COR PULMONALE CRÔNICO

 

Cor pulmonale é definido pela Organização Mundial de Saúde (1963) como o "aumento ventricular direito resultante de doenças que afetam a estrutura e/ou função dos pulmões". Estas alterações pulmonares não devem, entretanto, ser decorrentes de cardiopatia congênita nem de doença envolvendo o ventrículo esquerdo. De acordo com este conceito, o ventrículo direito deve estar aumentado, mas pode ou não estar hipertrofiado.

Cor pulmonale agudo já foi devidamente caracterizado em outra exposição. Vamos aqui nos ater a alguns aspectos da etiopatogenia, clínica e tratamento da hipertensão pulmonar e do cor pulmonale crônico.

Etiologia

Várias doenças podem evoluir para um quadro de hipertensão pulmonar e cor pulmonale, tais como: tromboembolia pulmonar recidivante, vasculites pulmonares, fibrose cística, cifoescoliose, síndrome de hipoventilação alveolar (incluindo a apnéia do sono), doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), principalmente no tipo bronquítico, hipoxêmico e poliglobúlico ("Blue bloater"), e na ablação cirúrgica do parênquima pulmonar em pacientes com doença pulmonar subjacente ou com hipoxemia crônica.

Outras causas menos comuns de hipertensão pulmonar por obstrução vascular são: esquistossomose pulmonar, embolia pulmonar por corpo estranho (viciados em drogas) e embolia tumoral. Existem ainda, indivíduos que desenvolvem um quadro de hipertensão pulmonar habitualmente grave cuja etiologia não é bem caracterizada. Este grupo, denominado de hipertensão pulmonar primária ou idiopática, é, entretanto, de ocorrência rara (aproximadamente 1% dos pacientes com cor pulmonale à autópsia).

Em países como Estados Unidos e Inglaterra, a DPOC é a causa mais freqüente de cor pulmonale. Nos EUA, 10 a 30% dos pacientes internados para tratamento de insuficiência cardíaca congestiva tinham cor pulmonale descompensado; e na Inglaterra, 40% dos pacientes com bronquite e enfisema tinham evidência de cor pulmonale à autópsia. Considerando-se estes relatos, podemos considerar como sendo a DPOC a causa mais freqüente de cor pulmonale também no nosso meio.

Patogenia

Existem pelo menos cinco mecanismos determinantes da pressão na artéria pulmonar a serem considerados: a área da vasculatura pulmonar, a viscosidade sangüínea, o débito cardíaco, a pressão venosa e o volume sangüíneo pulmonar. Modificações destes fatores podem levar ou agravar a hipertensão pulmonar e o cor pulmonale (Tabela 1, Figura 1).

Nos pacientes com DPOC, responsáveis pela maior incidência de cor pulmonale, descrevemos abaixo os principais mecanismos envolvidos no seu desenvolvimento.

A causa mais comum de hipertensão da artéria pulmonar é a redução da área vascular do pulmão (levando ao aumento da resistência vascular). Esta redução de área pode ser devido a vários fatores (Tabela 1), entretanto, destes a hipóxia alveolar parece ser o mecanismo fundamental nos pacientes com DPOC. Como a hipóxia exerce sua ação vasoconstritora nos vasos de resistência não está elucidado. Existem indícios de que a hipóxia tenha uma ação direta na musculatura vascular e também uma ação indireta liberando mediadores e substâncias vasoativas.

Hipercapnia parece não ter ação direta por si, mas através da alteração da concentração hidrogeniônica. A acidose pode promover aumentos significantes da pressão da artéria pulmonar, atuando sinergicamente com a hipóxia. Assim, em pH elevado, o efeito pressor da hipóxia é pequeno; em contraste, com pH baixo, o efeito pressor da hipóxia é extremamente efetivo.

Vários estudos têm sugerido também que variações da pressão intratorácica em pacientes com DPOC (principalmente no exercício) podem levar a um aumento da resistência vascular pulmonar e, indiretamente, à diminuição do desempenho do ventrículo direito (VD) e mesmo do ventrículo esquerdo (VE).

A poliglobulia (eritrocitemia), que ocorre em pacientes com DPOC e hipoxemia, pode levar a um aumento da viscosidade sangüínea, sendo esta implicada como mecanismo contribuinte e agravante da hipertensão pulmonar associada à hipóxia e a destruição do leito vascular pulmonar.

Sabe-se que a circulação pulmonar funciona num regime de baixa pressão e resistência, capaz, no indivíduo hígido, de acomodar grandes aumentos de débito sangüíneo (2 a 3 vezes o normal), com apenas pequenas variações das pressões da artéria pulmonar. Entretanto, nos pacientes com DPOC e com redução do leito vascular de troca (enfisema), pequenos aumentos do fluxo (p. ex. exercício leve) podem produzir grandes aumentos pressóricos. Este tem sido descrito como um dos possíveis mecanismos de limitação ao esforço destes pacientes, talvez pela ação pressórica direta em baro ou mecanorreceptores sensíveis à distensão e localizados no tronco da artéria pulmonar ou câmaras cardíacas direitas. As alterações hemodinâmicas são inicialmente restritas ao exercício e, com o evolver das alterações fisiopatológicas, surgem mesmo ao repouso.

Função ventricular esquerda (VE) na DPOC

Embora tradicionalmente a insuficiência cardíaca esquerda tenha sido descrita como rara em pacientes com cor pulmonale, vários estudos mais recentes, empregando a angiografia por radionuclídeos, têm demonstrado falência do VE em 13% dos pacientes no repouso e 20% destes no exercício.

Os fatores envolvidos na disfunção do VE encontram-se descritos abaixo, sendo destacados fundamentalmente três mecanismos básicos que podem ter maior participação: (a) compressão do VE pelo VD distendido, através do desvio septal; (b) alterações das pressões intratorácicas, ocasionadas por grandes oscilações da pressão negativa pleural, levando a maior retorno venoso para o VD e aumento da pós-carga para o VE; e (c) doença primária cardiovascular, associada a outros fatores como hipertensão arterial, hipoxemia e acidose (Figura 2 ).

Quadro clínico e diagnóstico

Na evolução da doença, podemos distinguir três situações clínicas diferentes: (a) hipertensão da artéria pulmonar aumentando a pós-carga do VD (sem aumento ventricular); (b) cor pulmonale compensado, ou seja, o aumento ventricular direito adaptativo ao aumento da pós-carga do VD; e (c) cor pulmonale descompensado, quando ocorre a falência do ventrículo direito.

 

Pacientes com hipertensão pulmonar primária habitualmente apresentam sintomas decorrentes da restrição da rede vascular pulmonar, associada ao baixo débito cardíaco. Assim, ocorre fadiga, lipotimia e dispnéia, principalmente com o exercício. Dor torácica, tosse e hemoptise são descritas menos freqüentemente.

Outros sintomas e sinais clínicos vão aparecer com o agravamento da doença: desdobramento e hipersonoridade da 2ª bulha no foco pulmonar, no levantamento esternal e galope. Estes últimos denotando hipertrofia do VD em resposta a sobrecarga imposta a ele. Sopros diastólicos pulmonar e tricúspide sugerem dilatação do VD. Edema de membros inferiores, estase jugular e hepatomegalia são indicadores de insuficiência cardíaca direita descompensada.

Pacientes com hipertensão pulmonar secundária, em geral apresentam, associados aos sintomas e sinais mencionados, características da doença pulmonar (ou cardíaca) subjacente.

Assim, os pacientes com bronquite crônica, enfisema pulmonar e fibrose cística, além do quadro clínico característico, vão apresentar evidências de comprometimento do parênquima pulmonar nos exames radiológicos do tórax e nas provas funcionais respiratórias.

Biópsia pulmonar cirúrgica com finalidade diagnóstica tem sido indicada em algumas situações clínicas, onde se suspeita de doença intersticial pulmonar associada a hipertensão pulmonar. Mesmo nesta situação existem oponentes a esta conduta, salientando que os riscos deste procedimento não justificam os benefícios advindos desta análise.

Em outras condições clínicas de hipertensão pulmonar primária ou secundária, a biópsia pulmonar não deve ser preconizada. Biópsia transbrônquica e transtorácica (agulhas) é contra-indicada em qualquer circunstância, devido aos riscos de lesão vascular e hemoptise.

Angiografia pulmonar por contraste ou por radionuclídeos, podem detectar grandes alterações tromboembólicas não reabsorvidas. O cateterismo cardíaco, além de propiciar a análise pressórica e de débito cardíaco, identificará os pacientes com doença cardíaca valvar ou congênita, associada a hipertensão pulmonar.

Eletrocardiograma, vetocardiograma e ecocardiograma são exames que podem auxiliar no diagnóstico não invasivo de pacientes com hipertensão pulmonar, ajudando a identificar causas cardiovasculares de hipertensão pulmonar secundária.

Teste de exercício cardiopulmonar com avaliação ventilatória, metabólica, das trocas gasosas (gasometria arterial) e, ocasionalmente, da hemodinâmica pulmonar, tem sido também utilizado na avaliação do cor pulmonale. Sem dúvida este é um dos métodos mais sensíveis de avaliação da função cardiocirculatória e respiratória, podendo identificar precocemente os mecanismos responsáveis pela baixa tolerância ao esforço destes pacientes. Com estes testes podemos também avaliar a influência da terapêutica nos citados mecanismos e, em última análise, na capacidade funcional dos pacientes.

Caracteristicamente, os pacientes com DPOC que evoluem para cor pulmonale são aqueles com quadro clínico predominante de bronquite crônica, hipoxêmicos, habitualmente hipercápnicos e policitêmicos. No RX de tórax, são sugestivos de hipertensão pulmonar os aumentos no diâmetro da porção descendente da artéria pulmonar (> 16 mm à direita e > 18 mm à esquerda) e afilamento arterial na periferia pulmonar. Aumento ventricular direito é melhor observado num RX de perfil. O eletrocardiograma pode mostrar sinais de sobrecarga ou hipertrofia ventricular direita associadas com o aumento atrial direito. Taquiarritmias supraventriculares são freqüentes.

Terapêutica

Na terapêutica do cor pulmonale devemos atuar diminuindo a carga imposta ao ventrículo direito, procurando intervir numa série de fatores que levarão à hipertensão pulmonar (Figura 1). Associadamente, devemos sopesar o emprego de uma medida terapêutica à luz do seu potencial de manter ou elevar a oferta periférica de oxigênio (débito cardíaco x conteúdo arterial de O2); por conseguinte, os esforços devem ser centrados no alívio pressórico sobre o VD, acompanhado de um adequado débito cardíaco diante das necessidades de repouso e exercício.

Dentre os mecanismos etiopatogênicos da hipertensão pulmonar, sem dúvida, a restrição da área vascular pulmonar é a mais importante. Quando esta restrição é conseqüência de lesões anatômicas, como os quadros de fibrose e destruição pulmonar, ou nas embolias pulmonares recorrentes, o tratamento habitualmente é de pouco sucesso. Nas doenças em que a redução da área vascular origina-se primariamente da vasoconstrição, as medidas terapêuticas são mais efetivas.

No último caso, temos os quadros mais freqüentes que envolvem predominantemente indivíduos com bronquite crônica, hipoxêmicos e policitêmicos. Nestes pacientes, o objetivo da terapêutica é reduzir a vasoconstrição pulmonar, diminuindo a pressão da artéria pulmonar e a sobrecarga do VD, com a conseqüente melhora do desempenho cardiovascular no repouso e ao exercício.

Vamos abordar a seguir as principais medidas terapêuticas empregadas atualmente no cor pulmonale associado à DPOC e algumas perspectivas de tratamento que estão sendo pesquisadas no presente:

(a) medidas que vão atuar do desempenho ventilatório;

(b) oxigênio;

(c) almitrina;

(d) vasodilatadores e broncodilatadores com ação

cardiovascular;

(e) diuréticos;

(f) digitálicos;

  1. flebotomia.

 

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