OS MARGINAIS DOS TRANSPLANTES E A DENGUE
A dengue saiu temporariamente das manchetes dos jornais para dar lugar à indignação dos "vagabundos" da previdência, à abundância de fatos e fotos chocantes sobre seca e saques famélicos no Nordeste e à um emaranhado de siglas (CHF, BBNC, TSM...) tentando, cada uma a seu modo e a qualquer custo, tirar proveito da situação.
No meio dessa enorme confusão, surge, em uma das edições do jornal Folha de São Paulo da semana passada, uma pequena reportagem revelando um possível uso do poder aquisitivo como critério de distribuição de um órgão por uma central de transplante. O resultado foi a perda de um fígado humano que poderia ter sido reciclado, dando vida nova a uma pessoa doente e cansada de uma fila de espera que anda muito vagarosamente.
Confesso que senti saudade dos tempos em que via estas notícias com outros olhos. A completa e saudável ignorância sobre o tema, no máximo, me permitia ler apenas a manchete. Acredito que assim é, - faço votos para que continue sendo - para a grande maioria das pessoas. Contudo, quando se tem um filho de 15 anos à espera de um transplante cardíaco, há mais de cinco meses e, mesmo depositando total, plena e irrevogável confiança nos médicos e instituição a que ele está ligado, fica-se muito atento a tudo que falam, escrevem e publicam sobre o assunto. Afinal de contas as leis de Murphy ainda não foram revogadas. Pois somente o acaso pode explicar a perda de um órgão em São Paulo.
Novamente, no final de semana, aquele jornal volta à tona com o mesmo tema para revelar que a forte rejeição da população em doar os órgãos de seus familiares está reduzindo o número de transplantes depois que entrou vigor, no início deste ano, a grande mudança na legislação sobre transplante: a doação presumida. Até dezembro do ano passado a doação de órgãos só era possível com o consentimento dos familiares de uma pessoa com o diagnóstico que leva o nome feio de morte encefálica. Hoje, todos somos doadores em potencial desde que, em vida, não tenhamos nos manifestado ao contrário. Como é uma condição imposta e com muito pouca informação à respeito, aliada a existência de uma generalizada desconfiança em relação aos serviços médicos, o número de pessoas que está explicitando a condição de não doador está aumentado. Como resultado, o número de transplantes diminui. No Estado de São Paulo, por exemplo, o percentual de rejeição à doação subiu de 27% para 42% entre dezembro e março últimos. A média internacional é de 30%.
Legislação com doação compulsória, semelhante a nossa, já foi adotada por outros países. Foi posteriormente revogada, exatamente por causa da diminuição de doadores. Isto significa que, por aqui, alguém não fez o dever de casa com a devida atenção.
Não há dúvidas de que o nosso sistema de saúde é deficiente. Muitos já passaram dias e dias em uma maca no corredor da nossa FAU - e de tantos outros serviços - a espera de um leito inexistente. Mas também não há dúvidas que uma parcela da responsabilidade por este estado de coisas cabe a nós, os usuários. Outra, cabe aos profissionais da área médica. Ambos, numa atitude de omissão politicamente incorreta, aceitam e prestam serviços com o mínimo de condições. A responsabilidade maior, todos nós sabemos de quem é.
Mas a desconfiança em relação aos serviços de transplante dos hospitais públicos - para onde flui toda a população necessitada - é infundada. Em primeiro lugar, a utilização de um órgão para transplante depende de uma bateria de testes de compatibilidade entre doador e receptor que inviabiliza qualquer rotina de captação aleatória. Por conseguinte, a chance de existir um comércio de órgãos é desprezível porque a estrutura para montar um esquema deste, envolvendo dezenas de profissionais especializados, capazes de viabilizar uma cirurgia em tempo recorde, é obra para milhões e de retorno econômico improvável. Em segundo, as equipes que fazem o transplante e aquelas que identificam um doador, diagnosticando a morte encefálica são, obrigatoriamente, independentes. Em terceiro, ali é praticada uma medicina altamente sofisticada, com os mesmos parcos recursos do SUS. Certamente existe nestes programas um grau elevado de interesse acadêmico, o que é importante. Mais importante, entretanto, é o resultado: a sobrevivência de pessoas sem nenhuma esperança em qualquer outra terapia. Em quarto, e talvez a razão mais importante para acabar com a desconfiança e tornar-se doador, é que, após a morte, o nosso corpo é, em pouco tempo, invadido por bilhões de microorganismos que o reciclam a elementos tão simples quanto Carbono e Nitrogênio, frações mínimas de alguns minerais e só.
É claro que uma pedra no caminho que resulte na perda de um fígado humano ou a existência de uma legislação de caráter autoritário, que gera desconfiança, leva qualquer um a sentir-se indignado. Em especial aqueles que estão numa lista de espera por um doador.
Contudo, a capacidade de sentir e de indignar-se não nos exime da racionalidade. E esta, nos leva a uma constatação: os médicos que constituem as equipes de transplante dos hospitais públicos são, no bom sentido, verdadeiros marginais: são deuses que, travestidos de cientistas humanos, pela complexidade e nobreza do trabalho que realizam, habitam nichos situados à margem de um sistema contraditório e socialmente perverso.
A comparação com deuses pode parecer exagerada e imprópria. Mas não dá para não comparar o ato de remover um coração doente, reimplantar um sadio, acender-lhe uma descarga elétrica e dar vida a um corpo, antes mantido por uma máquina, com aquele ato Criador de, com um sopro, dar vida a um boneco de barro.
Na outra margem, persiste a indagação: que sistema social é este que, ao mesmo tempo, permite que milhares morram de dengue, leptospirose, tuberculose, fome e por causa de tantas outras "doenças simples", as quais, em alguns países, são mantidas enclausuradas em laboratórios apenas por interesse acadêmico?
O que dizer mais? Não diga não à doação de órgãos. Recicle-se... Seja um doador. Você pode salvar muitas vidas.
Diário Popular, 27 de maio de 1998
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