Veio Ver VERÍSSIMO ?


Entrevista

O guloso e o computador

(extraído da coluna do Gravatá, em "O Globo" - fev/99)

Usa micro há muito tempo ?

Há uns dez anos.No início, ficava meio chateado com as confusões que ele me aprontava. Sumia o texto que estava escrevendo, perdia arquivos, um inferno. Hoje, é diferente. O próprio programa cria um backup automaticamente, o que me dá uma certa tranqüilidade. E quando a coisa complica muito, chamo minha filha Mariana, que entende bem desse negócio. Praticamente uso o micro, hoje, para edição de textos e para jogar paciência. Meu último livro, "Gula", foi o primeiro inteiramente escrito no computador. Nem vi o papel. Passei direto para o disquete e o enviei para a editora.

A relação com o micro

É ainda um pouco reverencial. Ainda sinto que estou tratando com alguma coisa que é mais inteligente do que eu. Confesso que me sinto ainda intimidado por ele. Essa virtualização cada vez mais abstrata, mais separada da coisa tangível, me assusta um pouco. E, ao mesmo tempo que está facilitando a vida de muita gente, também está estabelecendo uma divisão muito maior entre o que antigamente se chamava "cultura científica" e "cultura humanística" .

Leitura virtual

A emoção de ler um livro, o contato, até mesmo o cheiro do papel, acho que isto nunca vai ser substituído. A leitura no monitor não tem o mesmo encanto. Manejar um livro, até um jornal, é coisa voluptuosa, sensual, deliciosa. Talvez isso tudo tenha a ver com preconceito da gente, que nasceu em outra época.

***

Insolência

(publicado no JB, em 22/11/97)

O Jorge Furtado comprou um programa de traduções para o seu computador e fez uma experiência. Digitou toda a letra do nosso Hino Nacional em português e pediu para o computador traduzi-la sucessivamente em inglês, francês, alemão, holandês etc. Do português para o inglês, do inglês para o francês e assim por diante até ser traduzida da última língua do programa de volta para o português. Segundo o Jorge, a única palavra que fez todo o circuito e voltou intacta foi "fúlgidos". Em inglês, "salve, salve" ficou "hurray, really hurray" e parece que em alemão o texto ficou irreconhecível como hino mas, em compensação, reformula todo o conceito kantiano de transcendentalismo enquanto categoria imanente do ser em si.

Vou sugerir ao Jorge que faça outro teste e peça para o computador traduzir um texto em que conste a expressão "barato estranho", só para dar boas risadas. Confesso que o meu barato é ver computador ridicularizado. Um pequeno gesto de resistência, à beira da obsolescência. Não posso mais viver sem o computador, mas a antipatia cresce com o convívio. Agora comprei um programa de texto à prova de erro ortográfico. O computador não me deixa mais errar, por mais que eu tente. Subverte o que eu tenho de mais pessoal e enternecedor e sublinha a palavra errada em vermelho insolente. A palavra "agora", aí em cima, apareceu na tela sublinhada. Ele está provavelmente sugerindo que talvez eu queira escrever "ágora", praça das antigas cidades gregas. Não: "ágora" também saiu sublinhada. Sua mensagem é que eu tenho uma escolha entre as duas palavras, sua insinuação é que eu não sei a diferença. E quando não existe opção e o que eu escrevi está irremediavelmente errado - ele corrige sozinho! Eu tento repetir o erro, só para mostrar que alguns dos nossos ainda não se intimidaram, e ele não deixa.

Sei que não demora o programa que corrigirá sintaxe, pontuação e concordância e ainda fará comentários irônicos sobre o estilo. Que venha. Tradução eles não sabem fazer. Rá!

LFV

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