INICIAL
POR QUE ESTE SITE
O QUE SABER
VISTO LIDO & ESCRITO
PARA SABER MAIS
CONTATO


Vale a pena esperar por um transplante?


Meu caro Dudu: Não poderia deixar de lhe escrever hoje (28 de maio) quando faz dois anos que você partiu. É oportuno informar que aqueles sentimentos iniciais de revolta, frustração, de "por quês" sem respostas, com o passar do tempo vão dando lugar a outros mais amenos e até à compreensão, talvez óbvia e tardia, de que a morte é um acontecimento inevitável da vida, que embora possa ver vista como um fim pode, também, e deve, ser encarada como um começo.

O tempo também vai se encarregando de apagar as marcas físicas, palpáveis, da sua passagem por aqui. É inevitável. As marcas de outra natureza certamente ficarão para sempre porque passaram a constituir um capítulo precioso da história da nossa existência. Estas são indeléveis. Neste sentido, você continua presente, mas, assim mesmo, não há como não sentir saudade. Muita saudade.

Como esquecer, por exemplo, uma das nossas últimas conversas? Como aquela em que você me perguntou: "Pai, será que vale a pena esperar por um transplante para viver mais dez ou doze anos?". Senti naquele momento que estavas perdendo as esperanças e procurei responder com franqueza: "Olha, não temos como prever quanto tempo vamos viver. Também não sei de onde você tirou essa informação, mas em dez ou doze anos muitas coisas podem acontecer. Considere que o avanço da Medicina nos últimos tempos é muito rápido. É muito provável que nos próximos anos tenhamos novas alternativas para os transplantes, na forma de órgãos artificiais ou outras modalidades terapêuticas. Além do mais você viverá com muito melhor qualidade, não nessa 'eme' como estamos hoje".

Você aparentemente concordou, mas insistiu que poderia ter uma vida muito limitada dizendo: "É, mas não vou poder fazer muita coisa". Quando lhe perguntei a que tipo de limitação estava se referindo, você me fez rir: "Sei lá, mas não vou poder servir o exército". Exclamei: "Servir o exército! Puxa cara, conheço vários colegas seus, inclusive o seu irmão, que estão bolando mil e um artifícios para se livrarem disso". A sua resposta foi emblemática: "Eu sei. Mas se quiser servir o exército não vou poder". Insisti argumentando: "Quem sabe a gente resiste mais um pouco já que chegamos até aqui?". A sua resposta deixou-me desnorteado: "Não sei, pai. Não agüento mais. O que estou sentindo é melhor morrer". De fato, no dia seguinte você partiu serenamente apesar da aparente rudeza dos últimos procedimentos médicos na tentativa de reverter uma arritmia fulminante.

Com o tempo (sempre ele!) Dudu, as "previsões" daquela nossa última e inesquecível conversa estão se concretizando. Já existe hoje no Rio Grande do Sul, como em outras partes do mundo, pessoas utilizando um coração artificial, elétrico e portátil. Por aqui ele foi implantado no mesmo Instituto de Cardiologia em que você se encontrava. Como você, aquelas pessoas estavam esperando por um transplante e não tinham mais condições de aguardarem um doador.

O único inconveniente desse coração - denominado Heart Mate - é uma bateria externa que precisa ser transportada em uma bolsa a tira-colo. Entretanto, como em tudo existe um lado positivo, na bolsa pode-se carregar outros objetos, como camisinhas, por exemplo, pois seus portadores podem praticar todas as atividades normalmente. Talvez, nas circunstâncias em que se usa uma camisinha, uma bolsa presa ao corpo seja realmente um incômodo, mas...

Até o final do ano a Santa Casa de Porto Alegre deverá implantar um novo modelo de coração artificial - o Heartsaver - que usa uma bateria interna recarregável por ondas eletromagnéticas. Isso significa que não existem fios, ou outro meio físico visível, ligando o coração a um dispositivo externo. A tal bolsa passa, então, a ser um adereço desnecessário em qualquer situação.

Mas não é só. O governo britânico deverá autorizar a clonagem de embriões humanos com objetivos terapêuticos, depois que receber um relatório de uma comissão de especialistas especialmente formada para avaliar as vantagens médicas da clonagem em comparação com os aspectos éticos. Essa comissão, ao concluir o seu parecer, recomendará mudanças na lei britânica para permitir a denominada clonagem terapêutica. O conceito de clonagem terapêutica, ao contrário da clonagem reprodutiva como a que resultou na ovelhinha Dolly, não visa produzir cópias idênticas e inteiras dos organismos que lhes deram origem. A idéia em estudo é utilizar o DNA de uma pessoa necessitada de transplante e enxertá-lo num óvulo vazio (cujo DNA original foi retirado) para produzir um embrião. Deste, ainda nos estágios iniciais de desenvolvimento, seriam utilizadas apenas as células-tronco, ou seja, células precursoras de todas as demais células do corpo humano. Cultivadas em meio adequado, as células-tronco, imagina-se, dariam origem aos tecidos e órgãos necessários para os transplantes.

O senado dos EEUU também já iniciou o debate em torno da "Lei sobre Pesquisa com Células-Tronco" e recentemente promoveu uma discussão sobre o uso dessas células. O grupo de senadores favoráveis levou inclusive um lobista de peso personificado pelo ator Christopher Reeve, o super-homem do filme que na vida real ficou tetraplégico depois de cair do cavalo. A questão em pauta era se as células-tronco eram derivadas de um ser humano em formação ou de um amontoado de células que seria jogado no lixo. As duas partes concordaram, entretanto, que as células-tronco podem revolucionar a medicina e a ciência tratando e até mesmo curando doenças como o mal de Parkinson, mal de Alzheimer e diabetes. Para o ex-super-homem, um provável beneficiado com os resultados das pesquisas com essas células, "É mais ético (não sei se existe algo mais ou menos ético. Isso parece soar como se dizer mais grávida ou menos grávida) uma mulher decidir doar embriões que nunca se tornarão seres humanos ou deixa-los serem jogados no lixo, enquanto poderiam ajudar a salvar milhares de vidas". As células-tronco estão sobrando em clínicas de fertilidade do mundo inteiro.

Alternativas tecnológicas como essas à parte, os resultados dos transplantes melhoraram muito nos últimos anos. Em termos genéricos, a sobrevida em um ano varia de 70% a 90% e em três a cinco anos é superior a 70%. Isso significa que em cada dez pessoas que se submeteram a um transplante no final de 1995, sete ou mais estarão vivas na passagem do milênio. Isso é pouco? Talvez seja. Contudo, é importante considerar que certamente nenhuma delas que precisava de um pulmão, fígado ou coração, naquela época, sobreviveria até o Natal de 1996.

Por isso Dudu, devemos continuar insistindo no sentido de acabar com os medos, mitos e outras causas que limitam a doação de órgãos e os transplantes. Devemos não somente investir as nossas ações, mas também as nossas emoções para nos conscientizarmos da necessidade de reciclar o nosso corpo para que outros continuem enxergando, andando, sorrindo, aprendendo, ensinando, amando ou até mesmo brigando, no bom sentido, por um tipo especial de globalização - a da solidariedade. Somente assim teremos condições de legar para os nossos filhos e netos um mundo mais justo e humano.

Um beijo do seu pai.

Volta


(c) 2002 F. N. de Assis