A ciência psiquiátrica nos discursos da contemporaneidade
Antonio Quinet
Para abordar a
questão da ciência e da ética no que concerne a psiquiatria, gostaria de
introduzir a teoria do discurso, proposta por Jacques Lacan no final dos anos
sessenta, que formaliza os laços sociais entre os humanos na medida em que são
seres de linguagem e de libido.
Discursos: laços sociais
Em o Mal-estar
na civilização, Freud aponta o relacionamento com os outros homens como a causa
de maior sofrimento do homem. O
mal-estar na civilização é portanto o mal-estar dos laços sociais. Estes se expressam nos atos de governar e
ser governado, educar e ser educado e também, como mostrou Freud, tanto no
vínculo entre analista e analisante, que ele inaugurou, quanto no ato de fazer
desejar, como as histéricas o ensinaram.
Essas quatro formas de as pessoas se relacionarem entre si - governar, educar,
psicanalisar e fazer desejar - Lacan chamou de discursos pois os laços
sociais são tecidos e estruturados pela linguagem. Governar corresponde
ao discurso do mestre/senhor em que é o poder que domina; Educar
constitui o discurso universitário dominado pelo saber; Analisar
corresponde ao laço social inventado no início deste século por Freud em que o
analista se apaga como sujeito por ser apenas causa libidinal do processo
analítico. E o discurso da histeria é
aquele que é dominado pelo sujeito da interrogação (no caso da neurose
histérica, trata-se da interrogação sobre o desejo) que faz o mestre não só
querer saber mas produzir um saber.
A relação
médico-paciente pode entrar nessas quatro modalidades de laço social. Tomemos exemplos simples e um pouco
caricaturais. Quando o médico manda e o paciente obedece (até na prescrição de
um remédio) estamos no Discurso do Mestre; quando o médico ensina ou convence o
que psiquiatria tem a dizer sobre seu caso é ele se encontra no Discurso da
Universidade; quando o médico cala e ocupando o lugar de objeto causa de desejo
em transferência faz o paciente segredar aquilo que ele mesmo nem sabia que
sabia vemos a emergência ao Discurso do Analista. E quando o médico se vê impulsionando a se deter, a estudar e a escrever
para produzir um saber provocado pelo caso do paciente estamos no Discurso
Histérico.
Dentre esses
quatro discursos, o discurso da ciência se assemelha mais, por sua estrutura de
produção de saber, ao discurso histérico.
Histeria, aqui, não se refere à neurose do mesmo nome, mas uma forma de
relacionamento humano em que um provoca no outro o desejo e a criação de um
saber (tal como as histerias fizeram com Freud).
O que se
espera da ciência é efetivamente a produção de saber sobre o real. Mas isso não quer dizer que ela não entre
nos outros discursos - ela também entra tanto no discurso universitário quanto
no discurso do mestre. Nossa civilização atual é dominada pela ciência. É uma civilização científica cujo mal-estar
se expressa nas doenças dos discursos. O mal-estar da civilização científica se
apresenta hoje como doenças predominantemente oriundas do Discurso Capitalista
que é nova modalidade do Discurso do Mestre.
São essas doenças do discurso que o psiquiatra é chamado a tratar.
O discurso
como laço social é um modo de aparelhar o gozo com a linguagem na medida em que
o processo civilizatório, para permitir o estabelecimento das relações entre as
pessoas, implica a renúncia da tendência pulsional em tratar o outro como um
objeto a ser consumido: sexualmente e fatalmente. Pois a inclinação do homem é ser o lobo do outro homem, ou seja,
abusar dele sexualmente, explorá-lo, torturá-lo, matá-lo saciando no outro sua
pulsão de morte erotizada. A
civilização exige do sujeito uma renuncia pulsional.
Todo laço
social implica um enquadramento da pulsão resultando em uma perda real de
gozo. Todo discurso é portanto um
aparelho: aparelho de gozo.
A ciência
também pode entrar na categoria de discurso como enquadramento de gozo na
medida em que tem por finalidade a conquista do real, ou seja, a colonização do
real pelos aparelhos simbólicos que as fórmulas matemáticas representam.
A ciência no discurso
universitário
A ciência pode
se desenvolver segundo o discurso universitário
®
onde o saber é quem manda, é ele o agente do
discurso pois se encontra no lugar do comando, ocupado inicialmente pelo mestre
antigo (S2 ). O discurso do mestre moderno é o discurso
universitário: o mestre foi substituído pelo saber universal científico. Conseqüência: tirania do saber, que exige, a
qualquer custo, a obediência ao mandamento do saber, a ordem que se apresenta
como a verdade da ciência. Essa ordem
pode ser assim formulada: “Tudo pelo o saber!” ou “Saiba tudo sobre tudo, sem
nada deixar escapar”. Podemos continuar
a formulação do imperativo epistemológico: “Não importa o que aconteça,
continue avançando; continue trabalhando para o saber”. “Não importa os meios nem os fins - não
deixe de produzir saber”. Eis a
representação-meta que ordena a fala implícita na conquista da ciência; ele é o
significante-mestre que ocupa todo o lugar da verdade no discurso universitário
e por isso mesmo ele a rejeita (S1 ). A verdade no discurso
universitário - a verdade do sujeito - é rejeitada em prol do mandamento de
tudo saber. O mestre da ciência
universitária é o saber e nada pode detê-la como o tentam os comitês de ética
criados para nela colocar uma barreira, um freio, uma regulação. Mas em contraposição a uma ciência
universitalizante só é possível uma ética do particular como propõe a
psicanálise, que inclua o sujeito cuja essência, segundo Espinoza, é o desejo.
No discurso universitário da ciência tudo que é
tratado pelo saber é considerado um objeto (
a ), mesmo quando são homens e mulheres tratados epistemicamente. Trata-se de objetivar, objetalizar para
aplicar o saber. Isto não é segredo nem
novidade no âmbito médico.
Qual é o sujeito que corresponde ao discurso da
ciência universitária?
Surpreendentemente é o sujeito da crença, o crente. Ao universal da ciência responde não o
sujeito da ciência, mas o sujeito da Igreja Universal. Pois é lá que ele encontra prêt-à-porter
o máximo da totalidade do saber: aquele que tudo sabe, o Onisciente. Eis a divinização do saber promulgada pela
idealização do discurso universitário da ciência. Deus é o cúmulo do saber.
Paradoxalmente, eis o ápice do discurso da ciência. O desenvolvimento da ciência não tem
produzido mais materialistas agnósticos do que antigamente. Pelo contrário, há uma multiplicação das
práticas mágico-religiosas como tem acontecido aqui no Brasil, onde, por
exemplo, não cabe mais fieis nos templos e por isso o Bispo Macedo está
construindo uma série de maracanãs para eles.
E não só no Brasil, também na França há um crescimento do número de
crentes onde, por exemplo, exorcistas e feiticeiras estão se multiplicando para
atender a demanda de exorcismo e de práticas de demologia. Isso que também tem ocorrido em outros
países, mostra a produção em massa do sujeito da crença ( $ ), por definição
dividido entre o “no creo en la bujas” e o “pero que las hay, las
hay”. O sujeito dividido como produto
da ciência, resto do saber científico é também aquele que é excluído por
ela. E é por isso que ele acredita
desacreditando na ciência.
Mas a ciência
também produz as suas crenças, digamos assim, endogâmicas. Será este o caso das neurociências?
Será que não
há uma tendência da psiquiatria, influenciada pelas neurociências de criar uma
nova mitologia cerebral? Elizabeth Roudinesco, como disse recentemente, avançou
a hipótese de que estaria ocorrendo neste fim de século o que ocorreu no final
do século XIX em que com a evolução industrial que acompanhou os grandes
avanços da ciência, concomitante ao desenvolvimento da psiquiatria, foi
constituída uma mitologia cerebral que localizava na anatomia do cérebro os
males da alma. Será que hoje não se
está constituindo com as neurociências uma nova mitologia do elo perdido entre
o substrato neuro-hormonal e os fenômenos clínicos? Afinal, clinicar não é assim tão preciso, como lembrou Gilda
Paoliello em sua abertura. E os
psiquiatras não devem ser os crentes do “Neurônio Universal”. Fazer a ciência se manter fiel a seus
postulados é também uma questão de ética.
Uma ética própria à ciência para que ela mantenha seus limites - se mantenha
nos limites de suas descobertas.
A ciência no Discurso
Capitalista
Assim como
Freud em o Mal-estar na civilização, Lacan em Televisão em 1974
preocupa-se com o mal-estar na modernidade, diagnosticando-o como o produto do
discurso capitalista.
Este sim,
corrige-se Lacan, é o laço social dominante em nossa sociedade (e não o
discurso da universidade como discurso do mestre moderno, como afirmara no
seminário o Avesso da Psicanálise em 1969/1970).
Isso hoje, em
1999, é ainda mais verdadeiro com o desmantelamento dos regimes das sociedades
não-capitalistas. O capital invadiu
tudo : é o que se chama de globalização.
Como afirma Jean Baudrillard em Sociedade de Consumo, vivemos
hoje em uma espécie de evidência do consumo e da abundância, criada pela
multiplicação de objetos, na qual os homens da opulência não se cercam mais de
outros homens e sim de objetos (tvs, carros, computadores, fax,
telefones). Suas relações sociais não
estão centradas nos laços com outros homens, diz Baudrillard e sim na recepção
e manipulação de bens e mensagens. O
discurso capitalista efetivamente não promove o laço social entre os seres
humanos: ele propõe ao sujeito a relação com um gadget, um objeto de
consumo curto e rápido [$ ¬ a]. Esse discurso promove um autismo induzido
e um empuxo-ao-onanismo fazendo a economia do desejo do Outro e
estimulando a ilusão de completude não mais com a constituição de um par, e sim
com um parceiro conectável e desconectável ao alcance da mão. Isso pode efetivamente levar à decepção,
tristeza, tédio e nostalgia do Um em vão prometido ou a diversos tipos de
toxicomanias entre as várias doenças do discurso capitalista.
A sociedade
regida pelo discurso capitalista se nutre pela fabricação da falta de gozo,
produz sujeitos insaciáveis em sua demanda de consumo. Consumo de gadgets que essa mesma
sociedade oferece como objetos do desejo.
Promove assim uma nova economia libidinal. Por outro lado, ao colocar a mais - valia no lugar da causa do
desejo, essa sociedade transforma cada um num explorador em potencial de seu
semelhante para dele obter um lucro de um sobretrabalho não contabilizado - o
que produz a dita “lei do Gérson”, querer obter vantagem em tudo. Se o Gérson levou a culpa, isso só faz
escamotear que essa é a lei do discurso capitalista. Obter vantagem para quê?
Para consumir mais, mais objetos produzidos pelo capitalismo
científico-tecnológico. Nesse ciclo, o
lugar da mais-valia coincide com o dos objetos de gozo - gozo prometido e não
alcançável por estrutura. “A
mais-valia”, diz Lacan, é a causa de desejo da qual uma economia faz seu
princípio”. A ciência no discurso
capitalista é a produtora dos objetos de consumo, que operam como causa de
desejo. O saber científico nesse
discurso é capitalizado para fabricar os objetos que possam representar os
objetos pulsionais [S2 ® a].
O Discurso do
Capitalista fabrica um sujeito animado pelo desejo capitalista - desejo que o
leva a produzir, ou seja, materializar o significante-mestre desse discurso: o
dinheiro que em seu caráter virtual se chama capital
[$ ® S1].
Esse sujeito
como falta-a-ser é o sujeito como falta-a-ser-rico; e a falta-de-gozo se
inscreve como a falta-a-ter-dinheiro, é o sujeito descapitalizado. Assim o Discurso do Capitalista produz o sujeito inadimplente, o sujeito da
dívida que se eterniza. O Discurso do
Capitalista cria a dívida que só aumenta: começa-se a se pagar os juros, os
juros dos juros e os juros dos juros dos juros. A moratória é, pela lógica do Discurso do Capitalista,
ex-dívida. A moratória constitui uma
figura da castração na medida em que coloca uma barreira à insaciabilidade do
capital que se manifesta na perenização da dívida.
O Discurso do
Capitalista difere do Discurso do Mestre/senhor que estabelece uma laço social
entre aquele que manda e aquele que trabalha, como aparece em Hegel na
constituição da consciência de si na dialética do senhor e do escravo. Neste há uma articulação entre o desejo de
um com o desejo do outro, entre a vida e a morte, entre o trabalho e a casa,
entre o objeto e o gozo. Nessa
dialética, o saber transformador que é o trabalho está do lado escravo. No Discurso do Capitalista não há mais
vínculo entre o senhor moderno, o capitalista, e o proletário. A figura do capitalista de hoje tende a
desaparecer e no lugar dominante temos a figura impessoal do capital
globalizado. O Senhor Absoluto moderno,
que vem no lugar hegeliano da Morte, é o Capital em relação ao qual, vaticina
Lacan, somos todos proletários.
O discurso
capitalista ao ser dominante visa a sobrepor o mercado à sociedade. Para ele, não existiria mais sociedade, só
mercado, cujas leis, já dizia Adam Smith são invisíveis. A mão invisível que regula o mercado (ainda
que se tente personificar o capital na figura do empresário capitalista) não
tem regulação nenhuma possível pois não há lei, só imperativo. Trata-se de um discurso sem lei, que
foraclui a castração como indica Lacan.
Ele é impossível de ser regulado, confessa o próprio George Soros, ele
mesmo assustado com as ondas de altas e quedas das bolsas provocadas por suas
próprias intervenções.
O Discurso
Capitalista não é um laço social que regulariza como o é o Discurso do
Mestre. Sua política é a liberal, do
neo-liberalismo, do cada um por si e um contra todos, já que o sol não brilha
para todos. O Discurso do Capitalista
não é regulador, ele é segregador. A
única via de tratar as diferenças em nossa sociedade científica capitalista é a
segregação determinada pelo mercado: os que tem ou não acesso aos produtos da
ciência. Trata-se, portanto, de um
Discurso que não forma propriamente laço social mas segrega: daí a proliferação
dos sem: terra, teto, emprego, comida, etc. Os que estão with o discurso capitalista são out:
os without. Quem é com está sem,
sua lógica obriga.
Em
contraposição, a psicanálise propõe a ética da diferença e não a ética da
segregação.
Como pensar a
ciência no Discurso do Capitalista?
O discurso
capitalista, como dissemos, produz objetos que visam a saturação do sujeito
tamponando sua falta com gadgets que propõe como objetos de gozo
anulando toda questão sobre o desejo.
Esse modo de laço social faz crer que é possível o sujeito encontrar em
um objeto sua satisfação. O significante-mestre capital é quem comanda o
saber científico: é ele quem financia as pesquisas, patrocina os pesquisadores,
induz a elaboração do saber, obrigando este a dobrar-se à “política dos
resultados”. Pois o saber científico,
praticamente subsumido pela tecnologia, tem que produzir objetos S2 ®
a. É o que vem apontando, entre outros,
Marilena Chauí no que tange a universidade que está pressionada a uma política
de resultados e direcionada para o mercado.
Na
psiquiatria, os objetos produzidos pelo saber da neurociência são os
medicamentos que podem facilmente virar objetos de consumo quando a psiquiatria
entra no discurso do capitalista.
É preciso uma
ética que possa vir barrar o imperativo de gozo imposto pelo discurso
capitalista científico neo-liberal: império do ter, império do individualismo,
da competitividade. Esse discurso cria
uma comunidade monstruosa de pares, como aponta Roberto Romano. É uma comunidade, melhor dizendo de
pseudo-pares - que se querem ímpares (pois cada um é ímpar) - em que são menos
pares e colegas juntos por uma mesma causa ou uma mesma orientação, do que
inimigos mordidos pela agressividade e pela competitividade em obter
financiamento para suas pesquisas. Basta um sinal verde para que se soltem os
cães ferozes da reserva de mercado atacando-se colegas, na véspera “amigos”, em
nome de uma defesa territorial. É o que
se vê na política universitária, denunciada por Romano, é que se viu
recentemente entre psicanalistas.
Degradação dos laços sociais, império do discurso capitalista na área do
saber.
Contra o
imperativo do ter, a psicanálise propõe a ética da falta-a-ter, que se chama
desejo, e a gestão, não do capital financeiro, mas do capital da libido, por
definição, sempre no negativo. Contra o
imperativo da competividade neo-liberal, a ética da diferença.
Gostaria de
lançar aqui a seguinte questão: até que ponto o desenvolvimento das
neurociências e da psicofarmacologia se presta ao Discurso Capitalista? O dinheiro investido em suas pesquisas não
poderiam estar invertendo a ordem das coisas?
Em vez de termos drogas cada vez mais eficazes para combater novos males
decorrentes da transformação da sociedade, será que não são os “males” que
agora são criados e categorizados em novas síndromes para serem então tratados
pelas novas drogas?
O diagnóstico a serviço do
Discurso Capitalista
Temos aqui
duas hipóteses: a evolução da ciência na psiquiatria produz novos remédios para
novos males; ou ela produz os “males”, pseudos novos males, para que sejam
tratados por medicamentos que ela fabrica.
Neste caso, vemos as neurociências a serviço do discurso capitalista não
só produzindo novas drogas (novos gadgets) mas produzindo também novas
categorias diagnósticas que justificariam assim “médica-mente” a utilização das
psicofarmacos. Senão, vejamos.
O que orienta
hoje o psiquiatra em sua função diagnóstica?
Para que o diagnóstico não seja uma etiqueta ou um simples procedimento
classificatório digno de um "jardim das espécies" apropriado para a
botânica ou para o zoológico, é necessário que ele cumpra a função de remeter à
estrutura que o condiciona. Como não
temos na psiquiatria a autópsia que venha confirmar a doença da qual o sintoma
seria o sinal, é na construção do caso clínico - a partir de um saber sobre
a subjetividade particular de cada paciente que a
psicanálise permite elaborar ‑ que um diagnóstico aparecerá como conclusão
do processo de investigação.
O que vemos
hoje nos manuais psiquiátricos de diagnóstico? Os tipos clínicos clássicos da
neurose não mais se encontram no DSM IV ou no CID 10. A neurose obsessiva foi
substituída por TOC (Transtornos Obsessivos Compulsivos) e a histeria por
Transtornos Dissociativos e Somatoformes.
Ao substituir as doenças próprias da
psiquiatria clássica por transtornos opta-se mais pela descrição e pela
comunicação desses fenômenos entre colegas que por uma clinica em que cada caso
seja efetivamente um caso e onde os fenômenos sejam considerados sintomas, ou
seja, formações de compromisso entra as diversas instâncias do aparelho
psíquico. Os manuais de diagnóstico atuais parecem tomados pela preocupação de
se constituir uma língua comum entre psiquiatras de todo o mundo, como um
esperanto que pudesse terminar com o malentendido próprio à comunicação.
Baseados no ideal da visibilidade e na dualidade saúde versus transtorno, os
manuais dão a impressão de se pretenderem um instrumento que associa o máximo
da descrição (um paciente pode receber vários números correspondentes a
múltiplos diagnósticos) dentro de um margem mínima de erro com o ideal de
transmitir um modelo médico para a psiquiatria. Se o próprio médico fosse
fazer, a titulo de exercício, seu próprio diagnóstico com franqueza e sem
pudor, ele certamente encontraria muitos números que Ihe cabem. E assim, como,
Simão Bacamarte, generalizaria a tal ponto os diagnósticos que eles perderiam
totalmente seu valor clinico. Os
manuais de diagnóstico são deliberadamente a-teóricos, voltando se para uma
descrição que seja partilhada pela maioria dos psiquiatras do mundo. Assim toda
e qualquer hipótese etiopatogênica é excluída, como também desaparece o próprio
conceito de doença, uma vez que esta não deixa de estar vinculada a um processo
do qual se espera conhecer, um dia, seus elementos e sua dinâmica. Fundar uma
prática de diagnóstico baseada no consenso estatístico de termos relativos a
transtornos, que por conseguinte devem ser eliminados com medicamentos, é
abandonar a clinica feita propriamente de sinais e sintomas que remetem a uma
estrutura clínica, que no caso, é a estrutura do próprio sujeito. É estar a serviço de uma psiquiatria ativa
de resultados já estabelecidos previamente pela lógica do mercado de
psicofarmacos.
Situando o problema no âmbito da ética,
podemos nos perguntar se não estaria havendo uma inversão do procedimento
psiquiátrico: os medicamentos determinam os diagnósticos. O desaparecimento da
neurose da classificação psiquiátrica não teria alguma relação com o lançamento
de medicamentos propondo o tratamento de transtornos neuróticos? Podermos dar
como exemplo a propaganda de Zoloft para tratar de TOC.
Restituir a função diagnóstica no tratamento
psiquiátrico a partir de uma clínica do sujeito é um dever ético que a
psicanálise propõe a psiquiatria. Assim
como ir contra a dissolução da clínica substituída pelo binômio
norma X transtorno, para privilegiar o sintoma como uma manifestação do
sujeito. Isto é uma forma de sair do
discurso do capitalista que condiciona desde o diagnóstico até o tratamento
para restituir à medicação seu justo valor paliativo e não resolutivo do
sofrimento mental. Pois a psicanálise
não se opõe à psiquiatria, mas sim a todo Discurso que suprime a função do
sujeito. Pois clinicar é preciso e não
existe clínica dessubjetivada. Eis a
ética da diferença que a psicanálise contrapõe à prática normativa da
psiquiatria enquanto serva do capital.
Não devendo assujeitar-se nem ao discurso
universitário nem ao discurso capitalista, a ciência - eis a tarefa que cabe
aos cientistas - deve corresponder à estrutura de discurso que mais dela se
aproxima: o discurso da histérica.
®
No caso da psiquiatria, isto significa que o avanço
na ciência aqui deve ser motivado pelo sujeito patológico, sofredor, sujeito
dividido, sujeito da esquize que se manifesta na clínica. É preciso que o agente das neurociências
seja o sujeito da clínica ($ ) que ao
interpelar com seu pathos o mestre-cientista,
(
S2 ), o faça produzir o saber ( S2 ), mesmo
sabendo que este saber não dará conta de todo real ( a ) em jogo na verdade de
sofrimento subjetivo.
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