Bondade
Fabio Herrmann
Aos meus amigos de Belém
Comecemos pela bondade. A bondade é um sentimento passageiro, sentimo-nos bons e o mundo bom conosco, de tempos em tempos. Mas a rara bondade forte, mais en-contradiça nas mulheres, esta é um gênero de destino. E como interroga gravemente a Bíblia: "Quem en-contrará a mulher forte?"
A barca que nos atravessa de Salvador a Itaparica, navega geralmente em águas calmas, balançando preguiçosa num mar que é como espelho morno. Sentada a nosso lado, de costas para a lenta progressão do ferry boat, um casal, já passado em anos, com uma criança de colo. O homem, um pouco mais claro que sua bem mulata esposa, mais mirrado e prosa, mas nem por isso ridículo, parece ostentar certo orgulho de sua chefia de família, embora seja evidente que esta lhe é apenas concedida temporariamente pela mulher. A criança dormita, a mulher a embala, o sujeito quer puxar conversa. "Demora, não? E com este calor abafado." Passa um vendedor de picolés baratos, com seu pregão inventivo: "Se o moleque chora, não lhe bata, compre-lhe um picolé; se chora outra vez, compre-lhe dois picolés; se volta a chorar, cacete nele que já está abusando..."
Então, quando me levanto para esticar as pernas, a garotinha agarra-me o dedo e fica a balançá-lo, parece que ao sabor do jogo da barca. Pronto, já somos da família; capturados em sua órbita estreita, é preciso entabular conversa. A menina só tem 8 meses, mas como é comprida, dir-se-ia ano e pouco, não é? Ainda meia hora de travessia convimos todos que é tempo demais para 14 quilômetros. Então a senhora calada começa a contar: "É minha filha, sim. Bem, é neta, mas é filha. A mãe não cuida, é menina ainda, uns dezesseis anos mais ou menos, não?" pergunta ao marido. "É, acho que sim". Nosso interesse já foi despertado, verdade? Como a neta pode ser filha e como a mãe, que havia de ser filha da avó da neta, pela lógica dos parentescos comuns, tem idade incerta? A senhora explica.
A mãe de Gislane que nome deliciosamente típico, ainda mais por só de leve ser ame-ricanizado , a mãe vive na roça, trabalha puxando enxada, mas não quer vir para Salvador onde moram eles, só para não ter de cuidar da criança. Ela também é filha de criação. "Sabe" continua a senhora muito digna, de cima de seus talvez sessenta anos "a gente vivia no Recôncavo, trabalhava num sítio, ali a encontrei, ainda pequeninha, jogada no chiqueiro." O jeito de falar arrastado e as palavras mastigadas na gengiva, que os dentes rareiam, obrigam-nos a fazê-la repetir de quando em quando as sentenças, para melhor compreensão do fato insólito. "Num chiqueiro, disse?" "Foi, no chiqueiro ao lado da casa da gente, foi sim. Toda emporcalhada e chorando de fome. Aí pegamos para criar. O que se podia fazer?" "Era ela só de filho?", perguntamos. "Imagine! Tenho mais oito. Fora os que mor-reram."
O bebê, futura mãe de Gislane, foi educada com esmero local; até escola teve e chegou a ser convidada para dar lições aos meninos do lugar. Mas não queria saber de responsabilidades. A senhora cansava de admoestá-la: "Olha as companhias, olha aí, filha, para que tanta festa?" Qual nada. Saía com as amigas e das piores, carregadas de exemplos daninhos , ia ao forró e ao baile, aos aniversários e ao coreto da vila vizinha. Até que se deu o que se havia de dar e se tem dado infalivelmente desde que o mundo é mundo, razão pela qual este segue sendo mundo de gente e a gente dentro dele cada vez mais. "Quando a barriga já lhe dava na boca, o rapaz sumiu."
"Pois bem, zanguei e falei duro: tu tens família, não é caso de cair na vida. E ela: sim mãinha, a senhora que sabe, mãinha. Ficou conosco, teve esta criança, passou o resguardo. Então adeus. Sim mãinha, sim mãinha, mas nada de cuidar da filha nem de trabalhar. Foi quando nos mudamos para a cidade. Ela é bonita e instruída, podia arranjar emprego aqui, mas nunca que quis. A filha veio, ela ficou por lá, namorando, festando, para acabar em cabo de enxada meu senhor. Veja só. Então que se havia de fazer? Registramos Gislane como filha nossa, que é um gosto de menina. Mais prático, não foi?"
O sorveteiro volta com outro refrão. A barca já venceu quase todo o estreito. Os passageiros começam a ajeitar as coisas para apear. A menininha dá um último balanço de despedida em meu dedo e o larga, aninhando-se no colo da mãe-avó. Nada há para dizer, senão até logo e boa sorte. Pelas costas vemos ainda a mulata marchando firme com a filha ao braço, abanando-a por causa do tépido ar. A bondade verdadeira é dura e severa, perdoa e não perdoa ao mesmo tempo, mas repete-se com o ciclo das marés, do nascimento e da traição, da morte e do renascer das coisas. Psicanaliticamente falando, a bondade é uma invasão indébita da vida alheia, um estar no outro mais do que ele mesmo está em si.
Avó postiça, mais mãe do que a mãe carnal, mais nela do que ela mesma estava, a boa senhora e forte mulher cumpre um destino regular de adoções plenas, acima e além do cumprimento do instinto materno. A bondade não pensa, faz o que tem de ser feito, sem regozijo ou autocomplacência. É um ego que se esvaziou no superego não o contrário , tomando de assalto as instâncias ordenadoras da consciência moral, suplantando a moral e a conveniência em nome do destino. Ela não faz porque deve fazer, senão porque é mais prático. E se Gislane, passados quinze outros anos, embarrigar de algum malandro fugidio, mais um filho há de registrar nossa companheira de travessia, sempre zangada, sempre cumpridora. Há bondade quando já não se medita nela e não se cogitam recompensas outras que nova edição do mesmo fado.
"Quem encontrará a mulher forte", pergunta a Bíblia. "A mulher forte levanta-se antes do sol, sai ao campo e provê a comida de seus empregados, tece um cinto com suas próprias mãos que cinge aos rins. Ela é a glória de seu marido e a bênção de seu lar". A mulher forte, o mais ferozmente bondoso dos animais da Terra, é também a mais impiedosa das criaturas. Sua bondade não abre exceção, encurrala-nos em nossos egos mesquinhos e não nos deixa respirar, como este ar tépido, como o jogo do mar. Pois ela nada mais é do que a vitória final do destino, uma espécie de concordância com o que tem de ser, que anula os deveres, já que a mera presença do dever é sinal de relutância, mesmo que relutância vencida: uma erínia do amor, bondade vingativa.
Ao refugar domado chamamos superego, você sabe. O superego é como o cavaleiro que incita e segura sua montaria. A bondade é egóica, porém se dá quando o ego se diluiu por obra de um acórdão em suprema instância com os fatos da vida. Nem o superego então lhe resiste, porquanto este só ganha existência no confronto interno de vontades egoístas, num jogo de dois tempos: faço ou não faço, dou ou não dou. Já o ego que incorporou os fatos até a medula, este nos detém sem força alguma, como a menina a segurar meu dedo; o ritmo que impõe ao sujeito é perfeitamente inelutável, entra-se para a família da bondade sem querer ou até a contragosto. "Quem encontrará a mulher forte?"
Tome outra vez a barca de Itaparica, meu amigo, e espere para ver. Não será difícil reconhecê-la. Seu rosto moreno é tão anguloso quanto arredondado, ou seja, é uma maciez extremamente pronunciada, os lábios carnudos e definidos, o corpo cheio, terá uns sessenta anos, mas é bela e tranqüila, e a palavra mais justa para dizer de seu porte é sobranceria. Cuidado então se a encontrar, pois ela o penetrará de paz feroz e você terá de fazer força extrema para retornar ao cinismo psicanalítico a que se habituou, uma vez que a teoria tradicional omitiu o conceito metapsicológico de bondade e nossa clínica tem muitas vezes desdenhado sua prática generosa.
Confunde-se bondade com pieguice, quando a bondade é lógica geométrica ou é cálculo de predicados em seu rigor. E é um equívoco do egoísmo também. Quando o eu se confunde com os aspectos cíclicos do mundo em que vivemos, em especial com a sucessão das gerações, o sujeito universaliza-se nalguma medida e os atos universais, mesmo que num universo diminuto, são egoisticamente bons: servem a todos, queiram ou não queiram. Transferencialmente, por conseguinte, a bondade atua na sinapse da comunicação entre analista e paciente, onde está representado o trânsito intergeracional do suceder terapêutico. É uma espécie de dispersão meticulosa que faz com que o analista, sem deixar de ser quem é, isento e neutro, ou de cuidar de si e de sua técnica, tenha lugares de alma disponíveis para ser ainda mais o outro do que o outro se é. Com isso, a análise pode funcionar; sem isso, não.
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