INICIAL
POR QUE ESTE SITE
O QUE SABER
VISTO LIDO & ESCRITO
PARA SABER MAIS
CONTATO


Em algum lugar do futuro

Francisco Neto de Assis

Perguntaram outro dia para um renomado cientista estudioso da memória humana, por quê os idosos lembram com muita nitidez de acontecimentos de um passado distante e com freqüência se esquecem de fatos recentes. Segundo sua resposta, pelo menos ao nível atual do conhecimento, a ciência não tem uma explicação para este fenômeno. Entretanto, na qualidade de bom pesquisador, e deixando de lado o frio raciocínio científico, ele arriscou uma hipótese, segundo a qual as pessoas não se esquecem com facilidade de detalhes dos tempos em que foram mais felizes. E a felicidade seria maior na medida inversa das perdas ao longo de nossa existência.

É natural sentir, enquanto o corpo suporta, o lento passar do tempo nos mantendo ocupados com os deveres oferecidos pela vida. “Quando se vê passaram-se cinqüenta anos”. Lenta e gradualmente uma chama se apaga aqui para reacender em outras paragens. “Quando se vê, não sabemos mais por onde andam nossos amigos”, nossos parentes, os animais de nossa estimação, aqueles que partiram.

Foram-se meus pais, velhinhos, lutando com dignidade até o último fio de esperança. Foram-se alguns amigos. Algumas flores e plantas do meu jardim também feneceram. Todos foram enterrados e não mais voltarão. “A única falta que terá, será desse tempo que infelizmente não voltará mais”. Deixaram saudade, sim, mas uma suave saudade, resignada, amenizada pela compreensão do fluxo natural da vida. Nós estamos quase acostumados com esses acontecimentos: nascer, crescer, envelhecer, morrer. Um ciclo completo. Somente as cicatrizes não nos deixam esquecer de que o passado existiu.

A interrupção desse ciclo na fase inicial é um coice no estômago capaz de tirar por algum tempo a voz e a vontade de prosseguir. Um pedaço de nós fica no meio do caminho, deixando uma ferida aberta que nem o tempo consegue cicatrizar.

É impossível esquecer com saudade, uma saudade que se instalou com dor e insiste em ficar, que em algum lugar do passado estivemos juntos, emaranhados no dia a dia de nossas vidas, compreendendo, aprendendo, ensinando, amando, perdoando e sendo perdoados. E quantas coisas fizemos juntos naqueles quinze anos em que juntos ficamos. Deles não esqueço um só detalhe: do primeiro banho, do primeiro sorriso, do cambalear dos primeiros passos, do tropeço nas palavras, do choro incontido e inexplicável, do primeiro dia no colégio, das primeiras letras, das suas mãos espalmadas em uma folha de papel no mais belo dos presentes no dia dos pais, das travessuras, do azul da cor da manhã de nossas pescarias, das horas na cozinha e do cheiro das comidas preparadas a quatro mãos, das viagens, das suas namoradas, das longas horas de revelador silêncio entre quatro paredes de um frio quarto de hospital – e mesmo ali éramos felizes; das conversas só nossas, da nossa última conversa. Como se esquecer do seu último gesto antes do repouso sem fim?

Em certo dia, enquanto voltava para casa ao lado de alguém dirigindo o meu próprio carro o seu assento estava vazio. Um vento morno e inusitado para o final de maio, indiferente à sua partida e à minha dor e tristeza, balançava alegremente os ramos desfolhados das árvores de outono.

Em casa, o ensurdecedor silêncio de sua ausência continua presente na sucessão dos meus dias de expectativa por um reencontro em algum lugar do futuro.

Volta


(c) 2007 F. N. de Assis