Frei Clodovis Boff, osm
A Teologia da Libertação (=TdL)
estaria em crise? Pelo que parece, sim. Os sinais são bastante claros:
a TdL tem menos visibilidade, não faz mais notícia, publica
menos e vende menos. E é menos tema de conversa. Para alguns não
é mais assunto in mais sim out. Aliás, pergunta-se por todo
o lado o que houve com ela: se hibernou ou se de fato não morreu.
Sem dúvida, há certo recuo de
interesse por sua temática: compromisso social, opção
pelos pobres, comunidades de base (=CEBs), mudança do sistema, injustiça
estrutural e por aí afora. São questões que não
têm a audiência de antes. Não dispõem do crédito
anterior.
Os próprios militantes de frente na igreja
mostram menos convicção e entusiasmo naquilo que pensam e fazem.
Sem falar dos que desanimaram da luta e da "caminhada".
É o que parece. Não se deve porém
tomar as correntes de um tempo por critério de valor e menos ainda
por coisa definitiva. Isso vale, sobretudo, para as correntes da mídia,
do mercado e da política. Muitas vezes se trata de movimentos que agitam
a superfície da história, simples conjuntas, quando não
meros modismos, e não correntes profundas.
TdL: o "espírito da coisa"
Aqui, precisamos ser claros. Que seja dito logo
de entrada: a TdL não é um processo assim tão orgânico
que possa ser colocado em crise de um momento para outro. Certo, a crise atual
pode ser profunda, mas mais profundo é o fundamento da TdL.
Antes de refletir analiticamente como a TdL
enfrenta a crise do momento atual, importa dizer como os teólogos a
vivem. Pois, mais que ficar esmiuçando as razões da TdL, é
preciso ver sua razão de fundo.
Nesse sentido, digamos de imediato que a TdL, mais que ser uma teoria é
um "modo de teologizar". Antes de ser um método específico,
é uma sensibilidade. Tonrou-se um hábito. É o jeito habitual
de se fazer teologia na América Latina.
E isso não é o fato de um ou dois
teólogos, ou mesmo de um grupo apenas. A TdL é coisa de toda
uma corrente, para não dizer - como se verá logo - de toda a
igreja. Por seu significado amplo, é um processo que tem tudo para
ser qualificado de "histórico". E quando se diz TdL não
se diz só teologia, diz-se catequese, liturgia, espiritualidade, vida
consagrada, pastoral. Em suma, TdL é Igreja e é Povo - um tipo
de ser igreja e uma forma de ser povo.
Como estilo próprio de fazer teologia,
a TdL aborda qualquer problema que aparece pela frente numa determinada maneira,
isto é, pensando em termos de povo, comunidade, participação,
compromisso, transformação social. Quem acha que ela só
pensa em política não captou o "espírito da coisa".
Pois se pegar a TdL pelo seu lado certo, isto é, em sua fonte, o processo
vivo, e não apenas em seus discursos, vai logo perceber que essa teologia
pensa toda problemática do povo: a política e tudo o mais; tudo,
mais a política.
Que aí entra a política e não
certamente a conta-gotas, só pode ficar admirado quem não sabe
como vive o povo e o quanto ele é vítima de um modo errado de
organizar a sociedade. Mas não julgue que por isso o povo vai deixar
de ser mais religioso, porque a síntese viva aqui desafia a análise
abstrata.
Pois bem, quem tem experiência de povo
e sabe o que o povo vive e sofre não tem outra alternativa teológica.
É possível fazer responsavelmente outra teologia neste continente?
A menos de fechar os olhos à realidade e fazer teologia para minorias.
Mas teríamos outra coisa aqui que uma "teologia decondomínio"?
É, portanto, esta atitude de fundo, feita
mais de espírito que de método, mais de vida que de teria, que
"faz a diferença" entre a TdL e qualquer outra. por isso,
esse jeito de fazer teologia está por demais arraigado, "naturalizado",
para se considerar assim tão facilmente superado. E tem custado um
preço por demais alto para ser assim tão rapidamente abandonado.
E ainda que o fosse, vá que os teólogos
da libertação "tirem o time do campo", fica sempre
a realidade nua e crua do povo gritando por uma TdL qualquer. Porque, enfim,
teologizar essa realidade é preciso! A TdL é a teologia "necessária".
Não há como escapar.
Mas, e a falência do socialismo real?
E o ascenso do neoliberalismo? E o domínio da modernidade tecnológica?
E o controle do Vaticano? A primeira reação é dizer:
Danem-se! A realidade grita mais alto. A TdL é uma teologia imperativa.
É o que tem que ser. E "o que tem que ser, tem força".
Ou se imaginou que a TdL era só de brincadeira? Que não era
para valer?
E partindo deste espírito que a TdL ataca
todo o feixe dos problemas que estão hoje emergindo. Ela não
tem uma agenda fechada. Pois se define como um modo de ver as coisas e não
tanto por essa ou aquela temática.
Ora, a partir de suas bases, a TdL está
se reformulando, ampliando dialeticamente suas grandes intuições,
especialmente a dupla referência aos pobres e ao evangelho, e incorporando
novas questões. Eis algumas tarefas que está levando em frente:
No nível metodológico , vai assumindo
uma Mediação Sócio-Analítica mais plural, mesmo
se o marxismo permanece como referência importante.
No nível eclesiológico, trabalha,
em articulação com a problemática das Comunidades Eclesiais
de Base e o "novo modo de ser igreja", questões como: religião
popular, papel social e religioso das massas, realidade urbana, inculturação
da fé, importância da mídia, lugar das novas classes médias,
discernimento dos novos movimentos religiosos.
No nível político, revaloriza
em novos termos a relação direta e imediata com os "excluídos"
(caridade, assitência); dá lugar às alianças estratégicas
com esquerdas e aos acordos táticos com direitas.
No nível da espiritualidade , passa a
redescobrir a gratuidade da contemplação, pondo decididamente
a "mística de Deus", como ponto de partida, polo dialético
e centro para a "mística da luta".
Falando sem rodeios, a TdL é uma "teologia
de coisas" e não apenas de idéias: ela faz da realidade
vivida pelo Povo seu tema de reflexão.
Ora, uma vez que se captou qual é o "espírito"
que anima, sustenta e garante TdL, pode-se examinar agora pacata e objetivamente
como ela reage à crise que envolve tudo e todos.
Crise nas mediações, não nas raízes
Na análise da TdL e a crise, nossa posição
é esta: se a crise toca essa teologia é no nível das
mediações, não no nível das raízes. Expliquemos.
Quais são as raízes da TdL? Em síntese: a experiência
de Deus no pobre. Analiticamente: sustentada inspiração evangélica
e compromisso com o abandonado da sociedade. Ora, a crise atual não
abalou estas duas convicções de fundo. E a TdL nasceu precisamente
do encontro fé e opressão.
As questões históricas que levantou
não foram de modo algum solucionadas. Longe disso. Antes, se transformaram
e se agravaram: a miséria cresceu e tomou a forma de exclusão
em massa. E com exclusão, a dialética senhor-escravo passou
em segundo plano em favor de outra: a dialética integrado (embora dependente)
e excluído. A perspectiva da igualdade está novamente distante
e sua visibilidade histórica mais problemática. Portanto, a
TdL, mais que há dez ou vinte anos atrás, continua "oportuna,
útil e necessária", afirmava João Paulo II, aos
bispos do Brasil (abril 1984).
Seja como for, a realidade do sofrimento social
e da desigualdade assim como o desejo de mudar a sociedade e a vida são
fenômenos estruturais. Continuam socialmente presentes e, embora reprimidos,
pulsam com toda a sua incontestável urgência histórica.
A crise atual não os resolveu, só mudou-lhes, para pior, o aspecto.
Certamente, as questões da fé
e do pobre são objetivamente atingidas pela crise e necessitam de aprofundamento
e de um novo equacionamento. Mas ao nível subjetivo , aquelas duas
convicções continuam sendo, aos olhos dos teólogos da
libertação, os pilares incontestes de seu discurso.
De resto, falando em geral, pode-se sustentar
que, entre todos os grupos atingidos pela gigantesca crise cultural que estamos
vivendo, os militantes de igreja não se encontram em condições
mais desavantajosas que os outros. Não se sentem em absoluto desarvorados.
Ao contrário, dispõem de recursos que nem toda a esquerda tem:
uma sólida referência religiosa e uma sustentada vinculação
com os pobres, sem falar no apoio em uma instituição - a igreja
- que possui lá sua vitalidade e crédito sociais.
Quanto às mediações concretas
da TdL, ou seja, às formas específicas que podem assumir a dupla
referência acima (a fé evangélica e solidariedade com
o oprimido), aí sim há muito que rever e muito que mudar.
Efetivamente, a crise atual trouxe para a TdL a necessária relativização
de muitos pontos de vista. Ela purificou-a de alguns equívocos. Constitui,
assim, para ela um exercício de despojamento.
Ao nível de suas mediações,
muitas certezas falsas foram para o chão. Essas certezas se situavam
a um tríplice nível: (1) certezas de análise sobre o
que era o sistema social (capitalista); (2) certezas sobre o projeto histórico
de sociedade, de como devia ser o sistema (socialista) alternativo; (3) certezas
sobre as estratégias corretas (de classe e revolucionárias)
para se chegar a encarnar a utopia.
A TdL tornou-se mais humildade e transigente.
Passa a perceber a realidade de modo mais vário e complexo. Faz-se
sensível à parte de verdade que está nas outras propostas,
tidas outrora com pouco sem-cerimônia como "alienadas" ou
coisa "fora da linha certa".
Por outro lado, a crise não deixou de
fortalecer a TdL em suas raízes. Essencializou-a seus príncípios
básicos. Operou nela uma concentração em torno de suas
convicções de fundo: a fé bíblica e a opção
pelos pobres. Disso, em verdade, não há como arredar pé.
Antes pelo contrário: é só firmando-se aí que
a TdL tem condições de enfrentar a crise e propor saídas
criativas.
Agora, se examinarmos porque a TdL hoje adota
um "perfil baixo", podemos identificar três circunstâncias
responsáveis, de peso e de valor desiguais: (1) a incorporação
da temática da TdL pela Igreja Institucional em seu discurso oficial,
(2) a dominância da ideologia neoliberal no atual debate social; (3)
o deslocamento da relevância social para a questão do "sagrado".
1 - TdL: uma "teologia difusa"
Umas das razões por que se fala menos
da TdL é que, em boa parte, esta teologia já foi incorporada
pela Igreja Institucional. Isso é bom. E, no fim das contas, um ganho.
Fala-se menos e faz-se mais TdL.
Há quem se tenha surpreendido (L. Sartori) com a rapidez com que Roma
assumiu o melhor desta teologia. Bastaram quinze anos: da publicação
do livro "Teologia da Libertação " de Gutiérrez
em 1971 à instrução romana " Libertatis Conscientiae"
em 1986. Ou se pensa que Roma se move por bagatelas?
Efetivamente, as bandeiras principais da TdL, que são, a nosso ver,
a opção pelos pobres, dimensão sócio-libertadora
da fé e a constituição de comunidades populares (CEBs),
não são mais só dela. Pertencem à igreja como
um todo. Assim também, as idéias de "pecado social",
de "conscientização", de "missão profética",
de "transformação das estruturas" e outras mais já
circulam com mais naturalidade dentro da área eclesial. Nesse sentido,
a TdL enriqueceu realmente a consciência social da Grande Igreja.
Circula no grande público uma visão
equivocada segundo a qual a TdL teria sido "condenada" pelo Vaticano.
A verdade é o contrário: como proposta teológica nova,
ela foi substancialmente legitimada. Sim, foram-lhe feitas duas reservas sérias:
o uso perigoso do marxismo e o risco da redução da fé
à política. Mas a mídia insistiu tanto nessas reservas
que o público acabou vendo a TdL reduzida a isso e portanto colocada
globalmente sob suspeita. Contudo, falando jornalisticamente, o Vaticano aprovou
a TdL: se não deu nota 10, ao menos nota 7.
A verdade é que existe hoje uma TdL em
estado difuso no corpo de toda a Igreja. É como um cubo de açucar
que se diluiu no café. Como corrente específica, não
se recorta mais, no panorama eclesial, com os contornos claros de antes. Os
teológos da libertação não fazem mais a figura
de "blocos" de antes. Tome-se a associação dos teológos
brasileiros, a SOTER. É difícil dizer quem é e quem não
é aí dentro "teólogo da libertação".
E, no entanto, o fermento "libertacionista" vigora com força
nessa organização.
Esse fato possui um lado inegavelmente positivo.
Pois não era esse mesmo o destino da TdL, destino esse inscrito em
sua própria origem? Não queria representar toda a mensagem da
fé, ainda que numa perspectiva particular, como aliás, acontece
com toda teologia? Não entendia ser uma teologia "substancial",
sem acréscimo? A TdL não pode ser uma teologia à parte
ou de parte. Se assim apareceu num primeiro momento, foi para fermentar toda
a teologia e toda a igreja e em seguida poder retirar-se.
Poder-se-ia objetar que a relativa "recuperação"
do discurso libertador pela oficialidade representa uma "vitória
de Jonas": a TdL teria sido engolida pela instituição.
Mas, como observou com perspicácia o demitido vice-diretor do "Osservatore
Romano", Virgilio Levi, talvez tenha sido justamente assim que ela foi
salva da marginalização e até do esmagamento de que estava
ameaçada pelas forças mais reacionárias da Igreja e da
Sociedade.
Certo, se por um lado as grandes intuições
da TdL tiveram relativa "recepção" no seio da grande
Igreja, é preciso também dar-se conta de que elas não
mantém aí o mesmo vigor profético e evangélico
das origens. Seu mordente acha-se aí naturalmente enfraquecido e relativizado.
Pois a assimilação de um discurso
"profético" ou "revolucionário" por uma
instituição qualquer (religião ou partido) não
leva necessariamente a uma redução de seu vigor originário?
Não é o preço a pagar para que esse discurso ganhe, via
instituição, amplitude social e continuidade histórica?
No caso da instituição católica deve-se levar em conta
ainda um agravante: sua conjuntura interna inegavelmente restauradora. Basta
lembrar o que foi Santo Domingo, o Sínodo Africano, qual é o
perfil dos bispos nomeadosdurante este pontificado e toda a série de
documentos "normatizadores" recentemente publicados pelo vaticano.
Todavia, apesar de sua centralização, não falta à
igreja, para fora, certa capacidade de intervenção crítica.
E só lembrar o papel exercido pela Igreja (leia papado) na derrubada
das ditaduras no Sul e dos regimes totalitários do Leste. Mais: em
várias igrejas locais e mesmo regionais, as propostas de uma teologia
libertadora foram assimiladas de modo ainda mais extenso e profundo, como,
por exemplo, no Brasil.
Pois bem, na medida em que a dimensão sócio-libertadora da fé
se torna nas igrejas o "discurso normal", a TdL de certo modo recua
para o fundo. É o precursor frente ao Messias, afirmando: "Importa
que ele cresca e que eu diminua".
Mas ter-se-ia deste modo esgotado a força
da TdL? Teria ela preenchido sua função histórica? De
modo algum. A assimilação do discurso do compromisso social
pelas comunidades cristãs tem pela frente ainda um longo caminho. Por
isso, a TdL mantém sua vigência, inclusive como movimento específico
na Igreja. Todavia, a questão não é tanto salvar a TdL
como discurso específico, mas aquilo para o qual ela aponta e que concerne
toda a Igreja: o compromisso político da fé, a causa do oprimido
e a constituição de uma igreja de participação
e engajamento.
Efetivamente, a TdL se situa no seio da eclesialidade.
E aí dentro ela faz o papel de uma "corrente de opinião",
que busca sensibilizar o conjunto da igreja para a questão específica
da justiça social do ponto de vista dos pobres. Se neste sentido ela
ainda aparece como uma teologia "de parte" (não à
parte) é precisamente in partibus pauperum. Nada há aqui de
sectarismo, porque a parte que ela defende vem sempre situada dentro do todo
e em função do todo; e também porque essa "parte"
é, do ponto de vista social, a maior e a "preferida" do ponto
de vista teológico.
Mas, como dissemos, essa "parcialidade"
da TdL é hoje menos aparente, porque boa parte da TdL já está
integrada, como devido, no todo do discurso institucional.
Contudo, em relação à Igreja
institucional, fica para a TdL um problema imenso: é "novo modo
de ser igreja", um "novo modo" não apenas como simples
inspiração e realização setorial, mas enquanto
feito nova institucionalidade através de estruturas de efetiva "comunhão
e participação", coisa que alguns preferem chamar "democracia
eclesial".
A TdL tem aí um dos seus imensos desafios
históricos. Desafio esse ligado à sua dupla referência
fundante, pois as perguntas que estão por trás são: Que
tipo de igreja responde concretamente ao projeto de Jesus? E que tipo de igreja
serve efetivamente aos pobres?
Não vai longe, em seu testemunho público,
um Cristianismo que deixa intocado o atual sistema autoritário de igreja,
como não vai longe em sua eficácia histórica, uma opção
pelos pobres levada em frente por uma instituição paternalista.
Sem dúvida, as CEBs são, nos fatos,
"células eclesiais iniciais", como queria Medellín.
Mas quantos anos ou "semanas de anos" são ainda precisos
para que toda a Igreja institucional se deixe fermentar pelo que elas representam?
2 - A gritaria neoliberal
Que o neoliberalismo avance e os movimentos
de mudanças recuem, isso constitui na verdade o efeito duplo da mesma
dialética histórica.
Como são ainda audíveis as vozes
e clamores dos excluídos nessa verdadeira "gritaria de mercado"
em que se reduziu o discurso do mercado? Os assuntos in hoje são: tecnologia,
modernização, planetarização, inserção
no mercado mundial, desregulamentação, privatização,
ajustes estruturais, volatilização do capital, competitividade,
flexibilidade do mercado e assim por diante.
Até há poucos anos podia-se dizer
que, em geral, o discurso "de esquerda", para usar uma distinção
de Gramsci, se não era o discurso dominante, era pelos menos o discurso
hegemônico. Era o discurso mais dinâmico e criativo no campo cultural.
Era por isso também o discurso mais temido no mundo político
e mais respeitado na área acadêmica.
No que toca à TdL podia-se dizer que
na Igreja da América Latina como um todo, era a teologia "hegemônica":
ela dava a direção moral e intelectual à caminhada pastoral
das igrejas. Ela estabelecia a agenda do debate eclesial, como se viu deste
Medellín (1968), passando por Puebla (1979) até os meados dos
anos 80. Desde então, em virtude da conjugação de fatores
sociais (crise do "socialismo real") e de fatores eclesiais, ("restauração
católica"), começou a perder terreno, até se encontrar
no ponto que hoje se encontra e que estamos por ora analisando.
O certo é que a crise que afeta a TdL
não é exclusiva dela. É antes uma crise que envolve todas
as forças de esquerda (sindicais, partidárias, populares, etc.)
no mundo moderno depois da "queda do muro de Berlim" (1989).
Esclarecemos que por "forças de
esquerda" entendemos aqui as que se distinguem: (1) por buscarem antes
de tudo a superação da miséria das grandes massas (questão
da igualdade social ); e (2) por acreditarem na possibilidade de um projeto
alternativo ao atual sistema capitalista (questão do socialismo). A
quesão da revolução como estratégia, entendida
em termos de ruptura pontual, e a questão do internacionalismo não
parecem constituir características próprias da "esquerda
moderna".
Não que a "esquerda" esteja
estagnada ou indo para trás. Não. Ela segue em frente. Mas avança
mais devagar que no passado recente.
Expliquemos. Que a "esquerda", pelo
menos no Brasil, continue a tocar em frente, basta ver, por exemplo, o avanço
parlamentar do PT, algumas lutas sindicais bem sucedidas, os novos movimentos
populares, sem falar na máscara social-democrata que a direita viu-se
obrigada a envergar, na pessoa do novo presidente Fernando Henrique Cardoso,
para se fazer creditar junto ao eleitorado. Por outro lado, é também
verdade: a "esquerda" anda mais devagar que nos anos recentes. Dito
numa palavra: desacelerou.
Algo disso vale também para os teólogos
da libertação. Continuam dando suas aulas na perspectiva global
da transformação social; seguem pesquisando, abrindo novas frentes
de discussão, sempre dentro da "ótica da libertação":
a inculturação, a espiritualidade, a feminino, a modernidade
a partir das vítimas, a ecologia, etc.; continuam escrevendo, publicando.
Mas não há dúvida: se o fogo não apagou, o gás
certamente baixou. Também, com a investida maciça e sem freios
do neoliberalismo e açambarcante refluxo católico, pode-se esperar
mais?
Todavia, como aventam alguns, o neoliberalismo
não perde por esperar. Pois não é uma fatalidade que
continue a dominar, triunfante, de modo indefinido. É, ao contrário,
muito provável que contra ele se prepare uma reação .vigorosa
e ainda mais profunda e plural que no passado, reação no seio
da qual o Cristianismo há de ter um papel não desprezível.
E nesse frente cabe à TdL tomar o lugar que lhe compete.
3 - A relevância epocal da questão do "misticismo"
Por fim, a crise desse final de milênio
toca a TdL não só, como vimos, pelo fato de ser "de libertação",
mas também e, talvez mais ainda, pelo fato de ser em sua base "teologia".
Como assim?
É que a crise epocal não se dá apenas ao nível
do compromisso sócio-político. Não é apenas crise
de sociedade. É crise de civilização: crise de valores
e de sentido. Entre as necessidades que "doem" hoje na alma dos
"modernos" não se contam apenas as necessidades materiais,
mas também as "não-materiais": carência de perspectiva,
de idealidade e de esperança. Para que serve uma "vida" sem
vitalidade? Poucos como Saint-Exupéry exprimiram de modo mais enfático
a necessidade que devora o nosso tempo de dar um "sentido à vida".
Que significa isso para a TdL? Significa que
não é apenas a fé libertadora, mas a fé como tal
, como fonte de sentido, que há de ser retomada e consolidada. Aos
olhos da fé cristã, que a "memória dos pobres"
se perca é dramático, mas sempre resta uma esperança,
ainda que extrema - a escatológica; mas que a "memória
do divino" desapareça é muito pior: é trágico.
Aí a história toda se torna, no final de contas, opaca, aporética,
absurda. E então, como viu muito bem Nietzsche, se profila no horizonte
o abismo sinistro do nihilismo. Se não se responde à pergunta
"para que, finalmente?", a própria luta histórica
por uma sociedade melhor é posta em causa e, faltando-lhe a esperança,
perde sua força propulsiva.
A teologia tem pela frente não só
a questão da miséria material, mas também a da miséria
existencial e espiritual do mundo moderno. Ela não é só
chamada a ser profética, mas também kerigmática. As demandas
que lhe são dirigidas não são apenas por pão,
mas também por sentido. A isso a Bíblia chama antonomasticamente
"Palavra" e diz que disso também vivem os humanos!
Isso significa que a teologia é chamada não só a ser
libertadora, mas também a afirmar sua específica teologicidade.
São suas bases que devem ser renovadas e de novo garantidas.
A primeira TdL (dos anos 70), aquela dos "Pais
fundadores", possuía os princípios primeiros (as verdades
da fé) como pontos de partida. Ela arrancava da fé cristã
do "povo" como de pressupostos assegurados. Mas pelos meados de
80, esses pressupostos evidenciavam uma perda crescente de sua "plausibilidade"
social. Já nos anos 90, mostravam claramente a necessidade pastoral
de serem revistos, pastoralmente repostos e teologicamente refundados.
Como testemunhas da época, observem-se
os jovens dos anos 90, como são e que pensam: neles a tradição
da fé já não funciona por vias da tradição
cultural. O mundo moderno não lhes aparece apenas injusto, mas também
sem-sentido. Em nome de que mudar as estruturas, se a vida mesma não
vale a pena? Não suceda que enquanto os teólogos continuam indo
para o social, boa parte dos jovens esteja voltando, em busca de "outra
coisa", de "algo a mais". O que é finalmente relevante
hoje? Não se dá atualmente um deslocamento das relevâncias?
Certamente, a fé cristã nunca
foi totalmente funcional a qualquer cultura ou sociedade. A fé é
essencialmente crítica já ao nível antropológico-existencial,
justamente porque ela põe em crise o destino do humano, confrontando-o
com o Mistério transcendente. Por isso será, em princípio,
disfuncional ao sistema do mundo. Mas na sociedade moderna, secularizada e
pluralista, a criticidade intrínseca da fé se duplica em criticidade
histórica e cultural.
O que há é um deslocamento da
problemática histórica. O acento passa da libertação
social para a do sentido espiritual da vida, de tal modo que esta se torna
uma questão vital e prioritária. E isso não apenas para
os "indivíduos", mas para amplos setores da sociedade, mesmo
se não é propriamente problema social (para retomar uma distinção
clássica).
Poder-se-ia pensar que a aguda "situação
espiritual" do mundo moderno não passa de uma "onda"
do momento, a qual deverá refluir dentro de poucos anos, talvez depois
que o novo milênio se normalizar. Mas é difícil que a
coisa vá por ai, pois o fenômeno é por demais vasto e
agudo para constituir mera conjuntura passageira.
A problemática moderna (ou pós-moderna?)
da "busca de sentido", da "sede de sagrado", da "fome
de transcendência" ou como se queira chamá-la, está
recebendo os mais variados tipos de respostas. Da parte da Igreja católica,
temos a "Nova Evangelização", lançada pelo
pontificado atual e assumida também por Santo Domingo. Temos também
os "Movimentos" de renovação católica. Fora
do Catolicismo se conhecem outras respostas, como os "novos movimentos
religiosos" (seja os grupos neo-gnósticos nos meios de classe
média, como as chamadas "seitas" junto às classes
populares), os movimentos fundamentalistas e outros.
Ora, a problemática do depauperamento
espiritual, produzido pelo "desencantamento do mundo", via racionalidade
técnico-científica, não foi advertida pela TdL com a
velocidade e a acuidade com que o foi pela igreja institucional e pelos "movimentos"
leigos.
Mas podia a TdL, a partir de sua ótica
própria, ter percebido isso? Tinha ela olhos pra ver? E mesmo se a
evangelização se impõe à responsabilidade missionária
da Comunidade eclesial, podia ela entrar na agenda da TdL?
Como não? E isso pelo simples fato de
que a TdL é e só pode ser teologia, e teologia integral. Nela
a opressão/libertação nunca foi um sistema mas uma dimensão,
ainda que a mais urgente. Ela sempre se articulou com a totalidade da fé
em sua transcendência. Hoje, ela se dá melhor conta da distinção,
teologicamente irrespondível, entre a "libertação
soteriológica" e a "libertação ético-social"
e do primado axiológico da primeira sobre a segunda.
A dimensão espiritual tem sem teologia
uma primazia axiomática. É coisa que a TdL professou mas que
nem sempre conseguiu transformar em efetiva regra de construção
teórica. Sim, os princípios próprios da TdL como teologia
específica são "princípios segundos". Repousam
sobre os "princípios primeiros" de toda teologia. Ora, esses
são os da fé originária (apostólica) e comum (católica).
Agora, se a dimensão "mística"
da fé parece hoje tomar a dianteira sobre a dimensão "política",
seria um engano só por isso considerar superada a TdL enquanto corrente
específica. Ela conserva a impreterível tarefa de garantir estas
duas coisas: que a fé cristã permaneça voltada, por exigência
intrínseca, à "questão do pobre" e que a solidariedade
com o pobre fique, na igreja, firmemente ancorada às bases de fé
e, na sociedade, aberta à questão religiosa.
Nessa ótica, a questão da transformação
social não perde relevo em proveito da preocupação "religiosa",
como poderia parecer à primeira vista, mas antes é elevada à
sua dimensão mais alta, que é também a dimensão
originária e definitiva.
Por certo, as duas grandes questões evocadas,
respectivamente ético-social e religioso-metafísica, estão
de tal modo ligadas que uma não se resolve a contento sem a outra.
A história recente é nisso instrutiva.
Mas, ficando dentro da perspectiva sociológica,
não seria a "problemática do sentido" uma problemática
típica das classes "privilegiadas" (Max Weber)? É
verdade, mas é também verdade que não é exclusiva
delas. E isso não só pela influência socializadora da
mídia, instrumento privilegiado da mentalidade classe-média,
mas por causa da cultura racionalizadora moderna que envolve a todos, ricos
e pobres, e que suscita em todos a busca da "outra dimensão".
E nem falemos da dimensão filosófico-antropológica
da questão. A menos que se creia que os pobres não sejam "gente".
Não é também para serem reconhecidos como "gente",
mesmo se é pelo viés da solução das "necessidades
imediatas", que os excluídos frenqüentam as chamadas "seitas"?
Ou se acredita que os pobres se fazem "crentes" apenas por efeito
do abandono social, sem outros ideais mais elevados?
Mas, então, com a onda atual de misticismo
fica superada a questão da justiça social? Como? Essa não
é uma questão teórica que se possa eludir a bel prazer;
é antes um problema prático que se impõe com a objetividade
de uma montanha. É a montanha dos 80% do planeta - o Sul - que só
dispõe dos 20% da renda mundial. Esta disparidade proíbe qualquer
consciência tranqüila e qualquer ordem mundial segura. E não
tem misticismo algum, ainda que ajudado pelo neoliberalismo, que consiga esconder
esse escândalo que brada aos céus.
Frente ao mudado cenário tanto da fé
quanto da política, é dever da TdL repor a relação
fé-política em novos termos. Tudo indica que a fé, como
sempre política, tenderá a sê-lo em menor medida, por
entender enfatizar com maior vigor sua autonomia específica. Quanto
à política, tenderá a ser mais vulnerável à
penetração da religião, com o perigo de sua "colonização"
sob a forma da integralismo político. Na verdade, hoje o indicador
"política" baixa, enquanto que o da "fé"
sobe.
Flexibilidade em ajustar-se à nova situação
Em relação aos novos desafios,
os teólogos da libertação não pensam que se trate
simplesmente de "pegar ou largar". Nada de endurecer-se nas velhas
posições, nem de entrar na nova onda. O importante é
sempre discernir. Para isso, ajuda a distinção prática,
tomada de empréstimo aos pós-modernos (valha esse recurso),
entre "pensamento forte" e "pensamento fraco".
Cumpre-nos manter uma "pensamento forte"
frente às convicções de fundo, às intuições
originais. Isso tudo é da ordem do irrenunciável porque se refere
à própria identidade e, por isso, é também inegociável.
É a parte relativa aos princípios específicos da TdL,
mas também e, sobretudo, aos princípios gerais da fé,
nos quais TdL está e só pode estar assentada.
É adotar um "pensamento fraco"
no que concerne às questões secundárias e relativas,
como as referentes às "mediações teóricas
da TdL, tais as análises, estratégias e projetos concretos.
É especialmente nesse campo que os teólogos da libertação
estão prontos a incorporar elementos novos, sejam eles metodológicos,
éticos ou espirituais; aprender das outras correntes, para além
de todas as cercas de escola, confissão e partido.
O que importa hoje à TdL é ser
pluralista, relativizante (não relativista) e aberta a toda forma de
diálogo. Busca ganhar em tolerância, deixando de lado toda forma
de intransigência, de espírito sectário e de purismo.
Entende que é necessário ser capaz de negociar e aliar-se o
quanto seja possível, seja que se trate de fazer a "análise"
da sociedade, de organizar as "estratégias" ou de elaborar
"projetos" específicos da sociedade.
Deste modo, o que ela quer é evitar as tentações extremas
que a situação de crise provoca: o dogmatismo e o relativismo.
O perigo maior atualmente é o relativismo.
Este segue a lei do "tudo vale". Mas então se passa facilmente
ao "vale tudo". Nesse caso, Sartre tem razão: "Dirigir
um império ou embebedar-se é a mesma coisa". Ora, frente
ao relativismo rampante impõe-se não abandonar as convicções
centrais de que acima se falou.
O relativismo moderno chama à baila a
"filosofia" da moda: o pós-moderno. Esse se apresenta como
o pensamento da diferença, do fragmento, do simulacro, do que não
tem fundamento nem finalidade. Mas como deixar-se seduzir por um pensar que
renunciou à busca da verdade e se crê incapaz de qualquer totalidade?
Pois, quando o pensamento frente às "questões fortes"
se faz "pensamento fraco", então já não merece
outro nome que o de "pensamento covarde". Esta aí um claro
sinal da decadência de uma cultura, de uma filosofia de baixo-império.
Mas é preciso também guardar-se do segundo perigo, o dogmatismo, ao qual nem sempre se tem resistido. Impossível tratar tudo na base do "pensamento forte". Isso leva ao integrismo, ao fundamentalismo e à alienação da história profunda. Fica-se, então, falando sozinho ou entre pares. É o enrijecimento mental, fruto do medo.
É, pois, nessa dialética entre um "núcleo"
de algumas poucas convicções firmes e uma "margem"
de muitas posições relativas que há de estar o segredo
para se mover com sucesso dentro da atual crise de época. É
a média áurea, que permite mudar, ficando-se, contudo, substancialmente
fiel a si mesmo.