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Doação de órgãos e transplantes em algum lugar do futuro

Francisco Neto de Assis

Em 1998 perdi um filho de 15 anos esperando um coração. Não gosto de me referir a esse fato dessa forma. Prefiro dizer que por alguma razão ele partiu mais cedo e continua sendo meu filho. Apenas está ausente e em silêncio. Essa forma de se expressar não altera o grau da saudade de todos os dias, mas traz certo consolo. O consolo de saber que ele deixou mais do que saudade, mesmo sendo uma saudade que se instalou com dor e insiste em ficar. Muito mais do que saudade, ele deixou também a herança da capacidade de se indignar sem perder a racionalidade. Não há como não se indignar com a partida precoce de um filho, em especial a espera de um transplante. Contudo, a capacidade de sentir e de se indignar não nos exime da racionalidade, porque em algum lugar do futuro tudo será explicado. É esta racionalidade que nos leva a uma constatação: os profissionais de saúde, principalmente os médicos, podem ser considerados como o principal obstáculo ao desenvolvimento do processo doação-transplante. Essa conclusão não é apenas da ADOTE – a ONG inspirada pelo meu filho – mas também de organizações médicas relacionadas com a questão e integra as conclusões de uma tese de doutorado sobre o tema.

Dados epidemiológicos indicam que a prevalência na população de circunstâncias que levam à situação de morte encefálica – a condição para transformar alguém em possível doador – é da ordem de 60 por milhão de habitantes por ano. Seria então cerca de onze mil possíveis doadores por ano entre os mais de 180 milhões de brasileiros. Identificado um possível doador é necessário que o diagnóstico de morte encefálica seja realizado, notificado para uma Central de Transplante e os familiares do falecido sejam entrevistados para lhes oferecer a oportunidade de doação. Se eles consentirem, se tem então um potencial doador de quem serão retirados os órgãos e tecidos, que serão transplantados em alguns selecionados entre os mais de 70 mil brasileiros em lista de espera.

É aí que começam a surgir as pedras no meio do caminho dos transplantes. Em alguns hospitais não existem as condições essenciais para se completar o diagnóstico de morte encefálica, que exige a participação de dois profissionais, sendo um deles neurologista, e a realização de um exame gráfico complementar. Nos muitos hospitais com essas condições, entretanto, o diagnóstico não é notificado. As CIHDOTTs (Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante), instituídas, obrigatoriamente, nos estabelecimentos com mais de oitenta leitos, também não estão atuando como deveriam e em muitos hospitais existem apenas para cumprir a portaria que as criaram; os membros são nomeados, mas não lhe são oferecidas as condições para atuarem, quer em termos de carga horária ou remuneração. Poucos estão dispostos a serem voluntários nessa atividade até mesmo por não disporem de tempo.

A pedra maior é a sub-notificação da morte encefálica. É um ato médico e menos de 50% dos casos são notificados. Em segundo lugar vem a negativa da família. Entretanto, já está demonstrado que se cem famílias forem adequadamente entrevistadas pelos membros da CIHDOTT setenta irão autorizar a doação.

O que fazer? Não tenho dúvida de que a adoção do modelo espanhol é o caminho. Lá, cada hospital tem um profissional com dedicação exclusiva à atividade de captação de órgãos, fazendo busca ativa de possíveis doadores. Todos os transplantes são financiados pelo sistema público, independente da condição social do receptor. Esses dois aspectos da organização dão uma enorme credibilidade ao sistema de transplante de modo que a notificação é alta, a negativa familiar está bem abaixo da nossa média brasileira de 30% e o número de doadores é quase oito vezes maior do que os nossos 5,4 por milhão da população..

A questão do financiamento.parece superada. O SUS contempla esse procedimento de forma bem diferenciada. O que é preciso entender, independente do aspecto mercantil: todo transplante de órgãos por doação deve ser gratuito. Nem o doador, recebedor e suas famílias devem pagar qualquer quantia para doar ou receber. Por um motivo muito simples: doar órgãos é doar vida. Quando damos nossa vida para que outros vivam as suas, é um valor tão alto que ninguém poderia pagar.

Minha esperança é de que em algum lugar do futuro tenhamos o entendimento postado por John da Patofu no site da ADOTE: “É preciso entender que somos todos ao mesmo tempo "doadores" e "recebedores", ou melhor, talvez o tempo diga a cada um de que lado está... Vivemos, sim, num só mundo, e ele ainda não está pronto, vamos fazer de uma vez o que está ao alcance de todos”.

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(c) 2007 F. N. de Assis