Leonardo Boff
Partimos da seguinte constatação:
muitas pessoas sentem-se cansadas de doutrinas religiosas, de reflexões
teológicas e de discursos sobre Deus e sobre o Sagrado. Mas escutam
atentamente quem fala a partir da experiência de Deus e revelam ter
uma experiência de Deus. Essas pessoas querem também sentir Deus,
ou fazer aquela experiência, interpretada como sendo a emergência
de Deus. Então se perguntam: como experimentar Deus e ter um encontro
com Ele? É possível dizer como Jó: antes sabia de Deus
só por ouvir dizer (pelas religiões, pelas igrejas, pelos ministros
do sagrado, pelos textos religiosos); agora meus olhos o viram e eu o experimentei
(cf. Jó 42,5)? Em fim, como experimentar Deus hoje?
Muitos são os caminhos de acesso a Deus. Mas basicamente há dois considerados exemplares: o caminho da comunhão pessoal com Deus que é o todo; e o caminho da comunhão com o todo que é Deus. O primeiro é ocidental, o segundo oriental. Analisemos as respectivas estruturas fundamentais.
1. O caminho pessoal de comunhão com Deus que é o todo
Parte-se de um conhecimento prévio de Deus transmitido pela família
e pela cultura religiosa ambiental. Trata-se de uma crença. Toda crença
cria uma representação de Deus e uma doutrina sobre Ele. Essa
doutrina diz que Ele está presente no todo e que o todo está
presente nele. A teologia cristã chama a isso de panenteismo que nada
tem a ver com o panteismo. O panteismo dilui Deus no todo e faz do todo Deus.
No panenteismo conserva-se a diferença entre o todo e Deus mas vê-se
a mútua presença de um no outro. Retomando: em função
desta mútua presença o todo tem em Deus sua existência
e consistência, pois Ele é seu Criador e Provedor; e o todo vem
perpassado pela pela presença de Deus.
Essas afirmações implicam uma
vida de fé, entendida como confiança e entrega total a Deus,
o sentido do universo, da história e da existência, a promessa
de vida para além da vida. Mesmo assim, como ultrapassar um mero saber
e experimentar Deus já aceito na mente e no coração?
Como passar da cabeça para o coração?
Passa-se do saber para o experimentar radicalizando a relação
pessoal eu-tu. O eu é assim estruturado que se constrói sempre
a partir do confronto, da relação e da comunhão com um
tu. É a partir do tu que o eu se descobre a si mesmo. A criança
quando começa a falar, fala de si mesma ainda na forma de terceira
pessoa. O Joãozinho tem fome, o Joãozinho quer dormir, quer
mamãe, quer papai etc. Não se descobriu ainda como um eu singular.
Em contacto com os pais, os irmãos, os tios, os avós e as pessoas
do ambiente ela elabora o seu eu. É uma revolução no
universo a irrupção da consciência, a emergência
do eu pessoal, irredutível e único. Eu digo eu.
Portanto, o ser humano precisa dos outros, do tu para tornar-se eu.
A experiência de Deus emerge quando se
leva até suas últimas raízes esta relação
eu-tu. Deus é percebido como o Tu absoluto, a Alteridade radical ,
o Vis-a-Vis intransponível. Acontece por uma relação
de enamoramento, de comoção e não de pensamento. O pensamento
não experimenta. Ele supõe a experiência. Ele é
uma depuração, uma sintetização da experiência.
O eu sente-se amado e ama. Surge o fascínio e a exaltação
como todos os enamorados testemunham. Esse Deus assim experimentado na relação
ganha nomes pessoais. É chamado de meu Pai, minha Mãe, meu Senhor,
meu Amigo, minha Rocha, minha Fonte, minha Vida.
Pensando em termos radicais podemos concluir:
o ser humano precisa de um Tu absoluto para ganhar a consciência de
um eu profundo, pessoalíssimo e também sagrado. Através
do Tu divino o eu humano ganha abissalidade, irredutibilidade e sacralidade.
A relação eu-tu encontrta sua
máxima expressão na palavra amorosa. O eu e o tu se entrelaçam
no amor e buscam superar as barreiras e serem um. Essa experiência é
vivida também com referência ao Tu divino. O Tu divino comunica
a sua palavra acolhedora e amorosa. É uma palavra reveladora e plenificadora
do eu humano. O ser humano se descobre sempre envolvido com Deus. Emerge como
ouvinte da Palavra. A Palavra revela o propósito de Deus, sua intenção
primeira que é ter companheiros no amor e na própria vida. Deus
quer estabelecer comunhão e fundar comunidade com quem se relaciona
e se comunica com Ele. É próprio do amor se difundir, irradiar
e se estender a todos a sua volta e a tudo
A experiência do amor de Deus na relação
eu-tu é fundante neste caminho para a experiência de Deus. Afinar-se
com o amor de Deus, agir na ambiência desse amor, fazer amorosamente
a vontade de Deus: eis a singularidade desta experiência . Esse caminho
da experiência de Deus se traduz posteriormente em doutrinas, conceitos,
imagens poderosas que tentam captar a intensidade desta relação
eu-tu. É quando surge a religião como expressão da experiência
de encontro com Deus.
Toda relação eu-tu mostra uma
dimensão singular: o sentimento de exclusividade. Isso traz em si um
risco. O risco de que a pessoa que faz semelhante experiência ou a comunidade
que se sente portadora de tal dialogação com Deus, se considerem
só eles escolhidos e eleitos. Os demais não. Em função
desta consciência de eleição muitos pretendem missionar
os outros. Aqui surge a vontade de poder como submetimento dos outros às
próprias convicções. Então procura-se ou trazer
os outros para o mesmo tipo de encontro eu-tu divino, ou tenta-se impôr
o mesmo estilo de encontro. Surge destarte o fundamentalismo e o fanatismo.
Eles podem provocar guerras religiosas, como a história o comprova.
Quem diz que o seu encontro com Deus é o único verdadeiro e
aquele dos demais não o é ou que é imperfeito, esse faz
guerra contra todos. Em nome de sua verdade nega as verdades dos outros. Está
instalada a dissenção e o estopim das guerras religiosas.
Mas esta expressão é patológica,
manifestação doentia de algo originalmente bom e sadio: o encontro
eu-tu divino. A missão não necessariamente precisa significar
conquista e submetimento. Pode significar a descoberta da relação
que outras pessoas e outros povos fizeram de Deus e do diálogo eu-tu
divino. Quando se supera a exclusividade, todos então começam
a aprender uns dos outros. Todos se sentem edificados e edificam. Convergem
na diversidade das formas de experimentar de Deus.
Dizemos que este é o caminho ocidental
porque foi nesse espaço histórico-cultural que se desenvolveu
até ao excesso a subjetividade, a capacidade de diálogo eu-tu-nós.
Foi também no Ocidente que se manifestaram as patologias da exclusividade,
da não aceitação da diferença e da missão
como conquista imperial dos outros e das outras culturas.
2. O caminho de comunhão com o Todo
que é Deus
O caminho transpessoal parte da realidade como
um todo orgânico, uno e diverso. O desafio é a união do
diverso com o todo. Eis uma questão árdua: como cada um está
no todo e o todo em cada um? É a pergunta permanente da tradição
do Tao. E a resposta é sempre repetida: importa fazer uma experiência
de não-dualidade. Através dela, o diverso encontra seu lugar
no todo. E experimenta-se, então, uma unidade radical e instransponível.
Os Upanishas dizem: tu és tudo isso e apontam para todo o universo.
Isso supõe que o tu pode se unir a toda as coisas. E voltar a ser um
com elas.
Tentemos captar o sentido desta pretensão.
Hoje, a partir da nova física, da teoria da evolução
ampliada, dos sistemas abertos, da importância do caos para a constituição
de novas ordens sabemos que tudo vem penetrado de energias e forças
que estão no universo, em cada coisa, nos processos biológicos
e espcialmente na interioridade dinâmica de cada pessoa. A experiência
de cada coisa no todo emerge ao se ativar estas energias interiores na forma
de concentração e ampliação máxima da consciência.
Em seguida, busca-se um completo despojamento do eu. Esse despojamento do
eu consciente visa criar espaço para que todas as coisas ressoem dentro
da pessoa. Essa ressonância permite que cada um se sinta estrela, pedra,
árvore, animal, e a outra pessoa. Agora não há mais distância.
Tudo se reencontra no uno, diverso e dinâmico. Essa unidade terminal
é resultado de um processo de identificação com o diferente.
Quer dizer, da ação que cria a identidade com o diferente. A
pessoa fica idêntica (daí a expressão identific-ação)
ao diferente, à estrela, à planta, ao animal, ao negro, ao pobre,
ao outro ser humano. Vai passando por etapas de acercamento e interpenetração
até chegar à identificação. Que isso seja possível,
testemunham-no todos os místicos do Oriente e do Ocidente. S. João
da Cruz, sem romper com a dogmática cristã, termina seu caminho
espiritual dizendo que ìa alma amada se vê no Amado transformadaî;
mais ainda: somos Deus por participação.
É no contexto desta experiência
que surge a palavra Deus ou os seus termos equivalentes. Deus é a expressão
que traduz esta experiência do todo vivenciado e unificado. Deus emerge
menos com nomes pessoais do que com nomes que expressam a totalidade aberta.
É experimentado como Fundamento último, Raiz primeira, Fonte
originária de todo o ser, Alfa e Omega, Luz que tudo penetra, torna
transparente e atraente.
A partir desta experiência unificante tudo pode ser sacramental, quer
dizer, tudo pode se fazer portador da Divina presença. Por isso surge
uma atitude de respeito, de veneração e de acolhida de todas
as coisas. Elas são portadores do Mistério do mundo, são
todas grávida de Deus. E quem vive nessa dimensão, assiste a
cada momento o nascimento de Deus em todas as coisas e em si mesmo. A espiritualidade
neste caminho se faz pela contemplação reverente de todas as
coisas. Pelo cuidar e acariciar e não pelo agarrar e manipular. Trata-se
de captar o advento de Deus em todas as coisas, pelos sentidos corporais,
nos sons, nas cores, nas sensações produzidas por tudo o que
nos envolve. Mas também pelos sentidos espirituais da intuição,
da visão interior, do sentido de unidade e do repouso no movimento.
Tudo nos deve levar a um mergulho na realidade
que se faz transparente para o Divino. Captar Deus na totalidade e em cada
uma de suas partes nos conduz à iluminação (satori) e
à profunda serenidade interior e à integração
com o univero (nirvana, mergulho no Tao, comunhão com Deus). Como no
caminho ocidental há aqui também um risco. Tudo o que é
sadio pode ficar doente. O iluminado e espiritualizado, caso não se
despojar totalmente, pode deixar emergir atitudes esotéricas, projetar
metafísicas (visões de mundo) mirabolantes, formando uma alquimia
de elementos sem sustentação a partir de um caminho espiritual
autêntico que sempre se confronta com o cotidiano e sua lógica
irrefragável. A mística corre risco de se transformar em misticismo.
Às vezes tal misticismo se une ao comércio bem conduzido por
gurus e pretensos mestres espirituais que acumulam influência e fortuna.
É um indício seguro de que a mistica degenerou em mistificação
e Deus num fetiche à mercê da manipulação de pessoas,
cujos interesses não se coadunam com a natureza da vida espiritual.
A mística que se une ao poder e ao aplauso facilmente se transforma
também numa forma da fanatismo e fundamentalismo. Geralmente produz
muito dinheiro.
Por que chamamos este caminho de oriental? É
porque no Oriente os seres humanos fizeram a grande viagem para dentro de
si mesmos, porque eles mostraram especial sensibilidade pela experiência
do todo orgânico, uno e diverso. E desenvolveram caminhos espirituais
altamente sofisticados para se chegar à experiência da não-dualidade
e do mergulho no oceano sem limites da realização transconsciente
e transpessoal do ser humano. Foi lá também que se revelaram
as patologias deste caminho, especialmente, quando transportadas para o Ocidente.
Desligados de interesse pela justiça social e pelo destino dos pobres
do mundo se apresentam como panacéia para todos os males da humanidade.
3. A complementariedade dos caminhos do Oriente
e do Ocidente
As duas experiências não são
antagônicas mas complementares. O cristinianismo aprofundou o caminho
dialogal orientado fundamentalmente pela Palavra. A Palavra é tudo
nesta concepção. Palavra que se revela vira Escrituras judaico-cristãs;
Palavra que se encarna se faz humanização de Deus. Palavra que
se pensa vira teologia; Palavra que se celebra,vira liturgia; Palavra que
se obedece, vira moral; Palavra que se interioriza vira espiritualidade. Há
um permanente convite de passar do pensado ao vivido, da fé como aceitação
de um conteúdo revelado à experiência de revelação
do Deus vivo, das muitas palavras à única Palavra.
Mas hoje o chamado do tempo - tempo de dispersão,
de transformações frenéticas, de aceleração
histórica inaudita - vai na linha de uma mística da totalidade.
O caminho oriental parece representar uma resposta adequada e fascinante à
busca de milhões e milhões de pessoas. O ser humano quer vivenciar
a unidade sagrada de tantas diversidades. Elas não estão jogadas
ai em justaposição e em desarticulação. Um fio
secreto as une fazendo com que, apesar das contradições, haja
um processo imenso, dinâmico e único.
Sente-se a urgência de ligar e re-ligar
todas as coisas, a partir de um Centro poderoso. Esse centro é Deus.
Esse Centro nos confere unidade interior; faz-nos sensíveis a todas
as manifestações de vida, de movimento, de irradiação
que ocorrem no universo. Esse Centro nos faz sofrer com as rupturas, que se
apresentam sob a forma da agressão injusta à Terra, aos ecosistemas,
às florestas, aos animais, especialmente aos pobres e oprimidos, homens
e mulheres. A vivência do Centro mobiliza forças de transformação
para que a unidade experimentada na interioridade seja refeita na exterioridade.
O primeiro caminho, dos ocidentais, é
mais dos profetas, homens da palavra e da dialogação. O segundo,
dos orientais, é dos místicos, homens do silêncio reverente
e das visões de totalidade. Precisamos de um e de outro. O abraço
do Oriente com o Ocidente permite a emergência de uma espiritualidade
que tudo engloba e faz convergir nas diferenças. É um dos sinais
de nosso tempo o encontro entre Oriente e Ocidente, entre a busca interior
e a viagem ao exterior. Agora faz-se possível uma experiência
mais global do humano e também do Divino de todas as coisas.
Como sempre e. particularmente, nos dias atuais
a espiritualidade exige um engajamento profético, nascido não
somente da indignação, mas de uma experiência mística
de união com a Divindade e com todas as coisas. Ela poderá ser
imprescindível no sentido de inaugurar ou pelo menos reforçar
um novo paradigma civilizatório mais holístico, mais espiritual,
mais compassivo, mais terno e fraterno. Esta espiritualidade ajudará
a garantir um futuro promissor para o planeta Terra e para todas as tribos
que o habitam.