Por uma autonomia da clínica psicanalítica

René Major

Tradução de Celina Moreira de Mello

Se dissermos que, para fundamentar sua descoberta, Freud partiu da observação de casos para os quais foi colocado o diagnóstico de histeria, estaremos colocando em evidência apenas uma parte da verdade. A hipótese do inconsciente articula-se, também, a partir da auto-observação de Freud, como é demonstrado pela análise de seus próprios sonhos e sua configuração, a qual apresenta, por exemplo, uma analogia com o mito de Édipo. Deve haver uma relação entre o que Freud descobre no outro e o que ele descobre em si. Uma relação, mas não necessariamente uma equivalência. Vamos dizer que se trate de uma relação e de uma ausência de relação. A relação expressa o universal; a ausência de relação articula a diferença, aquilo que é singular.

No primeiríssimo caso de Anna O, que deu origem aos Estudos sobre a histeria, conjuntamente realizados por Breuer e por Freud, a diferença essencial entre os dois está no fato de que aquilo que foi para Breuer um infeliz contratempo, ou seja, pensar que sua paciente esperava que o desejo dela fosse por ele satisfeito, tornou-se para Freud um feliz contratempo, a oportunidade para que descobrisse a transferência. E com a transferência: a descoberta de que não existe um puro presente do desejo, nem da presença a si mesmo, que no presente sempre há, ao mesmo tempo, componentes de passado, de substituição, de adiamento, de diferença.

Ora, a descoberta da transferência e do inconsciente, a descoberta de que o objeto da transferência é, a um só tempo, o destinatário aparente e o não-destinatário da demanda que lhe é dirigida, e que as implicações de seu desejo fazem parte deste campo transferencial, introduziram, na clínica, uma mudança de paradigma, cuja magnitude ainda não foi totalmente avaliada. Constantemente, várias observações de análise nos trazem de volta a um ponto que se situa aquém desta mudança radical.

Com efeito, o que é exposto pelo método psicanalítico é o modo de transferência pelo qual aquele que deseja fazer análise coloca o analista na posição do objeto primordial que causa este desejo e ao qual este desejo resiste. O enigma deste desejo, que modula, direciona ou interrompe sua fala e seu silêncio, alimenta-se de qualquer traço do analista – seja seu nome, seu endereço, sua voz, seu sotaque, seu olhar, ou objetos e pessoas a sua volta – estes alimentam o amor e o ódio que lhe permitem existir. E é para o analista, realmente, a dificuldade para renunciar a ser a causa deste desejo que provoca o problema da resistência em si próprio, com que ele se defronta. É certamente isto que faz com que Lacan diga que, na análise, só há resistência por parte do analista. Fórmula que tem sido tão marcante que ela faz com que se esqueça que é a mesma resistência que atravessa a totalidade do campo psicanalítico e cujas diversas modalidades, definidas por Freud são todas, cada uma a seu modo, o resultado da compulsão à repetição que torna patente o paradoxo essencial da resistência, a saber que é uma resistência de inconsciente para inconsciente.

Portanto, é apenas no modo de sua própria "histeria"- do reconhecimento ou da negação desta – que pode ser apresentado o diagnóstico

da histeria do outro. Ainda se trata da árvore que esconde a floresta. Pois devemos compreender que a partir do momento em que se abre o espaço analítico, falar de histeria significa que o desejo de um tentará moldar-se conforme o desejo suposto do outro, mas isto não exclui de forma alguma que todas as outras modalidades de transferência estejam também, virtualmente, presentes. O caso de Anna O. é uma ótima demonstração disto, pois todos os diagnósticos lhe foram atribuídos, a posteriori.

A tendência denunciada por Freud, em uma carta de 5 de julho de 1938, "em transformar a psicanálise em empregada doméstica da psiquiatria", não somente ainda persiste, mas também cria, em psicanalistas famosos, confusões e discursos nosográficos incompreensíveis, que não apresentam mais nenhum caráter especificamente analítico. Como exemplo, citarei os good ou bad histerics de Zetzel, contrapondo-se à "histeria genital" e "histeria oral" de Green e seu "curto-circuito de analidade", quando não se trata do "falo anal", citarei ainda as personalidades as if (como se) de Deutsch ou as "personalidades telas" de Greeson, ou ainda a distinção estabelecida por Kernberg entre "personalidade histérica" e "personalidade infantil". E agora lhes pergunto: o que a noção de "personalidade" vem fazer na psicanálise? A posição que o atual presidente da IPA assume, a este respeito, não deixa a menor dúvida. Em uma entrevista publicada no último número do Journal of European Psychoanalysis menciona o temor dos psicanalistas americanos, de que a abertura da prática analítica a pessoas que não são médicos, efetuada a partir dos anos 80, elimine o caráter médico da psicanálise. Ele faz questão de

os tranqüilizar: "Se a psicanálise deve trazer uma contribuição fundamental para a compreensão da normalidade e da anormalidade, ela continuará a manter laços estreitos com a medicina e a psiquiatria". Para ele, "a psicanálise precisa (o grifo é meu) desenvolver sua relação com a psiquiatria" pois "na psicanálise, o tratamento dos pacientes exige que sejam feitos diagnósticos diferenciais, com todos os tipos de condições psicológicas e psiquiátricas, o que pressupõe uma íntima relação com a psiquiatria". A título de exemplo: "A teoria psicanalítica das pulsões está intimamente vinculada à neurobiologia dos afetos". E para concluir, em sua opinião, a contribuição da psicanálise e da pessoa dele, para o estabelecimento do Diagnostic Manual in Psychiatry (DSM) é fundamental no que se refere às "desordens da personalidade". Ele nos promete uma complementação importante desta classificação, para o DSM V e VI. Como podemos constatar, tão cedo "a empregada doméstica" da psiquiatria não corre o risco de ficar desempregada.

Mas o conceito vazio e pretensioso que querem que consideremos o Zeitgeist de nossa época, o que está na moda, são os estados-limites. Atormentado por um pensamento que opera no vazio, o analista descreve um psiquismo "marcado por traços negativos" (pergunto o que vêm a ser traços negativos – eles chamam isto de "trabalho negativo" mas isto só reflete o negativo do trabalho), em que "o desinvestimento objetal [...] provoca uma hemorragia libidinal que emagrece e gasta a textura do Moi ( imaginem a cena: o sangue da libido que gasta o tecido!), extraindo os traços mnemônicos das coisas-objetos em atividades de descarga que fazem com que estas explodam". Os senhores já viram traços mnemônicos que explodem? Penso que é antes o discurso que tais pacientes provocam no analista que me parece ser um discurso-limite, quando seria mais acertado perceber que a clínica psicanalítica trata do discurso do limite, em que o sujeito cai naquilo que é totalmente diverso do que ele pensa ser.

A partir de Lacan, a clínica orientou-se, de preferência, para a descrição de tipos de estruturas ou de discursos, quando não se orientou para o matema da histeria ou da perversão, por exemplo, provocando críticas tanto no sentido de que deixava de lado a história ( e, na prática, minimizava o papel da anamnese e da eliminação da amnésia referente ao passado), quanto de que operava uma formalização, que almejaria ser integral e sem resto ou almejaria tornar compatíveis o discurso universitário e o discurso psicanalítico ( aqui, a política institucional passava a ser mais importante do que a autonomização do registro especificamente analítico). Fundamentar a autonomia da clínica psicanalítica não significa limitar-se na ignorância das outras disciplinas nem de sua linguagem, seja a da filosofia ou da biologia, da genética ou das neurociências. Ao contrário, pressupõe seu conhecimento e até mesmo empréstimos e desvios, como ocorreu com o recurso constante do pensamento lacaniano à lingüística, à filosofia e à lógica. Mas isto não significa a confusão das línguas. Ao contrário, trata-se de um trabalho rigoroso de tradução, um trabalho propriamente dito de transferência.

Do estrito ponto de vista da especificidade da clínica psicanalítica, por parte daquele ou daquela que demanda uma análise, já existe, instalada, uma transferência que será, ao mesmo tempo, o obstáculo e a alavanca da análise, que será considerada pelo analista, malgrado as resistências com que se defronta a transferência, em sua "própria" economia psíquica. Desde então, colocar um diagnóstico que tenha a pretensão de uma objetividade, que desconsiderasse totalmente o destinatário real ou suposto do discurso ou dos sintomas, assim como ignorasse o roteiro que compreende as respostas imaginadas, será contrário ao processo psicanalítico. Colocar em escaninhos os enunciados do "caso", como se diz às vezes, ou inscrevê-lo no repertório das entradas que já conhecemos, seria não apenas desprezar sua singularidade, ou seja, o modo singular pelo qual o universal inscreve-se em sua história, ou eliminar qualquer possibilidade de surpresa, de questionamento, de invenção, mas também obscurecer, antecipadamente, o efeito da não-resposta como resposta proveniente do analista. A objetividade na psicanálise e na prática psicanalítica pertence a uma ordem totalmente diversa daquela da clínica psiquiátrica. Ela jamais abandona sua relação com a subjetivação. Não somente os sintomas só terão um sentido ou um excesso de sentido, em função das experiências particulares do sujeito, em função do modo como ele encontrou o inconsciente como realidade sexual em sua história singular, mas também só terão um sentido ou um excesso de sentido para um outro que recebe sua mensagem com uma forma invertida. O pensamento de Lacan abre, aqui, perspectivas para uma objetividade que convém discernir, do mesmo modo que o pensamento de Freud já o enunciava, quando fundamentava o trabalho da interpretação (Die Deutungsarbeit) na atividade psíquica inconsciente do analista, e esta deve articular-se de modo rigoroso, de acordo com uma lógica inconsciente, com a atividade psíquica do analisando. O que confirma ou infirma, valida ou invalida a interpretação não é nem a aceitação, nem a rejeição consciente. Estas apenas indexam a transferência em um elemento de referência inconsciente que, aliás, pode ser perfeitamente invertido em relação ao afeto que é expresso. O que vem confirmar a interpretação, a posteriori, é uma formação do Inconsciente ou uma lembrança que surgem de modo inesperado, que escapam à compulsão à repetição, na medida em que esta opera no sentido da resistência. Esta confirmação vem acompanhada de uma diminuição da transferência uma vez que o analisando descobre que sempre soube o aquilo que ele não ousava confessar. No caso contrário, a repetição não cessa de insistir. Em suma, é isto que Freud propõe em Construções em análise.

Partindo do que acabo de dizer, embora de modo excessivamente breve e esquemático, mas de um modo deliberadamente "falante", proponho que a língua psicanalítica deixe de lado aquilo que ela conservou da nosografia psiquiátrica, mesmo que tenha renovado sua compreensão, pois a objetividade que esta promove pertence uma ordem totalmente diversa; conservar o léxico psiquiátrico só faz manter uma certa confusão. Basta ver o uso que dele fazemos, entre nós, para desqualificar nossos interlocutores. Na medida em que a análise chega ao analisando, com a transferência – e seria melhor dizer "as transferências", pois não existe um conceito unificado da transferência – e na medida em que não há interpretação sem a participação inconsciente do analista, seria preferível que a clínica psicanalítica se especifique do interior deste campo transferencial, em suas diferenciações evolutivas. Na medida em que aquilo que resiste à análise provém tanto do analista quanto do analisando, é também em função das resistências que atravessam o campo transferencial – tampouco existe um conceito unificado da resistência – que se especifica a dinâmica de uma análise singular, qualquer que seja o modo, por exemplo freudiano, de designar estas resistências, relacionado-as com o Isso (Ça), o Eu (Moi) ou o Supereu (Surmoi) : todas as posições de que o analista é chamado a colocar-se em situação de desistência, sem contudo transformar esta desistência em uma não-resistência, que seria apenas o último disfarce da resistência. Pois é a este disfarce que pode levar a atenção que é chamada de flutuante, e até mesmo flutuante por igual, a qual, na relação, só manteria a ausência de relação. E, por último, na medida em que uma análise percorre todo o campo fantasmático da organização libidinal, não vejo motivo algum para que se imobilize o analisando em um estágio do desenvolvimento desta organização ou em uma estrutura que manifestaria este estágio, mesmo que ele pareça, ou sobretudo se ele parecer, imobilizar-se no referido estágio, conforme as modalidades de sua relação com o analista.

Ao propiciar um processo de reflexão regressiva próprio à revivescência das percepções endopsíquicas em um movimento de regressão tópica e formal, a situação analítica evidencia uma modalidade de relação com o outro que não pode ser dissociada das condições nas quais esta é produzida. É claro que esta modalidade de relação com o outro não deixa de ter um vínculo com a modalidade de relação com o outro que é familiar para o analisando, mas não se trata nem de seu reflexo, nem de sua cópia fiel. Pode inclusive ser tão diferente que lhe parecerá uma modalidade desconhecida. Com efeito, é isto que faz com que, para alguns, esta situação seja angustiante, para outros, insuportável e, para outros ainda, uma fonte de prazer. A clínica psicanalítica propriamente dita deve dar conta do desinvestimento do mundo exterior que ela induz, em proveito do investimento da voz refletida da pulsão escópica. Todas as modalidades de relação com o outro encontram-se solicitadas e não as poderíamos objetivar sem considerar o espaço em que aparecem, um lugar em que a ausência de relação torna-se a relação que é, a um só tempo, a mais íntima e a mais anônima, a mais fechada em si mesma e a mais aberta, a mais afastada do mundo e a que mais se situa no cerne mesmo das coisas; um lugar em que o interlocutor mais ausente é, também, o mais presente, assumindo uma forma impessoal, encarnando a duplicação de todos os personagens evocados, sem confundir-se com nenhum deles, só respondendo em seu lugar ao não responder. Um espaço tão real quanto irreal, mais real do que aquilo que se imagina ser o real.

O escritor Georges Perec, ao viver a experiência da análise, comprova este fato: "Eu estava trancado com este outro, neste outro espaço. Havia algo abstrato neste tempo arbitrário, algo que era, ao mesmo tempo, tranqüilizador e aterrorizador, um tempo imutável e intemporal, um tempo imóvel em um espaço improvável [...]. Lá, era quase confortador imaginar que, um dia, as palavras viriam. Um dia se começaria a falar, se começaria a escrever. Por muito tempo, pensamos que falar significará encontrar, descobrir, compreender, compreender finalmente, ser iluminado pela verdade. Mas não: quando isto ocorre, sabemos apenas que isso ocorreu [...]. Era preciso, primeiro, que se desfizesse esta casca de escritura, por trás da qual eu disfarçava meu desejo de escritura, que fosse gasta a muralha das lembranças prontas, que se esfarelassem meus raciocínios-refúgios. Era preciso que eu tomasse o caminho de volta [...]. Não tenho nada a dizer a respeito deste lugar subterrâneo. Sei que ocorreu e que, doravante, sua marca se inscreve em mim e nos textos que escrevo. Ele durou o tempo que levou minha história para se reunir: esta me foi dada um dia, com surpresa, com um sentimento maravilhado, com violência, como uma lembrança restituída em seu espaço, como um gesto, um calor recuperado. Naquele dia, o analista ouviu o que eu tinha para lhe dizer, aquilo que durante quatro anos ele havia escutado sem ouvir, pelo simples motivo que eu não lhe dizia, que eu não me dizia.

Para Freud, é em termos metapsicológicos que a clínica psicanalítica deve dar conta daquilo que ele observa no campo do espaço analítico, ou seja, do triplo ponto de vista tópico, dinâmico e econômico. De que quase não se ouve mais falar, hoje em dia, como os senhores hão de convir, e ao qual é importante que se retorne. O recalque, o desmentido ou a rejeição, na situação analítica, são observados sob a forma de uma resistência e a resistência pressupõe a existência de um contra-investimento, que se manifesta pelo reforço de uma tendência oposta à da corrente pulsional. Mas a tendência recalcada deste modo, desmentida ou rejeitada por meio de seus representantes, é reativada em suas fontes internas de excitação ou na percepção dos objetos, para os quais se volta o desejo no engano da transferência. O trabalho da transferência, cuja parte mais visível pode ser o oposto daquilo que permanece inconsciente, visa essencialmente a reduzir ou vencer a atração que os protótipos inconscientes sentem em relação àquilo que é recalcado, denegado, desmentido ou foracluído dos representantes da pulsão e que acarreta a repetição.

Desde então, o que a situação analítica esclarece são todas as modalidades de transferência e resistência, em uma expressão que é, de cada vez, singular e nas quais aparece, alternadamente, de acordo com ordens diversas de manifestação, que é o suposto desejo do Outro que organiza o fantasma de desejo do sujeito; que é o fantasma da morte do outro que condiciona seu próprio desejo; que o sujeito nada experimenta que não seja ser o suporte do gozo do outro; que o sujeito só se sustenta da reparação pelo Outro da perda ou do traumatismo que ele sofreu; que como o corpo vem assumir o lugar do mundo exterior, o prazer ou o desprazer que vier a ser experimentado o será em função da concentração do investimento na representação psíquica da parte do corpo que está envolvida; que se a transferência vier a ocupar a maior parte da atividade psíquica do analisando, todo o passado será despejado no presente desta relação, uma vez que o analista será investido, de modo maciço, como o objeto primordial que deve, sem cessar, satisfazer ou que não cessa de ter que o privar.

O que especifica a clínica psicanalítica é o desfecho, o desenlace, a libertação de todas estas transferências enquanto enigmas entrelaçados. Que se preste contas disto em termos metapsicológicos depende de sua própria língua, uma língua que tem sua história, feita de empréstimos, tanto da língua corrente quanto da física, da biologia, da psiquiatria, do direito, da filosofia. Esta língua, ela própria, como qualquer língua viva, não cessa de evoluir, transformar-se, tornar-se mais rica. Não falamos mais de clínica psicanalítica como se falava há cinqüenta anos atrás. É nesta perspectiva que a língua tende, progressivamente, a autonomizar-se. O que não significa que o analista deva ser monolíngüe. Ao contrário, o poliglotismo é obrigatório, malgrado todos os problemas vinculados à complexidade da tradução, à necessidade de que a língua de tradução transfira a língua traduzida, fazendo uso de seu próprio engenho, sem contudo dissimular que se trata de uma tradução e que há elementos que não podem ser traduzidos. Será cada vez mais importante que se identifique a originalidade da língua psicanalítica, a singularidade dos processos que ela designa e a especificidade do modo como opera.

Os conceitos são sempre moldados a partir da matéria linguagística bruta, de que somos os herdeiros e que marca nossas experiências fundamentais. No que se refere a esta questão, Freud não foge à regra. Os conceitos de que ele faz uso pertencem à história da metafísica, mas dela se emancipam. O inconsciente deixa, então, de ser simplesmente aquilo que foge à consciência. Ele parasita a consciência. O prazer não é mais apenas o contrário do desprazer. Ele pode ser vivido como um sofrimento e o sofrimento, como uma satisfação. O sujeito se busca e se encontra no objeto que não é, em si, seu contrário. O a posteriori torna a "presença a si" mediatizada pelo passado. Da mesma forma, em Freud, a primeira experiência da "histeria" marca seu estilo com uma figura privilegiada que é a da metáfora: seja ela teatral ( a representação, a Outra cena), guerreira (o recalque, a defesa, a resistência) ou econômica (o investimento, o desinvestimento) etc... e as categorias nosográficas da psiquiatria são parcialmente conservadas mesmo que seu uso diminua com o tempo.

Na Questão da análise profana, texto escrito em 1927, Freud considerava que teria que ser criado um programa de ensino para os psicanalistas. Este programa compreenderia como disciplinas as ciências da mente e também a história da civilização, a mitologia, a psicologia das religiões, a literatura, a sociologia, a anatomia, a biologia e a história da evolução. Ainda não sei da existência daquilo que ele chamava "escolas superiores de análise". Elas ainda estão por vir. Mas aquilo que Freud temia essencialmente, e este temor ainda hoje em dia tem fundamento, era qualquer tipo de sujeição da psicanálise a um pensamento que não fosse analítico, tanto vinculado à medicina (à psiquiatria) ou à ciência, quanto vinculado à religião.

Mesmo que, hoje em dia, a análise esteja, mais do que em 1927, aberta àqueles que não têm formação médica, isto não significa que sua medicalização ou psicologização não ocorram. E a clínica analítica não se libertará da psiquiatria instaurando uma nosografia psicanalítica. Tampouco isto ocorrerá se ela for transformada em um culto iniciático que se apóia em uma permanência da transferência. Desta maneira, a clínica psicanalítica passa a ter o caráter de uma fiel obediência inefável, quando não assume um caráter esotérico, o qual às vezes se encontra presente nas próprias instituições analíticas.

No que se refere às exigências de Freud, quanto aos conhecimentos exigidos do analista clínico, além de saber fazer a análise de seus próprios sonhos, hoje em dia o perigo está, certamente, em uma insuficiência quanto à competência. E este perigo é reduplicado pelo aumento do risco de fechamento epistêmico que representa qualquer ensino de que a clínica do inconsciente poderá sempre questionar a legitimidade. A aporia que a análise só pode sustentar como uma exigência limite é que, ao encontrar diversos apoios naquilo que não lhe é específico, é apenas referindo-se aos conceitos por ela criados, e unicamente a estes conceitos, que poderá ordenar-se o campo de sua especificidade.

As conseqüências que aparecem, a partir da consideração de tal especificidade e daquilo que é a análise "leiga" ou "profana" propriamente dita, são numerosas, tanto no que se refere à formação analítica, quanto à instituição que lhe serve de caução. Com excessiva freqüência, o julgamento sobre as capacidades de um analisando, para tornar-se analista, se dá em função de marcos nosográficos, quando não se dá em função do estatuto ou da situação hierárquica daquele ou daquela que foi o objeto da transferência. Quantas discussões, por exemplo, para saber se uma sociedade de analistas pode admitir um analista homossexual, substituem o fato de saber se ele possui uma real capacidade de escuta do outro e de suas próprias resistências à análise. O mesmo ocorre com aquilo que, conforme o modelo médico, recebeu o nome de "indicação de análise". Certas sociedades insistem em pedir a seus "candidatos", nas análises chamadas de controle, casos ditos clássicos de histeria ou neurose obsessiva. Isto equivale a prender a análise e seu imprevisível desenvolvimento, conferindo-lhes um enquadramento pré-estabelecido, sem considerar o que é essencial: as capacidades que o analisando tem de entrar em contato com as forças inconscientes que nele operam e as capacidades do analista para não impedir a realização da análise.

Quando Georges Perec afirma, em sua linguagem literária, que "quando isto ocorre, sabemos apenas que isso ocorreu", ele produz, em sua língua, o sinal daquilo que pode ser descrito em uma linguagem metapsicológica, como o trabalho mais rigoroso, realizado com toda a arte necessária, aquela de que o inconsciente do analista será o instrumento – ou o tecelão, para retomar a metáfora que Goethe atribui a Mefistófeles: "É fato que a fábrica de pensamentos é como o tear de um tecelão, em que um movimento do pé move milhares de fios, em que a lançadeira sobe e desce sem cessar, em que os fios escorregam invisíveis, em que mil nós se formam de uma só vez [...]." Sabemos que a metáfora do tecer, que era altamente sexual para Freud, foi, para os gregos o motivo originário a que se referia a palavra analysis , para designar a dupla operação de retorno à origem e de desenlace e, no que nos diz respeito, acrescentaremos a operação que consiste, ao mesmo tempo, em deixar desfiarem-se os pensamentos e em seguir o fio que os liga entre si, pela necessidade de seu encadeamento.

R.M.


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