Em parte alguma o mundo existirá
Elisa Maria de Ulhôa Cintra

 

Resenha do livro "Depressão", de Pierre Fédida, publicada originalmente na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental Vol.II Número 2 - junho de 1999.Trad. De Martha Gambini , São Paulo, Ed. Escuta, 1999

 

Saiu o mais recente livro de Pierre Fédida pela Editora Escuta – Depressão – abordando suas reflexões a respeito dos estados depressivos selecionadas por Daniel Delouya (que também assina a intodução da edição) a partir do livro L"Abscence de 1978, em excelente tradução para o português de Martha Gambini. Fédida desenvolve há mais de trinta anos uma reflexão psicanalítica sobre os quadros depressivos. Trata-se de um psicanalista com formação de filósofo que se debruçou sobre o pensamento de Heidegger e pesquisou fenomenólogos como Minkowski, Strauss, von Gebsatttel, Tellenbach e a obra de Binswanger, sobretudo Melancholia und Manie. O seu percurso lembrou-me de um filósofo francês, Maldiney, que também esteve no Brasil e nos deixou maravilhados ao escrever sobre a escultura em pedra (Os Doze Profetas) de Aleijadinho. O sono dos minérios da pedra e o solo abrindo-se misteriosamente para a mais pura vastidão do céu, através da obra de Aleijadinho. Hoje em dia não há mais profetas nem profecias, mas a partir do olhar heideggeriano para a obra de arte, e ao falar da ‘lógica aérea’ das aquarelas de Cézanne, Fédida fêz ressoar em mim as palavras proferidas em Minas Gerais por Maldiney, ao olhar aquelas impressionantes figuras em pedra recortadas contra a imensidão do céu.

As pesquisas de Fédida fora do campo psicanalítico e um interesse apaixonado por obras literárias e artes plásticas lhe permitiram construir grandes reservatórios interpretativos para abordar o discurso da depressão. Foi o que pude constatar participando de um seminário clínico no qual usava estas referências para des-tecer o discurso do paciente e para configurar aspectos nunca dantes nomeados de certas vivências corporais- incorporais, por exemplo ao usar procedimentos de desconstrução da imagem do corpo inspirados em Bataille e nos surrealistas.

Embora sua formação filosófica lhe possibilite dirigir indagações à metapsicologia freudiana a partir de outros campos, a leitura de seus textos tem me colocado sempre em contato com o trabalho de um psicanalista Reconheço como psicanalítico este trabalho através de um estilo de escrita não conduzindo a uma síntese que se fecha conclusiva, mas a um constante movimento de desembaraçar idéias transformadas em lugar comum. Impossível evitar então certos efeitos que considero analíticos. Convém advertir o leitor para que possa embarcar nesta viagem preparado para se surpreender diante de algumas formulações, pronto para iniciar um trabalho de indagações e associações. Ou para se espantar com a frequência com que certas interpretações propostas por Fédida podem retornar à sua cabeça quando estiver meditando sobre um atendimento: o seu próprio ou o de um paciente. Mais tarde há de observar que as associações, as perguntas suscitados pela leitura do livro vão se ramificando, se recombinando... em uma intensificada atividade de rêverie e insight. Sinto que é este o desejo de Fédida: suscitar no analista a memória e a criação de uma palavra poética eloqüente mas cercada por todos os lados de um grande silêncio, de um grande vazio. Caminhar o mais radicalmente possível em direção às nascentes, até as mais fundas raízes totêmicas da transferência, como se pudéssemos tocar o animal, o mais puramente animal em nós. Criar silêncio, criar vazio - único berçário de metáforas. O autor quer ensinar o analista a se manter em reserva, retraindo-se, diferindo, dando à luz a palavra do outro, à outra palavra: a fim de dar travessia. Neste livro há palavras que se inscrevem com um impressionante poder de fogo em nosso corpo, a fim de nos fazer travessia.

Fédida divide o livro em cinco partes. Começa abordando o agir depressivo - maneira de dizer que é preciso, em primeiro lugar, olhar o fenômeno tal como nos aparece, que é preciso se deter mais na pura descrição de sintomas para desfazer o nó de sentidos cifrados no agir depressivo. Ouve-se aqui um apelo de retorno ao paciente e seu sofrimento, a ir lá onde ele está, e poder estar lá, junto a seus modos de agir e à agonia inominável de sua imobilização. Este olhar renovado ao que se mostra não pretende importar as teorias fenomenológicas aplicando-as à psicanálise, mas traz sim, a exigência de elucidar as estruturas da existência para poder chegar à " compreensão do fundamento temporal da subjetividade" (p.29) e à conclusão de que não há subjetividade de si nem do outro sem temporalização.

O autor nos faz ver com outros olhos os fenômenos da agitação maníaca e da inibição psicomotora, colocando-nos diante de um paciente que havia entrado em um luto impossível da mulher amada. De início, ficara fascinado com a estratégia defensiva de experimentar uma "forma" (psíquica) diferente, imitando, sem se dar conta, a forma da mulher perdida.

"No início foi como se sua existência bruscamente "desmontada", tivesse se "lançado furiosamente" numa atividade louca, como um desafio à perda" . (p.16)

Somos então levados a figurar o agir maníaco "como se ele ocupasse o lugar silencioso do ausente" (p. 21) . Mais tarde, quando se instala a imobilização do agir, é precisamente sob esta nova forma que o corpo do paciente é invadido, re-encenando em si, o corpo ausente dela. Fédida mostra então, de que maneira o paciente, preso em armadilha de onde não sabe sair, pode ir sendo ajudado a emergir deste estado por um trabalho de elaboração e simbolização da ausência.

Simbolizar a ausência, a falta, realizar o trabalho de luto, eis a questão. Senti-me mobilizada a voltar muitas vezes a esta questão fundamental - o que é simbolizar a ausência ? - pergunta mil vezes respondida e outras mil vezes recolocada como se toda resposta deixasse ainda um resto enigmático. Simbolizar a ausência exige aceitar a falta, o abandono, dar lugar, dar licença. Exige deixar passar o acontecimento insuportável, vê-lo tornar-se passado, permitindo que aquilo, aquele inominável tenha existido. Deixar ir embora aquele homem, aquela mulher ? Ora é precisamente isto que a razão compreende, que é tão fácil, cristalino .... mas o corpo não consegue entender, não concorda, não admite. Difícil deixar-se penetrar inteiramente por esta dor. Pensando assim voltei à questão: o que é simbolizar a ausência.? Todas as respostas soavam um pouco desconcertantes, um pouco desencarnadas. Qual tinha sido o modelo freudiano que mais me ensinara a respeito disto? Aí, sem sombra de dúvida, avistei o menino atirando longe o seu carretel, a perder de vista... fazendo desaparecer e reaparecer .....a própria mãe. O brincar com a separação, o Fort-da do pequeno rapaz, lido por sua mãe, não por acaso chamada Sofia, e pelo avô – demonstram que as melhores ficções metapsicológicas são assim: brincadeiras de criança. Por isso cito o trecho de Fédida, ao final do livro, onde afirma algo parecido:

"A seriedade de Binswanger fez com que ele cometesse o erro de ver no aparelho psíquico de Freud, uma projeção de um esquema anatômico. Diferentemente dos aparelhos que são destinados a prolongar nossos órgãos e minorar suas deficiências – binóculos, conchas acústicas, microscópios, ou telescópios – o aparelho psíquico tem o humor de buscar num Wunderblock o modelo folhado de sua ficção: celulóide, membrana, lousa de cera. Um aparelho barato, que se encontra em qualquer lugar.". (p. 104) (grifo meu)

Voltemos ao agir depressivo, ao que acontece com o corpo por não poder simbolizar a falta: o corpo pára. Quer imobilizar a existência tornando-se imóvel, imitar a ausência do outro....evadindo-se. Quer se livrar e se apropriar desta coisa estranha que é a ausência da pessoa amada.... para ver se reconquista alguma forma de controle sobre as emoções desenfreadas. Os mortos, os desaparecidos exercem um tal fascínio... Adquirem uma beleza trágica, um poder de submetimento... fazem-nos cair sob o jugo de um apelo sombrio, fascinante. Repetindo o corpo ausente no corpo imóvel, a depressão em nós murmura uma resposta a este apelo. De início, murmúrio confuso, não querendo deixar ir embora quem já se foi. Não acreditando, não deixando passar. Não o deixando ir-se. O murmúrio se transforma em lamento, impregna as palavras, os pensamentos, massifica, pasteuriza, indiferencia.

Tentando se apropriar e ao mesmo tempo, se livrar da ausência do outro, o corpo fica completamente dominado, enfeitiçado: spellbound . É tomado por um movimento incessante de repetir o último gesto do outro: o desaparecimento. Precisa parar toda a vida cotidiana e ficar esperando pelo que virá. Como se, subitamente o morto pudesse se mover, o desaparecido retornar ou sorrir..... Mas também é preciso parar tudo ....para impedir que o desaparecido retorne, para tentar interromper o único gesto ausente que continua exercendo seu máximo poder de apelo. Se todo movimento parece trazer de volta o desaparecido....ficar como sentinela, em uma vigilância sem fim ? À espera do que não virá ? Por quanto tempo ainda ?

Este tormento pode terminar tragicamente em suicídio, nos diz Fédida. Matar-se como maneira de apropriar-se, de uma vez por todas, da morte alheia. Matando-a, torná-la uma coisa propriamente nossa. Quando o fim não é tão trágico, pode-se cair na imobilização, como no caso citado. Ele sentia qualquer gesto seu sendo controlado pela ausência da mulher que tinha se colado a ele, irremediavelmente:

"Sentado durante horas na beira de minha cama e em minha poltrona, meu corpo é a imagem grotesca de meu espírito que o olha. Penso em minha mulher, não consigo mais imaginá-la e não sofro mais por ela ter ido embora. E, às vezes, me vem a idéia que estou grávido dela, ou ainda que foi ela quem me paralisou assim e me encheu de gordura. Desde que foi embora estou envolvido em uma massa estagnante. Observo a mim mesmo. Se consigo, num dia, mudar um detalhe de minha vida, me felicito. Ontem, lavei minhas meias e hoje preeenchi um formulário da Previdência Social". (p. 20)

Como sair deste ciclo infernal de repetições ? A resposta de Fédida, cristalina: é preciso encerrar " o interminável solilóquio com o ausente" (p.20). para poder fazer algo que tenha a sua própria "forma". Se o outro, ao ter partido, tornou-se excessivamente presente, é necessário encontrar mais uma vez uma temporalidade própria. Um gesto própriamente seu. É preciso "se libertar desta ausência que se tornou um corpo invasor." (p.20) É necessário romper o estado de alienação que se abateu sobre o querer e o fazer, deixar de emprestar o seu corpo ao que se foi. O luto impossível é isto: emprestar o corpo ao que foi embora, praticar em si seus gestos, encarná-lo. Negar que já se foi, internando-se na linha do horizonte, a perder de vista. Preferir abandonar o próprio gesto para assumir o alheio e alienar-se nele, ausentificar-se nele, desencarnar-se nele – tudo para negar que já se foi. Isto não lembra aquela estória de vender a alma ao diabo ? Os mortos podem se transformar em demônios, e o deprimido, no seu refém, deixando-se possuir e comandar por um outro, que exerce sobre ele o fascínio dos desaparecidos. Por isso Freud afirmou que o cadáver foi a primeira representação de um objeto mau, persecutório, sinistro, vampiresco.

Há uma sedução intensa neste repetir o ausente. Retornam palavras de uma canção francesa - Ne me quitte pas - que propõe esta dissolução de si no outro. O poeta querendo se tornar a sombra da sombra de alguém (ombre de ton ombre)., na criação de um reino mítico, onde o amor será rei, o amor será lei. Me faz pensar no idílio amoroso, no simples jogo de olhar apaixonado entre mãe e criança, no gozo mútuo de ir se dissolvendo no outro. Jogo mimético, imitativo, porta de entrada para o mundo humano, demasiadamente humano. É preciso brincar assim para se tornar gente, é preciso deixar de brincar assim para se tornar gente. Paradoxo dos paradoxos. O que querem de nós ? Para entrar no mundo humano, compartilhado, é preciso viver brevemente esta sedução. Depois, cada vez que começar um luto.... é preciso viver brevemente esta sedução. É preciso vivê-la, mas brevemente. A palavra chave parece ser esta – brevemente, transitoriamente; logo depois, recomenda-se fechar os olhos, esquecer tudo, deixar doer a saudade. É preciso. Cair por muito tempo nesta armação, adoece. Esta é a bela armadilha que deve ser destruída, para libertar o deprimido. Para fazê-lo entrar no rio das transformações, Fédida mostra a necessidade de re-encontrar, por um caminho subterrâneo, ligado ao sono e ao sonho, uma outra temporalidade, um .... outro projeto. É preciso que o analista possa refazer o processo de constituição de uma subjetividade - "afirmada, não como um retraimento monádico, mas como um movimento vindo do fundo e o jorro de um salto." (p. 30) É preciso ajudar o outro a levantar, sacudir a poeira, dar a volta por cima. Sobretudo erguer-se, ficar de pé, deixar a posição de parasita e experimentar a 'jatividade' (de jato) de seu ser. Jatividade de uma sub-jetividade, como nos ensina Francis Ponge.

No capítulo O grande Enigma do Luto, Depressão e Melancolia, o Belo Objeto Fédida nos introduz mais profundamente no eixo temporal das depressões. Inicia esta parte lembrando o texto- A Transitoriedade - de 1914 e convidando-nos a caminhar com Freud, um poeta e um amigo taciturno pelo Dolomitas, no verão que precedeu à guerra, olhando a beleza da paisagem, e meditando sobre o efêmero. "...concebendo um tempo do belo objeto e sua capacidade de desaparecer no frágil encanto de seu aparecer." (p. 48) Nesta parte do livro o autor se encarrega também de nos lembrar a diferença entre a "violência que apenas o melancólico conhece"( p.49) e a depressão. Nos conduz a pensar no grande enigma do luto como se fosse uma palavra não pronunciada pelo paciente, mas entretanto escutada pelo analista como um grande clamor: "Por favor, me dá um tempo" Imaginando que o paciente pudesse terminar este apelo, ele seria assim: "Por favor, me dá um tempo para que eu possa sonhar a morte ..... protegendo-me assim da violência de expressá-la com meu corpo inteiro, quem sabe até... com meu suicídio". Trata-se de dar um tempo, de deixar passar o tempo da destruição melancólica de si e de guardar o sonho, reservar imagens, resguardar, criar reservas oníricas. Perder o medo de Hamlet: ‘To sleep, perchance to dream, but in that sleep, what dreams may come ?" Deixar sonhar. A carne, não se fêz , ela própria do verbo sonhar ? Da matéria do sonho de um criador ? E não habitou entre nós ?

Mais uma vez Fédida sublinha a importância, para o psicanalista, de se espantar com o que é evidente, de romper sua aliança com o senso comum. No senso comum, parece óbvio que a perda e a morte provoquem dor, saudade. Freud sempre se espantou ante a extraordinária intensidade da dor de uma perda. Se o objeto de amor tem, entre outros, um papel de cimento narcísico, sua perda ameaça toda a estabilidade do sujeito. Contra o maior risco de uma perda - a violência do desmoronamento melancólico de si - conservar uma relíquia que representa o desaparecido é medida defensiva nada desprezível. O luto pode ser pensado como estratégia de conservação de si. De separação entre a morte do outro que aí está - e a minha morte que, se ainda não foi, quem sabe, nem será.... é preciso um pouco desta ilusão para poder olhar a morte. Para a morte, como para o sol, nunca é possível olhar diretamente (La Rochefoucauld).

Fédida chega a dizer que ao se deprimir, a pessoa "simula" a morte para se proteger dela (p. 39) Isto me convida a pensar a psique como ‘simuladora’. A psique simula, finge. Finge tão completamente (como F. Pessoa) que chega a pensar que é dor, a dor que deveras sente. Para o autor, a psique longe de poder ser concebida como sopro vital é a metáfora depressiva do vazio (p. 40). Entendo assim esta figura vazia - a psique é vazia como uma atriz, uma histérica que dramatiza, que encena, que simula ... que se faz vazia para se encher de uma realidade que não é a sua, assumindo-a por fim, de tanto brincar de faz de conta. A psique do deprimido está interessada em se apropriar, o mais radicalmente possível, da realidade inapreensível da morte de um outro (ou de sua ausência, ou do próprio ausente). A psique colocaria em cena - pois é isto mesmo que ela melhor sabe fazer – colocar em cena - "a experiência vital da morte impossível." (p. 40)

Ao trabalhar com Agnes, Fédida produz uma interpretação surpreendente: a tentativa de suicídio como aniquilação imaginária de si pode ser manejada pelo analista e adquirir o sentido simbólico de um renascimento: ".....envolvia, no tratamento, o poder de uma efetuação simbólica que dava novamente à sua vida o tempo e o corpo de um projeto" (p. 45)(negrito meu) .

Transformar em vida o trabalho silencioso da morte - aqui é preciso enfatizar bem – depende de um trabalho intenso. O autor propõe manter um vigilante trabalho analítico – para que o suicídio possa operar "trabalho da morte" (expressão retirada de Pontalis) sob a forma de trabalho de sonho. O trabalho da morte é dissolução de formas cristalizadas, abrindo espaço para sonhar possíveis e tornar assim habitável a ‘casa’ psíquica. Que acontecimento! Poderia também se chamar gênese (ou renascimento) da capacidade de rêverie, sempre acompanhada de um movimento súbito de separação da infância. Lembro da história de um analista brasileiro que tinha ido à Inglaterra se analisar com Bion. Em determinado ponto de sua análise deu-se conta do auto-engendramento. O insight surgiu enquanto caminhava ao léu por um lugar isolado, montanhoso; olhando a imensidão do vale, pôs-se a gritar a todo pulmões: "Estou nascendo, estou nascendo". Tal passagem se expressa, durante a análise em sonhos de mobiliar e decorar uma casa – antes vazia ou através de imagens de embalar nos braços uma criança, que é a própria pessoa. A rêverie é a criança indestrutível, o infantil, criação de sentidos possíveis, capacidade de se iludir – agindo no momento em que, tomando distância da matriz, uma pessoa põe-se a falar por conta própria, deixando para trás a condição de ser falada. O sonhar põe novamente em marcha um projeto e abre um futuro, tirando o deprimido daquele olhar obstinado ao passado, ‘que há de se repetir sempre igual.’

Trabalhando arduamente com Agnes, Fédida consegue suscitar a volta da capacidade de se iludir, e de esperar - e passa então, a responsabilidade do trabalho terapêutico ..... para o sonhar que então emergiu, chamando- o então, do verdadeiro ‘empreiteiro terapêutico". (p.46) Nesta visão, o ofício do analista é evocar a rêverie, restituir asas ... ao sonho. Sua presença silenciosa estará a serviço do devaneio, da possibilidade de soltar as velas do sonho, considerado este, sim, como o verdadeiro empreiteiro terapêutico!

Aprofundando-se em suas análises, Fédida mostra a semelhança do movimento de introversão e retorno ao corpo – presente em situações tão diferentes quanto o sono, o sonho, o luto, o adoecimento, o autismo, a vivência do vazio ... e finalmente a morte, esta última restaurando a imobilidade mineral, inorgânica. Não pode ser esquecida a função de restaurar a vida, operante em todo movimento de morte – por isso, adverte, não podemos arrancar bruscamente o paciente da imobilização que poderá ser berçário particular de próximas subjetivações.

O autor lembra-nos que a morte do outro "está longe de suscitar algo unívoco". Nunca é possível prever os efeitos que – tanto a morte quanto a nudez do outro- irão suscitar Ao ler isto, lembrei-me, com um sorriso, de um paciente enumerando as preocupações que dominaram sua infância: o enigma da morte e aquele outro enigma ainda maior: a mulher nua. No entanto, a associação entre morte e nudez permanecia ainda envolta em mistério, Fédida aproveita este momento do texto (O grande enigma do luto) para propor pensamentos bastante enigmáticos. Obriga-nos a desistir de entender tudo, a desviar do que parece óbvio e também do que parece indecifrável, mas ....aconselha a ficar perto do misterioso. Parece querer sepultar todas as evidências e plantar em nós grandes enigmas verdejantes : "A morte do outro, assim como sua nudez, concede à existência subjetiva uma história" (p. 48) Estas afirmações que crescem como heras de silêncio em nossos muros de espanto ficam um pouco menos obscuras se vemos crescer na árvore do enigma, frutos proibidos. Sobre os quais não devemos simplesmente... nos atirar e devorá-los ....porque nem todos os mistérios podem assim ser decifrados. Trata-se do interdito de devorar o outro com identificações projetivas - interdito da onisciência e da onipotência. Algo começa a ficar mais claro: a nudez do outro é a marca da diferença - diferença entre Criador e criatura, entre homem e mulher, entre gente e bicho e planta. A nudez do outro ensina a diferir; ensina também a diferença entre o que é possível sondar, penetrar, e o que é preciso aceitar como indecifrável. É preciso respeitar o interdito primeiro, editado no Jardim do Éden.....ou então transgredi-lo, devorando o fruto proibido- momento no qual surgirão simultaneamente (irmanados em significação) - a nudez, a lei, a culpa, a vergonha, o pudor, a história, o tempo e a morte.

É preciso pensar o luto não como reação psicológica – normatizando-o, adverte o autor, mas como acontecimento. "Como o pudor e a vergonha, o luto é o acontecimento - por assim dizer, transcendental - da subjetividade" (p.48).

No capítulo A Relíquia e o Trabalho do Luto o autor aborda a missão específica do luto, que segundo Freud "consiste em estabelecer uma separação entre de um lado, os mortos, e de outro, as lembranças e as esperanças dos sobreviventes" (Totem e Tabu) Entretanto, a diferenciação entre vivos e mortos se dará através de uma série de transações e substituições entre o que se retém – a relíquia – que afastada do circuito de trocas difere do dinheiro porém está como ele, impregnada de significados anais – e o que se esquece. Desse modo Fédida sublinha a importância do erotismo anal e uretral - dialética entre deixar sair e reter – na constituição do fundamento corporal da noção de tempo – diferença entre o que o corpo deixa passa e o que retém - e do luto – separando o que se esquecerá e o que se recordará.

A importância da relíquia é ser este "eu me recordo" (em dialeto italiano, Amarcord)- destinada a preservar a esperança dos sobreviventes contra o efeito de contaminação da morte. A relíquia é fragmento do corpo desaparecido e permite conservar alguma coisa dele, sem negar a perda. A capacidade de se recordar ..... não seria isto a relíquia, por excelência ? (p.52) Não qualquer recordação ... mas lembrar dos que já morreram – isto nos protege contra a própria morte. A relíquia por sua visibilidade não se submete à usura do tempo, à corrupção da morte .... é o contrário do cadáver, pois ao invés de se dissolver, faz crescer em nós o mistério. Estabelece um limite à plena corrosão de tudo pelo tempo e com isto, propicia a dissolução parcial do que já se foi.

Fédida compara duas formações de compromisso muito diferentes, a relíquia, associada à neurose obsessiva e o fetiche, associado à perversão e à psicose.

A dialética entre deixar passar, esquecer – e conservar, recordar - se resolve por mecanismos diversos através da relíquia e do fetiche. Deixar passar o passado e abrir-se a um possível futuro caracteriza a relíquia, ao passo que reter o tempo e repetir o passado são típicos do fetiche. O autor nos faz lembrar de nossas pequenas relíquias de adolescência, de infância - aquela quantidade absurda de pequenos objetos guardados e engavetados ao longo dos anos, testemunhando o apego "à imagem arcaica de um corpo desaparecido" (p.59) , ao tempo indestrutível de nossa infância, que já não volta mais (?) ... Traçado imemorial de uma infância que não se consegue nunca exumar...

Em O Canibal melancólico - Fédida nos põe de novo em contato com o imaginário da devoração, (‘e essa boca, tão grande para que serve ?’ – "É prá te devorar!".) e da antropofagia, evocado pela figura do canibal. Canibalismo é "tanto o desejo de se apropriar do objeto destruindo-o," quanto o "meio imaginário do qual se serve o eu-prazer na esperança de negar o objeto enquanto tal - ou seja, existindo separadamente dele"( p.61) Uma das formas de angústia canibal - a de ser aniquilado pelo fascínio do objeto - põe em marcha os desejos de submeter, dominar, fascinar e finalmente destruir o objeto de amor para conquistar a independência, livrando-se do jugo dele. A relação com a beleza do objeto de amor pode gerar tal grau de fascínio e servidão, pode tornar-se tão despótica que põe em marcha os mais desenfreados aspectos da pulsão de morte, no sentido que Ferenczi intuiu - de um poderoso desejo de retorno ao 'interior' desta beleza, em um ato imaginário de fusão - ao mesmo tempo que um imperioso anelo de se apropriar dela, destruindo-a (por todos os meios que o sadismo possa conceber...) .

O canibalismo é sempre associado à oralidade, mas a observação clínica exige a inclusão de componentes anais, fálicos e genitais ... e sádicos que se combinam entre si, tingindo-se uns aos outros, como já percebera Melanie Klein. Fédida afirma algo semelhante: para ele não existe oralidade pura – não só por que toda oralidade é transgressora mas também porque toda oralidade se tingirá do erotismo anal, fálico e genital. É possível ver que, quanto mais sádicas e destruidoras são as fantasias de submeter o outro (para livrar-se de ser por ele sugado), mais profunda é a angústia de ficar fascinado e submetido a ele. Quando se pode dimensionar este medo junto ao paciente, e elaborá-lo, o poderoso arsenal de combate ao fascínio (todas as armas do sadismo) pode ser abandonado como algo obsoleto. Aliás, uma das melhores estratégias para combater o fascínio é levar o outro a cair nele: devorá-lo sim mas com manobras de sedução... A angústia de ficar subjugado pelo outro pode também gerar comportamentos defensivos como a bulimia e a anorexia. Devorar, para não ser devorado - pelo fascínio do objeto. A bulimia e a anorexia, obrigam a diferentes rituais alimentares que procuram impedir, ao mesmo tempo em que francamente encenam, a fusão temida e desejada com o objeto de amor.

Aqui, Fédida aponta a questão que considero fundamental: o sonho canibal "esconde e revela o desejo de anular o que separa e distingue. Em nome de uma identidade ilusória do mesmo, ele tem a vocação imaginária de nunca perder o outro – ou seja, aquele que somente uma destruição por devoração poderia impedir para sempre que nos abandone."(p.65). O canibalismo procura resolver o problema da separação por um mecanismo semelhante ao Verleugnung freudiano. O desaparecimento do objeto de amor pode entrar em um ‘saber’, mas fica fora do alcance de um ‘crer’, como na conhecida formulação de Octave Mannoni: eu sei (que o objeto de amor desapareceu) mas, mesmo assim.... não consigo acreditar nisto. A angústia do eu, de sobreviver intacto à perda de alguém importante é o que move este mecanismo de defesa tão estranho no qual a perda não é resolvida, mas imaginariamente afirmada e negada. Pois é preciso matar o objeto de amor para conservá-lo.

Também quando nos comunicamos com alguém através de palavras é comum cairmos em uma forma de canibalismo do outro – engolindo-o - ruptura da intersubjetividade por identificação projetiva. O frenesi de tudo compreender – a própria palavra compreender – prendendo o outro, assimilando-o a nós mesmos – nada mais é que um pequeno assassinato, que visa desconhecer uma diferença "para que seja legitimada a esperança da identidade possível pela crença na incorporação". (p. 68).

Em O vazio da Metáfora e o Tempo do Intervalo, Fédida ensina o contrário de uma identificação projetiva: como falar com o paciente sem prendê-lo em nosso imaginário, surpreendendo-o . Como tomar distância, recuar, diferir: réculer .... pour mieux sauter. Como despreender-se do já sabido. Este capítulo poderia se chamar : lições da distância que deve separar os seres entre si. Em determinado momento do texto, o autor afirma não ser possível libertar-se do vazio e do egoismo levando à pergunta: não seria a aceitação do vazio o que torna possível a diferenciação entre os seres? Ele aconselha a morar no vazio, habitar o vazio.

Passa o livro inteiro aconselhando a obedecer a distância entre os seres como se fosse algo sagrado. Como se fosse esta, a ética do analista. Praticar algo sagrado neste caso, respeitar o que diferencia cada ser – implica em sacrificar o desejo de fusão. Na linguagem antiga sacrificar era sinônimo de fazer algo sagrado. A palavra ‘sagrado’, associo com a palavra ‘santo’, cuja etimologia é ‘ ser separado’. Como não é possível sair do vazio, diz Fédida, é melhor nele entrar mais e mais profundamente: o vazio da fala se abre para um silêncio cada vez maior. Há dois precisos poemas de Dora Ferreira da Silva:

O silêncio

O silêncio tem uma porta
que se abre
para um silêncio maior:
antecâmara do último
que anuncia outro
depois.

O silenciador

Abre-se a prisão,
Hesita o prisioneiro.
A sala de espera se reduz.
O alvo escurece. O escuro busca a luz
Abre-se o espaço,ventre do esperar.
Abre-se o tempo e o alvo nos alcança.

A porta que se abre para um silêncio sempre maior....força, amplia a envergadura interna..... e o alvo nos alcança. E o egoismo? Será que nunca saímos dele ? Por maior que seja o amor ? Encontro uma frase de Proust, anotada em um caderno antigo: "O homem é este ser que não pode sair de si, que não conhece os outros a não ser em si, e que dizendo o contrário, mente" Mas por outro lado ....não pensa em outra coisa: é o que diz a outra frase, anotada ao acaso: "Não pensamos em nós mesmos, não pensamos a não ser em sair de nós mesmos" Esta avidez insaciável pelo ‘outro rosto’ nasce da criança pré-genital, ‘ávida de rostos, sugadora e mordente’.... Entre não sair do egoismo e também não poder sair do desejo de fusão, pleno conhecimento, comunhão com o outro...que impasse ! Uma voz de advertência interdita – ‘nunca realizar tal desejo de fusão’ – mas um contracanto ainda mais poderoso impõe jamais deixar tal desejo !. .... Quanto mais se estreita ao peito a avidez insaciável, sem reivindicar realizá-la, maior e mais vasta é a região de silêncio que se abre - expandindo-se para além da contradição. A voz de Rilke, mais uma vez retorna em seu modo imperativo, interpelando-nos, diretamente, com o seu ‘tu’:

"Arroja o vácuo aprisionado em teus braços para os espaços que respiramos – talvez os pássaros sentirão o ar mais dilatado, num vôo mais comovido."

E ainda : "Não é tempo daqueles que amam libertar-se do objeto amado e superá-lo, freementes ? Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no vôo mais que ela mesma. Pois em parte alguma se detém"

Fédida reconhece que a dificuldade de investir o mundo torna o paciente deprimido vazio, entretanto adverte-nos logo a não ver neste vazio um sinal tão pessimista. Da mesma maneira como Freud pôde ver no delírio psicótico uma tentativa de cura, vê aqui "uma tentativa de isolamento, de privação sensorial como medida de conservação de si, em estado de perigo."(p. 71) Considera a descoberta do vazio como condição de possibilidade da cura, como o que antecede o desejo de preenchimento. Este vazio como ‘espera de sentido’ (p.71) corresponde ao que Winnicott chamou de "uma organização narcísica primária do eu antes de começar a se preencher". (p.71)

O paciente deprimido tenta controlar suas demandas desgovernadas e insaciáveis, instalando-se no vazio. Então, é preciso ajudá-lo a sair daí com delicadeza, pois convocar de novo a fala e a demanda oral pode provocar uma efração traumática. É preciso fazer-se domador de feras, pois a "a fala sofre da avidez da boca vazia" e a criança pré-genital - despertada pelo trabalho analítico, "sugadora ou mordente, ávida dos rostos, insaciável" (p.76) – precisa aprender a se alimentar de vazio, de abertura, de abóboda celeste .... senão .... vira bulímica.

No entanto, não basta compreender o conteúdo de um comunicado; o analista não pode ser um mero container do que diz o paciente, mas deve realizar "o duplo movimento recíproco e complementar de desligamento dos fios e do tecer do tecido" (p. 78) pois a fala do paciente "não é falsa nem verdadeira, nem boa nem má, no mais das vezes ela é infeliz"(p.70). "Mas ele tenta falar a verdade mesmo em sua mentira" e "Essa fala de analisando sonda o fundo no qual o analista pode escutá-la: ela cava e explora o silêncio" (p. 79).

Uma das pacientes mencionadas sente a impaciência febril e fica possuída pela grande impulsividade que caracteriza o desejo pelo absoluto e a pressa de tudo obter. Fédida trabalha para que ela possa dar lugar em si mesma "a um vazio que seja tempo e silencio" (p.80), a partir da capacidade, no analista, de manter um ‘silêncio de fundo" e nomear o não-dito.

"A análise seria o lugar – espaço e tempo – próprio para acolher e receber o vazio?" se pergunta Fédida. Sim, mas "o vazio é aquele do silencio da fala", criado pela escuta da fala a si mesma - experiência terrível esta - que exige renunciar à positividade dos atos, das soluções, dos mandatos.

"A fala não conseguiria encontrar o poder de seu dizer se escapasse em seus atos e fugisse do silêncio. Mas o que em primeiro lugar a fala encontra em si, ao se abrir, é o vazio". (p.88)

O analista escuta atrás da fala do paciente o próprio horizonte daquele dizer, a sua condição de possibilidade. O fato de, além disso, sentar-se atrás do paciente, convida Fédida a considerar o poder metafórico deste atrás. Para onde vai o olhar do analista ? Caminha contra a correnteza forte dos fatos, vai ao encontro das mais remotas nascentes, para trás no tempo. Fica para trás da fala do paciente, não se antecipa, mas acompanha o rítmo de um pensamento, dá um passo atrás, dá passagem: ‘Après vous, monsieur’ . Deixa passar a dor, a raiva, o amor, a saudade, deixa tudo prá trás..... Só mais tarde olha para trás e de repente entende alguma coisa, après tout. Às vezes chega até .... a se deixar passar prá trás.... Invertendo o habitual convite a chegar em primeiro lugar, o analista embaralha o senso comum e origina outra referência espacial – atrás – que é também dimensão "temporal-intemporal regressiva"(p.87) permitindo que as palavras do paciente encontrem "atrás" dele, coisas das quais não tinha consciência ao expressá-las: como se suas palavras lessem um texto desconhecido, "escrito por trás" dele e despertando ao seu contato sonoro" (p. 87)

Fédida insiste em dizer que o trauma deve ser destituído de sua positividade factual e reconstruído em seu aspecto de falta, sem precisar localizá-lo no passado. O texto Fear of Breakdown de Winnicott pensa o medo do desmoronamento como referido a um acontecimento arcaico que não pôde ser vivido, na medida em que precedeu a constituição da experiência. O trabalho analítico propicia o advento da experiência - disto que "já- teve- lugar- nunca- em-lugar-nenhum (p.92) – e aquilo que pode então ser vivido, pode também ser elaborado, deixando de ser ameaça de queda futura.: "Mesmo que a metáfora expresse em seu conteúdo a queda ou o desmoronamento, ela é – nela mesma extração do retraimento subjetivo, saída e passagem"( p. 94).

A última parte do livro, sendo a mais densa e concentrada meditação a respeito do trabalho analítico, torna difícil um trabalho de apresentação que faça justiça à densidade das elaborações. Fédida sublinha bastante o poder de dis-junção e desligamento da análise, respondendo, mais uma vez, à questão: o que é simbolizar a ausência? :

"Falar, na análise, é – como dissemos - abrir a fala a seu vazio, e essa abertura é uma desistência e um despreendimento das significações nas quais o paciente se prendia e se compreendia. De outro lado, esse trabalho de des-significação é o trabalho de constituição da capacidade de ficar sozinho na presença.... da mãe: é portanto dele que provém o que se nomeia simbolização da ausência."(p. 118).

Voltemos uma última vez à questão "o que é simbolizar a ausência ? ". Com a importância conferida à fala poética, sinto necessidade de encerrar minha resenha com palavras extraídas de um poeta, uma vez que as referências à literatura (Thomas Mann, Kafka, Beckett, Ponge), às aquarelas luminosas de Cézanne e à obra de Paul Klee foram o melhor suporte de Fédida para se aproximar do deprimido. Não através de um olhar totalizante, que busca tudo abarcar, (regarder), mas sim, através do ‘mais secreto poupar’ (garder).

O poeta escolhido é Rilke, falando das coisas terrestres, e de sua fugacidade, recomenda-nos um trabalho de metamorfose do mundo, de simbolização da ausência. Suas palavras lembram muito a descrição de Fédida das aquarelas luminosas de Cézanne: "É notável que as aquarelas sobre papel, de Cézanne tenham um poder de irradiação da luz a partir do vazio." (p.111) E ainda: "A lógica aérea da cor é a obra ativa do vazio – é a atividade do movimento da terra ("as terras vermelhas" que sobem para o sol) em direção ao céu."(p.112) As terras vermelhas renascendo aéreas, invisíveis... abrindo-se para a mais plena metamorfose em direção ao sol. Metaforizando-se em pura luz.

Palavras de Rilke, obedecidas por Cézanne:

"Que em nossos corações invisíveis se cumpra a sua metamorfose – infinitamente- quem quer que sejamos ! Terra, não é este o teu desejo: renascer invisível em nós ? – Não é teu sonho tornar-te invisível algum dia ? – Terra ! invisível ! Não é a metamorfose tua desesperada missão? "

E ainda:

"Em parte alguma, bem-amada, o mundo existirá, senão interiormente. Nossa vida transcorre na metamorfose: sempre decrescendo, o exterior desaparece. Onde havia outrora uma casa estável, ergue-se uma estrutura imaginária, atravessada, como que erigida em nosso cérebro. O espírito do tempo cria depósitos imensos de poder, ele que é informe, como o tenso pulso que rouba às coisas, logo abandonadas. E esquece os templos. Mas a prodigalidade de nosso coração é o mais secreto poupar. Sim, lá onde se ergue ainda uma coisa outrora invocada, adorada de joelhos – olhai, como já se interna no invisível. Muitos já não a podem ver, incapazes de reconstrui-la interiormente, imensa, com estátuas e colunas !"

Elisa Maria de Ulhôa Cintra
Psicanalista, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, doutoranda na mesma instituição, Professora do curso de especialização - Teoria Psicanalítica da PUC/SP -COGEAE e do CEPE.
E-mail :
elcintra@netpoint.com.br


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