um amigo americano. Ele achou que Ultraje a Rigor fosse um Iron Maiden brasileiro, Titãs banda de reggae de raiz, Paralamas do Sucesso samba. Não acertava uma. Quando mostrei "Angra dos Reis" ele disse que era de uma melancolia muito bonita, me pediu uma cópia e a tradução da letra. Fiz uma coletânea para ele, não traduzi "Angra dos Reis" porque achei que não ficou muito legal, mas fiz uma versão em inglês de "Será" para ele que ficou mais ou menos assim "Take your hands out of me/I am not one of your toys/It's not dominating me like this/That you're going to understand/I may be alone/But for sure I know where I'm going/You may have doubts about it/I don´t think is love/Will be/Only imagination/Will be/That all this is in vain/Will be/That we're going to win". Meu amigo adorou a letra. Quando eu tinha saudades, sempre Renato Russo & Cia. me socorriam. Uma prima foi estudar nos EUA este ano e me pediu uma fita que tinha as músicas destes três álbuns. Eu dei sem reclamar. E assim que saiu, mandei o novo "Tempestade ou O Livro dos Dias". Uma das primeiras coisas que fiz quando eu voltei em 90 foi comprar "As Quatro Estações" que foi lançado quando eu estava fora. Era a primeira vez que eu comprava um disco da Legião, os outros eu só havia gravado. Fiquei sabendo que o Renato Russo se declarou bissexual. Aquilo mexeu com os meus preconceitos, me deixou indignado, mas o caráter e a dignidade de Renato Russo me fez eu rever a minha ignorância, e a diminuir o meu preconceito. Logo depois surgiu a notícia de que ele estava com AIDS. Fiquei deprimido com isto, já não bastava esta doença maldita estar levando o Cazuza. Mas nada foi confirmado. Cazuza morreu logo em seguida. Não foi nenhuma surpresa, sua doença e sofrimento foi longamente aproveitada pela mídia ávida de espetáculos. Foi melhor o Renato nunca deixar claro a sua doença. Toda sua angústia foi transportada para o "V", um álbum que passei longe, achei muito chato. "Teatro Dos Vampiros", "Vento No Litoral", "Metal Contra As Nuvens"... Músicas arrastadas, longe do Rock 'n' Roll. Para mim fazia parte da decadência que atingia o Rock nacional, em que os grandes nomes lançaram trabalhos medíocres, o Paralamas com "Os Grãos" e Titãs com "Tudo ao Mesmo Tempo Agora", e não surgia nada de novo (pré Chico Science, Raimundos, etc.). Quando foi lançado "O Descobrimento do Brasil", resolvi fazer as pazes com a banda e comprei o CD, levado principalmente por "Perfeição", que tinha muito peso. A primeira audição inteira do disco me decepcionou um pouco. Mas ouvindo faixa a faixa, ficou melhor. Achava que as músicas funcionavam muito bem separadas. Não eram aptas para a superexposições que as músicas da Legião costumam ter nas rádios. Tive a mesma impressão no último, "A Tempestade ou O Livro dos Dias". O disco abre com "Natália", com um peso e estilo que lembra "Perfeição". Gostei também de "Dezesseis" que me lembrava um pouco os primeiros da Legião. Outras como "A Via Láctea" ou "1º de Julho" me chamaram atenção pelas letras. Foram poucas que não gostei, "Longe do Meu Lado" e "Música de Trabalho" e "Música Ambiente". Ouvir o álbum todo de uma vez é um pouco cansativo, as músicas estavam muito deprimentes. Eu conseguia sorver melhor as faixas isoladamente, como em "O Descobrimento do Brasil". Agora vejo como minha covardia ficou notória. De querer fugir do amargo, e apenas criticar "hum... tá meio chato". Renato Russo, uma perda irreparável. Isso é mais que óbvio. Vai se o poeta e sua angústia. O rock nacional agora está dominado por letras engraçadinhas. Nada contra. Mas sem Renato Russo, o equilíbrio fica mais distante. Mas é ouvindo "Perfeição", gravado em no estúdio Transamérica ao vivo, é que eu vejo o que acontece. Ao final da música, Renato Russo canta um trecho de uma música do Nirvana. Kurt Cobain e Renato Russo. Dois ídolos que me abandonaram cedo. Eles tinham muito parecido, a juventude difícil, a alma punk, líderes de bandas que surgem de cidades parecidas, isoladas, cujo movimento musical é desproporcional ao tamanho. E também foram massacrados pelo sucesso. Eles deram um pouco de luz para minha vida medíocre, e que eu dou em troca? Nada, apenas me junto ao coro daqueles que vivem exigindo que seu ídolos façam o que queremos. Damos fama e fortuna, e queremos manipulá-los, queremos sua intimidade, sua alma. Tratamos de forma vulgar e ainda reclamamos o abandono. Eu poderia agora dizer "Valeu Renato". Mas não valeu pois ele não está me pagando nada. Eu é que vou ficar eternamente devendo, porque contrariando "Por Enquanto", o pra sempre nunca acaba. Pelo menos enquanto eu dure.
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