A ANÁLISE COM CRIANÇAS AUTISTAS :
UMA INOVAÇÃO DO MÉTODO PSICANALÍTICO CLÁSSICO

Maria Izabel Tafuri

Este texto discute a aplicabilidade da técnica psicanalítica no tratamento de crianças autistas a partir de um caso clínico pessoal. Começa com a discussão crítica da história da psicanálise de crianças, em seguida a apresentação do caso clínico e posteriormente a análise da técnica. São realizadas reflexões sobre as questões específicas da clínica com crianças autistas considerando as diferentes influências históricas na formação das escolas de psicanálise.

A aplicabilidade da técnica psicanalítica no tratamento de crianças foi vislumbrada, pela primeira vez, por Freud, no início deste século. Ao publicar, em 1909, a análise de uma criança de cinco anos, Freud demonstrou como os sintomas fóbicos do "Pequeno Hans" poderiam ser compreendidos, interpretados e sanados, por meio da utilização do método psicanalítico. Hans tinha apenas 3 anos quando começou a apresentar uma fobia: o pavor de ser mordido por cavalos. Hans não mais saía às ruas para passear e os pensamentos relacionados aos cavalos o atormentavam sobremaneira, a ponto de imaginar que eles poderiam mordê-lo, até mesmo dentro de casa.

O pai de Hans era um estudioso da psicanálise e procurou Freud para poder compreender a fobia do filho. Freud aceitou o desafio e começou a analisar o caso, porém, de forma bastante curiosa e distinta do método psicanalítico clássico. Freud não recebia o seu pequeno paciente em sessões individuais, não o ouvia e não o observava. A relação com o "Pequeno Hans" foi estabelecida através do pai, que sob a orientação de Freud, anotava os sonhos, os desenhos e as associações livres do jovem garoto. O pai de Hans enviava estas anotações a Freud, que a partir delas interpretava a linguagem dos sonhos, desenhos e fantasias. Dessa forma, Freud estabeleceu uma relação analítica peculiar e inovadora com o seu pequeno paciente: Hans ouvia Freud indiretamente, ou seja, por intermédio do seu pai. Assim, Hans identificava Freud como aquele quem entendia todas as suas "bobagens" ( era assim que Hans se expressava em relação ao medo de ser mordido por cavalos).

Hans pediu ao pai para ir ao encontro de Freud que o recebeu uma única vez, juntamente com seu pai. Nesta sessão, Freud pôde interpretar a angustia central de Hans ao vê-lo brincando de "cavalinho" com o pai (Hans pediu ao pai para ficar de quatro no chão e, sentado em cima dele, começou a batê-lo com os pés). Freud concluiu que a angústia de castração ( o pavor de ser castrado pelo pai) estava relacionada com a fobia a cavalos.

Segundo Freud, o tratamento psicanalítico de Hans fora bem sucedido por uma única razão: a convergência entre o pai da criança e o analista em uma só pessoa. Criou-se, assim, um precedente curioso na história da psicanálise de crianças. Este fato encorajou muitos analistas a analisarem seus próprios filhos e, a aplicabilidade da técnica psicanalítica em crianças ficou marcada, desde as suas origens, por este precedente freudiano: a união "pai-analista".

Duas questões se fazem presentes a partir do tratamento psicanalítico de Hans.

A primeira refere-se à natureza da relação de Freud com o pai do garoto. Freud respondeu ao interesse do pai de Hans ensinando-o a compreender a linguagem do inconsciente presente nos sonhos, desenhos e associações livres de Hans. Nesse sentido tratou-se de uma relação pedagógica onde Freud não fez interpretações na relação transferencial entre o pai de Hans e ele.

A segunda questão diz respeito à eficácia do método psicanalítico na ausência da interpretação da relação transferencial entre Freud e Hans. Em suma, a interpretação da relação transferencial entre o analista, a criança, e seus pais não foi cogitada por Freud no caso do pequeno Hans. Esta questão será considerada posteriormente como essencial para se definir a legitimidade de uma escola psicanalítica.

O ensino oficial psicanalítico situa a origem da análise infantil aos critérios estabelecidos por Melanie Klein e Anna Freud, enquanto duas opções opostas de se analisar crianças: o analítico e o pedagógico. Apesar do caso do pequeno Hans ser considerado um ilustre precedente, este fato não serviu para minimizar a polarização dos dois modelos de análise de criança. Ou seja, Melanie Klein e Anna Freud não discutiram a natureza da relação estabelecida entre Freud, Hans e o pai do garoto. Melanie Klein priorizou a interpretação na relação transferencial com a criança e desprezou a relação entre o analista e os pais da criança. Nesse sentido, a autora rompeu com o precedente freudiano, ao considerar que a união pai-analista era desnecessária para o trabalho psicanalítico com as crianças. Anna Freud, por sua vez, considerou a necessidade de um período prévio, não analítico, na relação entre o analista e a criança. Neste período inicial, o analista tomaria uma posição pedagógica, de domínio e de sugestão, para depois empreender o verdadeiro trabalho analítico. Segundo ela, o analista de crianças deveria acrescentar à sua atitude analítica uma segunda, a pedagógica. Em relação aos pais, Anna Freud relatou a necessidade de orientá-los e estabelecer uma relação transferencial positiva.

Em síntese, duas grandes escolas de psicanálise foram constiutídas, a partir das discussões sobre a aplicabilidade da técnica psicanalítica com crianças- a Kleiniana e a annafreudiana- sob a marca do analítico e do pedagógico. Este último, visto como algo denegridor para a análise. Os kleinianos foram, à época, reconhecidos como os "verdadeiros psicanalistas" e os annafreudianos como os "não analíticos". Criou-se, a partir da década de 20, um discurso acusatório e antagônico do que seria ou não a "verdadeira psicanálise".

Na década de 60 surgiu na França, com Françoise Dolto, Maud Mannoni, Rosine e Robert Lefort, um novo modelo de análise de crianças, trazendo o pretenso ideal de ocupar o lugar da escola Kleiniana- "os analistas puros". A demanda da legitimidade insistiu em retornar. Mais uma escola de psicanálise de crianças foi criada em defesa do caráter analítico de sua prática. O analista, segundo Dolto, deveria se abster de qualquer ação pedagógica, mesmo aquela baseada nos princípios psicanalíticos. Ou seja, o discurso psicanalítico continuou a responder ao antagonismo criado por Melanie Klein e Anna Freud, que se refere à continuidade ou à ruptura com o pensamento freudiano.

Atualmente a análise com crianças autistas absorveu este questionamento, ou seja, seria esta análise "pura e verdadeira", como os kleinianos e os lacanianos preconizaram? Alguns analistas vêem utilizando terminologias como "psicoterapia de base analítica" ou "psicoterapia psicanalítica" para se referir ao tratamento das crianças autistas. Ao que parece, estas denominações, "psicoterapia de base analítica" ou "psicoterapia psicanalítica", seriam uma forma de responder aos três modelos de psicanálise de crianças: ao de Anna Freud, por se um tratamento que envolvem ações pedagógicas; e aos de Melanie Klein e Françoise Dolto, por ser um tratamento que envolve também a técnica psicanalítica clássica, a interpretação na relação transferencial.

Neste texto, são realizadas discussões a propósito da aplicabilidade do modelo psicanalítico com crianças autistas são realizadas, a partir de uma experiência pessoal: a análise de uma criança autista. Por meio deste caso clínico, identifico a natureza da relação transferencial que se estabelece entre a criança autista e o analista, a partir das interpretações. Faço algumas reflexões acerca da influência da história da psicanálise de crianças na clínica com crianças autistas e critico a perpetuação do modelo antagônico presente no pensar psicanalítico em relação a este tema.

UMA EXPERIÊNCIA PESSOAL : A ANÁLISE DE UMA CRIANÇA AUTISTA

O caso a ser relatado é de uma criança de três anos que me foi encaminhada com o diagnóstico de Autismo Infantil Precoce. (1)

Quando os pais chegaram com Maria para a primeira consulta, ela entrou correndo na ponta dos pés, sem olhar para nada. A mãe a segurou e disse para mim: "ela não fica parada tem muita energia". Os pais se sentaram e Maria ficou correndo pela sala sem explorar os objetos e sem nos dirigir o olhar.

Pedi aos pais para falarem de suas preocupações em relação à fiilha. A mãe se adiantou e disse que o mais preocupante era o fato de Maria não falar, pois o resto, segundo ela, "eram coisas de criança mesmo".

Enquanto a mãe falava, Maria emitia grunhidos e girava as mãos em frente ao seu rosto, com muita velocidade e leveza. Ela parecia hipinotizada com o movimento das mãos. As pontas dos pés tocavam o chão, com tal leveza e agilidade, que davam a impressão de não carregarem o peso do corpo. (2)

A mãe se referiu aos seus passeios com Maria, ocasião em que segurava a filha pelas mãos com o intuito de fazer as pessoas não repararem o movimento das mãos: "você pode ver que ela só parece que é autista quando fica fazendo isso com as mãos ou quando começa a gritar e bater a cabeça, mas se fica quieta, ninguém repara porque ela não tem nenhuma marca que diga que ela é doente". Neste momento, seus olhos se encheram de lágrimas e ela disse: "todas as noites quando vejo ela dormindo fico pensando que no outro dia ela vai acordar me chamando de mãe. Dormindo, ela parece com uma criança normal". O pai continuava imóvel e calado.

Eu me sentei no chão, comecei a pegar alguns brinquedos indiscriminadamente e fiquei tentando reproduzir os grunhidos de Maria, pois, não podia interpretá-la, como faço com as crianças que falam e brincam desde a primeira sessão. Eu não tinha a possibilidade de reconhecer os sentimentos de Maria, pois a relação entre nós era marcada por um isolamento avassalador, onde não havia nenhum indício de comunicação. Ela não demonstrava nenhuma angústia ao entrar no consultório e parecia não me ver. Os seus olhos passavam pelos objetos sem explorá-los. Neste momento, parecia envolvida com o movimento circular das rodas, se sentava no chão e balançava o seu corpo em torno de si mesma.

Maria esvaziava todas as gavetas e prateleiras e os brinquedos escorregavam pelos seus dedos. Ela andava sobre os brinquedos, que iam caindo no chão, como se nada atrapalhasse o seu equilíbrio. Os pais estavam aflitos com a bagunça da sala e se anteciparam para por tudo no lugar.

Disse a eles para não se incomodarem e me dissessem o que estavam sentindo naquele momento. O pai, bastante acanhado, disse que tentava educar Maria, mas não conseguia, ela era incapaz de pegar as coisas do chão e colocar nos lugares adequados. "Eu me sinto mal com a casa toda bagunçada", completou. A mãe falou que tentava ensiná-la a brincar, mas ela não ficava parada e nem prestava atenção.

Disse a eles que se sentiam decepcionados por não conseguirem ensinar Maria a brincar, a falar e a organizar os objetos. "Vocês estão também ressentidos de não entenderem as reações de Maria e de não poderem ter com ela um relacionamento comum, previsível. Vocês conversam entre si sobre estes ressentimentos? Perguntei.

Eles disseram que não falavam muito de si mesmos, do que sentiam, só falavam da filha para tentarem entendê-la. Perguntei a eles o que eles mais temiam. A mãe disse que apesar de terem o diagnóstico de autismo não queriam concordar com o médico que era muito grave e incurável. Isto porque ela sabia que Maria se parecia muitas vezes com uma criança normal, contudo em outros momentos era bastante estranha. O pai se referiu ao medo de que Maria nunca falasse e não aprendesse a cuidar de si mesma, mas que também tinha esperanças de que a filha não fosse tão doente assim como o médico havia dito.

Os pais fizeram mais algumas perguntas e começamos assim o tratamento de Maria. O trabalho analítico com os pais foi realizado segundo os princípios do modelo analítico estabelecido por Fraçoise Dolto o qual foi determinante para o tratamento de Maria. Contudo, este tema não será analisado neste trabalho por se tratar de uma outra questão.

OS PRIMEIROS SONS : SÍGNOS APRESENTATIVOS

Os sons emitidos por Maria eram muito fortes, estridentes, atonais e arítmicos. Não se podia dizer que eram gritos de raiva ou expressão de alguma necessidade. Os sons não surgiam associados a qualquer gesto ou mímica facial, eram totalmente anárquicos e desprovidos de significado emocional. Contudo, eram sons que brotavam de sua boca, com uma sonoridade específica, eram metalizados, como que congelados-uma ausência total da sonoridade da voz humana. Neste sentido, longe de considerar os sons como meras estereotipias, como prescreve a psiquiatria clássica, comecei a pensar na qualidade daqueles sons, e percebi que eram de alguma forma criados por Maria. Eram individualizados e não se pareciam com sons humanos nem com sons advindos da natureza ou dos eletrodomésticos, por exemplo. Eram sons realmente novos, eram dela. Pensei naqueles sons como uma criação. Por outro lado, poderia ser também uma maneira que aquela criança encontrou de não emitir sons parecidos com os dos humanos, ou seja, um mecanismo de defesa. Estes sons tinham também a característica de preencher o espaço,isto é, eles eram ouvidos por ela, por mim e pelos pais.

Segundo Suzane Langer, "o jogo vocal da criança enche seu mundo de ações audíveis, os estímulos mais próximos e mais completamente absorventes, por serem tanto internos quanto externos, autonomamente produzidos, no entanto inesperados..."(1989:130). No desenvolvimento normal do bebê suas vocalizações além de encherem seu universo, provocam ecos no ambiente, resultado da repetição dos sons por parte dos pais. O bebê parece reconhecer, gradualmente, que o som que ocorre em outro lugar é o mesmo de sua lalação. Isto resulta um aumento de experiência: o bebê torna-se cônscio do tom, o produto de sua atividade que lhe absorve o interesse. Posteriormente, o bebê começa a repetir vocábulos, como ma-ma, da-da, que são sons articulados, quando então uma difusa consciência de vocalização cede lugar à consciência. O vocábulo passa a ser repetido prazeirosamente pelo bebê. E ele o repete quando quiser, formando uma posse e um produto de sua própria atividade. Trata-se de uma experiência puramente fenomenal, pois não tem relações fixas externamente. Isto permite que o bebê use os vocábulos de forma imaginária e emocional, e faça identificações sinestésicas e associações casuais. Para Langer, este período da lalação "é o que há de mais pronto no mundo para converter-se em símbolo quando um símbolo é desejado"( 1989:130). Ao ouvir e proferir um vocábulo, o bebê pode fazer associação com o cheiro da mãe, com a voz dela, o olhar, que para ele tem o sentido de uma presença. Pode também estar associado com o formato da mamadeira, com o líquido que entra na sua boca, ou com qualquer outra coisa. O som reconhecível e produzível passa a ser identificado com estas coisas. Nesse sentido o bebê, ao proferir um som, invoca uma concepção por ele construída.

Segundo os pais de Maria, ela não passou por este período de lalação. "Ela era muito quieta e quase nunca chorava". Na medida em que Maria começou a emitir os grunhidos, não encontrou a possibilidade de escutar os seus sons, pois estes não foram repetidos pelos pais, que os desconsideravam por serem muito estridentes e cansativos, além de não terem nenhuma função comunicativa. Ela não podia, por meio dos seus sons, do seu olhar e dos seus gestos, indicar sensações, necessidades e desejos. Os pais simplesmente queriam que ela não gritasse daquela forma, pois incomodava bastante.

Observei que ao ouvir os sons que eu proferia, que eram parecidos com os seus, Maria pôde vivenciá-los na relação com um outro, e a partir deste encontro fundamental, o brincar com a voz se fez presente e ela começou a estruturar a relação interpessoal. Os sons emitidos por Maria não admitiam tradução. Eu não podia pensar em significados conscientes ou inconscientes, portanto não podia interpretar. Os comportamentos estereotipados, como o de balançar as mãos e o de pular na ponta dos pés, não ofereciam tão pouco possibilidades de conferir significado. No final da sessão, quando disse que já havíamos conversado o suficiente, e que ela já iria embora, eu tinha em mente que o comportamento dela de pular em frente a porta poderia ter outros sentidos , como por exemplo, a cor da porta, a maçaneta, o som que vinha do outro lado, em fim qualquer outro estímulo, inclusive as sensações do seu próprio corpo. Em suma, interpretar as sensações ou traduzir as angústias dela não foram as intervenções iniciais neste caso.

Esta atitude clínica se diferencia da relação analítica clássica, que é a da interpretação, segundo a qual o sujeito precisaria ser atravessado pelo discurso simbólico para se constituir como ser falante. Como nos diz Dolto, o bebê precisa receber um "banho de linguagem". Ou seja , a mãe, além de imitar suas lalações, o interpreta em suas necessidades e se oferece enquanto corpo apaziguador de angústias. Contudo, Maria não estava ainda podendo ser este bebê do qual nos fala Dolto, pois ela ficava transtornada se eu insistia em me aproximar dela. Por outro lado, eu não podia ser esta "mãe"que interpreta as necessidades do bebê: eu não podia saber suas necessidades.

Me parece que este caso clínico deixa evidente o valor do som da linguagem, um valor pré-simbólico. O que Maria parecia ouvir era um som, e não o som vindo de alguém. Na realidade, eu me mantinha afastada fisicamente e olhava muito pouco para ela. Contudo, eu ficava ansiosa para que ela me ouvisse e se aproximasse fisicamente. Em fim, por mais que eu apenas a repetia, eu estava ali com os meus desejos e anseios. Contudo tinha que me manter em um estado de mesmice, manobrado por ela. Assim ela se sentia tranqüila.

Ao refletir sobre a função da repetição dos sons neste caso clínico, penso que podemos pensar nos sons de Maria como um simbolismo apresentativo que, segundo Suzane Langer, é um "veículo normal e prevalecente de significado e amplia nossa concepção de racionalidade para muito além das fronteiras tradicionais...onde quer que um símbolo opere, existe um significado; e inversamente, diferentes classes de experiência-por exemplo, razão,intuição,apreciação- correspondem a diferentes tipos de mediação simbólica...simbolismo sem palavras, não-discursivo e intraduzível, que não admite definições dentro de seu próprio sistema, e não pode transmitir diretamente generalidades" (Langer,1989:104). Suzane Langer levanta a questão de haver a possibilidade de um simbolismo não-discursivo, como por exemplo, de luz, cor ou tom, de ser formulativo da vida impulsiva, instintiva e senciente.

Freud(1895), no "Projeto para uma Psicologia Científica", desenvolve a noção da percepção-consciência, em que a percepção, incapaz de reter marcas, é sem memória. As percepções se ligam ao consciente, mas não deixam nele nenhum traço do que aconteceu. Logo, o primeiro registro das percepções está fora da consciência e é ordenado conforme as associações simultâneas. O segundo registro seria o do Inconsciente ordenado segundo as relações de causalidade. O terceiro, o do Pré-consciente, ligado às representações verbais. Segundo Freud, a condição para haver um funcionamento psíquico normal reside na tradução destes três registros. As psiconeuroses são explicadas como a não tradução de certos materiais. Freud insistiu em deixar a percepção separada da consciência, afirmando que a consciência cogitativa secundária ocorre tardiamente, e está ligada à reação alucinatória de representações verbais.

No caso de Maria a percepção dos grunhidos seriam percepções sem marcas, sem memória? Pertenceriam a um registro fora da consciência, ordenado por regras próprias? Como traduzir este registro? Poderíamos dizer que os grunhidos são símbolos apresentativos?

O PROCESSO SIMBÓLICO

O jogo da troca de sons com Maria perdurou por quase nove meses. A partir da evolução Maria começou a balbuciar as primeiras sílabas e depois a falar . Como podemos compreender a advento da fala a partir deste jogo de sons?

Em primeiro lugar, observou-se que Maria introduziu o fator temporal, ou seja, ela começou a esperar pela escuta do som que vinha do outro (ela emitia um som e parava, eu a imitava e aí ela voltava a fazê-lo). No início, a espera foi permeada por muitas crises de angústia, ou seja, ela começava a gritar e a se debater, jogando a cabeça contra a parede, antes e durante as minhas imitações. Nestes momentos eu parava de produzir os sons e tentava lhe oferecer uma presença amparada para que ela pudesse voltar a produzir os sons (3) Naqueles momentos eu só podia estar presente como um ser acolhedor, desprovido da capacidade de compreensão das vivências inconscientes. Dessa forma, Maria foi aos poucos deixando de se angustiar com a troca de sons e começou a brincar com eles (ela sorria quando ouvia minha voz, começava a pular na ponta dos pés e balançava as mãos).

Os sorrisos começaram a aparecer em seus lábios e os olhos já se atreviam a me olhar periféricamente, através de estrabismos. Assim foi possível o surgimento de uma seqüência de sons que se repetiam em todas as sessões, formando um contexto de mesmice, no qual Maria me congelava no lugar de um espelho: eu só podia reproduzir. Aos poucos, ela foi podendo me fitar e se aproximar fisicamente.

Nesta fase do tratamento foi necessária muita paciência da minha parte. Parecia que Maria havia estacionado, se fixado naquela seqüência de sons, pensei muitas vezes que se tratava de mecanismo de defesa e que eu precisava interpretar, por outro lado as suas manifestações de alegria e angústia, ao repetir as seqüências, me levavam a ficar calada e tentar ser uma "analista continente".(Bion) Era como se Maria precisasse daquele tempo para fazer a integração de suas sensações, por meio daquelas intermináveis seqüências sonoras.

Segundo Winnicott, o bebê não existe sem a sua mãe, e ele a cria como objeto a ser investido libidinalmente. A mãe aprende a se organizar de acordo com o rítmo singular da criança. Nesta relação, o bebê cria um tempo subjetivo, e começa a ser singular na maneira de se organizar no tempo.

Ao que tudo indica, a relação de Maria comigo se estabeleceu neste sentido. Depois da fase das repetições de sons, ela pôde encontrar o meu corpo e o dela. Deixou de fazer as estereotipias e começou a representar as primeiras formas no papel. Ou seja, ela pôde se organizar no tempo e no espaço, a partir do encontro com o corpo do outro.

Em uma segunda etapa, Maria introduziu o fator espacial. Assim que emitia um som, ela se escondia pelos cantos da sala, ou em baixo da mesa. Daquele lugar ela esperava, com prazer, ouvir a minha voz. Esta brincadeira, criada por ela mesma, tinha uma carga afetiva intensa. Ela sorria, gritava, e pulava nas pontas dos pés, fazendo estereotipias com as mãos. As estereotipias, como o pular nas pontas dos pés e o balançar das mãos na frente do rosto, passaram a surgir apenas nestas manifestações afetivas. Houve uma contextualização dos comportamentos estereotipados que deixaram de ocorrer isoladamente. Maria se utilizava destes comportamentos estereotipados para manifestar alegria e excitação. Isto acontecia quando, por exemplo, ficava esperando pela minha voz. Eu também comecei a me esconder para repetir os sons. Dessa forma ela foi começando a me procurar e a se encostar no meu corpo. As aproximações físicas sempre foram de costas. Por exemplo, se eu estava sentada no chão ela se sentava de costas para mim e ia se aproximando até me encostar e se sentar em meu colo. Aos poucos ela foi podendo olhar para o meu rosto e depois começou com a exploração do meu corpo. Ela pegava nos meus lábios, boca, nariz, garganta, como se quisesse entrar dentro deles. Passava sua língua em meu rosto, nas minhas mãos e braços. Não era raro haver mordidas e manifestações de angústia em meio a estas explorações corporais.

Quanto aos brinquedos da sala, Maria imprimiu um rotina que era a seguinte: primeiro jogava tudo no chão, depois pegava alguns objetos e os colocava de cabeça para baixo em cima da mesa e, finalmente, continuava a andar em cima dos outros que estavam no chão. Os brinquedos que ficavam em cima do armário começaram a ser apontados por ela, ao mesmo tempo em que olhava para mim. Alí estava presente uma designação, a possibilidade de apontar algo, que indica uma capacidade simbólica.

Posteriormente, ela começou a se interessar por histórias de contos de fadas, em especial, Chapeuzinho Vermelho Primeiramente, ela me pedia para contar a história. Depois começou a jogar com a história: ela era chapeuzinho e eu o lobo. Muitas vezes ela interrompia a minha dramatização e perguntava onde estava a minha voz. Ela me olhava amedrontada, como se eu tivesse desaparecido, no momento em que fazia a voz do lobo mau. Eu parava de ser o lobo mau e dizia "eu estou aqui". Mesmo nesta fase em que Maria já tinha o domínio da linguagem, eu não me sentia tranqüila para interpretá-la como ocorre com outras crianças, eu me limitava em dizer que eu estava alí e que o lobo mau só iria aparecer se agente voltasse para a história. Mais tarde, Maria já conseguia brincar de "faz de conta", sem a presença desta angústia de aniquilamento, e ela começou a querer aprender a jogar xadrez, lufo...etc..

O reconhecimento do "não–eu", segundo Winnicott, constitui a criação do campo da transicionalidade. Este tempo transicional possibilita que a criança se relacione com os outros. No caso de Maria, o campo da transicionalidade foi constituído a partir da brincadeira do lobo mau. Ela tinha medo que eu desaparecesse e me transformasse em lobo mau. Esta vivência é a do não-eu, no início vivida por Maria como desestruturadora. Com o tempo ela pôde brincar de ser má e de ser também o lobo mau. A maneira como ela vivenciou a ação de ser má, na pele do lobo mau, foi muito importante. Ela engrossava a voz , fazia cara de má e algumas vezes inventava outro fim para o lôbo mau. Esta possibilidade de exprimir as emoções por meio do corpo surgiu tardiamente. Quando Maria começou a falar, o fêz de forma inexpressiva. As palavras pareciam objetos sem vida que saíam da sua boca. É interessante esta questão: quando ela repetia os sons ela podia trazer a entonação de uma frase fazendo, por exemplo, hum...hum... Só depois de quase seis anos que Maria pôde ser mais afetiva em sua fala, ou seja, pôde falar com mais sonoridade. Durante este período a constituição do "eu" foi a condição necessária para que ela pudesse falar de forma afetiva.

REFLEXÕES

A interpretação que o analista faz do discurso do paciente toma como base a concepção de que o discurso é seqüencial no tempo, reporta ao aparecimento de uma palavra depois da outra. Contudo, sugiro a possibilidade de ver o simbólico de uma outra forma, a exemplo do conceito de sígno apresentativo elaborado por S. Langer. Uma palavra pode ser um sígno apresentativo, que apresenta algo ao sujeito, anterior a qualquer representação, por meio do seu son, do seu traço e singularidade.

Nesse sentido, os sons de Maria, no inicio do tratamento, podem ser considerados como sígnos apresentativos, que não admitem tradução e nem interpretação. Eles são imediatos, não podem ser reduzidos a uma interpretação, e não se prestam à compreensão cognitiva. Uma clínica diferente pois coloca o analista no lugar de escutar um "discurso" não representativo. A ação do analista deve ser então a de criar novas formas de interpretação.

Sendo assim, sugiro a hipótese que a relação analítica existe desde o primeiro encontro. Ela não deve ser criada, e sim estabelecida a princípio por meio de uma nova natureza de interpretação.

Alguns psicanalistas, a exemplo de Laznik-Penot, reconhecem valor significante em toda produção da criança, gestual ou linguageira. Segundo eles, se o analista reconhece que alí ( em qualquer produção) existe uma mensagem, a criança poderá se reconhecer a posteriori como fonte dessa mensagem. Depois da leitura da obra de S.Langer e refletir sobre as minhas experiências como analista de crianças autistas, estou mais inclinada a reconhecer o primeiro encontro com a criança autista como uma experiência analítica inominável.

Tomo emprestada a crítica de Júlia Kristeva(1996) a Lacan, em seu texto "A sensação é uma linguagem". Na crítica ela se referiu ao autor, como um cultivador de uma pressa lógica em identificar o que é pré-linguagem e linguagem. Essa pressa essa que pode apagar a estratificação do aparelho psíquico, isto é, pagar os estágios anteriores da linguagem, os "quase símbolos", entre eles os gritos, as imitações e as percepções-excitações. Os "quase símbolos’ ao serem compreendidos como significantes, reduzem as experiências inomináveis aos "significantes puros". A capacidade perceptiva e sensorial do analista pode desaparecer por causa a esta tendência de interpretar mensagens advindas dos significantes.

Em suma, o estabelecimento de uma relação psicanalítica com uma criança autista o analista na posição de compreender o lapso de tempo que o sujeito não recorda. Este tempo abrange o período de aprendizado da linguagem, um período sensorial intraduzível pelas vias cognitivas. Nessa fase primitiva em que se encontra a criança autista, nenhuma experiência pertence ainda a qualquer classe. As ações audíveis de Maria pareciam ser para ela completamente absorventes, inesperados, repetitivos e para mim misteriosos. A partir do encontro com estas ações audíveis, foi possível estabelecer uma relação analítica com Maria. Um encontro não marcado pela ação de interpretar mas por uma escuta psicanalítca abrangente o suficiente para experenciar fenômenos intraduzíveis da constituição do "eu".

Finalmente, considero que fazer das técnicas aqui apresentadas um fator indicador do que é ou não psicanálise, é colocar em risco a primazia da escuta clínica tão bem fundamentada pelo pai da psicanálise. A questão primordial que a criança autista nos coloca é a da escuta do inominável, como fazê-lo dentro da tradição simbólica da psicanálise?. Talvez seja necessário pedir emprestado à filosofia alguns conceitos, assim como foi feito com a noção de símbolo apresentativo, que nos permitam refletir sobre a questão imposta pela clínica com a criança autista.

NOTAS

Maria já havia passado pela clínica médica onde fez todos os exames neurológicos de praxe. Todos foram negativos e o psiquiatra lhe conferiu o diagnóstico de autismo, com a recomendação de que ela deveria ter uma educação especial , tomar remédios para diminuir a hiperatividade, fazer fonaudiologia e terapia comportamental. . Esta é a recomentação prescrita no DSM IV

Segundo a psiquiatria clássica estes dois movimentos, o balançar as mãos e o andar nas pontas dos pés, são considerados comportamentos estereotipados, sem nenhuma função de comunicação. O tratamento médico psicológico comportamental tem como objetivo extinguir tais comportamentos.

F. Tustin (1990) nos apresenta um convincente material clínico para demonstrar como as crianças autistas vivenciam seu corpo, no encontro com o outro, como uma ameaça física, uma catástrofe. Uma das crianças autistas, atendidas por ela, designou esta sensação como um medo de cair em "um buraco negro". Outros autores designam esta ameaça como "angústia impensada" ( Winnicott, ), "angústia

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