Despertou fortes paixões. Algumas se transformaram em amor. Amor que, com o tempo, acabou adormecendo em alguns corações. Outras, morreram com a mesma intensidade que nasceram. Desilusões, também as teve. E, começava a se erguer da maior e mais forte delas, quando um sério acidente de carro lhe ceifou as asas.
Conseqüência: uma lesão medular completa e irreversível.
Diagnóstico médico: tetraplegia.
A família desesperada.
Os médicos sentenciaram: "não há o que fazer", "ela não resiste", "não adianta alimentar esperanças".
Palavras duras para serem ditas a um pai, uma mãe, a tias, tio e irmãos amorosos. Inconformados, primos, amigos e namorado circulavam pelos corredores do hospital. Momentos difíceis e dolorosos que, graças a Deus, ficaram para trás.
A coragem e a competência de alguns médicos (aos quais serei eternamente grata) salvaram a minha vida.
- Mas que vida? Era a pergunta que se lia nos olhos de todos, inclusive nos dos médicos, que nada sabiam nem podiam adiantar ou prever.
Um dia, deram-nos alta. Sim, porque a partir dali eu deixei de ser uma para ser três, quatro, cinco e quantas pessoas mais fossem necessárias para, de algum modo, poder continuar a viver.
Mandaram-me para casa com um corpo inerte e insensível que todos manipulavam (alguns, sem a menor cerimônia) como se fosse um cristal. Fora necessário deixar cair por terra todo o pudor guardado até então. Privacidade era coisa do passado, um conceito que precisava ser revisto depois daquele novo corpo. A cabeça, entretanto, não parara de pensar um minuto sequer. O problema maior consistia em fazer com que o cérebro de antes do acidente se encaixasse na cabeça deste novo corpo que ninguém conhecia e que os mais próximos precisavam descobrir (em ambos os sentidos). Não havia respostas para as inúmeras indagações que a todo instante éramos obrigados a nos fazer. Tudo era muito novo e estranho. Os braços começavam a esboçar alguns movimentos. Mas, era insuportável fazer força para obedecer aos comandos da fisioterapeuta para elevar a perna, dobrar o joelho, mexer os dedos dos pés,... Que hipocrisia! Todos sabíamos que não havia possibilidade de eu voltar a andar. Mas, no fundo, era o que todos desejávamos e por isso alimentávamos as esperanças.
Quatro meses se passaram numa busca constante de conhecimento e melhoras. Familiares, parentes, amigos, vizinhos e até inimigos (devemos tê-los também) empenharam-se junto conosco na construção desta nova vida. A casa estava sempre cheia. Os dias eram por demais longos. A família sempre cansada de uma labuta incessante. Enquanto nos apoiavam, os amigos traziam o mundo para dentro das quatro paredes do meu quarto. Paredes que testemunhavam risos e lágrimas.
Os médicos? Estavam sempre ao nosso lado, medicando e, muitas vezes, aprendendo conosco. Impossível haver melhores, mais dedicados e abnegados. Certo dia, um deles pronunciou uma palavra mágica: Sarah Kubistcheck.
Para nós, este nome despontou como a única tábua de salvação no imenso oceano em que estávamos prestes a submergir. Entretanto, na hora da partida, o médico chorava.
- Por quê? - eu lhe perguntara, e mais lágrimas rolavam como resposta.
Talvez, nem ele soubesse explicar todas aquelas lágrimas. Eram muitos os sentimentos envolvidos e as perguntas sem respostas. Mas, não dava para voltar atrás. E, seguimos em frente: meu pai, minha mãe e eu.
Seis meses de Sarah. Uma grande escola.
Lá aprendi o "beabá" de uma nova vida. Zerei o velocímetro daqueles 19 anos, e passei a ter uma segunda data de aniversário para comemorar. No Sarah, abracei uma nova vida. Aprendia a cada momento. Fiz novos e grandes amigos. Uma família de amigos nos adotou (minha mãe continuara lá comigo e meu pai ia esporadicamente). Assim, os meus finais de semana eram sempre fora do hospital, com cuidados e uma alimentação toda especial. (Eu praticamente não comia no hospital. Não gostava da comida.) Fazia-me muito bem aquele segundo lar. Era aconchegante. Tenho muita saudade dos cuidados de Selma, das preocupações e zelo de Jorge, e da companhia que Iara, Paula e Luizinho me faziam. Nunca poderemos retribuir tanta amizade.
- E os progressos? Movimentos?
Eram sempre estas as perguntas dos irmãos, tias e avó, ao telefone.
Apenas os braços recuperavam os movimentos (poucos, no entanto). As mãos, ainda hoje, nada conseguem pegar (mas, no Sarah, foram feitas adaptações para que eu pudesse escovar os dentes, comer sem a ajuda de outros, escrever, passar folhas de livros e revistas, bater à máquina - agora digitar - etc.), e as pernas... Estas continuarão inertes para sempre.
- Mas para que pernas? - hoje eu me pergunto.
Em Brasília, sobre rodas, eu ia ao cinema, ao teatro, a festas nas casas dos amigos, passeava pelas quadras tomando sol, ia a feirinha da Torre etc. Lá, ainda, estreei como "cadeirante" (denominação afetiva para pessoa que se locomove em cadeira de rodas dentro do movimento de deficientes) no I Encontro Nacional de Deficientes Físicos - dia em que perdi minha avó.
Ironicamente, a vida começava a surgir em cores para mim. O coração, teimoso, já batia num ritmo diferente em determinados encontros. Era a vida de volta, em toda a sua plenitude e alegria.
Rodando, voltei para casa. Rodando, e sendo empurrada (quase sempre por meu pai) fiz faculdade e me formei em Letras (Português/Alemão) e terminei o curso de Alemão da Casa de Cultura Alemã. Rodando, viajei (sozinha algumas vezes) para Recife, Florianópolis, São Paulo, Brasília, Pirenópolis...
As rodas sempre me levam a todos os lugares. Hoje evito aqueles que têm escadas. Afinal, cadeira de rodas não foi feita para subir degraus! Em contrapartida, as rampas possibilitam acessibilidade adequada para idosos, gestantes, anões, pessoas com dificuldade na locomoção, crianças, carrinhos de qualquer natureza e para cadeirantes também, por que não?
Problemas? É claro que os tenho, assim como todos. Os maiores encontram-se sempre no campo doméstico. É difícil encontrar pessoas que nos ajudem em casa. Atividades como escovar dentes, tomar banho, vestir, calçar, fazer transferências da cadeira e tantas outras fazem parte de toda uma infra-estrutura doméstica que precisa estar sendo sempre remontada. As fases negras em minha vida estão sempre relacionadas à falta desta infra-estrutura doméstica. (Preciso urgentemente de uma "babá" que me queira bem!)
Hoje, ao completar a maioridade da segunda fase de minha vida, continuo rodando. Mas, já não sou mais empurrada. Tenho uma cadeira de rodas motorizada que só não me permite subir escadas e voar. A minha Genius (presente de meus pais e irmãos) diminuiu bastante o fardo que minha família e, em especial meu pai, têm tido que carregar durante os últimos 18 anos, e me dá a autonomia que todo cadeirante sonha e merece ter. (Infelizmente, as desigualdades sociais são ainda mais gritantes dentro do segmento de pessoas portadoras de deficiência.) Terminei o Curso de Especialização em Tradução de Alemão da Universidade Federal do Ceará. Fui aprovada em concurso público da rede estadual de ensino para professor de português e preparo-me para assumir o emprego. Faço traduções. Sou representante das pessoas portadoras de deficiência no Conselho Estadual de Saúde - CESAU e membro da Associação dos Deficientes Motores do Ceará - ADM-CE. Adoro ir à praia, ao cinema, teatro, shows, barzinhos, festas etc. Também gosto muito de ficar quieta no meu canto: ouvindo música, lendo, vendo televisão, navegando pela Internet, recebendo e conversando com amigos (ao vivo ou por telefone) ...
Em suma, considero-me uma pessoa bem normal e levo a vida como tal, respeitando as minhas limitações, é claro! As adversidades a gente consegue superar com a ajuda dos outros. E, em casos como o meu, o apoio da família é de fundamental importância. Por isso citarei abaixo aqueles que vocês não vêem aqui, mas que estão por trás de todos os meus atos.
Ernesto de Pinho Pessôa (o pai que todos querem ter)
Gizelda Soares de Pinho Pessôa (minha mãe, mulher de fibra inigualável)
Kátia de Pinho Pessôa Xavier (a melhor irmã que se pode ter)
Ernesto de Pinho Pessôa Jr. (meu irmão)
Elezier Xavier Bezerra Filho (mais que um cunhado, um irmão)
Lúcia Maria Sampaio de Pinho Pessôa (minha cunhada)
Igor, Isa, Larissa, Liana e Lorena (sobrinhos amados e amorosos que renovam, engrandecem e alegram nossas vidas)
E eu,
Nadja Soares de Pinho Pessôa
Email - nadja@ufc.br
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