Histórias
que não se contam
O não-dito e a Psicanálise com
crianças e adolescentes
PREFÁCIO
A psicanálise supõe que
as crianças são por definição- inocentes.
Esta afirmação é verdadeira, ainda que capciosa. Inocência,
como sinônimo de pureza, não há nem nunca teria havido, e isso
ficou claro desde os Três ensaios... de Freud, que
escancararam a sexualidade infantil. Porém, se fosse
considerada a etimologia da palavra, ficaria claro que
o prefixo negativo indica a ausência de nous, ou seja, de
conhecimento.
As crianças, então,
nada saberiam, pois nascem feitas tabula rasa. Aqui,
novamente, outra aporia. De fato, elas desconhecem, e por isso
perguntam tanto. Mas também não deixam de saber, pois são
capazes de deduzir, inferir, abduzir, e até adivinhar.
Os adultos falam, e
deles se espera informação, sabedoria e veracidade. Todavia,
isso sairia das suas bocas ou talvez não. Na perspectiva
do que se diz e do que se omite, do que pode ser dito, e o que se
prefere silenciar, do que não tem palavras nem nunca terá, etcétera
e tal, e do conjunto dos efeitos que tudo isto provoca, o
trabalho de Miriam Debieux tem muito para mostrar, explicitar e
questionar.
As histórias que não
são contadas, as palavras censuradas, as verdades caladas, estas
e outras espécies de não dito acarretam
conseqüências, nunca benfazejas e quase sempre patológicas. Em
cada caso, o infantil sujeito sofre e, em razão de tais
mordaças, produz sintomas.
As vivências da clínica
evidenciam as seqüelas do que deveria ter sido falado e não foi,
menos por que seria impossível de verbalizar, e mais por haver
uma proibição de enunciá-lo em voz alta. Comprova-se como a
decisão de deixar a criança na ignorância tem um preço, pois
a falta de significado costuma induzir todo tipo de sentidos
alienados.
Retomando um
postulado de Lacan em LEtourdit, que se diga fica
esquecido por trás do que se diz naquilo que se escuta. Para
melhor aproveitar esta asseveração, ela teria de ser modulada
de todas as maneiras, começando pela negativa: o que não se
diz não será escutado, embora não seja esquecido que não se
diga.
Contudo,
mesmo o que não se diz tem existência, pois funciona em
off- como causa. O inaudível resta inaudito, e pesa como um
eco de uma revelação que não houve. Sem a verbalização, as
chances de elaborar diminuem ou faltam por completo; então, é
bem provável que o não simbolizado volte desde o real,
motivando inibições, sintomas ou angústia.
Bem entendido, do
que se trata é de um percalço localizado no discurso, não
apenas o lingüistico, mas o do Outro, aquele que, na infância,
é representado pelos pais como lugar-tenentes. Eles são responsáveis
tanto pela transparência da sobredeterminação, quanto pelo seu
avesso, a mistificação.
O discurso, feito de
palavras e de viva voz, se desdobra num saldo o enunciado-,
que é decorrente de um ato a enunciação.
Nesta constam dois aspectos, independentes porém mutuamente
potenciáveis: o indizível e o interdito.
Deste, dá para diferenciar aquilo que é abjeto,
daquilo que acabaria sendo um secreto.
Este último, por sua vez, teria duas possibilidades: ser guardado
ou ser perdido. No primeiro caso, um dia
poderá ser confessado; no segundo, mesmo omitido, seria plausível
que, em circunstâncias favoráveis, algo fosse associado.
Numa psicanálise, o
paciente criança ou adulto- fornece o material
significante, rememorando até certo ponto. Quando se atinge o
limite lógico da resistência, é pela intervenção do analista
por meio de algum enunciado eficaz- que se torna viável o
avanço do tratamento, sob a forma da interpretação, ou em
se tratando do não dito- pelo recurso da
construção. Contrabalançando o ônus psíquico do que foi
impedido de ser articulado, a pontuação necessária é aquela
que permite reconstruir a continuidade de uma história.
Superando, deste modo, a alienação do desejo do Outro, fica
pautada a separação do sujeito e, como resultante, o
restabelecimento de sua autonomia.
Miriam Debieux, experiente analista de crianças, conhece muito bem o que está em jogo no não dito, e suas incidências. Seu livro é exemplar nas referências teóricas da questão, mas -fundamentalmente - na alçada da prática clínica, ali onde nada mais que a verdade tem poderes terapêuticos.
Oscar Cesarotto