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O "tônico capilar", os "carecas" e os transplantes


Li há poucos dias, uma entrevista com um historiador na qual, diante de perguntas do tipo: "qual teria sido o curso da história se, por exemplo, Hitler tivesse alcançado o seu objetivo final?", ou "... e se o Collor não tivesse sido impedido? ", ele simplesmente respondeu que não existe "se" na história. As coisas aconteceram e pronto. Não há como especular. Seria perda de tempo.

Mas acredito que seja possível introduzir um "se" na conjuntura atual e fazer uma previsões do futuro porque podemos controlar algumas variáveis fazendo com que elas convirjam para o resultado que se quer produzir. "Se" os governos aumentarem os investimentos em saúde e educação, por exemplo, é muito provável que teremos um país mais saudável e culto. E "se" um povo mais saudável e culto resolver ser mais criterioso na escolha dos governantes? Bom, aí é outra história.

O título deste artigo deriva de um acontecimento particularmente constrangedor. Um conhecido curso de preparação para o vestibular (... e "se" os investimentos públicos em educação no passado tivessem sido substanciais existiria o oportunismo desses "cursinhos"?) desencadeou uma campanha de marketing curiosa. Enviou para os estudantes que estão concluindo o segundo ano do segundo grau um tubo de um certo "tônico para queda de cabelos", cuja bula garante, através de um "método revolucionário" e "incrível", "resultados surpreendentes" se for aplicado "diariamente durante um ano" por "quem está louco para perder o cabelo". A mensagem final de persuasão, em destaque, é: "fique "careca" passando no vestibular".

O fato desagradável, por suscitar vários "se", foi que um dos destinatários de uma amostra-grátis do "tônico capilar" foi um dos meus filhos que estaria habilitando-se para o pré-vestibular "se" não tivesse morrido no ano passado esperando um coração para um transplante. Foi impossível evitar reações saudosas do tipo: " ...se ele estivesse aqui" ou "... se tivesse aparecido um doador, provavelmente ele iria usar esse tônico e no final do próximo ano estaria careca". Aqui também não cabe nenhum "se". As coisas aconteceram e pronto.

Mas podemos daqui para frente colocar vários "se" e fazer com que num prazo curto tenhamos um quadro diferente da situação dos transplantes no Brasil.

Qual é o quadro atual? Cerca de 32000 pessoas, entre elas muitas crianças e adolescentes, na lista de espera por um coração, rim, pulmão ou fígado; menos de 3000 transplantes a cada ano, ou seja, apenas 3,6 por milhão da população por ano; menos de vinte e cinco por cento das ocorrências de morte encefálica são notificadas para as Centrais de Transplantes; cerca de trinta por cento das famílias negam a doação dos órgãos de um ente querido que poderiam salvar várias vidas; milhares de pessoas morrem anualmente enquanto esperam um presente de vida através de um órgão doado.

Quais os "se" passíveis de mudar esse quadro? São vários, mas alguns são fundamentais:

"Se" as escolas médicas e de enfermagem, principalmente, introduzirem em seus currículos, já a partir do próximo ano quando irão entrar os novos "carecas", uma disciplina que contemplem os aspectos médicos e éticos da doação de órgãos e dos transplantes, certamente os futuros médicos e enfermeiros saberão o que fazer ao depararem-se com um provável doador;

"Se" as escolas de um modo geral, inclusive os "cursinhos", abrirem as suas portas para uma formação mais ampla que englobem a plena expressão da cidadania e da solidariedade, com certeza teremos um mundo melhor;

"Se" resolvermos os nossos medos e mitos resultantes de concepções mal formadas que levam alguns a imaginarem que precisam de um corpo intacto na vida eterna e passarmos a acreditar realmente que a nossa parte orgânica, após a morte de nosso corpo, será reciclada, deixaremos de lado o nosso egoísmo póstumo e assumiremos, em vida, a postura de doador.

"Se" nós, cidadãos, profissionais da saúde, governo e sociedade nos conscientizarmos de que somos todos responsáveis e partícipes do processo de doação de órgãos, o número de transplante irá aumentar.

Transplante é uma via de mão dupla. Doador ou receptor? Só o tempo mostrará em qual dos lados nós estaremos. É imprevisível. Por ser imprevisível, é prudente que pensemos hoje - enquanto estamos em condições - na possibilidade de que uma situação dessa possa ocorrer comigo, com um dos meus filhos, com um irmão, com um amigo. E se acontecer? "Por que precisamos passar pela síndrome do só entendi quando aconteceu comigo?". Pergunta o John da Patofu.

Ora, por que se preocupar com o futuro? É realmente mais cômodo vivermos o presente. Mas é bom não se perder de vista que, como alguém já escreveu, "será no futuro - que começa agora, ou quando terminarmos de pronunciar o "se" da palavra DOE-SE - onde passaremos o resto das nossas vidas".

Diário Popular, 14 de dezembro de 1998

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