A cor dos nossos rins.
MOACYR SCLIAR
Texto de ficção baseado em notícia publicada pelo jornal na coluna COTIDIANO IMAGINÁRIO - Folha de São Paulo 12 de julho de 1999
Reino Unido em "transplante racista": médicos acatam exigência de que o órgão fosse doado apenas para brancos. Mundo, 08.jul.99.
De posse do rim a ser transplantado, eles foram imediatamente ao hospital, em busca do receptor adequado. Que teria de preencher várias condições. A mais importante: só poderia ser branco.
Já de início cometeram um erro. Foram à enfermaria onde estavam os pacientes mais pobres, alguns dos quais esperavam o transplantes havia anos. Os três primeiros foram eliminados de saída: eram pretos retintos, vindos de antigas colônias na África. Constatação que fez suspirar um dos membros dos grupo: "Bom era quando eles ficavam lá na terra deles". Seguiam-se quatro indianos e três paquistaneses, automaticamente excluídos. Alguém até comentou, bem humorado, que eles poderiam se distrair com uma guerrinha particular enquanto aguardavam um novo rim.
Com os dois seguintes, a coisa começou a melhorar. Eram mulatos, um deles bastante claro, o que provocou uma discussão: o que é, exatamente, ser branco? Como caracterizar tal condição? A que grau deveria chegar a palidez da pele, para que a diretriz relativa ao transplante só para brancos fosse cumprida? Como não chegaram a um acordo, criaram ali mesmo uma norma que poderia ser resumida assim: na dúvida, contra o réu. Ou seja: brancura, só imaculada.
O último paciente era branco. Inegavelmente branco. Mas aí o faxineiro do hospital, que estava por ali, fez uma grave denúncia: branco, sim, mas a avó dele havia sido mulata, do Caribe. O paciente foi rejeitado.
Foram aos quartos particulares, e lá, sim, havia um branco autêntico, em estágio final de insuficiência renal, o que só lhe atenuava a palidez. O transplante foi feito, mas o paciente morreu logo depois.
- Culpa dos negros - comentou um dos memmbros da equipe. - Eles nos atrasaram tanto que chegamos tarde demais.
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