O ADMIRÁVEL MUNDO NOVO DOS TRANSPLANTES
Milhares de pessoas anualmente em todo o mundo, em especial nos países subdesenvolvidos, são acometidas de doenças que afetam órgãos essenciais. Para muitos, o transplante constitui a única alternativa de sobrevivência ou de retorno a uma atividade produtiva. Poderá ser um nosso vizinho, conhecido ou familiar. Um número significativo morre na lista de espera por um doador. Na última semana de junho, nos EUA, por exemplo, 58.205 pessoas esperavam por um transplante: 39.888 (Rim), 10.770 (Fígado), 392 (Pâncreas), , 92 (Intestino), 4.146 (Coração), e 2.917 (Pulmão), sem considerar os transplantes duplos. Estes dados da UNOS (United Network for Organ Sharing) são complementados com a informação de que a cada 16 minutos um novo nome é adicionado àquela lista.
No Brasil, as estatísticas não são atualizadas porque o Ministério da Saúde ainda não implantou a lista única nacional prevista na legislação, sancionada em junho de 1997. Informações colhidas aqui e ali mostram, contudo, que somente no Rio Grande do Sul, 1119 pessoas espera por um transplante de Rim, 52 de Fígado, 38 de Pulmão e 9 de Coração. Em São Paulo estes números sobem, respectivamente para 5000, 101, 100 e 20. A coleta, organização e análise destas informações são importantes? Sim, porque nenhuma política de distribuição de recursos poderá dispensá-las. Por que a lista de espera é tão extensa? Basicamente porque, a despeito do contínuo avanço da tecnologia médica, proporcionando crescentes taxas de sobrevivência aos transplantados, a demanda por órgãos aumenta mais rapidamente do que a doação. Em alguns casos, como o nosso, a falta de doador é acentuada pela inexistência de uma política de estímulo à doação e também pela falta de uma estrutura adequada de captação de órgãos.
Outra pergunta que poderia ser feita: por quê se investir numa área médica "high-tech" quando temos sérios problemas de saúde por falta de saneamento básico? Se importa o lado mercantil, veja-se: o custo de manutenção de um transplantado de Rim, por exemplo, incluindo a medicação anti-rejeição, revisões médicas freqüentes, etc. é menos da metade do que a da manutenção dessa pessoa em hemodiálise. Acrescente-se a isso o fato mais importante de trazer de volta à comunidade, e de forma produtiva, um ser humano antes dependente de máquinas.
Uma das grandes barreiras aos transplantes, a rejeição, foi parcialmente superada em 1983 com a liberação do uso da Ciclosporina, uma droga imunossupressora experimentada por Jean Borel desde meados da década de 70. Foi um marco histórico que permitiu a retomada do procedimento praticamente abandonado entre 1969 e 1983.
Um outro salto será dado brevemente ao se vencer o obstáculo do doador. O número de junho do periódico Kidney International (v.54, p.27-37), traz um artigo segundo o qual pesquisadores da Washington University desenvolveram uma técnica que já possibilitou o crescimento de um rim funcional na cavidade abdominal de ratos a partir de embriões de uma espécie de rato diferente da usada como receptor. Essa técnica abre a possibilidade de que órgãos embrionários de outros animais possam ser transplantados (xenotransplantes) para humanos.
Também em junho, a empresa americana de bioengenharia ATS (Advacend Tissue Science) patenteou uma técnica, de cultivo de tecidos, que permitirá, à médio prazo, o crescimento de novos órgãos dentro do corpo humano. Segundo o informe da ATS, na Internet, já se conseguiu repor fígados de ratos e de cães e desenvolver novos músculos do coração em animais com problemas cardíacos. A técnica da ATS, encampada pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) e pelo Childrens Hospital de Boston, consiste no cultivo células de um determinado órgão dentro de recipientes de material biodegradável que depois são implantados no interior do corpo dos pacientes.
Os dois grupos de pesquisadores prevêem que em dois anos devam ser iniciados testes em humanos e em um prazo médio de três anos, após os primeiros testes, a técnica poderá ser liberada pela FDA, órgão que regulamenta medicamentos e alimentos nos EUA.
Diversos outros grupos de pesquisa, especialmente nos EUA e no Reino Unido já atuam há algum tempo na linha dos xenotransplantes, ou seja, transplante entre espécies. Em 1964 seis rins de babuínos foram transplantados para humanos e em 1984, em um caso que ficou conhecido com Baby Fae, uma criança com uma séria doença cardíaca recebeu o implante do coração da mesma espécie. Embora tenham morrido poucas semanas após, a causa morte não foi a rejeição e sim infecções comuns em pacientes sob o efeito de drogas imunossupressoras.
Os xenotransplantes em seres humanos, porém desencadeia questões de ordem técnicas e éticas. Uma das questões técnicas é a possibilidade de o animal doador transmitir doenças virais. O risco de que novos vírus sejam disseminados na população humana é real uma vez que estes vírus praticamente não podem ser eliminados do animal doador. Por isso, a aparente vantagem de se utilizar babuínos como doadores, uma espécie geneticamente semelhança ao homem, traz como inconveniência o fato de que os vírus que infectam os babuínos também infectam os humanos. Outro animal muito promissor como doador é o porco. Seus órgãos, como coração e rim, são surpreendentemente similares ao do homem. Engenheiros genéticos estão tentando modificar geneticamente o porco para minimizar o problema de rejeição quando os seus órgãos são transplantados para outras espécies.
As questões éticas são fortemente invocadas pelas sociedades protetoras dos animais. Mas no caso do porco, em particular, a argumentação contrária ao seu uso como doador de órgãos é, com o devido respeito aos seus direitos, no mínimo hilária. Afinal de contas centenas de milhares de porquinhos são diariamente transformados em toicinho e salsichas. Outra barreira ao uso do porco em xenotransplantes é religiosa. Judeus e Islâmicos não admitem o seu uso nem mesmo na dieta alimentar. Mas certamente, com o avanço dos experimentos científicos, haverá um tempo, não muito distante, em que os transplantes serão realizadas com dia e hora marcados. Estaremos às portas do Admirável Mundo Novo preconizado por Aldous Huxley na década de trinta?
Diário Popular, 16 de julho de 1998
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