Transplante e doação de órgãos: mitos e verdades
Francisco Neto de Assis
Com o título acima, estudantes de enfermagem da Universidade Federal de Pelotas preparam um ciclo de palestras que será realizado em outubro. Na qualidade de um dos palestrantes fico a vontade para copiá-lo.
São vários os mitos. Um deles está relacionado à hipotética possibilidade de um indivíduo ser atendido em um hospital depois de um acidente grave, os médicos descobrirem que é doador e, por isso, abreviarem a morte para a retirada dos órgãos. Se assim fosse, considerando as estatísticas de acidentes, não existiria fila de espera para transplante, que hoje aloja mais de setenta mil pessoas. Esse mito, como os demais, é fruto da imaginação de quem não se dispõe a doar e encontra nele uma forma de escape.
A verdade é que os profissionais de saúde, principalmente os médicos, podem ser considerados como o principal obstáculo ao desenvolvimento do processo doação-transplante. Essa conclusão não é apenas da ADOTE, mas também de organizações médicas relacionadas com a questão e integra uma tese de doutorado sobre o tema.
A constatação dessa verdade ocorreu, mais uma vez, há poucos dias, quando recebemos telefonema informando que uma criança de três anos, há quatro dias, dera entrada no Pronto Socorro de Pelotas com traumatismo craniano. Até então não lhe fora disponibilizado o necessário e indispensável leito de UTI e, o pior, já recebera o primeiro diagnóstico de morte encefálica.
Como é o protocolo de doação? Possível doador é o indivíduo com diagnóstico clínico de morte encefálica. Este diagnóstico deve ser confirmado por outro profissional e corroborado por testes gráficos, que podem ser realizados entre os dois diagnósticos clínicos. Confirmada a morte, os familiares são entrevistados para lhes oferecer a oportunidade da doação dos órgãos. Se houver consentimento da família, o falecido passa a ser considerado um potencial doador e continua sob cuidados intensivos até que ocorram o processo de escolha dos receptores e a retirada dos órgãos.
Ora, todo profissional de saúde sabe que Pronto Socorro não é o local adequado para manter alguém por mais de 24 horas de observação, em especial uma criança com traumatismo crânio encefálico. Todo diretor técnico de hospital sabe que o diagnóstico de morte encefálica é de notificação compulsória, ou seja, independente da condição de ser ou não doador de órgãos e a não notificação pode ser interpretada como ocultação de cadáver. Tanto o plantonista da UTI, quanto o diretor técnico de um dos hospitais informaram, enfaticamente, que a orientação deles era para receber pacientes nessas circunstâncias apenas se for para doar órgãos. Neste caso, o protocolo de doação deveria ser fechado no Pronto Socorro. Se, e somente se, a família autorizasse a doação, o pequeno paciente poderia ir para a UTI para a posterior retirada dos órgãos.
Insistimos com os dois profissionais para transferirem a criança do Pronto Socorro para a UTI, inclusive sob o argumento de que assim deveria ter sido desde o primeiro momento. Para o diretor do hospital não tinha sentido algum levar para a UTI um “caso perdido”. Para ele “UTI é para casos com alguma chance”. E disse mais (sic): “não me interessa o lado social, na minha UTI manda eu, o senhor manda no seu... seu... reduto”.
Entre considerar um paciente em situação de morte encefálica “um caso perdido” para quem não seria útil um leito de UTI, que poderia ser ocupado por “casos com alguma chance”, existe um conflito ético a ser resolvido. Por um lado, é verdade que o potencial doador é um cadáver exigindo cuidados intensivos. Por outro, é um cadáver que abre a perspectiva de salvar vidas, muitas vidas.
Ser doador não é apenas permitir que partes de nós, em vida ou após a morte, passem a ser partes de outros. É também doar nossas aptidões pessoais e profissionais para tornar possível a vida de muitos, através dos transplantes.
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(c) 2007 F. N. de Assis
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