Histórias que não se contam
O não-dito e a Psicanálise com crianças e adolescentes

PREFÁCIO do Livro de Miriam Debieux Rosa por Oscar Cesarotto

    A psicanálise supõe que as crianças são –por definição- inocentes. Esta afirmação é verdadeira, ainda que capciosa. Inocência, como sinônimo de pureza, não há nem nunca teria havido, e isso ficou claro desde os “Três ensaios...” de Freud, que escancararam a  sexualidade infantil. Porém, se fosse considerada  a etimologia da palavra, ficaria claro  que o prefixo negativo indica a ausência de nous, ou seja, de conhecimento.

     As crianças, então, nada saberiam, pois nascem feitas tabula rasa. Aqui, novamente, outra aporia. De fato, elas desconhecem, e por isso perguntam tanto. Mas também não deixam de saber, pois são capazes de deduzir, inferir, abduzir, e até adivinhar.

     Os adultos falam, e deles se espera informação, sabedoria e veracidade. Todavia, isso sairia das suas bocas –ou talvez não. Na perspectiva do que se diz e do que se omite, do que pode ser dito, e o que se prefere silenciar, do que não tem palavras nem nunca terá, etcétera e tal, e do conjunto dos efeitos que tudo isto provoca, o trabalho de Miriam Debieux tem muito para mostrar, explicitar e questionar.

     As histórias que não são contadas, as palavras censuradas, as verdades caladas, estas e outras espécies de não dito acarretam conseqüências, nunca benfazejas e quase sempre patológicas. Em cada caso,  o infantil sujeito sofre e, em razão de tais mordaças, produz sintomas.  

     As vivências da clínica evidenciam as seqüelas do que deveria ter sido falado e não foi, menos por que seria impossível de verbalizar, e mais por haver uma proibição de enunciá-lo em voz alta. Comprova-se como a decisão de deixar a criança na ignorância tem um preço, pois a falta de significado costuma induzir todo tipo de sentidos alienados.

     Retomando um postulado de Lacan em L’Etourdit, que se diga fica esquecido por trás do que se diz naquilo que se escuta. Para melhor aproveitar esta asseveração, ela teria de ser modulada de todas as maneiras, começando pela negativa: o que não se diz não será escutado, embora não seja esquecido que não se diga.

     Contudo, mesmo o que não se diz tem existência, pois funciona –em off- como causa. O inaudível resta inaudito, e pesa como um eco de uma revelação que não houve. Sem a verbalização, as chances de elaborar diminuem ou faltam por completo; então, é bem provável que o não simbolizado volte desde o real, motivando inibições, sintomas ou angústia.

     Bem entendido, do que se trata é de um percalço localizado no discurso, não apenas o lingüistico, mas o do Outro, aquele que, na infância, é representado pelos pais como lugar-tenentes. Eles são responsáveis tanto pela transparência da sobredeterminação, quanto pelo seu avesso, a mistificação.

     O discurso, feito de palavras e de viva voz, se desdobra num saldo –o enunciado-, que é decorrente de um ato –a enunciação. Nesta constam dois aspectos, independentes porém mutuamente potenciáveis: o indizível e o interdito. Deste, dá para diferenciar aquilo que é abjeto, daquilo que  acabaria sendo um secreto. Este último, por sua vez, teria duas possibilidades: ser guardado ou ser perdido. No primeiro caso, um dia poderá ser confessado; no segundo, mesmo omitido, seria plausível que, em circunstâncias favoráveis, algo fosse associado.

     Numa psicanálise, o paciente –criança ou adulto- fornece o material significante, rememorando até certo ponto. Quando se atinge o  limite lógico da resistência, é pela intervenção do analista –por meio de algum enunciado eficaz- que se torna viável o avanço do tratamento, sob a forma da interpretação, ou –em se tratando do não dito- pelo recurso da construção. Contrabalançando o ônus psíquico do que foi impedido de ser articulado, a pontuação necessária é aquela que   permite reconstruir a continuidade de uma história. Superando, deste modo, a alienação do desejo do Outro, fica pautada a separação do sujeito e, como resultante, o restabelecimento de sua autonomia.  

     Miriam Debieux, experiente analista de crianças, conhece muito bem o que está em jogo no não dito, e suas incidências.  Seu livro é exemplar nas referências teóricas da questão, mas -fundamentalmente - na alçada da prática clínica, ali onde nada mais que a verdade tem poderes terapêuticos.

Oscar Cesarotto

Sumário do Livro
 
 PREFÁCIO 
INTRODUÇÃO
PARTE I
O NÃO-DITO: EM BUSCA DE SEU SENTIDO
 
1 - OS DITOS POSSÍVEIS
    1.1 O Mal Entendido
    1.2 O Mal dito
2 - OS DITOS IMPOSSÍVEIS
    2.1 O Indizível: o não-dito e a castração
    2.2 O Impensável: O Sagrado
3 - OS NÃO-DITOS "VOLUNTÁRIOS"
    3.1 O Implícito
    3.2 As regras sociais e mitos
    3.3 O Segredo
 
PARTE II
O NÃO-DITO NA CLÍNICA PSICANALÍTICA
 COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES
 
1 - QUESTÕES SOBRE A PSICANÁLISE COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES
    1.1 A Psicanálise com crianças, segundo Anna Freud, Melanie Klein e Françoise Dolto
    1.2 A criança e o adolescente no imaginário social e na Psicanálise
1.3 O Sintoma da e na criança
2 - MANIFESTAÇÕES DO NÃO-DITO NA
 PSICANÁLISE COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES
    2.1 Ele não sabe
    2.2 Eles não deixam dizer
3 - OS EFEITOS DO NÃO-DITO NOS DISTÚRBIOS DE DESENVOLVIMENTO, APRENDIZAGEM E COMPORTAMENTO
3.1 Ele não quer saber
    3.2 Ele faz. Ele repete
4 - INFORMAR E INTERPRETAR
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS
BIBLIOGRAFIA

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