O menino Fernando descobre a arca do sr. Pessoa
Dum
azul quieto era o mar. O rapazito vestia um fatinho à marujo, estava
sentado numa pedra com os pés descalços metidos na areia. Gaivotas
lançavam sombras vertiginosas sobre as águas; havia búzios
pela praia, e limos secos, pedaços de concha, tábuas. Ao longe
talvez se pudesse imaginar um barco; ou melhor, uma vela enfunada que, a pouco
e pouco, se afogava na vibração quente do ar, e desaparecia.
Levantou-se, foi pela praia, deixando atrás de si um sulco de passos
na areia molhada.
Esta era a praia que, um dia, o rapazito recordaria como a da sua infância:
sem mácula de lodo, sem sinais brancos de ossos, sem poeira escura
de pesadelos ou de naufrágio. E, enquanto caminhava pensou: «Aqui
tão perto do rebentar das ondas e não as ouço. que mar
é este?».
Apanhou um búzio, e dentro dele apercebeu o marulhar de outro mar,
invisível, distante. Apurou o ouvido, e da espiral secular do búzio
soltaram-se nomes de oceanos...
Por fim, afastou o búzio da orelha e fitou o mar. Do silêncio
aparente das águas veio, então, uma voz. Olhou em redor, assustado,
e não viu ninguém. A voz vinha do fundo do mar.
Aproximou-se da rebentação e esperou a sétima onda -
a maior, a mais formosa - aquela que se espraia com estrondo e simultaneamente
fecha e inicia o ciclo da rebentação. Mal a onda começou
a encolher, correu atrás dela, pegou na bainha da espuma e, muito lentamente,
levantou-a como se fosse um simples pano.
Caminhou, ou viajou, pelo túnel que se abrira entre o fundo arenoso
do mar e o tecto de água formado pela onda levantada. Atrás
de si o mar ia-se fechando, silencioso.
Deve ter caminhado ou viajado muitas horas de sono, ou apenas fingiu o sonho.
Não sabemos ao certo quanto tempo.
O que sabemos é que foi dar a uma clareira de espelhos no fundo do
mar, onde se encontrava uma arca.
Abriu-a, e por entre inúmeros papéis escritos (que ele viria
a escrever) encontrou uma fotografia. Era um retrato seu, numa idade que não
suspeitava ainda vir a ter. Retrato amarelecido que alguém lhe averia
de tirar: com chapéu, óculos arredondados, e toda a melancolia
de um país no olhar.
Al Berto, O Anjo Mudo