O 10.000.000o gaúcho e os transplantes
Em algum lugar do Rio Grande do Sul, durante esse mês de junho, nascerá o gaúcho número dez milhões. Sob certos aspectos, será um gaúcho de sorte. Nascerá em um mundo com as distâncias encurtadas pelos bytes da Internet, em meio a inovações tecnológicas inimagináveis na época em que os seus avós - ou os seus pais se estiverem na casa dos trinta - nasceram.
Com certeza, viverá muito mesmo que aí pelos quinze anos, em um acidente de percurso, seja eventualmente alcançado por uma doença que destrua uma parte vital do seu corpo como o coração. Não será um grande problema, pois não haverá a angustiante espera em uma "fila" que anda vagarosamente e na qual a maioria morre como hoje. Se não houver um doador, existirão órgãos de porcos transgênicos para suprirem a crescente necessidade dos transplantes. Ouvirá, incrédulo, o seu avô, aos oitenta, portador de três pontes de safena, contar, por exemplo, que no longínquo início dos anos setenta do século XX pouca gente acreditava que aquela idéia maluca de alguns cirurgiões transplantar um vaso da perna para restaurar um coração doente tornara-se rotina na passagem do milênio.
Com a sua chegada, o Rio Grande do Sul passa a ter 600 prováveis doadores/ano, pois pesquisas da área médica indicam que existem 60 doadores por milhão da população por ano. Se todos fossem notificados à Central de Transplantes teríamos mais órgãos do que pacientes em lista de espera, mesmo que 30% deles não tivessem a autorização dos familiares. Lembremos que no ano passado cada doador viabilizou pelo menos cinco transplantes.
O fato real e triste é que menos de um quarto dos prováveis doadores é notificada àquela Central. Por quê? O Rio Grande do Sul, com uma rede de 362 hospitais, dispõe de 6041 leitos (4701 contratados pelo SUS). Apenas 627 são em UTI (260 pediátricos). A situação é agravada porque muitas UTIs não dispõem nem sequer de um respirador artificial e, ainda, porque muitos hospitais não informam para a Central de Transplante sobre a existência de um cadáver ligado a um respirador artificial ocupando um leito de UTI até que o coração pare de bater, porque não contam com um neurologista. É impossível viabilizar um transplante de um órgão ímpar (coração, p. ex.) sem um doador cadáver que não teve um diagnóstico documentado de um neurologista.
Em que pese a real e necessária preocupação com o fato de que de janeiro de 1998 para cá 82,2% dos gaúchos que obtiveram o primeiro documento de identidade optaram por ser "não doador", essa não é a principal razão da alegada falta de doadores. Eles serão - quando o 10000000o gaúcho chegar - 19,9% de todos os gaúchos, ou seja, dentro da margem esperada de 30% de não doadores na população brasileira e de outros países, segundo pesquisas de opinião.
Vamos torcer para que o gaúcho que está chegando viva muito sem precisar de um transplante, muito menos de ter que passar pelo vexame de entrar para uma abominável lista de espera. Enquanto o "admirável mundo novo" em que ele viverá não chega, é bom lembrarmos - principalmente você que se encontra entre aqueles 19,9%, mesmo sabendo que esse não é o maior problema - que acidentes de percurso ocorrem com aqueles que já chegaram ou que virão depois: comigo, o seu irmão, um dos nossos pais, o cônjuge, o namorado, a amante, o amigo, nossos filhos, nossos netos. É imprevisível. O destino, como os transplantes, é uma via de mão dupla. Nunca saberemos em qual dos lados iremos nos encontrar - doador ou receptor?
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