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Doação de órgãos - por uma genuína cultura de generosidade e solidariedade



No dia 29 de agosto de 2000 o Papa João Paulo II, pela primeira vez, descolou-se para comparecer a um congresso científico, dirigindo uma mensagem a seus participantes.

Em seu pronunciamento o Sumo Pontífice reafirmou o apoio da Igreja Católica aos transplantes de órgãos como instrumento de defesa e promoção da vida.

O Santo Padre expressou a sua confiança no diagnóstico de morte tendo por base os critérios neurológicos que definem a morte cerebral, definindo-os como instrumentos para alcançar a certeza moral, base de todo procedimento ético. O Chefe da Igreja Católica reafirmou ainda grandes princípios éticos e morais que devem nortear esses procedimentos.

Veja na íntegra o pronunciamento do Papa João Paulo II naquela ocasião. A tradução é do Dr. Henry Campos.

"Eminentes Senhoras e senhores".

Sinto-me feliz em saúda-los neste Congresso Internacional, que os reuniu para refletir sobre o complexo e delicado tema dos transplantes.

Expresso a todos vocês minha gratidão pela gentileza de seu convite para participar deste encontro e também muito me sensibiliza a valorização que emprestam ao ensinamento moral da Igreja. Com respeito pela ciência e mantendo-se atenta, acima de tudo, à lei de Deus, a Igreja nada mais visa que o bem integral da pessoa humana.

Os transplantes são um grande avanço da ciência a serviço do homem e não são poucas aquelas pessoas que hoje devem suas vidas a um transplante de órgão. A técnica de transplantes tem se afirmado progressivamente como um instrumento válido para atingir o principal objetivo de toda a Medicina - servir a vida humana. Por essa razão, em minha Carta Encíclica Evangelium Vitae, sugeri que um modo de nutrir uma genuína cultura de vida "é a doação de órgãos, realizada de um modo eticamente correto, com uma perspectiva de proporcionar a recuperação da saúde, e até mesmo da vida, a doentes que algumas vezes não têm outra esperança" (no 86).

Como ocorre em todo progresso atingido pelo homem, nesse campo particular da ciência médica, a toda esperança de saúde e de vida que proporciona a muitos, também correspondem certos pontos críticos, que necessitam ser examinados à luz do discernimento antropológico e da reflexão ética.

Também nessa área da ciência médica o critério fundamental deve ser a defesa e promoção integral da pessoa humana, de acordo com a dignidade única que nos é conferida por nossa condição humana. Conseqüentemente, torna-se evidente que qualquer procedimento médico realizado na pessoa humana está sujeito a limites: não apenas os limites do que é tecnicamente possível, mas também limites determinados pelo respeito à própria natureza humana, assimilada em sua integralidade: "o que é tecnicamente possível não é, por aquela razão, moralmente admissível" (Congregação para a Doutrina da Fé, Donum Vitae, 4).

Deve ser inicialmente enfatizado, como observei em outra ocasião, que todo transplante de órgão origina-se de uma decisão de grande valor ético: "a decisão de oferecer, sem buscar recompensa, uma parte do corpo de alguém para a saúde e bem-estar de uma outra pessoa". Aqui precisamente, reside a nobreza do gesto, um gesto que é um ato genuíno de amor. Não se trata apenas de dar algo que nos pertence, mas oferecer parte de nós mesmos, para que "em virtude de sua substancial união com uma alma espiritual, o corpo humano não possa ser considerado como um mero complexo de tecidos, órgãos e funções... mas, ao invés, como uma parte constitutiva da pessoa que se manifesta e se expressa através dele" (Congregação para a Doutrina da Fé, Donum Vitae, 3).

Segundo esses princípios, qualquer procedimento que leve à comercialização de órgãos humanos ou a considerá-los para troca ou negócio deve ser considerado moralmente inaceitável, porque se servir do corpo como um objeto é violar a dignidade da pessoa humana.

Esse primeiro ponto traz uma conseqüência imediata de grande significado ético: a necessidade do consentimento informado. A autenticidade humana de gesto tão decisivo requer que os indivíduos estejam adequadamente informados sobre os processos envolvidos, para que possam exprimir seu consentimento ou negar de um modo livre e consciente. O consentimento de familiares tem sua própria validade ética na ausência de uma decisão por parte do doador. Naturalmente que um consentimento análogo deve ser fornecido pelos receptores de órgãos doados.

O reconhecimento à dignidade ímpar da pessoa humana tem uma conseqüência adicional subjacente: órgãos vitais únicos somente podem ser removidos após a morte, ou seja, do corpo de alguém que está, sem qualquer dúvida, morto. Essa exigência é auto-explicativa, pois agir de outro modo significaria causar intencionalmente a morte do doador ao dispor de seus órgãos. Isso traz à tona um dos temas mais debatidos na bioética contemporânea, que constitui igualmente séria preocupação na mente de pessoas leigas. Refiro-me ao problema de assegurar a ocorrência da morte. Quando pode uma pessoa ser considerada morta com irrefutável certeza?

Com relação a esse aspecto é útil lembra que a morte de uma pessoa é um evento único, que consiste na desintegração daquele todo unitário e integrado que constitui o ser humano. Ela resulta da separação do princípio vida (ou alma) da realidade corporal da pessoa. A morte da pessoa, entendida nessa concepção fundamental, é um evento que nenhum método científico, técnico ou empírico, pode identificar diretamente.

Entretanto, a experiência humana mostra que, uma vez ocorrida a morte, seguem-se inevitavelmente certos sinais biológicos, que a Medicina tem aprendido a reconhecer com crescente precisão. Nesse sentido, os critérios de comprovação da morte utilizados pela Medicina hoje não devem ser encarados como a determinação técnico-científica do momento exato da morte de uma pessoa, mas como meios cientificamente seguros de identificar os sinais biológicos de que uma pessoa tenha efetivamente morrido.

É fato bem conhecido que já faz algum tempo que a ênfase em critérios científicos de certeza para confirmação da morte foi deslocada dos sinais cárdio-respiratórios tradicionais para os chamados critérios neurológicos. Isso consiste em estabelecer, especificamente, de acordo com parâmetros claramente determinados e aceitos pela comunidade científica internacional, a cessação completa e irreversível de toda atividade cerebral (no cérebro, cerebelo, e tronco cerebral). Esse é então considerado o sinal de que o organismo do indivíduo perdeu sua capacidade integradora.

Em relação aos parâmetros hoje utilizados para verificação da morte - se os sinais encefálicos ou sinais cardio-respiratórios mais tradicionais - a Igreja não toma decisões técnicas. Ela limita-se ao seu dever evangélico de comparar os dados oferecidos pela ciência médica com o entendimento Cristão da unidade da pessoa, revelando as semelhanças e possíveis conflitos capazes de pôr em risco o respeito pela dignidade humana.

Deve-se aqui firmar que o critério adotado em tempos mais recentes para verificar a ocorrência da morte, especificamente a cessação completa e irreversível de toda atividade cerebral, se rigorosamente aplicada, não parece conflitar-se com os elementos essenciais de uma sólida antropologia. Portanto, um profissional de saúde responsável pela verificação da morte pode utilizar esses critérios em cada caso individual, como base para chegar ao grau de segurança no julgamento ético que a moral descreve como certeza moral. Essa certeza moral é considerada a base necessária e suficiente para um procedimento eticamente correto. Apenas quando essa certeza existe, e quando o consentimento informado já tenha sido dado pelo doador ou por seus representantes legítimos, é moralmente correto dar início aos procedimentos técnicos requeridos para a remoção de órgãos para transplante.

Uma outra questão de grande significado ético é a alocação de órgãos doados, através de listas de espera e do estabelecimento de prioridades. Apesar dos esforços para promover a prática da doação de órgãos, os recursos disponíveis em muitos países são atualmente insuficientes para atender às necessidades médicas. Por conseguinte, torna-se necessário elaborar listas de espera para transplante tomando por base critérios claros e adequadamente estabelecidos.

Do ponto de vista moral um princípio óbvio de justiça requer que os critérios de alocação de órgãos doados não devam, sob qualquer pretexto, ser "discriminadores" (isto é, baseados em idade, sexo, raça, religião, situação social, etc.) ou "utilitários" (ou seja, baseados na capacidade de trabalho, utilidade social, etc.). Ao invés disso, ao determinar quem deve ter precedência para receber um órgão, o julgamento deve ser feito tendo por base fatores clínicos e imunológicos. Qualquer outro critério seria, comprovadamente, arbitrário e subjetivo, e fracassaria ao não reconhecer o valor intrínseco de cada pessoa como tal, um valor que é independente de circunstâncias externas.

Um último tema diz respeito a uma possível solução alternativa para o problema de dispor de órgãos humanos para transplante, especificamente os xenotransplantes, ou seja, transplantes de órgãos de outras espécies animais.

Não é minha intenção explorar em detalhes os problemas ligados a essa forma de intervenção. Eu lembraria, simplesmente, que, já em 1956, o Papa Pio XII levantou a questão da sua legitimidade, ao comentar sobre a possibilidade científica, que constituía então um presságio, de transplantar córneas animais para humanos. A sua resposta continua a nos iluminar hoje: em princípio, ele declarou que, para que um xenotransplante seja lícito, o órgão transplantado não deve comprometer a integridade da identidade psicológica ou genética da pessoa que o recebe, devendo haver também uma possibilidade biológica comprovada de que o transplante será bem sucedido e que não exporá o receptor a um risco desordenado.

Ao concluir manifesto a minha esperança de que, graças ao trabalho de tantas pessoas generosas e altamente capacitadas, a pesquisa científica e tecnológica no campo dos transplantes continuará a progredir, estendendo-se à experimentação de novas tecnologias que possam substituir os transplantes de órgãos, como parecem prometer desenvolvimentos recentes na área de implantes. Em qualquer circunstância, métodos falhos no respeito à dignidade e valor da pessoa devem ser sempre evitados. Refiro-me em particular às tentativas de clonagem humana com um objetivo de obter órgãos para transplantes: como essas técnicas, até o momento, envolvem a manipulação e destruição de embriões humanos, não são moralmente aceitáveis, mesmo quando o objetivo proposto é bom em sua essência. A própria ciência aponta para outras formas de intervenção terapêutica que não envolveriam clonagem ou o emprego de células embriônicas, utilizando, ao invés, células tronco retiradas de adultos. Esta é a direção que a pesquisa deve seguir se deseja respeitar a dignidade de cada e de todos os seres humanos, mesmo em estágio embrionário.

Ao abordar esses temas variados, a contribuição de filósofos e teólogos é importante. A sua reflexão cuidadosa e competente sobre os problemas éticos associados com a terapia dos transplantes pode ajudar a esclarecer os critérios para determinar que tipos de transplante são moralmente aceitáveis e sob quais condições, especialmente no que diz respeito à proteção da identidade pessoal de cada indivíduo.

Sou confiante de que líderes sociais, políticos e educacionais renovarão o seu compromisso com a promoção de uma genuína cultura de generosidade e solidariedade. Faz-se necessário instilar nos corações dos jovens, um verdadeiro e profundo reconhecimento da necessidade de amor fraternal, um amor que pode expressar-se através da decisão de tornar-se um doador de órgãos.

Que o Senhor ampare cada um de vocês em seu trabalho,guiando-os a serviço do autêntico progresso humano. A minha Benção acompanha este pedido

Diário Popular, 27 de maio de 1998

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