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A "fila dos transplantes" em algum lugar do passado


Sabe-se que o descompasso entre o tamanho e o crescimento da lista de espera - a fila dos transplantes - e a disponibilidade de órgãos para a realização das cirurgias salva-vidas deriva, de um lado, da baixa notificação - ato através do qual o hospital informa para uma Central de Transplantes sobre a existência de uma pessoa em situação de morte encefálica - e, por outro, da opção das pessoas em tornarem-se doadoras.

No cenário brasileiro atual, o peso da sub-notificação é, comparativamente, maior do que a aparente falta de solidariedade da sociedade, havendo situações - não isoladas, diga-se de passagem - em que famílias vêem abortada a disposição de doar os órgãos de um ente querido por insuficiência de infra-estrutura hospitalar ou, em parte das vezes, por causa de uma talvez explicável, mas incompreensível e inaceitável, falta de boa vontade dos profissionais e instituições responsáveis pelo processo.

Um potencial doador é um cadáver que deve ser mantido em uma unidade de terapia intensiva, por quarenta e oito a setenta e duas horas, sob contínuo e cuidadoso monitoramento da respiração assistida, enquanto são realizados sofisticados testes sorológicos e imunogenéticos que irão determinar o par ideal doador-receptor para cada órgão. Foi uma pessoa que chegou ao hospital, em geral vítima de um acidente que resultou na morte encefálica. Nestas circunstâncias, todo hospital é, por lei, obrigado a fazer a notificação, mas muitos deixam de fazer. Alguns, por desconhecerem que a notificação é um imperativo legal; outros, por falta de motivação, pois consideram a realização dos exames necessários para a declaração de morte encefálica e a manutenção do doador um serviço extra que consome tempo, interfere na rotina e tem baixa remuneração; mais alguns, por desinteresse da administração do hospital em promover a doação porque "os louros" resultantes dos transplantes seriam atribuídos a outras equipes de outras instituições; outros, ainda, porque não admitem que o "seu paciente" seja transferido para o hospital (concorrente?) onde existiriam as condições adequadas para a realização de exames complementares e necessários para a documentação do diagnóstico.

Para alguns profissionais, em particular, o ato da notificação é bloqueado pela dificuldade emocional em considerar o "meu paciente" um potencial doador. Neste caso, a fantasia é de que poderia ser configurada uma falha no tratamento. Desse modo, sugerir a doação para os familiares - ato que deve preceder a notificação - seria uma forma de demonstrar a sua incapacidade para salvar aquele paciente. Em suma, os profissionais de saúde, como a maioria de nós, têm dificuldades em lidar com a morte. Essa dificuldade deriva, provavelmente, da filosofia das escolas médicas obedientes ao preceito de salvar vidas a "qualquer custo". Contudo, parece existir aí uma contradição, pois ao notificar a existência de um doador, depara-se com a possibilidade de também salvar vidas. Várias vidas. Notificar, portanto, além de jurídico, é um imperativo hipocrático, ético, moral e, além disso, e principalmente, um ato de solidariedade e de amor ao próximo que também pode ser conceituado como uma forma de doação.

Recentes medidas do Ministério da Saúde abrem uma nova perspectiva para os transplantes porque tendem a contornar essas situações. A partir de dezesseis de novembro de 2000, todos os hospitais cadastrados nos Sistemas Estaduais de Referência Hospitalar em Atendimento de Urgências e Emergências são obrigados a manterem em efetivo funcionamento as suas respectivas Comissões Intra-hospitalares de Transplantes. Aqueles ainda não integrantes do sistema devem comprovar a existência dessas comissões nos seus processos de cadastramento. Essa comissão tem, entre outras, as atribuições de organizar, no âmbito de sua instituição, o processo de captação de órgãos; articular-se com as equipes médicas do hospital, especialmente as das UTIs e dos Serviços de Urgência e Emergência, no sentido de identificar os potenciais doadores e estimular seu adequado suporte para fins de doação; articular-se com as equipes encarregadas da verificação de morte encefálica; coordenar o processo de abordagem dos familiares dos prováveis doadores identificados, visando a assegurar que o processo seja ágil e eficiente, dentro de estritos parâmetros éticos e morais.

Perdem a sua validade, após o dia primeiro de março de 2001, as manifestações de vontade relativa à doação de órgãos constantes da Carteira de Identidade Civil e da Carteira Nacional de Habilitação. Isso significa que quem decidirá sobre a doação dos meus órgãos será a minha família, ou seja, qualquer um de meus parentes maiores, na linha reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, ou o cônjuge. Doação de órgãos, finalmente deixará de ser um caso de polícia.

Em resumo, o que o ministro Serra tenta com essas medidas é implantar uma forma de organização que tornou o sistema de transplantes espanhol em modelo para o resto do mundo, sendo o único país onde a "fila" de espera por um rim, por exemplo, está diminuindo. A organização do sistema de transplantes na Espanha tem como pilar de sua estrutura a figura do coordenador hospitalar. É um profissional inteiramente dedicado à questão, vinte e quatro horas por dia. Ele identifica o possível doador e dá o passo inicial para que o processo doação-transplante ocorra. E pode ocorrer, nessa ordem, no seu próprio hospital, no vizinho, no outro extremo do país ou em algum outro país da Europa. Além disso, o princípio da eqüidade, na Espanha, é levado muito a sério. Lá, todos os transplantes, sem exceção, são realizados com recursos públicos. Esta é uma outra medida exemplar que precisa ser implantada aqui, mesmo que, atualmente, mais de 95% dos transplantes sejam realizados pelo SUS.

São medidas que renovam as nossas esperanças para que a "fila dos transplantes" seja apenas uma expressão utilizada em algum lugar do passado.

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