Orgulho e Preconceito, Razão e Insensibilidade Luis Fernando Knaack de Castilho
Os fatos narrados a seguir são verdadeiros e já devem ter sido vividos por muitos, da mesma
forma que o autor deste texto. Do mesmo modo que certas pessoas fazem o bem e não esperam
retribuição, outras deixam de fazê-lo, por vezes inconscientemente, sem que possamos culpá-las
por tais atitudes. Assim como há pessoas com deficiência física ou mental, há outras com
deficiência de formação humanística, o que é uma grave imperfeição do caráter, própria da
espécie humana, por mais incrível que isto possa parecer. O que vai ser citado demonstra que
muitas vezes, atitudes valem mais que orações, partindo de pessoas simples, gestos difíceis
de serem encontrados em pessoas ligadas e sustentadas pela religião. Jesus Cristo, coitado,
que viveu pobre e morreu pobre, sempre fazendo o bem, nunca poderia imaginar que algum dia
tanta gente ganharia fortunas, explorando a fé alheia através do seu carisma,que permanece
vivo quase dois mil anos após o seu desaparecimento.
Aconteceu em 1982. Inesperadamente, após sete meses de gestação, nossa querida filha, a quem
demos o nome de Jacqueline veio ao mundo, pesando apenas 1.520 g e com intensa anemia.Para
continuar viva, havia necessidade urgente de uma transfusão,de raro tipo sangüíneo.
Descobrimos,em parente próximo,a compatibilidade tão desejada.Ao ligar para sua casa,
fomos atendidos por sua esposa, que relutava em fornecer o seu paradeiro. Como insistíssemos,
disse, hoje ele não poderá doar sangue, pois iremos à nossa igreja, à noite, assistir a um
casamento. Não podemos deixar isso para amanhã?Tão logo soube de nossa preocupação,
o doador colocou-se prontamente à nossa disposição, pelo que somos gratos até hoje.
Em razão da prematuridade,o bebê necessitou permanecer internado por sessenta dias em UTI,
na URPE ,conceituada clínica,com competente corpo clínico, à qual devemos a vida de nossa filha.
Com prognóstico reservado quanto à presença de seqüelas neurológicas a serem percebidas em
futuro incerto, sofremos angustiante espera. Apesar de ser médico, pude sentir na carne o
que vários pacientes já passaram nas garras diabólicas de certos planos de saúde.
Na ocasião, fui ao departamento médico da felizmente extinta Golden Cross Assistência
Internacional de Saúde, inúmeras vezes para tentar ser reembolsado pelos pagamentos por
mim efetuados, tendo ouvido de um "colega" que eu deveria dar graças a Deus, pelo que
o plano iria me pagar, como se fosse um grande favor.Tive vontade de torcer o seu pescoço,
tamanha a revolta.Graças a Deus ,deveria ele ter dado por eu ter ficado apenas com vontade.
Só me pagaram o que deviam,após ameaçar escrever para os jornais. Que máfia!
Após uma longa expectativa, meses depois, temeroso, confirmei, com a consulta à vários
especialistas, o que mais temia.
Foi feito intenso tratamento fisioterápico, em clínicas, algumas das quais mais pareciam lojas
comerciais. Numa delas, uma fisioterapeuta nos apresentou sua outra colega como "minha sócia".
Fazia nos sentir mais fregueses do que clientes. Pagamentos eram efetuados adiantadamente.
Mais de uma vez , ouvi a pergunta : "Vocês já pagaram este mês?", antes mesmo da compensação
do cheque, num estabelecimento da zona sul,à beira-mar. A sensação que tínhamos, era que
havia um cifrão estampado na testa de nossa filha. Várias cirurgias foram feitas, visando
corrigir seqüelas ortopédicas.
A primeira delas, numa renomada clínica, num bairro aprazível, onde fomos muito bem tratados,
pelo seu proprietário, antigo "colega" de pronto-socorro,que não parava de dizer a todo o
tempo - "Você é colega nosso,não se preocupe com o pagamento, pois você é nosso irmão.
Além do mais, você tem plano de saúde, para que se preocupar?". Na ocasião, argumentei
que o plano só cobria despesas hospitalares e que o pagamento aos médicos seria feito
através de uma ridícula tabela . " Ora, deixe disso, você é ou não é nosso irmão ?!
" E lá ficamos, cerca de sete dias, após a cirurgia sem a menor necessidade,
desconfortavelmente instalados, com nossa filha apenas imobilizada por aparelho gessado.
Neste período, fomos visitados por muitas baratas e por diversos especialistas,
também sem a menor necessidade, pois fora o incomodo do gesso, nada havia para ser
feito. Quando falava a respeito da alta, desconversavam No dia de irmos embora, o
"colega" puxou um bloco, colocou em cima da coxa e começou a efetuar suas contas, no
melhor estilo de um quitandeiro, com todo o respeito. "Cirurgião-x, anestesista-k,
instrumentadora-h, pediatra-g,diárias-f, exames-w; televisão-p, acompanhante-t ;
total = $$$$$$$. Por favor, colega, pode deixar o seu chequinho,ao portador,sem
cruzar, por obséquio. "Não esquente a cabeça com isso, vá ao seguro e brigue que
eles vão lhe pagar tudo",afirmou, cinicamente. Vendo que eu não era tão irmão como
dizia, pedi meus recibos, para tentar receber o irrisório reembolso oferecido pelo plano
de saúde, que pagava apenas as diárias, integralmente, ao contrário das demais despesas,
com as quais meu colega dizia que não devia me preocupar. Aguardo dele, até hoje, os recibos
médicos, que de tão insignificante reembolso, desisti de receber. Esta clínica, ainda existe
e ganhou muito dinheiro, de governos, através de convênios,fazendo exames de alto custo,por
atacado, para prefeituras de todo o estado. Hoje, seu proprietário ainda ostenta um alto
padrão de vida, desfilando a bordo de luxuosos carros, apesar de processado pela justiça,
por várias falcatruas ,juntamente com diversos figurões, autoridades da saúde de governo
já encerrado. Eis aqui a prova do sucesso da parceria imoral entre governo e comerciantes
da doença. Deixaram apóstolos espalhados por este Brasil afora. Essa turma fez escola!
Hoje, vários anos após, coleciono mais de dez histórias escabrosas, de pessoas que ficaram
quase sem as calças,vítimas da ganância do referido abutre, através dos mais abomináveis
expedientes, aproveitando-se da vulnerabilidade dos familiares, por ocasião de dolorosos
momentos, vividos na emergência de hospital público, de grande movimento, na Zona Norte.
Lá trabalhava, drenando sofrida clientela,por meio de sua nojenta teia de aranha,no centro
da qual ficava à espreita,para sugar as vísceras dos incautos,cravando neles suas quelíceras
peçonhentas, com grande deleite, obtendo assim,o seu pão de cada dia. O seu nome não precisa
ser dito pois a Justiça já está acompanhando a sua atuação.Por outro lado, para mostrar que
nem tudo está perdido, não posso deixar de citar o Hospital Adventista Silvestre,
como organização modelar, pois em nova cirurgia agiu com perfeição, através da
competência do Dr. Victor César, honrando o seu plano de saúde. Posteriormente,
tivemos a sorte em sermos atendidos em Brasília,no Hospital Sarah Kubitschek,
pela equipe do Dr. Álvaro Nomura, que após sofisticada bateria de exames,
desconhecidos da maior parte da população, desaconselhou uma nova cirurgia,
apontada por jovem e empolgado profissional do Rio de Janeiro,como indispensável,
após custosos testes a serem realizados, por sua indicação, em Chicago, nos EUA.
Pelo atendimento, em Brasília,nada nos foi cobrado,além de nossa filha ter evitado uma cirurgia
desnecessária e que a deixaria pior do que estava. Quanto profissionalismo! Quero destacar
também a atuação da ABBR, organização séria e da fisioterapeuta Érica Luísa Schlinke,autônoma,
que após fazer nossa filha andar, com muletas, depois de um grande trabalho, ao ver o quadro
de Jacqueline se estabilizar, recomendou cessar a fisioterapia, para nos poupar um gasto
desnecessário, ao contrário de certas clínicas, que sangram o paciente até o último centavo.
Passados alguns anos, havia chegado o grande momento. Nossa filha iria estudar! Acompanhados
por amiga da família,ex-aluna, fomos nós, pai e mãe e filha, cheios de esperança, levados
à presença da "Irmã" Maria de Assis, diretora de escola religiosa de grande fama, Colégio
Sagrado Coração de Maria,localizada logo no início de Copacabana,quase ao lado de nossa
casa.Era superiora, não só na função que exercia na confraria, mas de fato, na sua maneira
de se relacionar com os outros. Moderna, nem de longe parecia uma irmã de caridade, tal a sua
elegância e o seu cuidadoso penteado.Impassível,lembrava mais a Rainha de Copas, da história
de Alice,do que Madre Teresa de Calcutá. Após conhecer nossa filha,vendo a nossa vontade em
matriculá-la naquela escola, exclamou:
- Impossível, aqui temos escadas !
Outras escolas, como a Chez l'enfant, na Urca, ficaram de telefonar para me dar uma resposta,
pela qual espero pacientemente, até hoje. Após penosa procura, em inúmeras escolas, onde
também nos bateram a porta na cara, já resignados a ter uma filha analfabeta,fomos
apresentados à professora, de grande conceito, Yvonne Braga Furtado ( que não é irmã
de caridade ),pioneira no bairro da Urca, fundadora de tradicional escola por onde
passaram diversas pessoas de grande expressão nacional .(Externato Cristo Redentor)
Tal senhora, após uma paciente e demorada avaliação do potencial de nossas filha, disse:
- Senhores, nós aqui temos escadas, como as outras escolas, assim como outras crianças,ricas,
pobres, filhas de militares, doutores, porteiros e também domésticas; negras e brancas.
Não temos riqueza material, mas em valores morais,somos milionários.Não admito preconceitos,
de nenhum tipo. A filha de vocês vai estudar aqui, enquanto eu for viva.Todos os anos a sua
sala de aulas será no térreo e terei grande satisfação em desenvolver nela toda a sua capacidade.
Esta é a razão da minha vida. Nunca me casei ou tive filhos. Meus alunos são meus filhos !
Olhem lá fora, que família bonita eu tenho. Esta é a minha fortuna!
E assim, passaram-se vários anos e nossa filha, devidamente preparada, tornou-se aluna aplicada,
com notável desempenho,tanto na escola quanto no Curso Oxford, do Lido,que a aceitou sem
restrições,onde estuda Inglês e Computação,conseguindo ótimas notas.Ao contrário da
previsão da "irmã de caridade",nossa filha é ótima aluna,não sofre qualquer tipo de
preconceito e é bastante querida por colegas e professores, sendo uma adolescente
alegre e cativante.O preconceito mais forte que ela sofreu partiu de onde menos poderíamos
esperar.Isto mostra que alguma coisa precisa ser feita para deixar de contemplar certos
estabelecimentos de ensino, camuflados de entidades religiosas, com isenções de diversos
impostos e benesses fiscais várias,em detrimento de outras escolas sérias, cumpridoras de
sua função social embora não dirigidas por "religiosos".Como estamos em tempo de reformas,
que tal cortar subvenções,isenções,regimes especiais, etc, desfrutados por pessoas e
entidades que nada fazem para merecer isto.Fica também colocado o dedo na ferida,de certas
"clínicas", que nada mais são do que arapucas, mantidas às custas de generosas verbas
públicas,com a conivência de governos.
Para finalizar, nossa filha,agora com quinze anos de idade anda,com auxílio de muletas canadenses
e tem a sua inteligência normal,até mesmo acima da média.A altiva irmã está agora desfrutando da
sua desejada aposentadoria,o dono da clínica está às voltas com a justiça, embora como
de hábito,bastante próspero e a Prof.ª Yvonne,que nunca visou o lucro,continua à frente
de sua escola,lutando com grande dificuldade,tendo como recompensa, basicamente, o amor
de pais e alunos e a satisfação pessoal em ter realizado uma grande obra. Desejamos a ela
uma longa vida, para continuar a fazer o bem a mais pessoas que tenham a sorte de conhecê-la.
Também à Irmã Maria de Assis desejamos uma vida bastante longa acompanhada de
lucidez suficiente, para que um dia tome conhecimento do sucesso daquela menininha
tão frágil, que na ocasião citada viu ser fechada para si a porta da realização como ser humano.
Esperamos que ela possa refletir e mudar, enquanto houver tempo para isso.
Assim como desejamos que algumas pessoas mudem, achamos que outras devem permanecer
da mesma forma para sempre, como Renato Moreira Rosa, humilde ascensorista do edifício 11,
da Rua da Assembléia, que ao ver Jacqueline entrar de muletas, com esforço para permanecer
de pé em seu elevador,não só ofereceu seu banco, como teve a iniciativa de comunicar aos
demais passageiros, que o elevador iria diretamente para o sétimo andar, sem se preocupar
com observações, como a do imbecil anônimo e engravatado passageiro, que exclamou indignado,
em alto e bom tom: - Isto não tem nada a ver !
Este pequeno relato mostra as dificuldades sofridas pelos pais de crianças com algum tipo de
deficiência, seja física ou mental, que moram no Brasil, mostrando que muita coisa pode e
deve ser feita em benefício destas crianças, que muitas vezes, deixam de alcançar a sua
plenitude intelectual por encontrar no caminho pessoas desprovidas de qualquer tipo de
sensibilidade, verdadeiras pedras humanas.Infelizmente,nem todos os protagonistas desta
história real podem ser identificados, pois a simples menção de seu nome poderia provocar
náuseas nos leitores.
© 1997 Luis Fernando Knaack de Castilho
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