A Sociedade dos Portadores de Deficiências.
Meu nome é Marco Antonio de Queiroz, sou cego há 22 anos devido a uma retinopatia diabética que me retirou a visão aos 21 anos de idade. Participei, desde que iniciei no mundo dos diferentes, de movimentos de cegos em luta por nossa emancipação social. Ensinei a meus iguais o que a minha profissão aprendida depois de cego permitia fazer: dei cursos de processamento de dados. além disso, escrevi um livro denominado "Sopro no Corpo" onde, com o mesmo objetivo que minha página da web, a Bengala Legal, procurei esclarecer dúvidas com relação a cegueira e a tudo que eu podia desmistificar com relação aos "marginais sociais" dos quais nós cegos fazemos parte. A idéia, a princípio, era a de produzir uma imagem de todos nós mais próxima de nossa existência real, na tentativa de reformular as fantasias que criam a nosso respeito.

Essa introdução foi feita somente para mostrar que tive preocupações com relação as nossas questões individuais e sociais e que como vivi até os 21 anos, digamos, "do outro lado" que não a dos portadores de deficiência, possuo alguns parâmetros retirados de minha própria experiência de vida que me fazem ter uma percepção bem sedimentada a respeito da relação "deficiente versus sociedade" e vice-versa.

Desde minhas primeiras lutas em pról de nossos interesses que quando meus colegas diziam "a sociedade nos ignora, nos vê com indiferença, nos renega" ou as palavras chave: "preconceito e discriminação" eu pensava em minha esperiência anterior, a de enxergar e tudo aquilo era confirmado. Realmente, no meio ambiente em que vivia, zona de elite de uma grande cidade brasileira, o Rio de Janeiro, rarammente alguém mencionava alguma experiência com cegos e, da mesma forma, com qualquer outra deficiência. Lembro-me vagamente de um colega do interior comentar sobre uma conhecida dele que tinha distrofia muscular progressiva (DMP) e fiz uma imagem tão feia da coisa que só me lembro de ter sentido pena. Meu padrinho de casamento também mencionou, certa vez, ter tentado ler para um cego mas que ficava muito constrangido porque ele sentia que cometia muitos "erros" sem querer, como o de dizer distraidamente frases comuns como "o dia está muito lindo" ou "o por do sol está emocionante!" para o cego. Eu não sabia muito bem o que pensar a respeito mas sempre era uma coisa distante, longe de minha realidade, convívio e preocupações. Portanto, como eu mesmo o fazia quando enchergava, depois de cego tinha a certeza que éramos ignorados pela sociedade e algumas vezes, quando isso não acontecia, o que surgia não era o conhecimento propriamente dito a respeito de um cego, mas especulaçãoes e sentimentos incômodos. Sendo assim, nossa reclamação a respeito da ignorância e desprezo social era válida e dentro de parâmetros de realidade bem vividos por mim mesmo.

Sempre tive uma noção que isso também era devido a alguma falta de iniciativa do próprio segmento de cegos, que não lutava por uma melhor divulgação de nossas possibilidades e realizações. Alguma divulgação individual, muitas vezes misturada com uma idéia de superdotação do cego em questão, aparecia. O fato é que o conjunto de acontecimentos individuais e coletivos mudou, aos poucos, a imagem geral dos deficientes no Brasil. Como disse, há 22 anos portador de cegueira, passei por várias iniciativas sociais de mudar essa situação. A sociedade ainda está muito aquém de ter ciência do que sabemos de nós mesmos, mas seria ridículo querermos que tal coisa acontecesse visto que muitos de nós também não o sabem. O caminho é longo e difícil. Muitas vezes ficamos tristes e rancorosos com coisas consideradas como sendo "do século passado" como quando algum gerente de banco não nos deixa abrir conta em sua agência, exigindo um responsável, não nós, que a valide. Aí voltamos a realidade. Saimos fora de nossa anestesiada igualdade diária de desigualdade para penetrarmos em nossas frustrações grupais e particulares, retomando todas as nossas forças na expressão básica da "ignorância social".

Bem, isso é um círculo vicioso. Eu só o fui compreender com mais profundidade quando entrei em uma lista de discussão na internet onde se encontravam pessoas portadoras das mais diversas deficiências. Não só nós cegos, como surdos, paralisados cerebrais, paraplégicos, tetraplégicos, soropositivos, hanseniosos, com osteogênese imperfecta, distrofia muscular progressiva, esclerose múltipla etc. Aos poucos fui sentindo: "Que loucura, como sou ignorante com relação ás outras deficiências, como sou sociedade!", Fiquei me xingando de "sociedade"! (risos).

A questão por inteiro é que: sendo sociedade e deficientes simultâneamente, como reclamar do que nós mesmos praticamos como sociedade? Ignoramos nossos colegas "diferentes", diferentes de nossa deficiência e do comum social e reclamamos de nos ignorarem em nossa deficiência específica. Um exemplo disso em nosso meio virtual é em home pages de colegas de determinadas deficiências onde só existem links de endereços daquela mesma deficiência, fechando-se em "guetos de conhecimento e divulgação". Podemos expandir esse exemplo para muitos outros e penso estar na hora de mudarmos. Caso contrário ficaremos sempre sós sentindo-nos discriminados pela sociedade e, como sociedade, ignorando outras minorias como nós mesmos.

Precisamos observar o todo para sabermos como nos localizar e não nos posicionarmos a favor de uma suposta igualdade. Somos diferentes e, assumindo isso, temos de brigar pelo direito de uma diferença digna, respeitada e produtiva.

Relato expoxto no I congresso Virtual da Réd de
Integración Especial - Argentina, de 01/11/2000 a 01/12/2000.
www.redespecialweb.org.

Abraços do colega cego, diabético
e transplantado renal brasileiro. MAQ.

***

Visite minha Home Page:
http://www.bengalalegal.com.br

Comunique-se comigo:
maq@esc.microlink.com.br
maq0@ig.com.br
maq@horto.rjo.serpro.gov.br
Rio de Janeiro - Brasil.
***

Indice

Depoimentos..|