cep centro de estudos psicanalíticos

Formação. Algumas considerações*

Ernesto Duvidovich

*Texto apresentado no Debate: "Formação em Psicanálise", CEP, SP / março de 1998.

Quero expor brevemente alguns problemas em relação a questão da formação do analista, e a partir destes, explicitar algumas das nossas posições centrais, que se materializam em atitudes ideológicas, dispositivos institucionais e procedimentos técnico-metodológicos correspondentes no nosso curso de formação.

Em 1912, Ernest Jones, um dos discípulos diretos de Freud, propõe a este a criação de uma entidade que reúna os representantes da nova ciência para garantir a "pureza" de transmissão da doutrina freudiana. Esta proposta inicial surge como consequência das várias desistências que vinham acontecendo no movimento: Steckel, Jung, Adler. A fidelidade à doutrina se sustentava, então, na aceitação da base conceitual da tríade: inconsciente, recalque, sexualidade infantil.

A primeira reunião oficial deste grupo ocorre em 1913 e causa a impressão de que, para Freud, representava mais um encontro de confraternização de turma ou seita mística, do que o início daquilo que viria a ser uma poderosa corporação internacional. Freud presenteia na ocasião cada um dos presentes com um anel encravado com um entalhe grego, de sua coleção. Em1923, a comissão de ensino da Sociedade Psicanalítica de Berlim estabelece a "regulamentação" dos standards de formação.

A partir de Viena, na medida que o movimento psicanalítico vai crescendo e se expandindo, primeiro pelo continente europeu, depois pela América, este também vai sendo marcado pelos diferentes movimentos regionais; sotaques ou até dialetos locais que se bem falam em nome da "legalidade" freudiana, se diferenciam ao ponto de falarem línguas diferentes e às vezes até, aparentemente incompatíveis entre si. Estas diferenças que respondem às condições históricas específicas de como se iniciou a prática psicanalítica em cada região, dá origem a diferentes escolas, todas se auto-denominando oficiais e reivindicando uma legitimidade exclusiva em relação às outras: o desenvolvimento kleiniano, por exemplo, é perfeitamente coerente com as condições em que se iniciou a prática em Londres onde a demanda predominante era de casos de psicose infantil.

O movimento lacaniano só poderia surgir em Paris. Este movimento tem tudo a ver com um momento do desenvolvimento da ciência e da filosofia na França e principalmente com o fato de que a demanda, em princípio, foi dos intelectuais. Toda inovação deve ser pensada no seu contexto cultural de origem, no conjunto político social da sociedade num momento dado e como consequência deste.

Cada desenvolvimento pós-freudiano vai realizando suas investigações a partir de um setor conceitual da teoria freudiana, que é tomado como o eixo de pesquisa teórica, por exemplo: em Melaine Klein, a pulsão de morte; em Lacan, o narcisismo; etc. As metodologias e técnicas que se originam nestes desenvolvimentos são bastante diferentes, de maneira que, quando importamos uma teoria de uma cultura para outra, deveríamos ser capazes de relativizar suas propostas em função dos diferentes contextos históricos, culturais, etc.

Isto não é o que tem acontecido: importamos o "pacote fechado", com bandeiras e estandartes, ou aceitamos todos os enunciados de um determinado desenvolvimento teórico ou somos infiéis. Criam-se, às vezes, situações um tanto caricaturais: interpretar em um intelectual neurótico, as angústias primitivas pela ausência do analista no fim de semana ou tratar uma criança psicótica com a técnica do tempo lógico; consequências desta totalização importadora. Na relação entre os grupos de importação tecnológica, observamos a intensificação dos efeitos deste enclausuramento dogmático; só vale aquilo que é produzido na própria instituição. Vamos construindo assim nossa identidade profissional no estilo paranóico: só posso me considerar psicanalista se demonstro que os outros não são. A verdade é o saber psicanalítico na instituição que faço parte. O saber produzido nas outras instituições é ignorado.

Interessa-me pontuar que, na medida em que as instituições vão se fortalecendo, e a formação se padronizando, a teoria ou o conjunto de teorias dominantes em cada região-instituição vai cada vez mais determinando o campo da escuta. A formação da escuta fica assim, submetida a teoria imperante em cada instituição.

O fenômeno da esterotipia que chamamos de "ortodoxia" e que supomos vinculado a figura de Freud, nada tem a ver com ele. A "ortodoxia" se define em referência as correntes regionais que hegemonizam a psicanálise num momento dado. O que em New York é "ortodoxo" num determinado momento pode ser transgressivo em Barcelona. Mais ainda, na medida em que cresce a quantidade de dissidências regionais temos que pensar em ortodoxias e transgressões dentro das mesmas regiões. Roudinesco1, conta hoje, na França, 38 associações que reivindicam a legitimidade psicanalítica, só no território lacaniano.

No Brasil, a psicanálise chegou através de Buenos Aires, os primeiros analistas brasileiros se formaram em Buenos Aires, onde a psicanálise apresentava um forte sotaque inglês marcado por gírias locais significativas. Os analistas argentinos tinham se formado na tradição kleiniana. Em Buenos Aires a teoria psicanalítica foi marcada principalmente pelo materialismo dialético e as práticas sociais (Pichon Rivière, Bleger, etc).

Até pouco tempo atrás, a única possibilidade de formação era através dos institutos filiados a International Psychoanalitic Association (IPA). A partir de 1976, com a repressão política na Argentina e o exílio em massa de intelectuais para vários países do mundo, acontece aqui no Brasil um desenvolvimento peculiar, início de um dialeto novo. Vários destes intelectuais que emigraram para o Brasil, faziam parte de um grupo de analistas dissidentes da filial local da IPA (grupo Documento e grupo Plataforma), analistas que se afastaram da Sociedade por motivos políticos e que de maneira inédita não se agruparam, não constituiram uma sociedade alternativa de oposição, como em outras dissidências anteriores, em outros países, ao longo da história do movimento psicanalítico. Aqui no Brasil, estes analistas foram iniciando uma prática que aos poucos gerou consequências significativas: grupos de estudos, às vezes se agrupando (por exemplo: Sedes Sapientiae), participando de trabalhos acadêmicos, analisando e supervisionando.

Esta história é o inicio do que vai se constituindo num tipo de formação peculiar aqui no Brasil, nova alternativa de formação fora da legalidade dos contextos instituídos na oficialidade hereditária; fenômeno que Gregorio Baremblitt chamou de "formação bastarda", diferenciando do que ele chama "formação pura".

Na formação pura, os três pilares que sustentam a formação do analista: a própria análise, a prática clínica supervisionada e o estudo da teoria se concentram na instituição, isto é, são práticas que a instituição exige de cada candidato, que a instituição só reconhece se efetivados dentro do seu próprio território, dos dispositivos que ela oferece. Na formação bastarda o tripé não se concentra no âmbito de uma instituição. O postulante mantém as três colunas de sustentação da sua formação em diferentes contextos.

Acontece no Brasil um fenômeno sui generis: uma troca cada vez mais livre entre os diferentes discursos; fenômeno este, a nosso ver, profundamente enriquecedor para o desenvolvimento do nosso campo. Começa um trânsito até aqui inédito dentro da história do movimento psicanalítico internacional: a possibilidade de uma formação autorizada fora dos grupos ditos oficiais, mesmo criando certamente, uma série de dificuldades e novos desafios.

Encontramos hoje, no Brasil, situações onde um sujeito analista pode ao mesmo tempo se analisar com um analista lacaniano, supervisionar seu trabalho clínico com um kleiniano, assistir palestras de um especialista em Winnicot, e ainda participar de grupos de estudo de outras tendências. Este trânsito caracteriza este dialeto brasileiro. Há a combinatória de vários elementos e de caraterísticas do meio que propiciam este movimento. Se constitui assim o que Manoel Berlinck chama de "escuta pluralista"2, resultado desta filiação bastarda; escuta esta não submetida ao dogma imperante na instituição que detém o poder de autorização através de seus dispositivos de formação-autorização, senão escuta constituída no diálogo entre os diferentes dogmas e autorizada fora das instituições oficiais. Assumimos plenamente nossa filiação bastarda e continuamos a defendê-la e a tentar aprimorá-la através de várias problematizações. O pluralismo é uma consigna. O dogmatismo é o pior inimigo do analista, é alienação, converte nossa pulsão de saber no estagnamento repetitivo do já pensado.

O analista em formação necessita de segurança que encontra em crenças teóricas, segurança sustentada em um sistema de crenças que lhe permitam pensar. Dogma não é uma simples crença, é uma crença que se considera "verdade", que exige ser reconhecida como tal. Implica na anulação do sujeito da enunciação que se apresenta, então, como um mero intérprete desse texto.

A castração no centro de Édipo sustenta todo o edifício freudiano. Nela encontramos nosso principal aliado, encontramos a solidez da nossa práxis. Ser freudiano é incorporar um espírito interrogativo e não tornar um discurso-objeto-fetiche, mesmo que este discurso seja o próprio discurso de Freud ou de quem quer seja. Saber é saber indagar.

Sustentar autenticamente uma práxis implica em reconhecer nesta, as lacunas do nosso saber; e através destas lacunas avançar, mesmo que isto implique em andarmos na companhia de incertezas, confrontando incoerências teóricas, incompletudes. A priorização da coerência explicativa, a defesa da validade inquestionável de um sistema de pensamento, tende a ignorar os fenômenos que não o confirmam, direcionando ao seu próprio fechamento, à certeza do discurso delirante, à repetição do mesmo.

A discriminação rigorosa entre os aspectos de autorização e os formativos em cada um dos dispositivos, nos permite questionar o campo da autorização que, ao não ser assumida pelos representantes da hierarquia institucional, abre o espaço de investigação das vicissitudes da transferência na formação.

A metaforização das instâncias do poder institucional propicia a constatação dos nossos engodos imaginários nas transferências presentes para com as ideologias e teorias dominantes na instituição e as transferências para com os assim poderosos representantes da hierarquia institucional. A hierarquia institucional é contrária aos efeitos do inconsciente. Não faz sentido uma instituição que não inclua na sua organização a divisão psíquica freudiana. Nossa insistência na presença de profissionais docentes com filiações teóricas e institucionais tão diferentes ou até de difícil convivência e compatibilidade certamente cria uma série de desafios e dificuldades. A nossa escolha é um princípio.

Dificultamos assim a tendência a padronização e idealização dogmática em todos os envolvidos no processo.

Na prática totalitária da pureza institucional, o processo de aprendizagem passa, necessariamente, pela via identificatória egóica, produzindo ideais que padronizam a escuta recalcando o que há de criativo e inventivo em cada analista.

Consideramos nosso ofício na intersecção entre arte e ciência, e reconhecemos o que Ferenczi chamou de "equação pessoal" como um elemento determinante na operação de escuta com toda a complexidade que isto possa resultar, consideramos essencial uma pedagogia que inclua as alteridades.

Somos feitos da mesma argila que nossos pacientes. A castração deve valer para estes, para nós, nossas teorias e nossas instituições.

Bibliografia

1. Roudinesco, Elizabeth. História da Psicanálise na França, Vol 2, Jorge Zahar, RJ, 1988.    

2. Berlinck, Manoel T. Psicanálise da Clínica Cotidiana, Escuta, SP , 1989.    

 

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