Psicanálise, o futuro de uma des-ilusão


 
Mario Pablo Fuks

 

A partir de um debate promovido, faz algum tempo,  por uma revista de psicanálise com o título disparador ( e provocativo) de "Psicanálise, o futuro de um (des)ilusão?", que parafraseia o título do trabalho de Freud "O futuro de uma ilusão", elaborei algumas idéias, partindo de este  último texto.  O que  segue é  uma versão com algumas correções, recortes e agregados,  do  que foi apresentado em aquela oportunidade.

Podemos partir da seguinte pergunta: até que ponto  a psicanálise e o movimento psicanalítico ( ao igual que outros movimentos, práticas, sistemas de pensamento e instituições) podem estar atravessados por "ilusões" equivalentes às estudadas por Freud no texto de 1927, o qual se refere, principalmente, à ilusão religiosa?  Estas têm por efeito o mal-estar ou sofrimento, caracterizado por uma vivência de "desilusão" (a chamada crise da psicanálise), toda vez que ela se vê obrigada a defrontar-se com a questão da sua atualidade, seu passado ou seu futuro. Cabe suscitar aqui o debate acerca da ausência ou insuficiência de um certo processamento específico de esta conjunção.

Apoiados no modelo fornecido pelo processo psicanalítico, podemos perguntar-nos se este processamento específico, que aqui se proporia como um "trabalho de des-ilu-são", consistiria em mudanças subjetivas operadas através de diversos recursos, tais como a historização. A respeito dos obstáculos e resistências que este trabalho comporta,  um historiador da psicanálise comenta que a "perspectiva histórica se lhe apresenta como portadora da quarta das feridas narcísicas infligidas ao homem e às suas ideologias: o homem não é imortal, e tampouco o são o psicanalista e a 'Psicanálise'.  Para muitos, a recusa radical do caráter efêmero (objeto da história que fixa a memória) de toda a criação humana... está relacionada a uma das mais perigosas atitudes dos psicanalistas a respeito da sua disciplina: sua idealização, sua inscrição dentre os sistemas religiosos de pensamento".

Acabar com a idealização.   Mas como?   Através de um apelo à sensatez?

São muitos os que de dentro e de fora da psicanálise, têm exposto sua reflexão e sua crítica nestes termos.  Entretanto, em geral, tende-se a ver a "ilusão" no "olho do outro". Isto dá, por sua vez, início a um novo episódio dentro da contenda, a qual Mijolla sintetiza da seguinte maneira: "Pode-se perceber tudo o que isto traduz sobre as lutas, que não deixam de se manifestar, entre os partidários de uma 'Psicanálise' pura e dura (freudiana. kleiniana, lacaniana, etc.), tal como se fosse portadora de uma verdade intrínseca, a qual os maus atacam e deformam, e aqueles que denunciam a petrificação de uma psicanálise dogmática e administrativa para justificar, em nome de sua liberação, os desmantelamentos teóricos e práticos que lhe infligem".

Tudo isto é reconhecível. Entretanto, como sair da ilusão narcisista que nos induz a ensimesmamentos solipsistas ou guerras de diferenças, pequenas ou grandes, de forma a poder encarar novas realidades?  Encarar, por exemplo, um mundo que mudou, que se vê atravessado por crises de diversas ordens, com uma instabilidade econômica e remanejamentos na inserção laboral e profissional massivos.  Esta instabilidade acaba por afetar a todos, especialmente as classes que sustentam a demanda de atendimento psicanalítico nos consultórios particulares.  Um mundo, também, no qual se recuperam, ofensivamente, os "rivais" organicistas.

Talvez o difícil de incorporar à psicanálise , ou a qualquer  sistema de pensamento

instituído, seja justamente um "pensamento da mudança"  sem o qual a própria mudança, já em andamento, acaba por ser vivenciada como morte, dispersão, perda de especificidade, descaracterização.

Tratei de responder estas questões buscando as referencias iniciais nos próprios textos freudianos.

 

"0 futuro de uma ilusão"  é a crítica contundente de um cientista engajado na tradição racionalista e iluminista em defesa da liberdade de pensamento e contra a  sufocante presença  da religião na educação e na cultura em geral.  As representações religiosas são analisadas, neste texto, como ilusões determinadas por desejos inconscientes infantis e universais.  Cumprem uma função de compensação, consolo e reconciliação para os seres humanos diante das limitações impostas pela natureza, pelo caráter inexorável da morte e pela própria cultura.

O caminho aberto por Freud neste texto segue o delineamento de um fantasma e sua remissão a algo verdadeiro na história: a deificação do pai da infância, objeto de nostalgia.

Se pensado hoje, nos termos de uma análise individual, o trabalho de des-construção, reconstrução e historização operaria no sentido de liberar o peso das "reminiscências" e traumas, dissolvendo ou remanejando os sintomas e oferecendo uma disponibilidade para a abertura da subjetividade para a criação de novos sentidos da existência.  Isto corresponde àquilo que conhecemos do processo analítico, tal como o concebemos hoje.

O problema que surge, porém, é que, no texto de 1927, não aparecem claramente o processo e o mecanismo possíveis do dessujeitamento, da "des-ilusão".  É descrito sim, com toda a nitidez, aquilo que temos conceitualizado como desilusão.  Uma combinação de fatores tais como: a perda da coerência da instituição religiosa, a decepção com os resultados (o mundo não responde nem corresponde à vontade de Deus) e a crise da credibilidade (as classes altas já não acreditam), induzem à vivência do perigo do caos moral e social, da violência desenfreada, do descontrole pulsional.

É imperativo, portanto, mudar as relações entre a cultura e a religião.  Cumpre educar para a realidade - educação esta que significaria a aceitação de um lugar mais modesto no cosmo, uma resignação com a vulnerabilidade humana  frente às dificuldades da existência e. enfim. uma confiança na ciência, na esperança de que, ao aumentar o seu poder, ela tornará possível suportar a vida.

Estamos esquematizando o texto, de uma forma quase caricatural, com a finalidade de poder perfilar as dificuldades que nos parece detectar.   Cabe aqui, portanto, questionar se não predominaria, em boa parte da  argumentação, racionalismo, realismo ou mesmo resignação em excesso.  O ideal iluminista que sustenta a intervenção acabaria. ao mesmo tempo, constituindo um obstáculo para a análise e para o desenvolvimento da mesma.

A interpretação da significação da cultura e o inventário dos diversos componentes, que configuram o "patrimônio cultural da humanidade" e suas  diferentes funções, por mais polêmicos que possam  ser em um ou outro aspecto, transformam este extraordinário texto em peça indispensável para toda e qualquer tentativa de elaboração psicanalítica sobre tais questões.

Não obstante, o próprio autor ficou insatisfeito com seu trabalho.  Comentava que era pouco psicanalítico e pouco penetrante.  Peter Gay, autor de uma conhecida biografia, fala extensamente do mal-estar de Freud, oferecendo detalhes que ilustram a complexidade do seu momento histórico, a ambição da sua obra e a sua conjuntura pessoais.

Tratarei  de discutir  alguns aspectos  do texto ,  sinalizando alguns elementos que podem aportar alguma resposta à questão  suscitada ( o processo de des-ilusão),

Seguirei um  ordenamento que passa pelos temas  do poder, do coletivo e do prazer.  

 

Ao referir-se a reedição da impotência e desamparo infantis, como efeito da "quebra" narcísica resultante do confronto do sujeito com a força das limitações apontadas (natureza, inexorabilidade da morte, cultura), não fica delimitado, pelo menos nesse ponto, o caráter diferencial y específico das determinações  culturais e sociais.

"A impressão terrificante do desamparo da infância despertou a necessidade de proteção - da proteção através do amor -, a qual foi proporcionada pelo pai; e o conhecimento de que esse desamparo duraria a vida toda..." foi a causa da crença.  Sobre a mesma questão,  Freud dizia pouco antes:

 "Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai..."

"Permanecer criança" significa abrir mão não só da onipotência, mas também do poder pessoal que nasce de suas iniciativas, de seus atos e do sentido emergente dos mesmos.  Desta maneira, o parágrafo de Freud receberia um complemento: Quando o adolescente se encontra em condições  de perceber que não poderá  aceder ao  exercício do grande poder que idealizava, desde a sua infância, como sendo o do pai, e que tampouco poderá exercer aquele mais limitado, mas que por justiça lhe corresponde, o poder de se tornar ativo na produção das suas condições de existência, então "o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer criança para sempre... "

 

Torna-se necessário, portanto, incluir uma hipótese referida a um poder de ação - um "ato-poder", tal como define Gérard Mendel - que possibilite a saída do imaginário infantilizante "psicofamiliar" .  Esta questão está claramente colocada em outros textos, principalmente "Totem e tabu" e "Psicologia das massas e a análise do eu", onde a "saída" da horda primitiva se faz através de um ato que inicia uma ruptura tanto com domínio quanto com uma sujeição.

 Y esta saída tem, entrando já no ponto seguinte, um momento definidamente coletivo.

E surpreendente como, mesmo no texto "0 futuro...",  quando começa a falar das limitações e perigos que afetam ao homem e, ao referir-se à natureza, Freud acaba por incluir uma observação, diga-se, incidental, sobre o valor do coletivo:

 "Uma das poucas impressões gratificantes e exaltantes que a humanidade pode oferecer ocorre quando ela, face a uma catástrofe elementar, esquece as discordâncias da sua civilização, todas as dificuldades e animosidades internas, e lembra-se da grande tarefa comum que é preservar-se contra o poder superior da natureza." (grifo nosso)

Mas qual será a metapsicologia desse "lembrar-se"  que temos grifado?  Por que Freud não pode conceber uma gratificação e exaltação equivalentes em outras circunstâncias?  Por que a passividade dos homens  com relação ao trabalho é considerada, em este texto, como um dado primário e essencial ?

E, principalmente,   que papel  poderia corresponder às "empresas comuns", ao desenvolvimento da cooperação e da solidariedade , na superação desse terror paralisante , dentro do processo de  "dessujeitamento" que estamos procurando delimitar?

Todos esses elementos abrem a questão do coletivo, donde também se perfila o "grupal".  Em "0 futuro de uma ilusão", problematiza-se a oposição infantil-adulto.  Em "Psicologia das massas e a análise do eu", a oposição indivíduo-massa.  Ambas supõem processos cruciais de passagem, de transformação de "psicologias" e de modos de subjetivação: por um lado, identificamos a saída da "psicologia de massas", por outro, a superação da neurose infantil da humanidade.  São ambas partes de um mesmo processo trabalhando em vetores diferentes que apontam, um, para um passado mítico, o outro, para um futuro utópico.  Nos dois casos, delineia-se a figura de um "grupo" que inicia e sustenta o processo: um, mais nítido, de guerreiros parricidas que inventam poemas épicos; outro, mais incidental, constituído por "companheiros de descrença"  que cultivam, como veremos, o humor.

 

Finalmente, o prazer.

Poder-se-ia acrescentar ao confronto entre a atitude religiosa "ilusionista" e a atitude científico-racional "realista", uma terceira alternativa, que seria a atitude "humorística".

Freud escreve "0 humor"  no mesmo ano em que publica "0 futuro uma ilusão".  "Como os chistes e o cômico, o humor tem algo de libertador, mas possui também qualquer coisa de grandeza e exaltação. ..0 humor é o triunfo do narcisismo na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego.  "0 ego se recusa a ser ofendido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer." Os traumas do mundo externo não o afetam, "não passam de ocasiões para ele obter prazer.  Esse último aspecto constitui um elemento inteiramente essencial do humor."

"0 humor não é resignado, mas rebelde.  Significa não apenas o triunfo do ego, mas também o princípio do prazer, que pode aqui afirmar-se contra a crueldade das circunstâncias reais.  Como consegue este desígnio", pergunta-se Freud, "sem abandonar a saúde psíquica, tal como na neurose, a loucura, a intoxicação, a auto-absorção e o êxtase?' O mestre está, neste momento, antecipando as "técnicas" que desenvolverá em "0 mal-estar na civilização".

O humorista comporta-se como um adulto frente a uma criança, ao sorrir diante da trivialidade dos interesses e sofrimentos que parecem tão grandes a esta.  E " ... ao identificar-se, de certo modo, com o pai, reduz os demais ao papel de crianças" - Esta situação  inter-subjetiva  tem uma configuração que evoca uma "reunião" parecida  entre os descendentes da  " aliança fraterna" , que Freud imagina,  no "Psicologia das massas..." , no momento da passagem da psicologia de massas para a psicologia individual.  O primeiro poeta épico, através  da criação do mito, consegue desligar-se da massa, mas encontra o caminho de regresso a ela; apresenta-se e relata a esta massa as façanhas do herói inventado por ele, que é ele próprio.  "Assim desce até a realidade e faz elevar-se a massa até a fantasia."

 

Freud mostra, também, no "O humor" certas  situações que  correspondem a um tipo, talvez mais primário e importante, de atitude  humorística que a pessoa adota para consigo mesma, a fim de manter afastados possíveis sofrimentos.  "0 humorista tem transposto a ênfase psíquica do seu ego para o seu superego, herdado da instância paterna, e consegue assim, com essa nova distribuição de energia, conter as possíveis reações do ego." Esta explicação em termos de  deslocamentos e redistribuições constituem ,naquele momento hipóteses ad-hoc ,para uma nova forma de "representação metapsicológica do acontecer psíquico", uma segunda tópica ampliada e enriquecida, que explica o acontecimento da eclosão de um delírio, por exemplo, a partir do investimento de idéias preexistentes.  "Também a cura de tais crises paranóicas residiria não tanto numa resolução e correção das idéias delirantes, quanto numa retirada delas da catexia que lhes foi emprestada"(grifos meus).

Observamos aqui uma aproximação com a questão  suscitada a partir de "0 futuro..."  Ao mesmo tempo, e salvando as distâncias,  esta frase de Freud faz evocar uma colocação  de J. Freire Costa, em  1991 , em entrevista , na publicação mencionada no inicio: "Acho que com os problemas humanos, assim como com os problemas psicanalíticos, acontece o que Wittgenstein dizia sobre os problemas filosóficos: não são resolvidos, são abandonados."

 A intenção do superego través do humor, continua o texto,   é dizer-nos: "Olhem, aqui está o mundo, que parecia tão perigoso!  Não passa de um jogo de crianças, digno apenas de levá-lo na brincadeira"

Vislumbra-se aqui o processo que possibilita o "dessujeitamento" da ilusão religiosa, ou de qualquer outra equivalente.  A questão é operar a "des-ilusão", uma vez que podemos preservar-nos da "desilusão", ou superá-la, pela via de um processo em  as instâncias "ideais" parecem desempenhar em importante papel.   Visualiza-se dinâmicas e economias  possíveis desta operação.  Ela é liberadora e exaltante porque permite recuperar tanto um mundo não-sinistro quanto a inteligência lúdica da criança, dos quais o adulto médio ficou expropriado ao submeter-se ao domínio consolidado "da inibição para pensar a sexualidade, a inibição religiosa e a lealdade política (monárquica)" .  ( "O futuro ...",cap. IX.)   É um "jogo de crianças" porque possibilita a elaboração psíquica através da criação, recriação e proliferação do sentido próprias do chiste, do sonho, da fantasia, da construção de "romances" de tipos diversos, da criação artística, do humor, da invenção, recursos  todos estes equivalentes ao brincar das crianças.

Através dos diferentes eixos traçados, fica melhor situado tanto aquilo que no caminho percorrido pela psicanálise lhe dá origem e a associa ao grande projeto liberador, quanto aquilo que a torna específica e singular, abordando o ideal que a impulsiona assim como aquilo que, no seu processo de produzir e produzir-se, vai-se instituindo.

 

Há certas questões, ainda relativas ao tema, que mereceriam um esclarecimento através de articulações conceituais propostas neste trabalho.  O uso excessivamente extenso da noção de "desilusão" teve a intenção de fazê-la jogar com "ilusão" e com "des-ilusão".  Limitando-a ao seu uso habitual, a "desilusão", enquanto vivência, tende a expressar o resultado de uma perda, que pode se dar no nível do objeto, no nível do ego ou no nível do próprio ideal.  Ou nos três simultaneamente, tal como na canção de Chico Buarque: "Se lembra do futuro que a gente combinou?  Eu era tão criança e ainda sou!  Querendo acreditar que o dia vai ralar só porque uma cantiga  anunciou..." A perda está sendo processada por uma combinação das diferentes instâncias incluindo um companheiro de elaboração, a "Maninha". É o trabalho de luto, fundamental para a preservação do equilíbrio psíquico e para a possibilidade de mudança individual e coletiva, que faz parte do "trabalho"  mais amplo que estamos considerando.

 

Existem perdas que assumem intensidade e força patológicas, como quadros melancólicos, vivências de fim-de-mundo, despersonalizações, pânicos.  Estas perdas se confundem ou se combinam, freqüentemente, com experiências de perigo, desorientação e perda de referências exteriores.  Em termos de vivência, mal se pode falar aqui em "desilusão".  Trata-se de situações "traumáticas" coletivas, nas quais o ego se encontra na situação de paralisia e inermidade que Freud imagina para uma situação de ameaça do descontrole pulsional, frente a uma realidade sinistra.  O ego, nestas circunstâncias, tenderia a funcionar sob um regime que está "para além do próprio prazer", submetido à compulsão de repetição e a uma tendência ao esvaziamento de todo o sentido.  Delineia-se aqui um estado limite no que se refere à existência ou à experiência de uma subjetividade.  A atividade do ideal do ego possibilita a ativação dos sistemas de fantasmatização e simbolização, os quais permitem a elaboração psíquica.  Reinstala-se o processo de subjetivação.  Com esta discussão, acabamos por nos aproximar de alguns desenvolvimentos posteriores a Freud.

Há alguns anos, Hanna Segall apresentou um trabalho muito importante num Congresso Internacional de psicanalistas - no qual impediu-se que sua leitura fosse feita em sessão oficial - intitulado "0 silêncio é o crime verdadeiro" , em que denunciava e analisava, com extensão e profundidade, o mortífero jogo de ilusões coletivas que envolvia os governos e complexos militar-industriais, implicados na corrida armamentista nuclear.  O "silêncio" do título referia-se também à atitude assumida pelos analistas na América diante da perseguição anti-semita na Alemanha nazista.  A ilusão de eternidade, ao que parece, consegue-se através de omissões, recusas e isolamentos que acabam por ter um custo que já resulta difícil negar.

 

A partir da década de 1980. uma série de analistas latino-americanos (em geral brasileiros, uruguaios e argentinos) produziram trabalhos referentes ao efeito., na subjetividade, de situações sociais de alto impacto traumático.  M. Viñar , J. Freire Costa , Gilou Garcia Reinoso  e Helio Pellegrino  entre outros,

demonstraram como a perda de vínculos, a deterioração e a quebra do sistema de ideais, bem como o fim de projetos coletivos, impõem uma subjetividade fragilizada, quadros de verdadeira "demolição" da identidade e uma cultura de violência, entre outros efeitos.

Esta linha de trabalhos apresenta uma evidente continuidade do espírito da intervenção e combate no campo político, cultural e social que caracterizou o trabalho de Freud.  Há um empenho para construir elementos conceituais que esclareçam e ampliem, ao mesmo tempo, a totalidade do campo psicanalítico.

O sistema de ilusões contemporâneas, tal como se configura, parece bem diferente do sistema estudado por Freud em "0 futuro..." A solda entre a proibição de pensar o sexual, a ilusão religiosa e a lealdade político-monárquica não mais existe.  O que se impõe à possibilidade de pensar parece ser a ilusão-compulsão de consumir, e a lealdade estabelece-se com os meios de comunicação de massa, as pesquisas de mercado e o "fascínio tecnológico" .

 

Grandes poderes impessoais e distantes decidem sobre as possibilidades de sobrevivência, destino econômico e valor da qualificação do trabalho.  Planos de ajuste, remanejamentos dos empregos e demissões apresentam-se como movimentos telúricos ou imposições de uma "natureza", apenas explicáveis pelos cientistas e manipuláveis pelos tecnocratas, que atuam mais sobre populações do que sobre comunidades.  O que não comporta, suporta ou resiste é marginalizado e passará a ser objeto de um gerenciamento diferencial e igualmente homogeneizante.  Em suma, a margem do poder possível na gestão autônoma da própria existência viu-se violentamente reduzida.

A significação social dos fatos, das causas e dos efeitos tende a se eclipsar totalmente.  Ante o impacto dessubjetivante desse tipo de controle-gestão, a adesão a seitas religiosas, práticas esotéricas ou tendências fundamentalistas procura cobrir o vazio de sentido, conseguindo algum domínio mágico sobre estas "naturezas" ou encontrando, através delas ,  fontes de certeza.

No campo da saúde mental, o objetívismo médico, revitalizado, por um lado, pela genética e pela química dos neurotransmissores e, por outro, pela estratégia da gestão dos riscos, parece reforçar-se na renúncia de qualquer necessidade de interlocução.

Trata-se de delinear, a partir de todo esto,  um modelo, no qual o modo de  operar psicanalítico pode levar ao desenvolvimento de experiências que  sirvam para contra-efetuar um trabalho de re-subjetivação que devolva ao indivíduo a sua relação com o coletivo, que recupere a dimensão temporal, um ideal a ser sustentado e a ética a ser instituída numa ação que será desenvolvida.  Em muitos desses casos, podem operar pela simples possibilidade de um espaço de expressão daquilo que fervilha espontaneamente nas margens e fendas dessas novas demarcações .

 

O movimento psicanalítico tem,  atualmente, uma constituição heterogênea e de grande diversidade que o diferencia de outros momentos. Seus agrupamentos têm diferentes graus de organicidade. A possibilidade efetiva de desvinculação da análise do analista de uma regulamentação institucional, promovida em espaços espaços chamados "alternativos", nos anos 70, já existe há décadas e tem contribuído para oxigenar uma considerável parte do ambiente. Entretanto, as necessidades de reconhecimento e autorização intensificadas, dentro da psicanálise,  pelos efeitos destas tendências mercadológico-individualistas descritas, simultaneamente massificantes, acentuadas pela crise econômico-ocupacional das camadas médias, leva a uma luta competitiva pela ocupação de espaços e o desenvolvimento de carreiras multi-institucionais. As posições dogmáticas, burocrático-administrativas ou monopolizadoras, atravessadas ou sustentadas pelas ilusões consideradas, criam obstáculos para um desenvolvimento mais livre, criativo e menos isolado socialmente.

As possibilidades de dessujeitamento dependem do processamento coletivo que intencionou-se delinear. Onde este processo se desenvolve, a clínica, a teoria, a investigação e os projetos adquirem nova vida.

 

MARIO PABLO FUKS

mfuks@uol.com.br

 


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