CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO SUJEITO DIALETICAMENTE CONSTITUÍDO/DESCENTRADO DA PSICANÁLISE.

AS CONTRIBUIÇÕES DE KLEIN. (1)

Maria Luiza Scrosoppi Persicano.(*)

Thomas Ogden, nos artigos O sujeito dialeticamente constituído/descentrado da psicanálise. I O sujeito freudiano. II As contribuições de Klein e Winnicott (1992) esclarece, já no início da parte II, que a questão teórica da natureza da subjetividade ou da concepção de sujeito não está no foco de atenção de Klein e coloca-se como um intérprete de sua obra para compreender o lugar que este tema ocupa na obra dessa autora.

No livro A Matriz da Mente. Relações de objeto e o diálogo psicanalítico (1986,1989), Ogden trata da questão da subjetividade como entendida por ele próprio e, a partir daí, como ele vem se autorizando a reler sobretudo as obras de Klein e Winnicott, e também, com menos amplitude, certos conceitos de Fairbain e Bion. Diz que seu trabalho "se oferece como um ato de interpretação. As distintas perspectivas psicanalíticas se parecem muito a outros tantos idiomas. Considerada a notável superposição de conteúdo semântico dos textos escritos em diferentes línguas, cada um deles cria significados que não podem ser gerados por nenhum outro idioma dos que são falados na atualidade ou dos que se conservam em sua forma escrita. O intérprete não é um simples veículo passivo de informação entre uma pessoa e outra; é um conservador ativo e criador de significados assim como um recuperador do alienado. Enquanto tal, o intérprete salvaguarda a plenitude do discurso humano". E que não é sua "intenção estudar ou resumir as contribuições desses analistas"; "meu propósito é, mais, esclarecer, criticar e interpretar, para criar, neste processo, novos conhecimentos analíticos". Afirma ser seu "propósito ... contribuir para a recuperação do alienado mediante meus próprios atos de interpretação das idéias de Klein, Winnicott, Fairbain e Bion." (págs. 13 a 15).

Usarei, para fins deste trabalho, dois métodos de estudo: o primeiro será, com a exclusiva pretensão de iniciar-me, e aos que me lerem, em compreender e expor algumas das idéias de Ogden, bem como, ocasionalmente, emparelhá-las com algumas outras dele próprio e de outros autores; o segundo será de externar algumas formulações pessoais a respeito dos assuntos aqui discorridos e até mesmo, eventualmente, fazer uso de meus atos pessoais de interpretação.

Ogden define sujeito da psicanálise como o indivíduo em sua capacidade de criar uma sensação de Eu-dade que experiência (subjetividade), por mais rudimentar e não verbalmente simbolizada que essa sensação de Eu-dade possa ser." (1992, 1996). Entretanto, tem havido modificações importantes em como tem sido vista por ele esta Eu-dade no texto Kleiniano.

Em A Matriz da Mente, de 1986, diz que o bebê kleiniano da posição esquizo-paranóide não é uma subjetividade que se assusta com os objetos maus e se sente protegida pelos bons, mas não há lá participação de nenhuma subjetividade, ninguém, que vivencie o simples "fato de que existe o perigo delineado por objetos maus e uma correspondente necessidade de proteção proporcionada pelos objetos bons"..."As coisas simplesmente acontecem...se dá um simples registro de sensações com a ausência de um sentimento de Eu-dade; está ausente um sentido de si mesmo como observador e criador dos próprios pensamentos, sentimentos e percepções." (1986, 1989, pág.31).

Entende que a linguagem utilizada por Klein para descrever e analisar as fantasias das primeiras vivências infantis está apoiada em formulações impessoais ("o objeto mau é sentido como"..."o peito bom tende a transformar-se em"..."se origina a sensação...")."Mediante esse uso da linguagem, existe uma indicação de que Klein concebe as primeiras vivências infantis como não subjetivas (quer dizer desprovidas do sentido de Eu-dade)...O bebê não se vivência como possuidor de um ponto de vista ou de uma perspectiva. Não existe o bebê como pensante ou intérprete de suas experiências. Do ponto de vista do espectador, o bebê interpreta suas experiências de um modo amoroso ou paranóico. Sem dúvida não tem consciência de si como intérprete das vivências da fase mais inicial do desenvolvimento" (a posição esquizo-paranóide)."O que existe é o 'self' como 'objeto', não como sujeito." (idem pág.32). Uma psicologia sem sujeito é o paradoxo básico da posição esquizo-paranóide; a experiência psicológica que se dá nessa posição existe em si, porém "não existe para
um 'self' ".

Ogden considera que Melanie Klein vê o desenvolvimento psicológico como uma "progressão bifásica do biológico ao impessoal-psicológico e do impessoal-psicológico ao subjetivo." A primeira progressão é a transformação do bebê de uma entidade biológica a uma entidade psicológica, na qual " atuam como mediadoras" o que Ogden denomina de "estruturas psicológicas profundas associadas com as pulsões de vida e de morte". "A fantasia é um reflexo do funcionamento dessas estruturas psicológicas profundas da mesma maneira que a fala é o resultado de estruturas lingüísticas profundas." (idem, pág.43). A entrada na posição esquizo-paranóide é dada na mudança do biológico para o impessoal-psicológico; nela o self existe somente na condição de objeto e ela é caracterizada pela " Isso-dade " (Id-dade), " na qual o bebê é vivido por suas vivências". O estado de ser da posição esquizo-paranóide é aquele em que "ao bebê acontecem pensamentos e sentimentos, em lugar de o bebê pensá-los e senti-los." (idem).

A segunda fase da progressão é caracterizada pela transição da posição esquizo-paranóide para a depressiva, em que "emerge um Eu subjetivo", e só é "possível pela maturação biológica do bebê com a mediação do processo psicológico interpessoal da identificação projetiva." Nessa transição vai sendo criado um novo campo de vivências ou estado de ser no qual um sentido de Eu-dade vai ganhando espaço, isto é, vai se desenvolvendo a subjetividade, entre a distinção emergente entre símbolo e simbolizado, entre os próprios símbolos e a coisa simbolizada, entre os próprios pensamentos e aquilo a respeito do que alguém pensa. Esse é o "Eu, intérprete dos próprios símbolos", o "intermediário entre o próprio self e a vivência sensorial"... O "bebê se converte no sujeito que interpreta". (idem págs. 64 e 65). A partir de agora elabora todas as suas sensações, percepções e sentimentos em uma esfera simbólica, toda sua vivência é uma criação pessoal e é colocada em uma dimensão histórica.

Por estado de ser Ogden define, diferenciando-o de sujeito ou Eu-dade, como "esse aspecto das vivências psicológicas que tem a ver com o sentimento que produz estar vivo". O grau de subjetividade alcançado (ou a vivência conseguida de Eu-dade) se reflete e determina a qualidade de um estado de ser. A vivência da Eu-dade ou subjetividade possui ubiquação psicológica "em relação aos pensamentos do indivíduo, sua mente seu corpo, o não-eu"; é a "vivência do espaço psicológico em que o próprio indivíduo pensa seus pensamentos, vive seu corpo e sonha seus sonhos"; é a "sensação do lugar das próprias vivências em relação com o próprio passado e o próprio futuro"; é "o grau de diferenciação do próprio 'self', dos próprios símbolos e do simbolizado." (idem NR pág.44).

Hinshelwood (1992, pág. 469), afirma que Klein usava intercambiavelmente os termos sujeito, self e ego. De fato, Klein utiliza o termo ego e o termo sujeito, sob a forma de sinônimos, enquanto complementos do termo objeto, na ênfase que dá em sua obra aos relacionamentos do ego (sujeito) com os objetos. E, foi apenas em 1959 em Nosso mundo adulto e suas raízes na infância que Klein define "sucintamente os termos 'self' e 'ego' a partir do ponto de vista psicanalítico." "O ego, de acordo com Freud, é a parte organizada do 'self', constantemente influenciada por impulsos instintivos, porém mantendo-os sob controle pela repressão. Além disso o ego dirige todas as atividades e estabelece e mantém as relações com o mundo externo. O termo self é utilizado para abranger toda a personalidade, o que inclui não apenas o ego mas também a vida pulsional do 'id' "(1991, pág. 283). Para Bettelheim, em 1983 (Freud e a alma humana), o termo, ego é a tradução pragmática inglesa, a fim de dar objetividade à psicanálise, e é muito mais restrito que o 'ich' (eu) de Freud, que possui conotação pessoal e subjetiva.

Acho que, apesar do uso como sinônimos dos termos ego e sujeito em contraposição ao objeto, feito por Klein podemos pensar que a definição sucinta de Klein a respeito de ego e self parece estabelecer, o eu, sujeito, como equivalente de um ego, ficando para este o sentido de uma parte organizada do self que é capaz de se vivenciar como sujeito. Não é do âmbito deste texto discutir se o Ego freudiano foi para Freud o Eu como sujeito, e isto dependerá da noção de sujeito que for pensada. Entretanto, se tomarmos o Ogden de 1986 como referência, podemos ver o Ego (Eu) Kleiniano desenvolvido como uma Eu-dade, ficando a Isso-dade apenas para o assim chamado ego inicial de Klein, que de forma alguma é Eu-dade, sujeito, mas é um estado de ser do self como objeto, e não sujeito, de vivências psicológicas.

Porém, prefiro pensar e entender que, para a escola Kleiniana, o id e o superego, além do ego, formariam o self e o eu-sujeito, não necessariamente sinônimos. O eu-sujeito seria o eu (ego), o eu-sujeito seria o supereu (superego) e o eu-sujeito seria the devil's own id (2). Os objetos internalizados Kleinianos seriam fantasias, de complexidade variável, que poderiam ser vistas como representantes do id, do ego ou do superego, o mesmo que pensar que cada uma destas três estruturas se resumem a um precipitado mais ou menos organizado e integrado (quanto mais se tenha um aparelho psíquico adulto normal) desses objetos, portanto seriam representantes do eu-sujeito. Em contraposição...contraponto...o eu humano é, por assim dizer um eterno condenado a um estado de ser cindido entre diferentes organizações estruturais objetais que nunca poderão se juntar em um único eu, ilusão com a qual vive o sujeito que necessita se sentir dono criador da própria história. O eu sujeito humano pode ser um eu alienado de seus símbolos e de sua história, pode ser um eu-objeto vivido por suas vivências, com suas vivências cindidas de self.

A favor, citarei Fairbain, que em 1949 afirmou (Estudos Psicanalíticos da personalidade, 1952, pág.201) que "é impossível isolar os 'impulsos' das estruturas endopsíquicas" e das relações de objeto estabelecidas por elas. "Todos os 'impulsos' estariam representados por egos (Eus) e objetos dentro da psique"..."Uma teoria da personalidade baseada na concepção da clivagem do Eu seria mais fundamental do que uma baseada na concepção de Freud do recalcamento dos impulsos por um Eu não clivado." (idem pág. 203). Já em 1940, dizia ser fenômeno esquizóide fundamental a presença de cisões (divisões ou clivagens) do eu e, em sua opinião, "o fator mais importante... é a profundidade mental que exige ser penetrada antes de se declarar a prova da clivagem do Eu." (idem, pág.21). Para Fairbain, alguma medida de cisão do Eu está sempre e " invariavelmente presente ao nível mental mais profundo - ou (para dizer o mesmo em termos tirados de Melanie Klein) a posição básica na psiquê é invariavelmente uma posição esquizóide. " (idem).

"Essas personalidades separadas dentro da psique" (que eu diria Eus-sujeitos diversos, ou tomando Ogden, com liberdade, Eu-dades com diferentes graus de subjetividade) "organizam-se em torno de objetos internos que foram criados através da divisão, da identificação projetiva e reintrojeção subseqüente." "Quando esses objetos são internalizados, eles existem divididos dos outros objetos internos e do self. Parecem ter personalidades, desejos e agendas separados, e são portanto tratados, particularmente pelos analistas kleinianos, como se fossem de fato pessoas separadas dentro do self." (Grotstein, 1981, 1985, pág. 61). O entendimento na escola kleiniana é que " não se trata tanto de expulsão ou projeção de impulsos' mas de um self, ou objeto que personifica o 'impulso' " (idem).

O artigo provocador inicial deste meu texto, foi publicado em 1992 e republicado em 1994, no livro Os sujeitos da psicanálise (1996). Nele, Ogden modifica sua visão anterior a respeito da Eu-dade dentro das contribuições teóricas de Melanie Klein. Ressalta três delas como significativas, dentre outras, para o desenvolvimento da formulação psicanalítica da subjetividade (da noção de Sujeito em psicanálise):

- Uma concepção dialética de estrutura psíquica e desenvolvimento psicológico que o autor agora vê como subjacente ao conceito de posições (uma inter-relação dialética de organizações psíquicas).

- Um descentramento dialético do sujeito no espaço psíquico que pode ser entendido na dialética da cisão e da integração do sujeito (do ego e do objeto, diz Ogden, mas incluo aqui a cisão do id e a integração de parte dele sob forma de superego).

- Uma noção dialética da intersubjetividade que pode ser vista como implícita no conceito de identificação projetiva, sobretudo enfocando-o sob a ótica dos pós Kleinianos Bion e Rosenfeld.

No artigo em questão, Ogden, ao desenvolver o sub-item "O interjogo dialético das organizações psíquicas", começa por se referir ao último parágrafo escrito por Klein nas notas do texto Algumas conclusões teóricas sobre a vida emocional do bebê, de 1952. A citação completa seria: "Escolhi o termo posição em relação às fases paranóide e depressiva porque esses agrupamentos de ansiedades e defesas, embora surjam primeiramente durante os estágios mais iniciais, não se restringem a eles, mas ocorrem e recorrem durante os primeiros anos de infância e, em certas circunstancias, posteriormente na vida." (1991, pág. 118). Ogden omitiu as partes sublinhadas para, recortando, realçar sua visão mais recente do texto kleiniano, de que as posições não designam períodos ou fases de desenvolvimento, pelos quais se passa no caminho para a maturidade psicológica...nem sucedem nem precedem uma a outra; pelo contrário cada uma coexiste com as outras numa relação dialética." (1992, 1996 pág.30). São organizações psicológicas que determinam modos de criação de experiência, formas de atribuição de significado à experiência. Cada uma delas é um polo dialético que cria, preserva e nega a outra (1989).

As posições são vistas cada qual estando constituída por um estado de ser característico, gerador de qualidades de experiência de angústia, de formas de defesa, de modos de relação objetal, de um tipo de simbolização e de uma qualidade de subjetividade próprias. São três posições: autista-contigua, esquizo-paranóide e depressiva. São três pólos da experiência humana dialeticamente constituinte. "A posição depressiva, apesar de seus atributos de historicidade e da capacidade de criar e interpretar símbolos, não é o lugar do sujeito na teoria kleiniana." (1992, 1996, pág. 35). O sujeito Kleiniano apenas existe numa tensão dialética criada entre as posições e não numa determinada posição, nem em uma posição hierarquicamente superior, afirma Ogden em 1992, contrapondo-se ao que parece à sua noção de sujeito kleiniano de 1986.

Torna-se necessário, para os objetivos deste trabalhos recapitularmos as colocações feitas pelo autor a respeito da posição autista-contigua. No artigo A posição autista-contigua (1989), Ogden propõe este nome a uma posição, como modo de conceptualizar uma organização psicológica ainda mais primitiva que as posições esquizo-paranóide e depressiva. Esta dimensão da organização da experiência se situa em relação dialética com as dimensões esquizo-paranóide e depressiva. "A posição autista-contigua tem um período de primazia mais inicial do que as duas outras organizações descritas por Klein e ainda coincide dialeticamente com as posições esquizo-paranóide e depressiva desde o início da vida psíquica." ( idem).

A posição autista-contigua é um modo específico de atribuir significado à vivência dominado pelas sensações. No modo autista-contiguo, é na experiência de sensação de superfícies delimitadas, sobretudo na superfície da pele, que estão "os meios principais de criação do significado psicológico e dos rudimentos da experiência de self " (idem). Nela, os dados sensoriais brutos são ordenados por meio da formação de conexões pré-simbólicas entre as impressões sensoriais que constituem a vivência de superfícies delimitadas. Ogden aqui lembra a frase de Freud: " O ego é, primeiro e acima de tudo um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é ele próprio a projeção de uma superfície " (1926, pág. 40). O termo contígua foi escolhido pois a vivência de superfícies tocando uma a outra é o meio principal através do qual as conexões são feitas. O termo autista foi adotado porque acredita que as formas patológicas de autismo são versões hipertrofiadas da organização normal autista-contigua. No autismo patológico o modo de construção da experiência é assimbólico e não pré-simbólico.

O modo autista-contiguo é dominado pelo sensorial, é um modo pré-simbólico de criação de experiência. Pré-simbólico na medida em que as unidades sensoriais são preparatórias para a criação de símbolos mediados pelo fenômeno transicional. A experiência sensorial neste modo tem uma qualidade de ritmicidade - "ritmo de segurança" - (Tustin, 1986), terminará por dar o sentido de continuidade do ser. Propicia uma boa parte da sensação de superfície sensorial fronteiriça, que é o início do sentido de lugar em que esta experiência se produz (o lugar onde se sente e se vive). Possui forma, dureza, maciez, textura, frialdade, calor, etc., que são os inícios da qualidade do ser. (Ogden, 1989).

Tustin descreveu dois tipos de vivências com objetos que constituem, segundo Ogden, meios importantes de ordenação da experiência na posição autista-contigua, os quais são secundariamente recrutados na construções das defesas. (Tustin, 1984, Ogden, 1989). São dois modos de relação de objeto arcaicas, que apenas podem ser reconhecidas como 'relações de objeto' por um observador externo. O primeiro é a criação da experiência das " formas autisticas " ou "auto-sensuais" (Tustin, 1984), o segundo é a criação da experiência dos "objetos autisticos" (Tustin, 1984) ou objetos "auto-sensuais" (Tustin, 1990).

As formas auto-sensuais geradas no modo autista-contiguo de relação de objeto são totalmente diferentes do que habitualmente pensamos como a forma de um objeto. Esse tipo de experiência de forma não envolve a concepção de 'objetividade' ou 'coisificação' (seria o mesmo que reduzir o objeto cadeira à sensação que provoca em nosso traseiro). Estas formas iniciais são 'formas sentidas' (Tustin, 1984) sobre a superfícies corporais da criança, que surgem da experiência de toque suave de superfície. São experiências com as partes macias de seu próprio corpo, inclusive substâncias corporais macias (como saliva, urina e fezes), e com objetos macios (sobretudo as partes macias do corpo da mãe), os quais não são do corpo da criança mas são processados como experiência de próprio corpo. "Contribuem para a sensação de coesão do self bem como para a experiência do que está se tornando objeto." (Ogden, 1989).

O segundo modo primitivo de construção da experiência sensória são os objetos auto-sensuais, que surgem da experiência de uma superfície sensorial dura, angular, que é criada quando um objeto é pressionado duramente contra a pele da criança. Neste modo "o indivíduo experiência sua superfície (com um sentido de toda ela é minha) como uma dura crosta ou armadura que o protege contra os perigos indizíveis aos quais só mais tarde serão dados nomes." (idem).

A ansiedade autista-contigua é de dilaceramento/dissolução da coesão da fronteira sensória, diferenciando-se das ansiedades típicas das outras duas posições. Em todas as posições a ansiedade está relacionada à experiência de desconexão/desintegração, a qual se apresenta de modo diferente conforme a posição. A ansiedade depressiva envolve o medo de ter as relações objetais rompidas (fantasia de ter causado dano ou afastado alguém amado). A ansiedade da posição esquizo-paranóide envolve a ameaça de fragmentação das partes do self e do objeto e seu cerne está em impedir a aniquilação (fantasia de ataques fragmentadores sobre o self e o objeto). A ansiedade autista-contigua envolve "o terror da extinção do sentido físico" (Tustin, 1990) e seu cerne está em impedir a desintegração da superfície corporal ou do "ritmo de segurança" (fantasias altamente concretas de vazamento, dissolução, desaparecimento num espaço sem formas e sem fronteiras). "A tese é que, em sua forma mais primitiva, as partes da personalidade são sentidas como não tendo nenhuma força de ligação entre si e que, devem se manter unidas de um modo que vivenciam passivamente - com a pele funcionando como limite". (Bick, 1967, in Melanie Klein Hoje , 1991, pág.194).

"O estágio de cisão primária e idealização do 'self' " - posição esquizo-paranoide de Klein (1946,1991) - "assenta-se sobre este processo anterior de contenção do 'self' e do objeto por suas respectivas 'peles' " (Bick, idem). Neste "estado primordial...estamos lidando com situações que levam a ansiedades catastróficas...se comparadas com aquelas mais limitadas e específicas, de conteúdo paranóide e depressivo." (idem, pág.195).

São manifestações comuns desta posição: sensações terrificantes de que se está apodrecendo; sensação de que os meios de contenção dos conteúdos corporais, como os esfíncteres, estão falhando e que as substâncias corporais, como saliva, lágrimas, urina, fezes, sangue, fluidos, etc., estão vazando; temor de cair no espaço sem fim. (Ogden, 1989).

Ogden, no artigo que faz parte do título e do objetivo deste trabalho, agora afirma, em oposição ao que dissera em 1986, que "a concepção dialética kleiniana da estrutura psíquica e do desenvolvimento psicológico efetua um descentramento do sujeito de sua posição à 'frente' de uma linha de desenvolvimento. O sujeito é concebido como existindo num tempo psicanalítico (oposto ao tempo linear, seqüencial), participando assim de todas as facetas da subjetividade e de todas as formas de primitivismo e maturidade, simultaneamente e numa inter-relação mutante. A infância psicanalítica não está restrita aos primeiros meses de vida; pelo contrário, a idéia de atemporalidade do inconsciente exige que consideremos as posições autista-contigua, esquizo-paranóide e depressiva como facetas conjuntamente do tempo presente em cada período da vida. A posição depressiva não deve ser entendida como reflexo de uma superação bem sucedida dos conflitos e angústias das posições autista-contigua e esquizo-paranóide; deve, antes ser vista como um componente da vida psicológica desde os primórdios. " (1992, 1996 pág.34). E, podemos acrescentar, nem na superação da posição depressiva .

Penso que melhora, com esta visão, em muito o texto Kleiniano, no qual tal enfoque pode e tem sido encontrado por alguns, mas de fato não lhe é inerente. Considero que assim podemos pensar um eu-sujeito psicanalítico, sem conotações quase religiosas de para tanto ter de se tornar um eu-sujeito humano de gratidão, consideração e bondade.

Sempre considerei haver um certo maniqueísmo filosófico embutido nos textos kleinianos, nos momentos em que o suposto não é um eu libidinal (emprestando a expressões de Fairbain) vir a buscar se compor para dar conta do eu sabotador demoníaco, mas uma superação esperada deste último. (3)

À guisa de exemplo, tomarei algumas afirmações de Klein, para contrapor as duas posturas que me parecem presentes no textos: "Quando o amor pode ser suficientemente reunido ao ódio e à inveja expelidos, essas emoções tornam-se suportáveis e diminuem, por serem mitigadas pelo amor." (1957, Inveja e gratidão; 1974, pág.131). "A ansiedade persecutória e os mecanismos esquizóides são diminuídos e o paciente pode elaborar a posição depressiva. Quando sua incapacidade inicial para estabelecer um objeto bom é, até certo ponto, vencida, a inveja diminui e a capacidade de prazer e gratidão aumenta passo a passo". (idem, pág.136). "Mostrei...os motivos profundos por trás da incapacidade do indivíduo para superar completamente a posição depressiva infantil." (1940, O luto e suas relações com os estados maníaco-depressivos; 1996, pág.410). Quando a análise diminui as ansiedades dos nossos pacientes ligadas a pais internos destrutivos e persecutórios, há uma redução do ódio e um novo decréscimo de ansiedades. Os pacientes conseguem então reexaminar suas relações com os pais - estejam eles vivos ou mortos - e reabilitá-los até certo ponto, mesmo quando tem motivos concretos de ressentimento. Essa maior tolerância torna possível estabelecer figuras 'boas' dos pais com mais firmeza em sua mente, ao lado dos objetos internos 'maus' - ou melhor, permite mitigar o medo dos objetos 'maus' através da confiança nos objetos bons. Isso significa que eles conseguem sentir emoções - pesar, sofrimento e culpa, além de amor e confiança - que lhes permitem passar pelo luto, vencê-lo, e finalmente superar a posição depressiva infantil, coisa que não conseguiram fazer na infância." (idem, pág.412).

Será possível, desejável, vencer, superar, por completo, o tempo todo, um Eu Demoníaco/Eu Superego Arcaico? Coloco nesta contraposição/contraponto pois penso que assim se apresentam em todos nós. Ao mesmo tempo, mais ou menos interativamente, conforme o momento interno e a situação ambiental, fazem a mesma contraposição/contraponto em relação a um Eu Libidinal (não angelical, como o seio idealizado, pois este é, em Klein, claramente, como os anjos, demônio). De um lado Eu Libidinal/Eu Superego Clássico, de outro Eu Demoníaco/Eu Superego Arcaico. Sempre presentes, o tempo todo, facetas da subjetividade num tempo presente, para concordar com Ogden. O Eu-Sujeito está entre eles, não na integração deles, ora está mais em um, ora mais em outro, ora na composição possível entre eles.

O que dá, no meu entender a diferença entre patologia e estados de maior equilíbrio, não está na qualidade de integração, mas, sim na manifestação certa (de um, ou de outro, ou de uma composição de ambos), na situação subjetiva e objetiva correta. Assim, digo isto já há algum tempo quando discuto Klein, se uma pessoa, em um assalto, não entrar rapidamente em contato com seus recursos esquizo-paranóides, que lhe permitam reconhecer fora o tamanho do Demônio, não ficará paralisada e embotada o suficiente para que o assaltante lhe deixe a vida. Por outro lado, há outras situações que exigem alerta paranóide para fuga ou combate (recursos paranóides): em situação de combate em guerras, pode ser fatal entrar em posição depressiva. E assim por diante.

Se complicarmos mais este esquema com a posição autista-contigua de Ogden, sobre o que confesso não havia ainda pensado, haveria uma espécie de Eu-Barro aguardando forma, Eu-Barro/Assopro Divino, um Assopro-Divino, dedo de Deus de Michelangelo a dar forma ao barro, mas que pode virar assoprão que espalha o pó. Elucubrações. Eu-Barro/Eu Divinal criador. O contraponto/contraposição passa a ser agora entre três subjetividades possíveis no tempo presente. O Eu-Sujeito é um e é todos ao mesmo tempo, lembrando o mistério religioso da Santíssima Trindade: é Um e é todas as três Pessoas separadas e indivisíveis ao mesmo tempo.

NOTAS

(1) O tema deste texto foi escrito para uma reunião preparatória realizada no Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, em 22/04/1997, como estudo prévio aos Encontros Psicanalíticos, realizados em 16/05 e 17/05, pelo Departamento com o Psicanalista Didata do IPSBPSP Luiz Meyer. O artigo de Ogden citado no título foi bibliografia preparatória para o encontro e as discussões em torno do mesmo foram coordenadas pela autora.

(2) Esta expressão foi inspirada no título do longa metragem do diretor Alan Pakula, na versão brasileira intitulada Inimigo Íntimo, que seria, para nós psicanalistas, mais interessante como Demônio Pessoal. The Devil's Own Id seria o próprio Superego arcaico ( Klein ) ou Eu sabotador anti-libidinal - Supereu persecutório ( Fairbain ), de quem o Superego benevolente ou Eu libidinal tem que dar conta.

(3) O longa metragem The Devil's Own traz este tema com clareza para quem quiser ver: o policial civilizado, um homem produto do Contrato Social (Jean Jacques Russeau, 1762, Contrato Social ) dentro do assim chamado Estado de Direito, tenta dominar, compondo-se com ele, o inimigo da mesma pátria de origem, mas com costumes tão próximos ao "estado natural de discórdia do homem" (Thomas Hobbes, Leviatã, 1649). Não consegue que o membro do IRA componha com as regras do Estado de Direito, não pode e não quer abdicar delas para impedi-lo, mas não pode se deter e deixar o outro seguir seu caminho livremente. Necessita impedi-lo `a moda do Superego Freudiano, tendo que vencê-lo e eliminá-lo, e não retalhar como seria à moda de seu adversário, como um Superego Arcaico Kleiniano. Entretanto, como um Eu Libidinal Fairbainiano, o policial necessita matar pela primeira vez, e o faz. Nem demoníaco, nem apenas anjo da lei, mas como poderia ser capaz de matar se um demônio tão íntimo não estivesse nele?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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- Notas sobre alguns Mecanismos Esquizóides (1946), in Inveja e Gratidão - e outros trabalhos, Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago Ed., 1991.

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- El Sujeto Dialecticamente Constituido/Descentrado del Psicoanalisis - I. El Sujeto Freudiano, Libro Anual de Psicoanálisis (1992), Buenos Aires, Ed. Escuta, 99-108.

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- The Protective Shell in Children and Adults, London, Karnak Books, 1990.

MARIA LUIZA SCROSOPPI PERSICANO
Psicóloga pelo IPUSP. Psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae. Pós-graduada pelo IPUSP. Membro do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e Professora do Curso Formação em Psicanálise. Membro Titular Pleno da Sociedade Psicanalítica de Campinas e Professora Titular do CPCAMP. Membro pesquisadora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da P.U.C.S.P.
End. Com.: Trav. Lúcia Albertina Soares Quadros, n.º 5
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