Resenha do livro —
O Espectro de Narciso na Modernidade, de Mônica do Amaral,
São Paulo, Editora Estação Liberdade, 1997.

Resenhado por: Cecilia Maria de Brito Orsini
São Paulo, abril de 1999

   Resenha Publicada originalmente na Revista Brasileira de Psicanálise Vol.33, Número 1, 1999, pp 209-214

 

O ESPECTRO DE NARCISO NA MODERNIDADE

Quando ele se esgota [o entrelaçamento entre o sujeito
individual e a totalidade social], no registro positivista
de dados, sem nada dar ele próprio, se reduz a um sim-
ples ponto; e se ele, idealisticamente, projeta o mundo
a partir da origem insondável de si mesmo, se esgota nu-
ma obstinada repetição.
Nos dois casos ele sacrifica o
espírito. (Adorno e Horkheimer, 1985
)

 

Temos em mãos uma publicação audaciosa feita sob medida para não sacrificar o espírito.

Mônica do Amaral busca, na arte do diálogo sujeito-mundo, desembaraçar a lógica que subjaz aos processos autoritários, observando o movimento dialético entre o sujeito individual e o movimento de massas, na sociedade contemporânea, principalmente a partir do nazi-fascismo.

É uma empreitada arriscada. O livro convida, ou melhor, quase obriga, a que o leitor se debruce sobre sua clínica e se pergunte: afinal, o que do mundo há nela? Suas interrogações "forçam", melhor dizendo, "estouram" os estreitos limites do consultório, para bem além do paciente a nossa frente, provocando o acanhamento de nossa clínica.

Mas como a autora faz tudo isso, num livro? — perguntar-se-á o leitor.

Basicamente burilando, lapidando, uma árdua questão, tão preciosa quanto difícil: o que será que do entorno social se impõe ao indivíduo, de modo que uma vivência coletiva possa aparecer como intrapsíquica? De outro lado, a questão se torna muito mais complexa, uma vez que o próprio social vai ser revisitado a partir de propostas teóricas fundamentais, advindas da psicanálise, extraídas, portanto, da clínica individual.

É bem verdade que estas questões já aparecem nos chamados textos culturais de Freud. Mas é sempre bom lembrar que Freud, no limite, se referia à cultura como uma grande resultante, projetada, de mitos "endopsíquicos", visão que atravessa toda a sua obra, desde a correspondência com Fliess, até o final.

Para responder a estas indagações surge este trabalho, fruto de anos de pesquisa, que resultaram numa tese de doutorado, realizada entre Paris e São Paulo, transformada agora em livro.

Do lado do que poderíamos chamar de extra-individual — o social — Amaral apela, com conhecimento de causa, para a teoria crítica, particularmente Adorno e Horkheimer. Os dois primeiros capítulos nos conduzem para o campo da dialética indivíduo-sociedade, sendo a relação entre o narcisismo e o nazi-fascismo o fio condutor da abordagem. Os capítulos são ásperos, porém seguros. O leitor os termina com a sensação de ter atravessado um desfiladeiro, um liame fino, uma película delicada, uma dobra que articula sujeito e mundo. De um lado, a rocha dura do penhasco. De outro, o abismo do ser.

Ao findar o segundo capítulo entramos em terreno mais conhecido, ao menos para nós , psicanalistas:

A articulação vai prosseguir com a outra ponta do tecido desta arriscada costura, no terceiro capítulo: o narcisismo, a paranóia e o masoquismo de Freud, revisitados pela tradição pós-freudiana francesa, principalmente através do trabalho de J. Laplanche e J. André. A idéia de filogênese será substituída, com propriedade, pela idéia de sedução originária, perpretada pelo adulto, introdutor da sexualidade na criança. Assim a relação com o líder não será mais interpretada à luz da relação da horda filogenética com o pai totêmico e sim a partir da relação regressiva, passivo-feminina, masoquista, da criança com uma figura parental perversa, que a seduz "enigmaticamente", colocando-a no campo da sexualidade. Saímos, no quarto capítulo, do escorregadio terreno da filogênese, através do ensaio metapsicológico que a autora faz da regressão a que se submetem psiquicamente as massas, do ponto de vista de sua economia libidinal. Voltamos a um terreno mais propício à pensabilidade contemporânea, qual seja, a uma regressão ao território das primitivas relações de alteridade. Não resta dúvida de que Melanie Klein iria apreciar esta passagem.

Estarão, assim, ingleses e franceses atualmente tão apartados, como querem nos fazer crer, nós que estamos aqui, na periferia do capitalismo? É uma interrogação marginal, porém importante, que também pode ser pensada lendo este trabalho.

A partir deste importante deslizamento metapsicológico, de uma visão mais falocêntrica (Freud), para outra mais ginocêntrica (Laplanche e J. André), vai ser desenvolvida, no último capítulo, a terceira e última parte do raciocínio, e com ela voltamos a Adorno: não será a própria paranóia de Schreber uma antecipação, no indivíduo, da hecatombe que se seguirá, na civilização, a partir da Primeira Guerra Mundial? Para desenvolver esta interessantíssima questão a autora apelará para o recurso literário na atraente aproximação que faz Elias Canetti entre a paranóia e o poder. No seu entendimento o delírio de Schreber tem muito a nos ensinar sobre o mais íntimo desejo do soberano: Não se pode rechaçar a suposição de que por trás de cada paranóia, como por trás de cada poder, existe a mesma tendência profunda: o desejo de eliminar os demais do caminho para ser o único ou, numa forma mais atenuada e mais freqüentemente admitida, o desejo de servir-se dos demais para que com a ajuda deles se chegue a ser o único. (Canetti, 1983)

Ao concluir, a autora quase vai se desculpando por "estarmos nos movendo entre orientações teóricas apoiadas, como foi dito, em solos epistemológicos distintos" (p.177), o que vem a ser justamente a riqueza de seu trabalho. Reconhece que a grande questão é garantir que as tensões provenientes de campos distintos não se dissolvam num trabalho de interpretação psicanalítica da história. Ao findar o livro, Amaral deixa claro que seus ensaios tiveram um caráter exploratório ao buscar os liames que "unem ou afastam as hipóteses sobre os psiquismos individual e coletivo, de um lado, e as determinações sócio-históricas da psique, de outro, [que] nos permitiram 'arranhar' os avatares do conceito de narcisismo" (p.183).

Acreditamos que, pelos seus interstícios, o trabalho vai além disso. Veremos sobretudo as contribuições que os capítulos trazem para se repensar a psicanálise e a modernidade a partir daí.

ADORNO

Adorno aponta para o paradoxo narcisista contemporâneo — um movimento de exaltação do indivíduo que contraditoriamente resulta na sua anulação. Na modernidade, o lugar do sujeito singular está angustiosamente vazio. Há ainda o interesse, como o fez Adorno, de apontar para o aspecto regressivo que é imanente à própria civilização ocidental, para além do arcaico-psíquico. Civilização que tem mesclado, cada vez com mais "brilho", movimentos contraditórios de racionalidade e barbárie. E pensar que Freud, poucos anos antes do advento do extermínio pelas câmaras de gás, ainda se consolova dizendo que se estivéssemos em tempos da Inquisição seria ele que iria para a fogueira em praça pública, ao invés dos seus livros! E pensar que haveria uma verdadeira estética da destruição, em curso, como ilustra magistralmente o filme Arquitetura da Destruição. Este filme, extraordinário, lembra com fina ironia como Hitler e suas pretensões de esteta, foram recusados pela Academia de Belas Artes de Viena, que lhe vetou o ingresso. A propósito, para quem não o assistiu, vale lembrar que este filme é um fascinante complemento à leitura do livro e às tentavivas de compreensão das atrocidades cometidas durante o regime nazista.

É interessante observar como Adorno consegue reunir, em seu pensamento, a análise da economia libidinal das massas e suas determinações sócio-históricas. Propõe, no centro desta economia libidinal na relação massa-líder, a solda indissolúvel das relações sadomasoquistas. Com esta idéia vai além daquilo que teria escapado a Freud, já que este apreendeu o fenômeno de massas fundamentalmente no registro do narcisismo, principalmente no que concerne à questão dos aspectos idealizados na relação com o líder. Assim, na relação da massa com o líder, Freud teria deixado de acentuar a violência que pode assumir a relação entre o ego e o ego ideal , como na melancolia, e a extrema potência do sadomasoquismo implícita nas relações de liderança.

No caminho aberto por Adorno, Amaral vai prosseguir resgatando a importância da dimensão canibal na relação da massa com o líder, o que implica perguntar por uma espécie de feminilização de seu caráter, já que estamos agora no registro do período pré-edipiano. O que tem importância já não é tanto a identificação hipnótica com o pai da horda e sim a modalidade de amor sádico-oral, voltado fundamentalmente à figura materna. Além do mais, já que à exacerbação dos mecanismos de idealização vai necessariamente corresponder uma séria inibição no campo da sublimação, só resta ao indivíduo, se ele não possui "nem arte, nem ciência, nem jardim" (como já dizia Freud em O Mal-estar na Civilização, 1930), o consolo religioso, ou a submissão passiva, masoquista, ao líder autoritário.

Não estamos mais no registro da neurose — campo dos fenômenos religiosos, como propunha Freud — e sim no registro da paranóia, de uma quase psicose coletiva, como sugere a autora.

Acentua-se então o caráter feminino-passivo das massas e das relações que poderíamos estabelecer entre o feminino, a passividade e o masoquismo. Assim, parece de fato justificada a importância de se articular J. Laplanche com sua teoria da sedução generalizada junto ao fenomeno de ma_____ FREUD, LAPLANCHE, J. ANDRÉ

Para dar conta da profundidade da tessitura desta articulação toda, Amaral fará um exaustivo rastreamento das noções de narcisismo, paranóia, superego e masoquismo em textos capitais de Freud. A partir de então vai operar os deslizamentos críticos que lhe interessam, através de novos autores, recortando cuidadosamente de cada um o que lhe será fundamental para articular a análise da economia libidinal das massas e seus ecos na atualidade.

Dentre os deslizamentos operados destacam-se interessantes reformulações na noção de superego e ideal de ego, colocando a problemática da relação com o líder numa espécie de insuficiência do processo "tradutivo-repressivo" por parte do indivíduo, cujos restos não-metabolizados retornariam sob a forma de imperativos categóricos, cruéis, que vão se soldar à figura do líder, ao invés da lei e do normativo, objeto da repressão secundária na formação do superego.

Tanto mais porque a paranóia não será mais vista como defesa contra o homossexualismo e sim como uma espécie de masoquismo delirante, a partir da visão das figuras parentais, enquanto sedutoras traumáticas originárias, na contribuição que faz Laplanche com sua teoria da sedução generalizada. Como confirmação desta hipótese há o espantoso acréscimo de informação, posterior a Freud, sobre o pai de Schreber. São informações valiosas que Freud não dispunha, por ocasião da redação de seu trabalho sobre o Dr. Schreber. Mais recentemente viemos a saber que o pai de Schreber, eminente pediatra alemão, se utilizava de verdadeiros "utensílios de tortura" em sua horrível pedagogia pediátrica, que, por sinal, influenciou toda uma geração na Alemanha, no fim do século. Para resumir, o pai de Schreber propunha, em nível doméstico e escolar, qualquer coisa como uma verdadeira disciplina militar, desde o nascimento, métodos que foram perpretados contra o próprio Schreber, supostamente com a anuência de sua mãe. Vale lembrar que a crise de Schreber eclodiu justamente quando ele foi nomeado para um cargo de máxima autoridade judiciária, o que atesta o fracasso de uma internalização superegóica bem-sucedida, tendo o seu pai funcionado como uma espécie de mãe-fálico-perversa.

A MASSA, O ÓDIO, O INCESTO — ENSAIO DE TRADUÇÃO METAPSICOLÓGICA

O modelo originário do amor incestuoso é retomado aqui para pensar a origem da manipulação fascista das massas e do ódio aos out-groups.

Através da reinterpretação de cena de fustigação em "Uma criança é espancada" (Freud, 1919), retoma-se o caráter feminino, passivo, do lugar da criança que deseja, sexualmente, apanhar e de seu ódio pelos irmãos. Num primeiro momento a fantasia é "meu pai bate numa criança que eu odeio", para se converter a seguir em "meu pai me bate". Pergunta Amaral: "Se considerarmos o triângulo massas-líder-estrangeiros, será que não se pode fazer associação semelhante?" (p.154).

É mesmo uma boa pergunta, a que repõe, de um lado, a pré-história individual no lugar da pré-história filogenética, e, de outro lado, enfatiza o sadomasoquismo, no lugar do narcisismo das pequenas diferenças suposto por Freud, que não parece fornecer energia suficiente para sustentar toda a potência do ódio xenófobo.

É a pré-história individual que é retomada na relação com o líder, por uma insuficiência no processo "tradutivo-repressivo", no dizer de Laplanche, onde o que retorna é a relação originária, vale lembrar — enigmática para o próprio adulto em questão —, da implantação da sexualidade endereçada à criança. Aquilo que não é metabolizável, por parte da criança, fica como um quisto, que retorna no sentimento persecutório em relação aos estrangeiros. O processo "tradutivo-repressivo" é o modo como Laplanche nomeia o processo que é responsável, ao mesmo tempo, pela metabolização e repressão, na criança, das mensagens sexuais enigmáticas, provindas do adulto.

Portanto, de modo inovador, Amaral supõe que, de fato, as massas regridem não ao pai totêmico, filogenético, da horda primitiva e sim a este momento de sedução originária, que sempre deixa um resto, que retorna como pE___a0oriedade.

Assim será a paranóia, não mais o narcisismo, o paradigma para se pensar a regressão observada nos movimentos de massa.

A PARANÓIA E A CONTEMPORANEIDADE

Para finalizar, depois da delicada armação metapsicológica realizada em que a paranóia surge como fio condutor da análise surge uma instigante questão: não será a paranóia uma grande metáfora do narcisismo social contemporâneo? Amaral vai ressaltar o prejuízo nos processos de sublimação e deixa para o leitor a tarefa de refletir sobre sua grande indagação: "na medida em que tanto a paranóia como o narcisismo implicam a exacerbação dos mecanismos de idealização — constituindo-se em verdadeiro impedimento à sublimação no sentido pleno e, em última instância, à própria produção de cultura — se tal impedimento não se constituiria no fundamento do que Adorno designou como o 'retorno definitivo da civilização à barbárie'"(p.168)?

São grandes questionamentos, que dão muito o que pensar, sobretudo porque, sub-repticiamente, nos induziram a perguntar: e nós, e o movimento psicanalítico, o que temos a ver com isso?

 

PARA CONCLUIR — UMA CLÍNICA AMPLIADA OU PARA NÃO SACRIFICAR O ESPÍRITO

Na medida em que não nos acanhamos e ousamos enxergar, em boas companhias, como o fez Amaral, para além do divã, testemunhamos um salutar movimento onde intentamos não sacrificar o nosso espírito, tampouco o de nossos pacientes.

Hoje acreditamos que podemos sorrir, superiores, do médico de Schreber, Dr. Flechsig, e de seu pai, que teriam perpretado, no dizer de Schreber, o "assassinato de sua alma", de que ele dá tão pungente testemunho nas suas memórias e na sua luta para recuperar seus direitos civis.

Mas, será?

Será que estamos assim tão isentos de risco?

Na medida em que nossa disciplina e prática, enquanto movimento psicanalítico, comporta relações de liderança, que nem sempre estão no lugar do pai generoso e sim no lugar do pai narcísico, do guru, prenhe de significações enigmáticas, vemos que estamos sujeitos aos mesmos riscos.

O terreno das relações transferenciais, tanto em relação à análise pessoal quanto em relação à instituição, pode ser extremamente propício a acontecimentos regressivos de diferentes tipos. Portanto, o trabalho de Amaral suscita um alerta em relação ao risco do qual temos constantemente de nos resguardar, qual seja, o de cair no estado de massa. É necessário estarmos sempre em busca de nossa singularidade de sujeitos, como um modo privilegiado de resgate de "salubridade" psíquica, dentro de nossa prática e da prática do movimento psicanalítico.

Assim sendo, este trabalho continua, uma salutar tradição crítica, tanto mais necessária, quanto oportuna, em nosso meio!

Cecilia Orsini
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Mônica do Amaral
Rua Cayowáa, 2077
01258-011 – São Paulo – SP
Fone.: (011) 864-6866
E-mail :
monicagta@hotmail.com

Clique aqui para ver o artigo de Mônica do Amaral "A SUBLIMAÇÃO ESTÉTICA NOS INTERSTÍCIOS DA CULTURA CONTEMPORÂNEA"

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