Zakhor: Indagações acerca do sítio da memória do grupo

Daniel Delouya*

Resumo

A indagação acerca do sítio da memória do grupo no sujeito foi examinada em relação ao tipo e ao caráter do acontecimento que poderia ser o motivo de transmissão e de agregação do grupo. Um evento traumático, o Holocausto, nos permitiu enveredar por um caminho que levou a introduzir algumas reflexões sobre o tecido originário sobre o qual se funda a representação do grupo no sujeito.

*Daniel Delouya é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo-SP, e pesquisador, pós-doutor no Programa de Jovem Pesquisador da FAPESP, no Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Núcleo (LPF) de Psicanálise do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP e do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP.

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A notícia recente sobre um grupo de psicanalistas franceses que se constituiu em torno da idéia ou convicção de que depois da Shoah (o Holocausto) a psicanálise "não poderia ser mais a mesma", vem despertando a atenção e o interesse em nosso meio.

"Mas como?" Surpreendeu-se alguém. "Sessenta anos depois?? Mais da metade dos anos de existência da própria psicanálise? Por que razão?"

Se a psicanálise não poderia passar ilesa por este gênero de "acontecimento", por tal genocídio; se ela não poderia deixar de absorver suas radiações e seus ruídos, teria esse grupo por função a tarefa histórica de se voltar às pegadas desta calamidade e detectá-la no interior da(s) psicanálise(s) atual(is), para tornar consciente e tomar conhecimento dessas "marcas" ou de seus modos de "inscrição"? Ou, trata-se aí, na verdade, de uma crítica à psicanálise que clama pela urgência e necessidade de transformá-la à luz da "memória" do Holocausto e suas reverberações no Ocidente?

Possibilidades que talvez não fossem tão disparatadas assim se entendessemos, neste chamado, o alerta ao fato de que a psicanálise está "doente" e que, caso ela se "engajasse" numa "análise", esta lhe faria reconhecer, em seus "sintomas", os ecos de um "recalcado" ou de um "corpo estranho" para que fosse "aceito/admitido" na sua consciência e dentro da malha do "seu" "Eu", de acordo com o princípio terapêutico do annhame freudiano (1).

1. Inquecer é a tradução que Mezan cunhou para o movimento afetivo, de aceitação/admissão do recalcado - central a terapia catártica dos Estudos sobre a Histeria (1895) - num trabalho que abordar uma questão semelhante a nossa (cf. "Esquecer? Não: in-quecer!" in: A sombra de Don Juan, Brasilience, 1993).

Seriam tais desígnios - do regime psíquico individual - aplicáveis também às configurações psíquicas associadas ao grupo? Se são pertinentes a este gênero, o intervalo do tempo, por maior que seja, não nos permite predizer se o "levantamento" almejado operaria, neste caso, sobre um tipo de "recalcado" ou sobre um "não-admitido" (recusa). Ou, outra possibilidade, se assemelharia à uma restituição de uma integridade ao Eu, já que no psiquismo o lembrar-se também participa, mesmo que parcialmente, da sutura e cicatrização de partes cindidas do Eu, como testemunha o próprio Freud, após 34 anos, sobre sua vivência de desrealização em Acropolis (Freud, 1936).

Porém, essas questões tornam-se obsoletas ou, pelo menos, duvidosas uma vez que percebemos que tendemos a aplicar, apressadamente, conceitos do regime do indivíduo para o do grupo. Razão pela qual fui levado a colocar entre aspas os termos dos respectivos processos e mecanismos psíquicos.

Embora o imperativo "lembre-se" ou a recomendação "é preciso que..." ou, ainda, as advertências "não mais...", façam parte dos programas ideológicos ou outros em torno dos quais constitui-se, a primeira vista, o grupo ("artificial" diria Freud - 1921), tais mandatos nem sempre ajustam-se bem às finalidades analíticas; se bem que nunca faltam, implícita ou explicitamente, a qualquer análise ("deite-se"; "diga-me tudo que se passa"; e, o Freud dos inícios comandava: "feche os olhos e tente lembrar da primeira vez que... ").

Nosso interesse concerne a fonte psíquica da qual brota o mandato "lembra-se...", suspendendo qualquer tentativa de se reportar à uma instância social ou à seu objeto enquanto passíveis de enunciados psicopatológicos pertencentes ao regime do indivíduo.

Entretanto, e voltando ao grupo Shoah, seu chamado não é novo; ao contrário, muito familiar! Quem viveu em uma sociedade e Estado recém-nascidos, que obtiveram tal reconhecimento pela "família" das nações "graças" ao Holocausto, além de abrigar, naquele período, grande parte de seus sobreviventes, não deixará de ouvir ressoar os ecos de alertas semelhantes: "Depois do Holocausto, o mundo e a humanidade jamais poderiam voltar a ser o que eram" dizia Aharon Appelfeld, escritor israelense que dedicou-se, como tantos outros (Eli Weisel e Primo Levi, para citar os mais conhecidos), à narração e, sobretudo, à indagação acerca do significado desta "grande experiência" que foi a Shoah (2).

2. Buscar um significado acerca de uma desgraça que abateu-se sobre nós é algo tão corriqueiro quanto enigmático. Enunciados como "justo comigo!", "vai ver que era para acontecer...", "qual é o sentido disso tudo..." "deve ser uma provação!", etc. são tão comuns que tendemos a não se perguntar sobre sua origem e sua função psíquica. Se em algumas configurações clínicas conseguimos vinculá-las com o que Freud chamava de neuroses de destino ou com uma dinâmica obsessiva ou economia melancólica, o mesmo não ocorreu em relação a esses fenômenos no cotidiano e seu lugar no arcabouço metapsicológico freudiano.

A "experiência" remete aqui ao "teste" crucial, o símbolo maior do judaísmo: a prontidão para o sacrifício máximo - o holocausto de Itzhak, filho do Abrahão - enquanto prova de aliança com Deus na qual todos os valores naturais e emocionais são abafados ("chavash") e superados diante do dever. É verdade que muitos deixaram-se levar para as câmaras de gás recitando a oração "shmá Israel" (ouça Israel!) que expressa, justamente, essa incondicional lealdade a Deus. Contudo, situar - como faziam alguns - o Holocausto enquanto provação renovada deste "contrato" de origem, ilustra e dá razão a Freud quando rompe a ilusória autonomia do dever - da teosofia judaica assim como da moral kantiana - para descobrir o mal no cerne da cultura: a culpa inconsciente atuada no masoquismo moral, obra da pulsão de morte e sua ameaça de perda do amor (Freud, 1930). Entrega masoquista que figura na imagem da "akedah" (o "atar-se", o holocausto) do Itzahk, símbolo inaugural da religião mosaica, que foi a mais louvada, pelo Freud, enquanto representante da cultura, porque atingiu o mais alto grau de dispêndio psíquico: a "geistigkeit" ( intelectualidade ou espiritualidade - Freud, 1938) (3) .

3. Cf. a este respeito nossos trabalhos: (1995) "O Moises de Freud e a religião mosaíca: alguns encontros" Shalom. N§ 305 (Ano 29): 102-110.; (1995) "Ética, Judaismo e Psicanálise: sobre a con-tradição judaico-cristã". Boletim de Novidades da Pulsional N° 81: 29- 43; e (1998) "O desafio mosaico e seu fracasso atual" in Slavutzky A.(org) A paixão de ser. Depoimentos e ensaios sobre a identidade judaíca hoje. Artes @ Ofícios, Porto Alegre.

Entretanto, não são as questões metapsicológicas universais e relativas à cultura que nos interessam, neste momento, mas a preocupação quanto ao sítio da memória no sujeito, associado a um acontecimento comum, motivo de transmissão e agregação do grupo. Neste sentido, a importância do grupo Shoah - como, aliás, do filme de Lanzmann, "Shoah" - está na recuperação da palavra hebraica que é desvinculada, sob muito aspectos, das conotações sacrificiais e religiosas da palavra holocausto. Além de efetuar um desvio do sentido bíblico - sacrifício máximo como prova de submissão absoluta a Deus - difere, também, do significado dado aos rituais de incineração religiosas.

Shoah é a constatação de uma destruição total onde não se distingue o ocorrido na realidade da "vivência" traumática caótica. Shoah não se verte ao verbo. É apenas um estar diante de uma catástrofe inominável - estado de parada ou de choque - que nos deixa atônitos,
pasmos (4).

4. Estados designados por derivados de uma raiz comum a palavra shoah. É interessante que esta mesma raiz seja utilizada em verbos que designam um estado de despertar no qual o sujeito encontra-se deslocado em relação ao tempo e espaço.

Nela, não há lugar para a palavra e tampouco para representações que poderiam se dispor à construção de um conto ou de uma história. O tempo pára. O presente espatifa-se, abolindo seu passado que retorna, de fora, enquanto estilhaços alucinatórios (desta explosão traumática) que se abatem sobre o sujeito antes de "colar-se" nele, em seus sonhos-pesadelos.

A palavra shoah não tem uso freqüente no hebraico corrente. Calamidades como a queda do primeiro e segundo templo, o massacre cometido pelo inimigo ou a destruição decorrente do seu ataque jamais serão descritos enquanto shoahs. Para esses existe hurban, palavra forte que designa a destruição ou o desastre infligidos seja pela natureza seja por uma derrota que pode até culminar na dispersão ou diáspora do povo. Não são catástrofes devastadoras (shoahs) porque as relíquias deixadas, os destroços e muros que sobraram, nos servem, de um lado, para nos separar e nos distanciar dos mortos, das casas e templos, ao mesmo tempo que nos possibilitam restituí-los no acervo simbólico da lembrança e da linguagem que nos constituem enquanto sujeitos. É o que chamamos de trabalho de luto. E Freud, numa carta à sua noiva (de 1882), refere-se à queda ("hurban") do segundo templo dizendo: "se Jerusalem não tivesse destruída, nós judeus teríamos morrido como tantas raças antes e depois de nós. O edifício invisível do judaísmo tornou-se possível somente depois da queda do templo visível".

A psicanálise freudiana tem na ausência o eixo constitutivo do psíquico. O trabalho de luto, desencadeado pela morte, ausência ou destruição do objeto é estruturante, isto é, coloca em obra o lembrar, a linguagem, o simbólico e o sujeito. É a razão pela qual Freud, inspirado em Rank, diz em 1921 que o primeiro poeta, aquele que profere a verdadeira palavra e cria o conto, é quem, movido pela saudade, nos traz o mito do herói do ato do assassinato do pai da horda; é aquele que emerge da massa e instaura a lei do pai morto para a cultura e a cadeia das gerações. Já nos "acontecimentos" de dizimação humana - os corpos amontoados dos campos de extermínio ou das vítimas da fome avassaladora na África - não há heróis e derrotados, vencedores e vencidos nem atos de coragem ou de covardia; e assim como não há, neste caso, lugar possível para o túmulo e a sepultura, pergunta-se se haveria um para a lembrança, a palavra ou a representação.

Shoah é, em soma, um cenário caótico, ou seja, visto e vivido enquanto inominável e que, em termos psicanalíticos, é conseqüência do traumatismo infligido por um afluxo sensorial maciço (5).

5. Estimulado pelas neuroses de guerra, Freud atribuíra, em 1920, ao afluxo vindo do mundo externo uma igual importância àquela do mundo pulsional, tanto no que diz respeito aos seus respectivos impactos traumatizantes, como às medidas de proteção contra as grandes quantidades, à dosagem delas e à sua eventual ligação para que nutrissem e transformassem a malha representativa do mundo psíquico. Este veio externo do traumatismo e o desafio que coloca para a construção do aparelho psíquico têm sido desenvolvidos de uma forma magistral no trabalho de Bion, embora Freud o tenha antecipado, nas considerações que teceu em torno da dor, já em seu Projeto para a psicologia, de 1895.

É esmagador e caótico porque inassimilável às redes representativas da linguagem e do pensamento e, portanto, ameaçador para a própria estrutura do Eu.

Pode-se perguntar, então, de que forma é possível compreender o imperativo "lembre-se" (zhakor!) ou a advertência de que "depois daquilo não podemos mais ser os mesmos", quando o que se pede lembrar e integrar é, por definição, inassimilável?

Para situar melhor a questão da memória imposta ao grupo e sua relação com a identidade de seus membros no contexto do Holocausto, parece-me útil darmos-lhe "corpo" através de um testemunho:

Embora eu não seja um descendente dos sobreviventes do Holocausto, passei minha infância, adolescência e parte da vida adulta em Israel; numa sociedade onde havia, e talvez haja ainda, um verdadeiro "projeto memória" da Shoah, e uma indagação constante em torno dela, que impregnavam os programas educacionais e sociais. Notava, porém, que os próprios sobreviventes mantinham, em geral, um silêncio quase que absoluto sobre seu passado e isto tanto em seus lares como em público. Além de um dia anual de memória e, no colégio, uma matéria semanal sobre o Holocausto etc., a história de personagens como Ana Frank, Janusz Korcszak, M. Anilevitch, ou livros como A casa das bonecas e A menina dos fósforos ou a visita ao museu nacional do Holocausto, Yad Váshém, faziam parte da aquisição cultural de qualquer criança que tenha alcançado os seus doze anos de idade.

Apesar disso percebo nas minhas lembranças - e acredito que isso não se restringe apenas às minhas vivências pessoais - uma nítida diferença entre os momentos solenes do dia da Shoah e de um outro, reservado às vítimas e aos heróis de todas as guerras, desde aquela que coincidiu com a proclamação do Estado Novo e até as últimas batalhas: o momento de silêncio ("domem") e da postura imóvel ("dom") parecem ou visam nos reunir ao espaço e lugar que o morto (seu "corpo") deixou em nós, reiterando, com isso, o ato de silenciar o morto, enterrando-o e sepultando-o para que retorne ao mundo "inanimado" ("domem") que o preservaria enquanto "fóssil" entre outros - os traços mnêmicos& identificatórios - que compõem as camadas "geológicas" do nosso psiquismo.

Se me valo aqui de motivos usados por Fedida é porque coincidem, surpreendentemente, com os elos estabelecidos na língua hebraica (nos derivados da raiz ‘dom’). Porém, meu intuito é frisar, justamente, como os momentos solenes, dedicados à memória dos heróis e mortos anônimos da nação têm por função o reforço e a consolidação das identificações grupais, acervo ou comunhão de ideais que se precipitaram em nós através da história, de sua cadeia de gerações, criada e perpetuada em torno do mito do herói (Freud, 1921).

Entretanto, quando me volto aos momentos de silêncio, em memória às vítimas do Holocausto, verifico, ao contrário, uma ameaça de implosão e de sumiço do espaço de continência possível para sua representação. Diante das maciças e aterrorizantes imagens - câmaras de gás, trens de crianças a caminho da morte, musoleos - os "corpos" aos quais procuramos nos reunir e identificar nesses momentos ameaçam esgarçarem-se, desintegrarem-se e esfarelarem-se de forma a colocarem-se no limite de aniquilar e extinguir o espaço e o lugar que poderiam habitar em nós. [Refiro-me aqui, como no caso dos mortos e heróis de guerra, apenas aos elos grupais e não pessoais e/ou familiares: aqueles que pertencem ao nosso grupo mas que nos são anônimos enquanto pessoas.]

Parece-me que a distinção que estabeleço entre as duas vivências em relação aos mortos do grupo incide no peso que elas colocam sobre as vigas identificatórias que dão sustentação aos andaimes edípicos do grupo, ou seja, a sua possibilidade, sua manutenção e sua coesão: a primeira é solene, integrativa e consonante com a coesão do grupo. A segunda é desconcertante e disruptiva, ameaçando a integridade da representação do grupo no sujeito.

A forma imperiosa com que se exige assimilar o Holocausto no tecido da memória do grupo - dos ideais que o constituem - reflete (como no grupo Shoah) o imenso esforço em se criar uma ponte sobre o fosso deixado por algo semelhante a uma explosão que tenha empoeirado o elo entre o presente e uma cadeia das gerações passadas. Pode-se perguntar por que? Por que integrar? Por que não nos "conformarmos" em deixar este big-bang simplesmente fora? A resposta é: impossível! Pois é neste estágio preciso que vejo despontar o feixe de questões espinhosas para o problema que nos ocupa:

Vimos como o cenário shoah põe em xeque a função predominante do psiquismo, isto é, a capacidade representativa, pois ameaça destruir o lugar e o espaço que a constitui - topos ou sítio da representação que revelam fundir-se e entrelaçar-se à memória & identificações que trançam, no sujeito, a trama interna do grupo. É o que leva Freud a articular o psiquismo do indivíduo com a psicologia da massas - do grupo - mostrando a precedência deste último sobre o primeiro (Freud, 1921). Mas qual seria a relevância do traumatismo sobre a exigência de integrá-lo e lembrá-lo (zakhor!)? Instado pelos traumas de guerra, Freud volta a se debruçar sobre esta questão no ensaio de 1920, marco da sua obra e um de seus pontos principais de mutação. A questão neste momento é como algo que "nos aconteceu" mas que é, ao mesmo tempo, da ordem de um cenário - situado fora - exerce uma efração traumática direta sobre o corpo psíquico?

Não se trata obviamente aqui de um traumatismo do sexual que se faz anunciar a posteriori e dentro do roteiro conflitual edipiano. Entretanto, não se pode reduzir este aqui e agora traumático a uma só e "simples" dimensão econômica, como se o afluxo sensorial do mundo exterior - que Freud volta a colocar em consonância com o influxo pulsional, de acordo com a linha mestra do seu Projeto para a psicologia (1895) em relação a dor - ultrapassasse o escudo protetor do aparelho psíquico contra as grandes quantidades de estímulos percepto-sensoriais. A ferida ao "corpo" psíquico, ou seja, a condição da possibilidade da representação, é elaborada por Freud pela analogia que estabelece com o processo inflamatório no organismo. Como na ferida física do corpo, o desafio do "sistema inflamatório" é a contenção e a dominação desta invasão, recrutando mecanismos e fatores para a área afetada. Adestrar este afluxo sensório coloca em primeiro plano, e nas origens do aparelho psíquico, a função defensiva de preservação da integridade de um espaço face às forças, de fora e de dentro, que são prestes a aniquila-lo. A compulsão à repetição é justamente este viés defensivo que visa dominar o excesso disruptivo e caótico da situação traumática. Foi a razão pela qual Freud foi levado a traçar, e explicitamente, uma linha continua da compulsão a repetição à auto-conservação em seu artigo de 1920.

A insistência contida nesta compulsão encontra-se no imperativo "lembre-se!" ("zhakor") e suas formas variadas de expressão, como no chamado do grupo Shoah. É a tentativa fracassada de ligação que a faz reiterar-se infinitamente pois trata-se de uma medida defensiva primária e imprescindível ao resguardo do aparelho psíquico (6).

6. Antes de nos precipitarmos nesta questão vale se perguntar sobre a dor do trauma: esta se deve ao próprio "buraco" gerado pela efração (a "violenta força", segundo Freud, 1920) ou ao contra-investimento, o movimento defensivo de dominação e adestramento que reveste os "contornos da ferida"? Se for pela analogia que empregamos diríamos que é o processo defensivo, de dominação das grandes quantidades de excitação que é o motivo da dor; e se esta reação ultrapassasse as demandas defensivas particulares ela se torna nociva e auto-destrutiva.

Mas, a compulsão à repetição não é apenas o princípio mais primitivo do psiquismo (em relação ao princípio de prazer) mas extrai sua fonte traumática de uma força destrutiva endógena que se manifesta através da tendência masoquista do Eu (Freud, 1920) (7).

7. Trata-se de uma frase acrescentada em 1921 no segundo capitulo deste ensaio (Mais além do princípio do prazer) mas que encontra seus percursores já no seu ensaio Bate-se numa criança, de 1919.

De fato, todo o desenvolvimento que Freud dará à pulsão de morte, de 1920 até 1937 (20-23-24-26-30-37), se atrela ao traumático pela textura particular que esta pulsão estabelece com a sexualidade para formar o tecido basal do psiquismo que é o do masoquismo e da culpa inconsciente que, sob o modo atuado, transparece enquanto masoquismo moral (1924). Porém, todo o interesse reside no fato que é esta mesma culpa, inconsciente, que forma o pano de fundo do grupo e da cultura, de seu mal-estar fundamental (Freud, 1930).

Que esta coincidência, entre as psicologias do indivíduo e das massas, se repita é algo que precisa nos interrogar. Percebe-se aqui dois planos de confluência do indivíduo com o grupo: um desenrola-se, como vimos, entre a configuração do objeto - o sítio da representação - e as identificações ao grupo, matizando-se na conjunção edipiana, no mito do herói. Entretanto, este plano depende e adquire suas feições particulares de um outro que o subtende e que diz respeito ao masoquismo, a sua composição e textura pulsional. Sabe-se que a culpa pertence e adquire sentido no édipo, porém, o mal-estar (1930), a reação terapêutica negativa e os escolhos para a análise (1937), são determinados pelas formações do masoquismo primário, que imprimem a feição nociva particular desta culpa no sujeito. A perlaboração do masoquismo primário e seus destinos - trabalho que se refletirá, posteriormente, na estrutura e no processamento do édipo- parecem depender do ambiente de origem. Talvez não é por acaso que, para Freud, o poeta disfarçado, o herói do mito, é o filho caçula, o preferido da mãe e o protegido do grupo feminino (Freud, 1921) (8).

8. Sobre esta ligação, entre a presença materna e o endereçamento ao pai, e a instauração da sua lei, veja nosso trabalho (1997) "A pulsão ‘destrutividade’ e ‘pai’ do self. Winnicott e o acesso ao real". Percurso 17: 27-34.

Eis um eixo vertical que liga os dois planos no regime do sujeito e do grupo.

Pergunta-se, no entanto, por que a culpa inconsciente ou seu fundo masoquista constituiriam o estágio primitivo, a condição-limite, da possibilidade de vida psíquica? Freud me parece dizer que, no seu nível basal, o masoquismo ou a culpa inconsciente é o limiar de contenção da vida psíquica uma vez que esta se funda no arranjo apropriado e na justa mistura ("intricamento") entre pulsões de vida e de morte (1926, 1930) (9).

9. Não há duvida de que é a pulsão de morte que rege o tom neste reino primordial - daí a compulsão à repetição - mas o masoquismo talvez seja a figuração mais próxima da situação originária na qual se encontra o ser humano ao nascer - o desamparo (a entrega e a demanda passiva ao outro) - que, ao meu ver, fornece os alicerces da capacidade representativa (cf. nosso trabalho, 1998, "Tópica, o negativo da depressão primária", Percurso 21)

Entretanto, este estado primordial se mostra extremamente lábil já que o equilíbrio sobre o qual repousa está sujeito a desvios e deslocamentos. E é aqui que a violência caótica da realidade - shoah - entraria em conluio com esta constelação subvertendo-a ao extremo. Pois o que seria o símbolo do holocausto senão um desvio desta fórmula equilibrada do masoquismo "de vida" em direção perversa, de morte, onde a entrega passiva (ser atado) ao sacrifício sexualiza a morte ao extremo, excitando e ativando a via uretral para que se goze, narcisicamente, ao queimar-se (Freud, 1932) (10).

10. Este fantasma de auto-incineração encontra-se em uma das grandes obras da literatura iídiche e hebraica do século XIX que versa sobre uma personagem que foi bastante popular nas aldeias judaicas do leste Europeu. O "smartutar" ou o homem das trouxas, um pobre coitado, que vive acumulando e carregando os restos do material industrializado para fins de reciclagem e que, na versão moderna das décadas anteriores, cabia ao homem das ferragens e atualmente ao homem dos papelões que vemos pelas ruas da cidade de São Paulo. Nestes guetos judaicos esse miserável, que passava por toda parte, e que dependia dos favores de todos, era uma espécie de bobo da corte da comunidade. Após um pogróm - um dos ataques recorrentes exercitado por parte do povo nativo (os goím - os "gentis ") no qual atos de depredação, estupro de mulheres e matança de adultos e crianças na fogueira, deixavam um cenário parecido com que se assiste na Bósnia de nossos dias - o "smartutar" da estória de Tcharnichovsky jura comer o quanto puder para atingir um peso enorme e encobrir-se de todas as trouxas a seu dispor para que no próximo pogróm seja consumido longa e lentamente na fogueira preparada pelos "gentis".

Tudo se passa como se o psiquismo precisasse recrutar uma quantia da pulsão sexual para que esta "seduzisse" a pulsão de morte, neutralizando, assim, suas forças de desligamento que visam desintrincá-la desta organização masoquista arcaica. Nada animador nesta "medida" já que tal liberação da excitação sexual - que Freud postula em relação ao trauma (Freud, 1920) - e ao serviço do masoquismo, não faz outra coisa senão fixar o aparelho psíquico no seu limite onde seu "sistema imunológico" encontra-se a beira de um colapso. Pois a gravidade deste cenário caótico reside no fato de não poder despertar a angústia (Freud, 1920); ele consegue "escapar" do sistema de alarme principal (a angústia perante o real), associado a situação originária de desamparo (Freud, 1926). Isto lhe permite penetrar até o tecido basal do psiquismo, o masoquismo primário, formado por um arranjo sensível, entre pulsões de vida e de morte. Atingir este tecido pode acarretar o desintricamento da pulsão de morte, liberando a destrutividade. No entanto, diante desta invasão, a convocação do último recurso defensivo - a exasperação masoquista em sacrifício holocaustial - não deixa de ser também muito custoso.

Seja como for, a procura pelo sítio da memória do grupo nos fez atravessar o aparelho psíquico encontrando os seus rastros desde sua ultra-estrutura representacional e até sua infra-estrutura, calcada no masoquismo primário e seu fundo destrutivo (11).

11. Neste trajeto em Freud encontramos o seu futuro Bion. Não só no que diz respeito a um aparelho psíquico - fundado sobre um princípio defensivo - enquanto barreira e continente para proteger, dosar e metabolizar o afluxo sensorial mas em desvelar no grupo uma contribuição de seus membros que consiste na atuação da parte a mais primitiva, talvez, do psiquismo com sua economia somato-perversa.

Talvez tenhamos tocado aqui no cito-esqueleto arcaico da representação e do psíquico. Entretanto, o trajeto que traçamos é complexo, nos permitindo lançar alguma luz, apenas, sobre seus eixos principais.

Bibliografia

Bion, WR (1961) Experiences in Groups e (1970) Attention and Interpretation.

Freud, S. (1895) Projeto para a psicologia, (1895) Estudos sobre a histeria, (1919) Bate-se numa criança, (1920) Além do princípio do prazer,(1921) Psicologia das massas e análise do Eu, (1923) O Eu e o Isso, (1924) O problema econômico do masoquismo, (1926) Inibição, sintoma e angústia, (1930) O mal-estar na cultura, (1932) A aquisição e o controle sobre o fogo, (1936) Um distúrbio de memória em Acrópolis, (1937) Análise terminável e interminável,(1938) O Homem Moisés e a Religião monoteísta.


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