Modernidade, trauma e dissociação:
A questão do sentido hoje

Luís Claudio Figueiredo (1)

Considerações preliminares:

Meditando sobre o tema em torno do qual estamos reunidos - "Corpo, afeto e linguagem: a questão do sentido hoje"(2) - senti que ele me remetia a duas direções. A primeira parte do título me lançava ao passado de nossa era, à tentativa de separação cristalina entre corpo e mente (aqui representada pela "linguagem") tão própria da modernidade cartesiana e na qual os afetos ocupam uma posição ambígua e intermediária. Já a segunda, me abria uma perspectiva de pensamento que poderia, quem sabe, projetar-se para além desses termos e escapar, talvez, ao império da dissociação.

Resolvi, então, responder ao convite recolocando a questão do sentido hoje em um contexto um pouco diferente, o contexto em que se reúnem os temas da modernidade, da dissociação e, mediando-os, o tema do traumático. De início tratarei da modernidade e de como a partir de uma compreensão de nossa época somos levados a pensar em trauma e dissociação. Em seguida, tratarei de como esses temas estiveram e estão presentes no pensamento psicanalítico e, em geral, nos processos de subjetivação. Finalmente, focalizarei a "questão do sentido hoje", seja no plano da clínica psicanalítica, seja no da cultura contemporânea.

  1. Modernidade e ambivalência.

Tratarei muito resumidamente da Idade Moderna apoiando-me no pensamento de um autor cujas concepções me parecem extremamente fecundas e claras. Refiro-me a Zygmunt Bauman, em seu texto Modernidade e Ambivalência (3). Em prol da brevidade, simplificarei sua compreensão da modernidade expressando-a em algumas notas. Nessa exposição já irei estabelecendo ligações com alguns aspectos que não foram desenvolvidos por Bauman, mas que não me parecem contrariar as idéias diretrizes de sua proposta.

1.1. a modernidade é marcada pela distinção tensa e tensionante entre ordem (cultura e organização política) e caos (natureza, fluxos, diversidade, variação etc);

1.2. ao contrário de outras épocas (em que essa distinção não era determinante mas, de alguma forma já operava), na modernidade a ordem é vivida como tarefa, a tarefa recorrente e infinita de separação e purificação em que as atividades de classificar e identificar os entes são consideradas fundamentais para a constituição de um mundo habitável; Bruno Latour no livro Jamais fomos Modernos(4) nos diz algo semelhante ao tratar dos modernos como empenhados em um projeto de purificação; é fácil reconhecer nas considerações desses dois autores a vontade de clareza e distinção e o horror à irresolução que tornaram Descartes o patrono da Idade Moderna;

1.3. os procedimentos dissociativos, separadores e segregadores, implicados nas classificações e identificações purificadoras, geraram inúmeros produtos na forma de dicotomias: sujeito (atividade) e objeto (inércia e passividade), indivíduo e sociedade, natureza e cultura, corpo (substância extensa) e mente (substância pensante), forças (energia) e sentido (linguagem, símbolos); ou seja, esses procedimentos agem como expedientes de atribuição de sentido e organização do caos mediante a produção dos dualismos;

1.4. no entanto, segundo Bauman, há inevitavelmente, à medida que progride a tarefa moderna de ordenação, uma produção involuntária da ambigüidade; quanto mais avança o afã classificador, mais emergem aspectos refratários à pureza das classificações e das identidades; Latour na obra já mencionada também assinala o fracasso dos modernos; sua tese é a de que jamais fomos os modernos que pretendíamos ser: procurando os "puros" produzimos os "híbridos" inclassificáveis; segundo Bauman, a modernidade é assim envolvida em um programa reflexivo infinito: será sempre necessário refazer os passos já dados mas, de alguma forma, desconstruídos por esses mesmos passos;

1.5. ocorre, portanto e paradoxalmente uma descoberta indesejada de contingência como fruto da procura metódica da ordem e da necessidade; como a desordem é recorrente, o programa reflexivo da modernidade se consolida e aprofunda;

Três observações cabem nesse momento:

  1. a dinâmica moderna impõe a constituição do sujeito reflexivo; não se trata mais de identificar a subjetividade apenas com a agência e com a atividade, mas de exigir do sujeito a capacidade reflexiva de refazer-se e refazer metódica e conscientemente seus passos ordenadores;
  2. a tarefa de dar sentido produz não-sentido; o não-sentido não deve ser pensado apenas como a base sobre a qual se exerce a capacidade subjetiva de dar sentido (o caos primordial), nem como um resto, refratário a essa atividade subjetiva (o "real" não simbolizável): ao contrário, o não-sentido é um dos produtos mais sistemática e regularmente associado ao exercício das atividades humanas ordenadoras do cosmos;
  3. o fracasso reiterado da tarefa moderna, a convivência inevitável com seus produtos involuntários e indomáveis - o ambíguo, o contingente e as ambivalências - em uma era marcada pela inflação da vontade e do empenho de domínio, clareza e distinção fazem da Idade Moderna uma época extremamente exposta ao traumático; ou seja, os fracassos inevitáveis da razão e da língua (e de outros procedimentos de ordenação) nos encontros com as ambivalências modernas estão nas raízes do traumático como regime de vida; passa-se, assim, de uma consideração dos "eventos traumáticos" aos "traumas cumulativos" (Khan) e, mais ainda, aos traumas crônicos e recorrentes que pertencem a um dado projeto de mundo (no sentido heideggeriano), o mundo moderno.

1.6. para que essa conexão não fique muito obscura, convém recordar que o traumático, ou catastrófico, (o campo das efrações e dos fractais) é definido, na psicanálise e fora dela, como o que diz respeito ao que escapa e contraria, destroça e instiga os poderes da ordem (os poderes tout court, pois todos poder é poder de ordenar); nessa medida, como veremos adiante, o pático e o afetivo (as "paixões da alma") definem o traumático por excelência;

1.7. é muito elucidativo considerarmos o não-lugar do afeto no projeto moderno cartesiano; ele será sempre da "ordem" do ambivalente, do ambíguo e do contingente e, portanto, potencialmente traumatógeno; uma leitura de Descartes no seu Tratado das paixões da alma, acompanhada e esclarecida pelo excelente trabalho de Lívio Teixeira Ensaio sobre a moral de Descartes(5) conduz às seguintes posições:

a) os afetos são idéias essencialmente (e não apenas acidentalmente) confusas porque oriundas da união de duas substâncias simples e incompatíveis: o corpo e a mente; no entanto, é a união - desencontrada e traumatizante - de duas substâncias simples o que constitui o homem na sua essência como ser paradoxal, ambíguo, no limite do pensável;

b) os afetos são, assim, idéias que não podem ser apreendidas pelo entendimento e por isso não dão lugar à certeza deixando-nos, no que diz respeito a nós mesmos, sob o risco das temidas ambivalências e da irresolução;

c) há, portanto, no âmago do projeto ordenador da Modernidade, e isso desde sempre, desde Descartes, um escândalo, o escândalo das paixões; se a nítida oposição entre sujeito e objeto correspondia à oposição entre atividade e passividade, nas paixões da alma assiste-se, com grande constrangimento, a uma brutal inversão: o cenário é o do dinamismo dos objetos contracenando com a passividade do sujeito(6);

d) nessa medida, expandindo um pouco a proposta cartesiana, podemos reconhecer no traumático a figura exemplar da paixão; o trauma é o momento privilegiado da inversão de papéis, o sujeito é repentinamente apassivado pelo impacto de um objeto cujo dinamismo excede em muito a sua capacidade de enfrentamento e domínio (prático ou simbólico);

c) ao mesmo tempo, contudo, o traumático - o passional - impõe ao sujeito moderno uma retomada do projeto classificatório e ordenador, vale dizer, mobiliza nele os mais poderosos expedientes de separação, de dissociação em que, de um lado o corpo, de outro lado a mente devem ser fortalecidos e conhecidos em sua máxima pureza: a medicina, a filosofia e a psicologia atenderam prontamente a esse convite; a psicanálise, porém, trilhou, ao menos parcialmente, um outro caminho.

Tratemos então da psicanálise.

 

2- O traumático e as dissociações na clínica psicanalítica e nos processos de subjetivação: considerações sistemáticas.

Gostaria de iniciar com algumas considerações sistemáticas prévias e mantendo o estilo de apresentação através de notas, de resto marcadamente cartesiano e dissociado...

2.1. as cisões (clivagens) e as repressões ou recalcamentos podem ser vistos como modos distintos de lidar com o intolerável, inadmissível, o ambivalente ou incompatível na experiência humana; no primeiro caso (o das cisões), criam-se barreiras verticais que mantém lado a lado porções segregadas da realidade objetiva e da subjetividade; no segundo (os recalcamentos), criam-se barreiras horizontais em que partes da experiência são excluídas da consciência e "soterradas"; em contraposição aos modos neuróticos e "normais" de enfrentar os conflitos pelas vias da repressão ou recalcamento, mediante as cisões evita-se a constituição do conflito psíquico;

2.2. na história do pensamento psicanalítico observa-se com facilidade uma forte correlação entre as cisões e as experiências traumáticas, de um lado, e entre a repressão ou recalcamento e os impulsos e fantasias conflitivos, de outro; o traumático é essencialmente heterogêneo e, portanto, anterior ao conflitivo - ele nem pertence apenas ao campo das forças que se opõem, nem apenas ao campo dos sentidos que se contradizem, mas nasce justamente do encontro e desencontro dos dois planos; o modo mais primitivo de lidar com essa situação será a de impedir que ela evolua na direção de se converter em um campo conflitivo, ou seja, as cisões cumprem esta tarefa básica de proteção;

2.3. caberia também reconhecer a necessária precedência das cisões em relação às repressões ou recalcamentos: as agências e mecanismos do recalque pressupõem dissociações e cisões já instaladas no aparelho psíquico;

2.4. convém, assim, diferenciar cisões constitutivas (que são a condição da repressão ou recalcamento) de cisões patológicas (que podem, inclusive produzir impedimentos do recalque); correlativamente, cabe diferenciar traumatismos constitutivos e traumatismos destruidores ou impossibilitadores da vida psíquica.

Dito isso, passemos a uma rápida retrospectiva de como a problemática do trauma e das cisões foi sendo tratada na história do pensamento psicanalítico.

3. O traumático e as dissociações na clínica psicanalítica e nos processos de subjetivação: considerações históricas.

Para essa pequena excursão tomarei como guias, entre outros, o excelente artigo de Jody Messler Davies "Represssion and dissociation - Freud and Janet: Fairbairn 's new model of unconscious process" (7) e também o artigo de Masud Khan "Ouvir com os olhos: notas clínicas sobre o corpo como sujeito e objeto"(8).

O que nos é recordado por esses autores é que em Pierre Janet a dinâmica psíquica das histéricas remetia diretamente às questões do traumático e das dissociações e que essa foi uma das bases decisivas das elaborações sobre a histeria desenvolvidas por Breuer e Freud nos Estudos sobre a Histeria de 1893-5. Ocorreu contudo no pensamento de Freud (distanciando-o de Janet e de Breuer) uma mudança significativa, a que resultou em um certo abandono simultâneo da problemática das cisões e do trauma, o que também é bem demonstrado em diversos trabalhos de Jean Laplanche (9). Em decorrência, as fantasias, (a pulsionalidade fantasmática), e o recalcamento vieram a ocupar os lugares centrais nos cenários psíquicos. Na verdade, o recalcamento não apenas saiu vitorioso da luta contra o mecanismo (janetiano) da cisão, como talvez estivesse mais implicado em todo esse processo. As razões e os mecanismos operando neste "abandono" talvez sejam eles mesmos da ordem do recalcamento. Dizia mais acima que o traumático corresponde a um momento privilegiado da exposição do sujeito a um objeto cujo dinamismo o coloca na posição passiva, "infantil e feminina", conforme os valores de nossa época moderna. Há motivos para crer que, embora Freud tenha realizado uma obra extraordinária no desrecalcamento do infantil, foi muito menos bem sucedido no que diz respeito ao feminino. "Abandonar" o traumático é de uma certa forma atenuar a força da posição passiva do sujeito nos momentos mais decisivos e fundantes de constituição psíquica. A pulsão, disse Freud, é sempre de alguma forma "ativa", pois mesmo quando sua meta é "passiva" há para alcançá-la, um gasto de atividade (Freud, 32ª Conferência). Ferenczi menciona as palavras de Freud de uma forma ainda mais sugestiva: "...a observação de Freud de que toda libido é de fato viril, mesmo quando visa uma satisfação passiva (como na mulher, por exemplo)". Nossa hipótese é de que privilegiar o pulsional em detrimento do traumático é fazer uma opção pelo "masculino" do psiquismo em detrimento do "feminino".(10) É claro que as pulsões também submetem o sujeito às suas forças muitas vezes incontroláveis, é claro que, nessa medida, elas também apassivizam o sujeito. Mais ainda, situadas nos limites entre o somático e o psíquico, as pulsões ocupam exatamente aquele lugar paradoxal e impensável das "paixões da alma" para Descartes. Não obstante, enquanto as pulsões e seus derivados (as fantasias) forem consideradas como internas ao organismo, elas fortalecem a crença em uma certa atividade endógena do sujeito (que projeta, introjeta, recusa, nega, se identifica, etc) em contraposição ao traumático que impõe a experiência e o reconhecimento de uma passividade radical (Lévinas) na origem de toda subjetivação.

É certo que podemos observar no desenvolvimento da psicanálise um retorno freudo-ferencziano ao traumático e à cisão. Em Além do princípio de prazer Freud coloca a experiência do trauma no centro e na base do processo de constituição do psiquismo. É para lidar com as experiências e ameaças de efração decorrentes da incidência sobre a substância viva de forças externas muito poderosas que se cria uma crosta mineralizada. Da mesma forma, é para enfrentar as rupturas dessa crosta de proteção que devem se formar as reservas de energia quiescente no interior da vesícula viva. Serão essas reservas que acudirão em socorro das partes injuriadas se a crosta for rompida e quando essa mobilização é intensa será vivida como dor. Temos aí reconhecida a necessidade de que a substância viva passe por um processo de diferenciação interna capaz de produzir áreas relativamente especializadas e separadas umas das outras de forma a enfrentar os riscos do traumatismo. Podemos admitir que estas separações e constituições de partes segregadas seriam o protótipo das cisões constitutivas do psiquismo.

Em Ferenczi, autor para quem o traumático e o catastrófico sempre foram indispensáveis na explicação dos processos psíquicos e biológicos em geral, autor que jamais renegou o infantil, o feminino e a dimensão da passividade radical e original do humano, a problemática das cisões, como era de se esperar, também está muito presente. Quanto à experiência traumática em si mesma, Ferenczi, além de acentuar freudianamente a dimensão do impacto e da surpresa, acrescenta outra, a dimensão "social" que será de muito interesse para alguns autores que virão depois. Trata-se das idéias da "confusão de línguas" e do desmentido: o traumático não residiria apenas no abuso e na violência cometida contra a criança, mas na recusa (por incapacidade ou má fé) por parte do mundo adulto em reconhecer e acolher o episódio. A vítima, assim, não só é atravessada por afetos intensos, produzidos pela ‘língua adulta", a da paixão sexualizada , e desproporcionais à sua capacidade de assimilação e simbolização, como tem essa experiência afetiva desmentida e desautorizada pelos adultos, em especial pelo agressor. Quanto à problemática das cisões decorrentes dos traumatismos, para dar apenas um exemplo, mas bastante sugestivo, pensemos na idéia ferencziana da "autotomia" desenvolvida em Thalassa. A autotomia seria um processo já presente nas formas mais elementares de vida e mediante o qual uma parte lesada do organismo desprende-se do resto para permitir que o conjunto sobreviva. Ferenczi a apresenta como "modelo biológico do recalcamento", no entanto, faria mais sentido, acreditamos, colocá-la como forma prototípica e radical de dissociação. A autotomia é uma cisão com função defensiva clara. Mesmo que não ocorra o desligamento total, mesmo quando ocorre apenas a morte (necrose) ou amortecimento anestesiante de uma parte injuriada, já aí é nítida a operação de clivagem. Nessa medida, a preocupação ferencziana com os estados hipnóticos segue na mesma direção, e, sabemos, passando por Janet e por Breuer e Freud, que as cisões, o hipnotismo, o sonambulismo e as personalidades múltiplas pertencem a uma mesma família de fenômenos que muito marcaram as elaborações da psiquiatria do século XIX.(11)

Jean Laplanche recuperou uma parte dessa tradição freudo-ferencziana, no que diz respeito em particular, à dimensão do traumático e da passividade original. Sua teoria da sedução generalizada concebe a constituição do psiquismo humano a partir de uma profunda assimetria entre a capacidade de assimilação e simbolização do bebê e a carga de afetos e representações que os adultos inevitavelmente lhe trazem, junto com os cuidados necessários à sobrevivência do recém-nascido. Retoma, aprofunda e dá maior abrangência, dessa maneira, às questões ferenczianas da "confusão de línguas" entre a criança e o adulto e do desmentido. Não encontramos em Laplanche um desenvolvimento muito articulado e extenso da questão das cisões. Contudo, dada a re-entrada do traumático em cena, elas não podem ficar completamente de fora. As mensagens enigmáticas do mundo adulto introduzem no bebê corpos estranhos a serem traduzidos e recalcados. O que há de intraduzível nessas mensagens será, segundo Laplanche, recalcado e lançado ao inconsciente. No entanto, o estatuto dos objetos fonte de pulsão não parece ser da mesma natureza de um produto de recalcamento, eles agem com um dinamismo próprio e que caracteriza uma parte cindida e inassimilável do psiquismo, um alienígena que nos obriga a um eterno e fracassado trabalho de naturalização. Da mesma forma, a distinção proposta por Laplanche entre a implantação (de mensagens enigmáticas) e a intromissão sugere que os produtos dessa última devem ser concebidos pela via das cisões e não dos recalques. Assim, certas formações super-egóicas corresponderiam a partes cindidas do psiquismo extremamente refratárias a qualquer integração, o que ele denominou de "enclave psicótico" no seio de toda subjetividade, uma verdadeira fortaleza inimiga instalada no território da subjetividade. Esse núcleo superegóico seria constituído por elementos que nem chegam a ingressar no circuito tradutivo, ficando bloqueadas após um "recalcamento original" que mais parece uma forma primitiva de defesa, ou seja, algo da ordem da cisão.(12)

Em que pesem as contribuições de Laplanche para a retomada da questão do traumático e, por via de consequência, das dissociações, foi Fairbairn que, desde sua Tese de Doutorado de 29, dedicou-se, de um lado, a acentuar a questão do desamparo primordial, da passividade e da dependência do bebê (o que o torna particularmente vulnerável aos traumatismos inflingidos por objetos maus) e, de outro, a reatar os laços entre a psicanálise de Freud e as elaborações de Pierre Janet. Em sua obra posterior, principalmente nos grandes textos teóricos da década de 40, as relações entre dissociações e recalcamentos estiveram sempre no centro de suas preocupações acerca da construção das estruturas endopsíquicas permitindo a construção de uma metapsicologia bem distinta da legada por Freud. Atualmente, os fairbairnianos (p. ex. Celani e Seinfeld) e muitos autores que se inspiraram em Fairbairn (Kernberg e Jody Davies, por exemplo) deram prosseguimento a essa linha evolutiva do pensamento psicanalítico.

Nessa breve retrospectiva histórica, uma menção especial cabe a Winnicott e Masud Kahn. Sempre que se fala em cisão ou dissociação, passa subrepticiamente a idéia de que no início havia uma unidade. Para Winnicott e seus discípulo Khan, ao contrário, na "origem" há um estado de não-integração primordial ("unintegration") que pode, em condições favoráveis, ser vivido com muita satisfação pelo bebê e ao qual pode-se retornar em certas circunstâncias da vida, oferecendo-se nessa ocasiões ao indivíduo muitas possibilidades de criação e fruição.(13) Em condições desfavoráveis (ausência de holding e de confiança básica no ambiente) é que pode ser acionada a defesa da desintegração, uma ativa produção de caos. Essa defesa, contudo, significa que já haviam sido dados passos no rumo de uma certa integração das experiências. Nesse trajeto, porém, passa-se necessariamente pelos estados dissociados e, evidentemente, pelos riscos da desintegração regressiva, da despersonalização, etc. Certas dissociações, como por exemplo, a que gera um falso self como proteção de um self "verdadeiro" são indispensáveis, embora possam se tornar patológicas e nocivas. Não há, porém, como crescer e viver sem que partes do self estejam protegidas, até de comunicações "benignas", por esta parte dissociada do self, por essa crosta que funciona como um falso self. Antes dessa proteção ter sido adquirida, inclusive, caberá à mãe funcionar como escudo protetor (Khan) (14), próximo mas suficientemente dissociado do self do bebê para que possa protegê-lo de traumatizações excessivas e até de traumatizações que poderiam advir de uma atividade maternante abusiva. Uma mãe suficientemente boa deve ser capaz, entre outras coisas, de refrear seus excessos maternantes, o que supõe nela mesma algumas dissociações bem instaladas.

Finalmente, para concluir essa pequena história, gostaria de mencionar algumas obras e autores da psicanálise contemporânea que contribuem para o pensamento do traumático e dos processos e estados dissociados. Em primeiro lugar chamo a atenção para estudos como os de Jody Davies em que as dissociações e o traumático sexual (episódios reais de abuso) estão sendo pesquisados de forma intensa e sistemática. Nesses estudos emerge claramente a ligação entre as experiências traumáticas e os processos de dissociação agindo esses como uma proteção da vida mediante alguma modalidade de morte psíquica. Essa "morte como defesa da vida" (de alguma vida) - o que nos recorda a noção ferencziana de autotomia - corresponde ao amortecimento da percepção (algo que se aproxima dos estados hipnóides), ao amortecimento da memória, da afetividade e, em especial, à extinção da capacidade de fazer ligações entre partes incompatíveis da experiência pois, freqüentemente, os agentes do abuso são também os propiciadores de cuidados e proteção às crianças abusadas.(15) Quanto a isso seria interessante aproximar a morte traumática da capacidade de ligação entre partes da realidade com alguns dados neurológicos referentes ao fenômeno da "mão alheia" (alien hand) que ocorre quando é destruído o corpus callosum, a estrutura que conecta os dois hemisférios cerebrais. O indivíduo nessa condição sente que uma mão é sua e a outra não, sendo capaz de agir por "conta própria" e fora do seu controle consciente.(16) Conforme argumenta Goldberg, a passagem direta dos dados neurológicos para a clínica psicanalítica é imprudente, mas alguns autores (Levin e Basch) sugeriram que algo equivalente pode subjazer aos processos de recusa e repressão.

Vejo também muito interesse na teoria contextualista do trauma desenvolvida por Robert Stolorow e George Atwood(17) segundo a qual o traumático decorre da impossibilidade do contexto social acolher, legitimar e "autorizar" afetos muito intensos. A ênfase, porém, não é sobre a "quantidade" do afeto, mas sobre a ausência de sintonia do ambiente que, no início da vida, é responsável pela regulação e modulação (acolhimento, continência, simbolização) dos afetos. Não se trataria apenas, portanto, de ser muito afetado, mas de não encontrar uma resposta social capaz de conter e processar simbolicamente as intensidades afetivas. Cria-se então uma área da experiência carente de representação compartilhada. São esses afetos não suportados e por isso insuportáveis os que podem produzir efeitos traumatizantes, desintegradores e mortíferos. Formam-se dessa maneira os elementos dissociados (dejetos) que compõem o que eles denominam de "inconsciente invalidado". Os componentes desse inconsciente não chegaram a ser articulados no campo do sentido (algo como os elementos beta em Bion) e mantém-se dissociados da dinâmica psíquica normal ou neurótica organizada em termos de conflito. A teoria desses autores me parece, como a de Laplanche, uma maneira de retomar a teorização ferencziana sobre o impacto dos "desmentidos" na constituição dos traumatismos psíquicos. É também possível aproximar essa noção de "inconsciente invalidado" da noção de "enclave psicótico" proposta por Laplanche para se referir ao superego arcaico, embora os psicanalistas americanos tenham dado à idéia de "enclave" um alcance bem maior.

Em seguida e tomando um rumo diferente, a atenção pode ser dirigida a alguns autores que não colocam o foco apenas nas dissociações patológicas, embora não as desconheçam. Em primeiro lugar, Thomas Ogden e sua elaboração das três matrizes da experiência, caracterizadas como três posições subjetivas: a posição autista-contígua, a posição esquizo-paranóide e a posição depressiva. Não interessa nesse contexto descrever em detalhe cada uma destas posições e as modalidades de experiência que elas organizam. O importante é compreendermos que para Ogden a saúde psíquica não corresponde a um avanço da mais "primitiva" (a autista-contígua) para a mais "madura" (a depressiva), mas à possibilidade de transitar entre elas em todas as direções. Qualquer uma das modalidades de experiência geradas por estas matrizes é relevante mas insuficiente e impõe-se uma noção transitiva de saúde que mantém o indivíduo permanentemente descentrado e em um equilíbrio instável.(18)

A partir de uma base teórica um pouco diferente (mais próxima à relational psychoanalysis oriunda da tradição sullivaniana) P. Bromberg também aposta nas multiplicidades constitutivas da subjetividade. Tomando pé na posição de Winnicott sobre o estado primordial de não-integração, e nos usos defensivos tanto normais como patológicos das dissociações, para Bromberg a unidade egóica deve ser entendida como uma ilusão necessária. Nem a unidade do eu é algo substancial, nem a integração pura e simples é uma meta ortopédica a balizar os processos de subjetivação (em geral ou no contexto terapêutico), nem é, de outro lado, algo dispensável e inócuo a ser puramente desconstruído. O que seria decisivo é a consideração simultânea dos processos e estados de dissociação e multiplicidade egóica e das possibilidades de construir a partir desse terreno um campo relativamente unificado de experiências. A saúde psíquica será assim compreendida como standing in the spaces between eixos e núcleos relativamente independentes de experiência de si e do mundo.(19) A essa noção retornaremos adiante.

4- A dissociação terapêutica:

Para nos aproximarmos um pouco mais do que está em jogo nessas maneiras de compreender a vida psíquica, gostaria agora de retornar a um texto já mencionado de Masud Khan "Ouvir com os olhos". O subtítulo desse artigo já nos remete a uma questão interessante: "Notas clínicas sobre o corpo como sujeito e objeto." Khan relata o trabalho com uma paciente que lhe trazia, por assim dizer, dois corpos: um corpo feminino, frígido, que se oferecia como objeto ao desejo de homens e um corpo masculino, que se dispunha a exercer um certo tipo de controle erótico mais próprio de homens que de mulheres. Ou seja, não se trata apenas da dissociação corpo-mente, mas de uma dissociação que atravessa a corporalidade. Na verdade, essa dicotomia entre "corpo objeto" e "corpo sujeito" ainda é uma simplificação; a complexidade pode ser muito maior e nos exigir uma consideração de múltiplos selves corpóreos, bem como de múltiplos selves "espirituais".(20) No entanto, o mais interessante nesse texto de Khan é o modo dele estabelecer contato com as partes cindidas da paciente. Ao invés de fixar-se na escuta, ele deixou-se embalar pelo que ouvia para se entregar ao que lhe chegava através dos olhos. Abandonou-se a devaneios alimentados pela visão de um corpo marcado pela incongruência: era ao mesmo tempo o corpo de uma bela e atraente mulher (que na verdade não o atraía em nada, o que foi o início de seu questionamento) e o de um rapaz. Não se tratava em absoluto de um caso de virilização da figura feminina. Mais feminina, impossível, e no entanto...

Não iremos acompanhar o desenvolvimento do trabalho analítico com essa paciente. O que importa nesse momento é recolher a idéia de que ao tratar um caso de dissociação patológica o analista deve ser capaz de deixar-se afetar pelas partes cindidas e dissociadas do paciente de um modo muito intenso e isso significa em muitas circunstâncias abandonar-se ao fascínio quase hipnótico (ora excitante, ora sonífero mas sempre da ordem do amortecimento e invalidação de certas capacidades afetivas ou cognitivas) que algumas partes dissociadas exercem. Ou seja, o analista deve ser capaz de experimentar também um estado de dissociação no qual abre canais simultâneos e paralelos de comunicação verbal e não verbal.

5- Cisões patológicas e seu tratamento.

O relato de Khan, já relativamente antigo (da década de 70), abriu um vasto campo de pesquisa clínica e teórica sobre as questões do tratamento analítico de patologias em que dominam as cisões patológicas. O primeiro aspecto a destacar diz respeito, justamente às ligações entre as defesas de cisão e recusa (desautorização) (21) e o hipnotismo. Isso não significa necessariamente um convite ao retorno às técnicas de hipnose no tratamento (embora alguns autores sigam esse caminho), mas o reconhecimento de que as partes dissociadas exercem umas sobre as outras efeitos hipnóticos. A dominância de uma produz um certo adormecimento de outras que ficam como que hibernando, protegidas e isoladas. Na verdade, esse efeito é o próprio modo do domínio ser exercido e sustentado. Ao mesmo tempo, a parte dominante exerce fascínio e domínio no plano intersubjetivo, embotando certas capacidades afetivas e cognitivas do terapeuta. De uma certa forma, é preciso entregar-se a esses controles e deixar-se em estado de uma relativa cegueira ou surdez para, em seguida, poder sair deles com um contato mais efetivo com o paciente reconhecendo-o nas e pelas partes dissociadas e excluídas da comunicação explícita.(22)

Um outro aspecto, interligado ao que acabamos de ver mas exigindo uma consideração especial, diz respeito à forma das partes dissociadas estarem presentes na relação analítica. Trata-se do que muitos autores (principalmente americanos) chamam de enactement: a presenciação encenada das partes dissociadas. No caso relatado por Khan, um corpo era falado e explicitamente mostrado a ele, o outro corpo era encenado. A atenção flutuante em casos assim não pode se restringir às irrelevâncias (falhas no plano do sentido) mediante as quais o conteúdo do inconsciente recalcado irrompe na superfície psíquica. Aqui o decisivo é deixar-se tocar pelas incongruências, pelas incompatibilidades entre mensagens que circulam simultaneamente nos registros do que se diz, do que se mostra e do que se encena. Nessa medida, os enactements são dimensões da transferência que vão além do retorno do recalcado (bem como os "sintomas" em casos assim igualmente exigem uma outra interpretação). É também de interesse levar em conta as relações entre as encenações de partes dissociadas e os processos de identificação projetiva. Nos dois casos, alguma comunicação pré, para ou meta verbal é efetuada diretamente pelos e entre os corpos, ou "entre os inconscientes", como disse Freud algumas vezes e como insistem os kleinianos. Os enactements, contudo, não são meras evacuações de conteúdos tóxicos, mas convites - quase intimações - a que os parceiros (como é o caso do analista) possam reconhecer e responder a partes dissociadas que carecem de contextos adequados para existir no plano do sentido compartilhado. Um interpretação em situações assim tem a finalidade fundamental de reconhecimento (espelhamento) da parte cindida e de sua experiência até então invalidada e que só existe como encenação (o que pode incluir, por exemplo, afeções psicossomáticas).

Os enactements podem ocorrer através de diferentes modalidades mas, no fundamental, eles mobilizam o corpo e seus produtos mais diretos, como, por exemplo, o registro vocal, a dicção, os gestos, expressões e movimentos corporais, arranjos espaço-temporais, adoecimentos e achaques hipocondríacos, etc. Em todos esses casos, eles não são apenas o efeito automático da ação das partes dissociadas, mas expressam tentativas de "passagem", tentativas de trânsito entre a condição reificada a que estão reduzidas e uma incorporação à experiência do sujeito em seu contexto social. É nessa medida que eles não transmitem nenhum sentido a ser interpretado, mas solicitam sentido, impõem ao analista uma atividade de "fazer sentido". Atividade, contudo, que precisa ser exercida na forma de uma libertação dos efeitos hipnóticos e controladores a que o analista está submetido pela parte dissociada dominante.

6- A constituição do sentido na clínica contemporânea: standing in the spaces.

Após esse longo excurso pelo campo do traumático e das cisões normais e patológicas, é tempo de voltar ao tema desse simpósio, focalizando agora a sua segunda (e cindida) metade: a questão do sentido hoje.

Se as dissociações marcam o projeto moderno desde seu início cartesiano, uma certa necessidade de enfrentar e até mesmo superar as dicotomias esteve desde sempre em pauta.(23)

O ideal romântico, por exemplo, tal como elaborado na filosofia, nas artes e na sociologia do século XIX acalentou o sonho nostálgico da restauração da coincidência e da harmonia entre as partes dissociadas como se antes elas tivessem formado uma unidade. Ainda que o melhor do romantismo tenha sempre sabido dos limites desse desejo de Unidade (e daí a ironia romântica como estilo que expressa o saber dos limites do projeto de restauração) (24), boa parte dos derivados mais vulgares do romantismo insistiam na busca de um absoluto de coincidências e harmonias entre, por exemplo, corpo e mente, sujeito e objeto, indivíduo e sociedade etc. Em todas essas sínteses, cabia aos afetos a função mediadora e integradora. Eles deixavam de ser o escândalo da modernidade para se converterem em fetiche, com a promessa de preencherem todas as faltas, soldarem todos os elementos avulsos e realizarem a sonhada completude. As psicologias ditas humanistas e mesmo certas derivações da psicanálise embarcaram nessa canoa furada, com a esperança, decerto, que os afetos tapariam os furos...

Já o ideal iluminista, do século XVIII até nossos dias, aposta na unidade como soberania de uma parte dissociada sobre as demais. Em geral, cabia à mente a função soberana; hoje, a linguagem pode pretender ocupar esse lugar. No entanto, até o corpo poderia, com uma certa dificuldade, pretender exercer o mando e a função integradora. Novamente aqui, convém recordar como esse ideal de controle soberano das dissociações esteve presente entre nós da área psi e mesmo no campo específico da psicanálise. As palavras de ordem do tipo "tornar o inconsciente consciente" ou "fazer do Isso Eu" traduzem a permanência de concepções tributárias do ideal iluminista.

Finalmente, cabe reconhecer a constante operação do ideal disciplinar da integração funcional de partes dissociadas mas que deveriam ser mantidas em estado de complementaridade. A psicanálise - tão marcada pela noção de "conflito" - nunca esteve muito disposta a receber essa herança disciplinadora que, de outro lado, tornou-se dominante nas propostas behavioristas e na engenharia social.

Gostaria de chamar a atenção para o fato de que em cada uma dessas três vertentes da cultura moderna e contemporânea está presente um modo específico de lidar com as dissociações modernas, e um modo próprio de fazer sentido, de responder à questão do sentido a partir das experiências traumáticas que a modernidade propicia, recordando novamente que o trauma psíquico surge exatamente do encontro com um além do sentido que é, paradoxalmente, ao menos em parte fruto dos esforços de fazer sentido. Para os romantismos o sentido dá-se no plano metafísico e absoluto da Unidade, da coincidência, da harmonia e "fazer sentido" é restaurar os vínculos das partes com o Todo. Para os iluminismos, o sentido é dado e garantido pelo exercício de alguma soberania, em particular pela soberania da espírito (se possível transcendente) e da linguagem (se possível matemática). "Fazer sentido" seria reduzir o mundo ao mental e ao lingüístico. Quando, porém, tenta-se inverter as hierarquias e coloca-se um sentido inscrito no corpo, dando a esse, uma primazia de origem, ainda não se saiu em absoluto do mesmo campo cultural, apenas criaram-se novos problemas conceituais, talvez insolúveis. Fala-se, por exemplo, em "memória corporal", "sentido inscrito no corpo" e outras complicações semânticas para as quais é difícil dar algum... sentido.(25) Quanto às disciplinas, o sentido se identificaria com a funcionalidade e a complementaridade das partes, todas submetidas a um projeto pragmático indiscutível. "Fazer sentido" seria estabelecer relações funcionais e complementares entre as partes.

Mas como poderemos responder à questão do sentido hoje tomando como base a clínica e a teoria psicanalítica, em particular a da psicanálise voltada para a dimensão do traumático e para os processos de cisão?

Comecemos com uma afirmação básica e de caráter preliminar: o sentido não reside em parte alguma, nem no espírito, nem na linguagem, nem no corpo, nem nos afetos. É preciso, portanto, superar o platonismo (e o platonismo invertido) de acreditar que algo como "sentido" exista formado e definitivo aonde quer que seja. Pensemos o "fazer sentido" apenas como consistindo nas atividades de discriminar e articular que são próprias a todos os seres vivos. Sentido é o que se faz quando se discrimina e se articula e só nessas atividades ele "existe". Quando essas operações são exercidas pelos homens (em geral falantes, mas mesmo quando não recorrem à linguagem) e se tornam muito complexas, falamos em "fazer sentido" de uma maneira mais clara e aceitável. Contudo, é interessante não se esquecer da continuidade entre o nosso "fazer sentido" e as atividades equivalentes em níveis menos complexos de vida para evitar ao máximo a tendência espiritualizante tão própria de nossa civilização.

A partir desse pressuposto, mas agora retornando à clínica psicanalítica, propomos a idéia do fazer sentido como "dar passagem". Nos termos desse Simpósio, caberia a palavra de ordem: que os afetos passem às linguagens, que as linguagens passem aos corpos, que os corpos passem aos afetos, que cada um dê passagem aos demais, e assim por diante. A clínica seria vista como a propiciação de uma saúde transitiva (Ogden) e do standing in the spaces between (P. M. Bromberg).

Tomemos como apoio a seguinte concepção encontrada no último livro desse autor:

  • "Health is the ability to stand in the spaces between realities without losing any of them - the capacity to feel like one self while being many. "Standing in the spaces" is a shorthand way of describing a person's relative capacity to make room at any given moment for subjective reality that is not readily containable by the self he experiences as "me" at that moment". (Bromberg, p. 274)
  • A proposta de capacitar o paciente para a realização de um trabalho perlaborativo que consiste na tarefa de conter os incontíveis, dar espaço e passagem ao que não é prontamente assimilável, recorda-nos a idéia de Lévinas segundo a qual a subjetividade se constrói abrigando uma alteridade cujo encontro é sempre traumatizante. No caso descrito por Bromberg, trata-se das alteridades já instaladas como enclaves dissociados no aparelho psíquico. Alteridades que se encravaram no psiquismo como respostas a experiências traumáticas, como respostas a situações de ambivalência, incompatibilidade, desconcerto, falta de acolhimento e legitimação, de violência física ou moral etc. É importante enfatizar que não se pretende extinguir todas as dissociações, seja pelas vias românticas, seja pelas iluministas ou disciplinares. Muito menos recuperar ou produzir uma unidade substancial, embora a constituição e manutenção de uma unidade egóica fictícia seja necessária até mesmo para o trânsito.

    A incapacidade de stand in the spaces between, essa sim, revela o predomínio de formas nocivas de dissociação contra as quais uma ênfase patológica na unidade egóica é exigida. Ocorre então a fixação do sentido da experiência em significados idênticos e permanentes. Ou seja, a hegemonia incontrastada de uma "identidade", de uma persona, é o lado de uma moeda cujo outro lado é a dissociação patológica. Diante dessas dissociações, a tarefa de standing in the spaces é a que mais convém, ao contrário do que seria um empenho em obter uma forma de integração egóica nas linhas do romantismo, do iluminismo ou das disciplinas.

    Quanto mais aspectos da experiência – em particular das experiências afetivas mais intensas – são invalidados por não encontrarem um contexto social de legitimação (por não encontrarem território existencial), mais cresce e pesa a força do inconsciente invalidado (Stolorow e Atwood) e de seus objetos carentes de articulação; mais esses elementos reificados deverão existir apenas na forma de enactements contra os quais (no controle ou desmentido dos quais) as couraças identitárias precisam se fortalecer. Quanto mais normatizado um indivíduo, mais podemos supor existindo nele um potencial disruptivo intenso e fora de controle: são os dejetos explosivos de elementos que não puderam se converter em experiências, que não puderam ser articulados no campo do sentido compartilhado. Foram, sem dúvida, submetidos à operação discriminante – foram segregados e excluídos. Não foram, contudo, resgatados pela operação de articulacão, ou seja, não se integraram minimamente à subjetividade para poderem daí ser usados criativamente e também, se for o caso, ser recalcados. Eles têm uma espécie de vida paralela nas região do não-ser. Por isso podem emergir de forma abrupta, totalmente inesperada e absurda, como Mr. Hyde emergia do Dr. Jekyll.

    Stolorow e Atwood diferenciam três reinos ou domínios (realms) do inconsciente: um inconsciente "pré-reflexivo", um "dinâmico" e um "invalidado". Deixando de parte o primeiro, atentemos para os outros dois. O "invalidado", como já se disse, abriga o material desautorizado, discriminado e não articulado e se associa, portanto, diretamente à noção do sem-sentido e do traumático. O "dinâmico" conteria o material que, após uma discriminação e articulação no campo do sentido compartilhado, é recalcado por oferecer uma ameaça à manutenção de laços entre o indivíduo e outros significativos. Ora, a ênfase no mundo pulsional e nos recalcamentos, a que nos referimos anteriormente, levou a psicanálise a se preocupar principalmente com este inconsciente dinâmico e com os retornos do recalcado, inclusive com aqueles que definem os sintomas sociais. No entanto, para tratarmos da questão do sentido hoje, esta é pelo menos a tese que estou defendendo, seria necessário focalizar muito mais o inconsciente invalidado, as experiências traumáticas, as defesas primitivas como a cisão e a "desautorização", os estados dissociados, as somatizações e os enactements.

    Podemos agora retornar a Bauman e a seu prognóstico para o contemporâneo.

    7. Retornando a Bauman.

    Zigmunt Bauman, em uma consonância extraordinária com a ética da clínica psicanalítica que estou expondo e sustentando, aposta na aceitação da ambivalência, da contingência e em formas benignas de dissociação e não coincidência como destino para nossa época. A luta sistemática, metódica, mas também desesperada, contra a ambivalência, produtora de novas e cada vez mais intratáveis contingências e ambigüidades, precisa dar lugar a uma existência mais resignada àquilo que pode ser chamado de "dialética sem síntese" (Merleau-Ponty), a que estamos de fato submetidos. Mas a resignação não é tudo nem é o mais importante. O decisivo é que possamos nos abrir para e habitar com humor um espaço de jogo em que o sentido se faz como suplemento de origem (Derrida), na posterioridade do sem-sentido e do contingente. Manter-se standing in the spaces between é renunciar aos significados definitivos, às identidades inequívocas, à alergia diante das alteridades próprias e alheias. Em compensação, é também aliviar-se da carga acumulada de dejetos encravados, de afetos desautorizados e dissociados, quistos protegidos e concentrados, mas sujeitos a rupturas, cujos conteúdos tóxicos estão, portanto, sempre prontos a vazar nas formas incontroláveis e tremendamente destrutivas de enactements; é poder enfrentar as velhas fontes de mal estar - a ambivalência, a irresolução, a incerteza - com um pouco mais de tolerância e "jogo de cintura". Metas que não se alcançam individualmente. Para além da clínica psicanalítica e sua ética, descortina-se uma nova militância cultural dedicada a criar territórios existenciais mais ricos, mais diversificados e menos desautorizadores, mais aptos ao acolhimento dos corpos, dos afetos e das linguagens em toda a sua multiplicidade indisciplinada.

    Uma ética para o contemporâneo e uma ética para a clínica psicanalítica hoje são uma só e a mesma coisa. Ao menos aqui, demos um pequeno passo para além da dissociação que a modernidade nos legou.

    NOTAS

    Psicanalista, professor da USP e da PUC-SP; autor de Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi (1999) e, com Nelson Coelho Jr, Ética e técnica na psicanálise (2000), ambos da Editora Escuta, entre outros livros. Email lclaudio@netpoint.com.br; end. Rua Alcides Pertica 65, cep 05413-000, São Paulo, SP; tel 3086 4016.

    O simpósio foi organizado por Benilton Bezerra e Carlos Alberto Plastino do Instituto de Medicina Social da UERJ e realizou-se no Instituto Phillipe Pinel em dezembro de 1999.

    Bauman, Z. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, trad. Marcus Penchel.

    Latour. B. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34 Letras, trad. Carlos Irineu da Costa.

    Teixeira, L. Ensaio sobre a moral de Descartes. São Paulo: Brasiliense, 1990.

    O que está em jogo aqui diz respeito ao "masculino" - com o qual o sujeito moderno adulto sempre procurou se equiparar - e ao "feminino" - que seria a condição passiva do apaixonado, seja ele de que sexo for, ou da criança. O recalcamento das paixões, do feminino e do infantil vem, assim, na esteira da luta contra a ambivalência, luta na qual a Modernidade se instituiu como época na história do ser (Heidegger).

    Davies, J. M. Em N Skolnick e D E. Scharff (orgs) Fairbairn then anda now. The Analytic Pres, 1998.

    Khan, M. M. em Psicanálise: teoria, técnica e casos clínicos. Francisco Alves, 1984, trad. de Gloria Vaz.

    Laplanche, J. La Révolution copernicienne inachevée, 1992.

    Uma excelente análise do recalcamento da identificação feminina primária e de seus efeitos na construção da teoria psicanalítica foi realizada por Paulo de Carvalho Ribeiro em sua Tese de Doutorado com Jean Laplanche e que deve ser publicada proximamente com o título O problema da identificação em Freud. Recalcamento da identificação feminina primária (1999).

    Sobre esse tema, ver a Tese de Doutorado em Psicologia Clínica escrita por Sidnei Cazeto e intitulada "A constituição do inconsciente em práticas clínicas na França do século XIX" (PUC-SP, 2000).

    A partir dessa sugestão laplancheana, Marta Rezende Cardoso desenvolveu com grande engenhosidade uma nova teoria do superego em sua Tese de Doutorado Surmoi et "Théorie de la séduction généralisée" (Université Paris II, 1995) em que o caráter do superego como corpo estranho não-metabolizável e ocupando um lugar "exterior" na interioridade do aparelho psíquico fica muito bem explicitado. Uma distinção clara entre dissociação e recalcamento, o que Marta Cardoso não faz, teria talvez dado mais precisão ao seu argumento.

    Winnicott, W. "Primitive emotional development" (1945); "Aggression in relation to emotional environment" (1950); "Ego distortions in terms of true and false self" (1960); "Ego integration in child development" (1962); "Communicating and not communicating leading to a study of certain opposites" (1963).

    Kahn, M. M. "O conceito de trauma cumulativo". Psicanálise: teoria, técnica e casos clínicos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984, trad. Glória Vaz. A noção de "mãe como escudo protetor" é introduzida por Khan como continuidade das elaborações freudianas sobre a crosta de proteção da vesícula viva apresentadas em Além do princípio de prazer, ou seja, ele trata de realçar os vínculos entre a psicanálise winnicottiana e a teoria freudiana do trauma tal como ressurgira na segunda teoria das pulsões.

    cf. Jody Davies e Gail Frawley "Dissociative processes and transferences-countertransference paradigms in the psychoanalytally oriented treatment of survivors of childhood sexual abuse". Psychoanalytic Dialogues, 1991, 2 (1), 5-36. Além desse, J. Davies já publicou uma extensa série de artigos sobre temas correlatos.

    Cf. Goldberg. A. Being of two minds. The vertical split in psychoanalysis and psychotherapy. Hillsdale, NJ: The Analytic Press, 1999.

    Cf. Contexts of being. The intersubjective foundations of psychological life. Hillsdale,NJ: The Analytic Press.

    Ogden. Th. Os sujeitos da psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997, trad. Claudia Berliner.

    Bromberg, P.M. Standing in the spaces. Essays on clinical process, trauma & dissociation. Hillsdale, NJ.: The Analytic Press, 1998.

    Retoma-se dessa maneira uma intuição preciosa de Michel de Montaigne sobre a falta de unidade da pessoa, de seu corpo e de sua mente; foi contra essa intuição que as dissociações da modernidade cartesiana vieram se impor como forma de, pela via paradoxal das cisões, garantir uma certa integridade subjetiva; ver a respeito a Tese de Doutorado de Pedro Luiz Ribeiro de Santi, intitulada "A crítica ao Eu na modernidade - Montaigne e Freud" (PUC-SP, 2000).

    Creio que traduzir disavowal por "desautorização" acentua um aspecto importante do fenômeno que está sendo examinado: trata-se de um "acontecimento" sem autoria, de uma "experiência" sem sujeito. Trata-se, fundamentalmente, de negar a autorização para que algo se converta em experiência de alguém e para que alguém se converta em sujeito (autor) de uma experiência.

    É de Neville Symington o texto clássico sobre o efeito terapêutico do ato de libertação do analista aprisionado nas malhas da transferência e da contratransferência ("O ato de liberação do analista como agente de mudança terapêutica" Em G. Kohon (org) A Escola britânica de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, trad. José Octavio de Aguiar Abreu); aqui, contudo, o que se enfatiza é a necessidade do analista deixar-se capturar hipnoticamente para que uma parte sua dissociada (semi-adormecida) possa estabelecer uma via de comunicação paralela com partes dissociadas do paciente; só então, a libertação do controle hipnótico permitirá o trânsito entre as partes dissociadas; no fundamental, há uma grande concordância entre as propostas clínicas de Symington e as expostas no presente trabalho.

    No que segue retomo minhas elaborações desenvolvidas orginalmente no livro A invenção do psicológico. Quatro séculos de subjetivação (1500-1900). São Paulo: Ed. Escuta, 4ª edição, 1999.

    Ver a respeito a Tese de Doutorado de Inês Loureiro intitulada "Freud e o romantismo". (PUC-SP, 2000)

    O que não contraria a idéia de que haja inscrições corporais (aonde mais poderiam estar as marcas senão no corpo?) a partir das quais uma atividade de fazer sentido é solicitada.

    Luiz Claudio Figueiredo
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