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Laços - e conflitos - de família na lista dos transplantes


Pedro odeia Miguel que, como ele, é apaixonado por Helena que foi namorada do Edu que a deixou para se casar com sua filha Camila cujo pai - ainda sem saber - é Pedro, o garanhão cobiçado por todas as outras mulheres do elenco e por uma grande parte das que fazem a audiência global. Camila engravida, aborta e descobre-se com uma leucemia com grande chance de cura através de um transplante de medula óssea. Como a probabilidade de encontrar um doador compatível entre pessoas não aparentadas é muito baixa, a melhor solução é ter um doador na própria família. O melhor seria que o doador fosse um irmão, pois a chance de termos um irmão inteiramente compatível é de uma em cinco, ou seja, 20%, desde que o meu irmão também seja filho do meu pai com a minha mãe. Acontece que Camila tem um irmão, o Fred, que não é filho de Pedro, mas fruto de outro caso amoroso do passado de Helena. Por que, então, a Helena - coitado do Miguel! - não tem outro filho com o garanhão Pedro, só para aumentar a chance de que ele seja compatível com Camila de quem salvará a vida?

É assim que imagino o que pensou o autor da novela Laços de Família que, ao abordar a questão dos transplantes, promovendo a sua discussão, presta, certamente, um grande serviço a esta causa. Contudo, algumas perguntas suscitadas não deixam de ser intrigantes: é justo termos um segundo filho com o único objetivo de que ele seja um doador para salvar a vida do primeiro? Ele será amado na mesma intensidade?

Em todos os transplantes ocorre um fenômeno biológico conhecido como rejeição. É que no nosso sistema imunológico existe um grupo de células que percorre todo o corpo verificando e conferindo se tudo está como ele costuma encontrar. Um órgão transplantado passa a ser algo estranho e tende a ser destruído por essas células, verdadeiras guardiãs do nosso organismo. Por essa razão, as pessoas portadoras de um transplante usam fortes drogas pelo resto da vida, apesar dos sérios para-efeitos, São drogas imunossupressoras que, como tais, debilitam o sistema imunológico, fazendo com que ele deixe o transplante em paz. No caso de transplante de medula óssea pode ocorrer uma rejeição inversa, pois o transplantado é que recebe um sistema imunológico novo e até o grupo sangüíneo pode mudar. As células do doador, por serem imunologicamente ativas, podem se voltar contra os tecidos do receptor, situação conhecida como "doença do enxerto contra o hospedeiro". Essa doença pode ser fatal.

Surge, então, a seguinte situação que gera outra pergunta intrigante: acontece o transplante, mas ocorre, também, a doença do enxerto contra o hospedeiro e a Camila morre. Qual será a postura de Helena e Pedro diante do seu segundo filho?

Ora, isso é uma novela! Uma obra de ficção! Nem tanto. A imprensa mundial acompanha com interesse o caso de uma menina norte-americana que recebeu um transplante de medula na forma como poderá ocorrer o da Camila. Uma particularidade do caso norte-americano é que o irmão não foi gerado no horário nobre, mas na frieza de um laboratório, que desenvolveu a avançada tecnologia de avaliar o grau de compatibilidade doador versus receptor ainda na fase embrionária. Trocando em miúdos: após a fertilização in-vitro testou-se um embrião. Não prestou, porque o grau de compatibilidade era muito baixo. Jogou-se fora. Pegou-se outro. Quarenta por cento de compatibilidade. Não vale a pena o risco e também vai para o lixo. E assim por diante. Após dezenas de tentativas conseguiu-se um 100% compatível que foi alojado no útero da mãe e nove meses depois se tornou o doador da irmãzinha que se recupera muito bem. Fantástico! Gerou-se uma medula salvadora com a singularidade de que tem pernas, braços, cérebro, coração, um belo sorriso, está crescendo e se tornará adulto.

Como será que ele irá reagir no futuro quando ficar sabendo que foi selecionado entre vários irmãos apenas para ser doador da sua irmã? Entre aqueles vários embriões que foram para o lixo não poderia se encontrar um que se tornaria, quem sabe, o descobridor da cura do câncer, da AIDS, ou um grande filósofo promotor da globalização da solidariedade, terminando com os conflitos éticos capazes de arrebentar sólidos laços de família, algo assim?

Acredito que Pedro viverá feliz para sempre com A Helena e os seus dois filhos, pelo menos até as cenas iniciais da próxima novela das oito. Até porque a Camila também terá um final feliz, pois é isso que a audiência deseja assim como uns desejam o Pedro e outros a estonteante Vera Fischer que personifica a Helena.

Acredito também que devemos fazer o possível para salvar a vida dos nossos filhos, mas ter um segundo apenas para salvar o primeiro dar no que pensar, dá.

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