ðHgeocities.com/joseavellar/decima_pagina.htmlgeocities.com/joseavellar/decima_pagina.htmldelayedxoÔJÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÈ0 ’¶OKtext/html€õ0k¶ÿÿÿÿb‰.HSat, 02 Aug 2003 21:16:50 GMTMozilla/4.5 (compatible; HTTrack 3.0x; Windows 98)en, *oÔJ¶ Avellar Toledo
O HOMEM,UM ANIMAL PROMISSOR
Avellar Toledo





Tão pesada é a herança animal que a inteligência, não podendo indicar a verdade, para se compensar, busca a ilusão. Com que volúpia nos deixamos enganar, quando a mentira nos favorece! Acreditamos que, por conta própria, somos capazes de bom comportamento. Os mais afoitos enchem-se de santa indignação, se lhes pintam o retrato sem retoque.

É de fora que nos dirigem, mas, agimos como se as rédeas estivessem conosco. O orgulho nos mostra a consciência como coisa nossa, embora ela não seja senão barreiras que a nós, como seus integrantes necessários, a comunidade impõe como condição de sobrevivência grupal.

A moral vale muito, mas vale como advertência: desafiá-la significa desafiar a força bruta que está por trás dela. Por menos que os ingênuos gostem; por mais que nos envergonhe, todo o mecanismo de dissuasão depende de força bruta pronta para a ação, caso falhe a implícita ameaça contida na moral. São vozes alheias aquelas que dentro de nós se erguem contra nossos propósitos, por mais torpes que sejam. (A rigor, para nós, tudo é permitido, pois a moral, como realidade individual, não existe.)

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Ninguém se submete a um julgamento, submete-se à força que está por trás do juiz, dando vida à sentença. Na hora de julgar, ninguém julga seu igual. Aquele que julga tem de estar acima e não é à toa que nos tribunais o juiz fica em plano superior, invariavelmente. A moral e outras criações do cérebro pouco valem como elementos de dissuasão. Seriam flanqueadas pelos indivíduos, não fora a certeza de que por trás delas, está a força bruta que ou os detém pela ameaça de iminente destruição física, ou efetivamente os destrói, solucionando o problema ao gosto da selva. Por ordem, somos, primeiro, animais, depois, racionais.
Por mais vergonhoso que seja, a verdade é que, tendo de escolher, poucos prefeririam morrer como homens, a viver seja como for. Morre o corpo, fim da esperança. A realidade não deixa de ser, só porque nos desagrada. Sob ameaça, a inteligência, tentando sobreviver, aceita o eclipse. Mais gente do que se imagina, vive do corpo apenas, vida animal, mas, d vida e com ela a esperança de que o sol volte a brilhar.

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Descrentes de uma vida racional, os homens, no seu mútuo relacionamento, parecem contentes com a vida nas sombras, daí sua ojeriza à verdade - bússola da razão. Ela se opõe a que somente os iniciados lhe detenham os mistérios. Ela não precisa ter donos, nem tutores. Por isso não é bom que demasiado se interessem por ela e, muito menos, que façam dela objeto de um culto profissional.
Dizem que o intelectual é o garimpeiro da verdade. Descobrí-la onde esteja, é sua razão de viver. Missão estranha, dirão os nossos, desconfiados de tanto sacrifício para revelar o que estaria à vista, se, de propósito, não o escondessem. Na Terra, me dizem que de dois garimpeiros, um é charlatão; existe mais interesse em ocultar a verdade do que em vivê-la. (O mundo ficaria em silêncio, se todos portassem um detetor de mentiras.)

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Contra a verdade, sedução e ameaças. A violência atrai os homens como a luz atrai os insetos. Paralisa-os sua formidável presença, como o brilho da luz paralisa os insetos. Presos desde que o mundo é mundo, cada um a seu feitiço, os insetos, embora tenham asas, não conseguem voar, enquanto os homens, apesar da inteligência, não conseguem pensar. Diante da violência, poucos podem dizer: "ignorei o teu fascínio e não me acovardei!"

Muitos existem que, vencidos pelo tédio, na brutalidade buscam excitação. Adventícios de uma seita tão velha quanto o mundo, clamam pelo sangue com místico fervor, pois que, tomados de náusea, nada concebem de mais eficaz que ele para lavar os pecados desta corrupta civilização.

Ungidos de Deus, só a excelsa honraria não lhes basta. Mais que o triunfo do espírito, que este, a vista curta não percebe, anseiam pela glória palpável, pela consagração retumbante (espúria, não obstante) do homem de ação.

O ruidoso impacto da força atemoriza e pelo temor conquista até intelectuais, desses que, inconscientes ou não, lutando pela consagração, na brutalidade de massa, ironicamente, buscam a própria negação.

Rebeldes por natureza, nem os artistas resistem ao canto de sereia da violência (a mais velha das servidões humanas). Muitos existem que, tomados de santa exaltação, escolhem seus modelos por antecipação, como se nada houvesse mais digno da arte, que um homem e seu fuzil.

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Ovelhas negras dos apriscos totalitários, pelos próprios irmãos discriminados, não se dão por achados, esses intelectuais soldados. A independência (apanágio da inteligência) perdem-na esses desavisados, sem perceberem que, perdendo-a, com ela perdem muito mais.

No abandono à força o intelectual adormece o senso crítico que o distingue. Em lugar da dúvida que fecunda, adota ele a certeza que esteriliza, esquecido de que a dúvida é graça divina, só Deus a pode dar, enquanto certezas de adoção, dessas que não resultam de espontânea e geral adesão, qualquer vocação de ditador, aos de baixo pode impor. (A dúvida, clamando pela verdade, põe o cérebro a trabalhar. Tivéssemos apenas certezas, nem precisaríamos pensar.)

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Quem não padece de dúvidas; quem só tem certezas, faça por salvar a pele porque o espírito já era. A libertação pela autofagia, eis o equívoco dos intelectuais a serviço da violência, quase sempre, intimamente amedrontados, prontos a agredir quem não lhes ofereça perigo, muitos deles, autênticos lambe-botas de tiranos. Mas que fazer, se a tudo preside cruel fatalidade: a inteligência que só um Deus pode dar, qualquer imbecil, de um golpe, tirando o corpo, com ele pode tirá-la. (Bom lembrar que também nos intelectuais, se a alma é sensível, o corpo não é de ferro!)

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Conhecer sua essência, eis o primeiro passo para a cura de um mal. Mas, como poderão os homens se livrarem da violência, fonte de todos os males, se, com relação a ela, nem certos estão de sua dependência?!

A questão fundamental está na busca da verdade, eis que não pode o homem, nem o mais brutal, fugir à racionalidade, recusando o consenso geral por ela indicado.

Porque o homem só é homem, enquanto racional, a importância da verdade deixa de ser um jogo de palavras e o que de bom não vier por meio dela, pela mentira é que não virá, pois que esta é só um artifício para fazer de quem não vê claramente, um joguete de quem enxerga longe.

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Foi assim no início do mundo e será assim por muito tempo. Apesar disso, a mentira está sempre ameaçada, porque não tem vida própria, só existe em função da verdade, como seu disfarce. A verdade se mantém por si mesma a qualquer tempo, por toda parte, bastando que saibamos identificá-la. Com a mentira não é assim. Vai muito bem um homem e suas mentiras, pelo tempo em que a si e aos outros consegue enganar. Perde ele o ímpeto, quando se descobre errado. Entra em pânico, quando, além de se saber errado, percebe que os demais já lhe descobriram o erro, como também descobriram que ele próprio se tem por errado.

O fanático só é impetuoso enquanto se acredita o dono da verdade. Daí a necessidade que a intolerância tem de fechar os olhos de suas vítimas, exasperando-lhes as paixões, por medo de que, conhecendo a verdade, elas esmoreçam no combate.

O ser inteligente, a criatura racional, jamais conseguirá, como tal, viver sem a verdade, pois, sem ela não é possível pensar. (O que seria da ciência se continuássemos apegados à teoria da imobilidade da Terra?) Na busca da verdade, a mentira surge para desviar e confundir. Por isso, só a minoria pode trocar a verdade pelos interesses, eis que, sendo minoria, sua impostura não consegue invalidar a verdade da maioria. (É bom repetir que a mentira, enquanto não lhe tiram a máscara, passa pela verdade.)

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O erro, isto é, a violência e sua capa, a mentira, com frequência se dão ares de triunfo, com bons motivos, se levarmos em conta apenas aqueles poucos - os extremistas - aos quais favorece a lei das compensações. De fato, tanto nos grandes quanto nos pequenos lances da vida, os radicais só podem exagerar, porque uma larga maioria existe que, mais sensata, se permite moderar, para o erro deles compensar.

Com base naquilo que é aceito pela maioria, é que todos nós - inclusive os radicais - conseguimos nos guiar. Se metade só dos homens, em vez de conciliar, exigisse tudo, o mundo viraria um pandemônio e ninguém seria atendido. (Longe dos extremos, no meio-termo, está a possibilidade do atendimento de todos.)

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Perguntados sobre as causas da vitalidade do erro, só podemos responder, argumentando com a similitude da alma humana. Deixamos que o erro floresça, mesmo que nos prejudique, apenas porque, existe em nós a secreta esperança de que um dia, ele nos favoreça. Contra isso, pouco há que fazer, porque, no fundo, o que todos querem é vencer, mesmo à custa de erro. O fracasso dos moralistas de carreira, sempre de dedo em riste, acusando, prontos a dar conselhos (geralmente interesseiros), acontece porque que eles, embora sendo homens, procedem como se não fossem. Passíveis, tanto quanto os demais, de natural suspeição, não admitem ser vigiados, fazendo-se, inquestionáveis.
Esta é sua preocupação. Mais ainda: querem tão só pela negativa, ocultarem os estigmas da humana condição, como se fosse possível. Porque partem da impostura, nunca poderão dizer a verdade desinteressada. Ousam construir sua ilusória (mas rendosa) credibilidade, exagerando a realidade. Seu retrato de homem, irrealisticamente ampliado, em defeitos e virtudes, perde relação com o natural, jamais podendo servir de modelo para o comum dos mortais, pois que divide os homens esquematicamente em "bons" e "maus", segundo suas conveniências.

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Para que possam, como integrantes da classe dos "bons", aconselhar e, com isso, orientar os "maus", os espertos minimizam as próprias virtudes, de maneira a que todos entendam o contrário, ou exageram seus vícios, de modo a que não sejam acreditados.
O que temem esses falsos modelos é serem tratados como homens iguais aos outros, portadores de virtudes e defeitos. Porém a eles importa serem perfeitos, pois que se fossem iguais aos outros, que autoridade teriam para aconselhar? Todavia acreditar que sejam diferentes, seria acreditar que os médicos, só porque aconselham seus doentes, sejam imunes às doenças..
"De médico e louco todo mundo tem um pouco", ; diz o povo. Mas. se os médicos também adoecem e se o erro não deixa de ser uma doença, como poderíamos curar a doença de errar, se, já de início, nos declarássemos livres do erro?
Assim, todos nós que aconselhamos, ou seja, os médicos que todos nós somos, continuaremos errados e o erro, por causa disto, jamais será erradicado. (Se para aconselhar, alguém tem que se dizer imune ao erro, haverá erros de sobra, pois que o conselheiro, ele também um homem, já começa errado, ao dizer que não erra.)

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Porque se acreditam imunes ao egoísmo, alguns cuidam de, através de conselhos, extirpá-los nos outros, esquecidos de que o egoísmo é parte do animal que existe em nós; é, inclusive, princípio de ordem, a primeira diretriz da vida, dai porque jamais conseguiríamos extirpá-lo sem inibir o próprio homem.
Fossemos todos altruístas irremediáveis, seria difícil subir no elevador. "Entre, por favor!", "Obrigado! Entre o Senhor!", e ficaríamos nisso.
Se agirmos com sinceridade, o que poderemos fazer e nisso residem nossas esperanças, será compatibilizar o egoísmo de um com o egoísmo dos outros. Contudo, a este destino auspicioso, não chegaremos senão pela primeira das verdades, aquela, segundo a qual, embora, na aparência, diferentes, somos todos, na essência, iguais - homens, simplesmente. E, se, de indivíduo para indivíduo, existem diferenças perceptíveis, integrados os homens num grupo, elas desaparecem.
Acobertada por belos disfarces, a indefectível presença do egoísmo entre indivíduos e coletividades, somada à segurança que de qualquer união resulta, fortalece de tal modo a tendência egocêntrica, que o egoísmo de uma classe contra outra classe, seja bem mais intenso que a média do egoísmo de seus integrantes, isoladamente considerados.

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CAP. 20
A RAZÃO COMO
CONSEQUÊNCIA DA
MÚTUA DEPENDÊNCIA

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A razão é, no indivíduo, uma imposição de fora, tolerada de má vontade, pela necessidade de convivência. Ao contrário dos instintos que, no berço, já estão prontos e acabados, a razão depende da integração das inteligências para nascer. Da inequívoca prevalência dos instintos resulta que o indivíduo, apenas secundariamente pode recorrer à razão como alternativa, uma vez que, isoladamente, como indivíduo, à natureza já está ele preso desde o nascimento, graças à precedência dos instintos.
A razão (filha do homem como criatura social), bem assim, a verdade, a justiça e o mais que só vive em função dela (para afirmá-la), também a mentira, a injustiça e tudo aquilo que, embora (para negá-la), também vive em função dela, enfim, a razão (e toda sua descendência, boa ou má), sem que o saibam, os homens a constróem dia a dia, numa urdidura de todos.
Ela significa reação ao determinismo do mundo exterior, reação que não sendo ainda capaz de impedir a natureza de impor a violência como solução para o conflito de vontades, tem, de positivo, pelo menos a propriedade de não se conformar com a solução natural - a solução do mais forte - a ela contrapondo a humana solução - a solução racional - só possível pela aceitação da mútua dependência entre os homens, isto é, desde que eles passem de inimigos efetivos, a cúmplices e aliados; inimigos apenas potenciais.

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A razão só prospera entre aliados, entre aqueles que, por serem mútuos dependentes, estão impedidos de usar a força para solucionar os conflitos, que, adormecidos, subsistem entre eles. Da mútua dependência e da consequente impossibilidade de usar a força, nasce a razão - meio-termo ideal entre as vontades conflitantes. Desde que seja possível o uso da força, ela se deixa usar sem constrangimentos, sem remorsos.
A razão só tem vez, quando o uso da força é impossível. Entre inimigos não há lugar para a razão, porque, entre eles, livre é o recurso à força e só por falta de forças é que não se chega à física destruição.
A razão nasceu da impossibilidade do uso indiscriminado da força, por parte de todos os homens, vale dizer que ela veio da necessidade de ordenar a vida no contexto duradouro da luta pelo poder, da qual participam, não só inimigos, como também, cúmplices ou aliados que, ao menos, por algum tempo, convém poupar.
Porque a vida social necessita de um mínimo de ordem para funcionar, uma caótica batalha entre os indivíduos, seria inviável. Para que a própria luta entre os homens se desenvolva há de existir alguma disciplina, só possível através de ajuntamentos de indivíduos, resultantes, na aparência, de adesões, na verdade, frutos de submissões, porque o homem não é de aderir, sua vocação é dominar. (Os homens, fracos ou fortes, temem o caos e deste temor surge a inevitabilidade de um poder maior, pois que só o maior pode, ao menor, impor disciplina.)

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A maioria mais teme perder a vida que a vontade, daí porque mais importante que matar o inimigo, é ameaçá-lo de morte para que, à custa de mantê-lo vivo, se lhe tire a vontade, pondo-a, ainda que insatisfeita, a trabalhar para quem a vida lhe poupou. Evidente que ameaças só rendem quando feitas por quem tenha forças para, se necessário, efetivá-las. Eis porque a concentração de poder se faz em torno dos fortes, tendo no mais forte, o centro de atração.
De ameaças expressas e de veladas ameaças, surgiram grandes concentrações de poder, as quais, por necessidade de se defenderem, umas, das outras, ou de terceiras, entraram em alianças ou se deixaram absorver. Tornaram-se cada vez mais poderosas, até que chegassem a ser o que hoje são. (Eis a gênese das nações!)

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O alinhamento, embora a contragosto, das vontades individuais, necessitadas de se defenderem de outras vontades também alinhadas, produziu desde grupamentos menores, vinculados por consanguinidade, até as complexas nações dos nossos dias, todas elas aglutinadas pela mesma fatalidade que impele o homem a dominar para não ser dominado ou aproveitar as circunstâncias para se fechar em grupos, transformando-os em universos à parte, a salvo, ao menos, e ainda que precariamente, de outras dominações. Dai esse amontoado de duvidosas soberanias, em que se converteu a Terra, planeta que, por isso mesmo, não conhece valores universais, dado que a razão é uma em cada região.

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Não existe razão sem mútua dependência, pois, se ninguém dependesse de ninguém a razão seria desnecessária. Ela só faz sentido, onde os indivíduos, embora inimigos potenciais, formem uma união que lhes restrinja a vontade. Eis porque, a razão só pode prosperar no interior dos grupos, dado que só no interior deles, prevalece um poder maior, capaz de impor restrições ao uso da força pelos particulares. Sendo tal poder uma instituição, no caso, o Estado, ele só pode significar poder impessoal. (Embora controlado por pessoas físicas.)
Tal poder depende, mesmo que difusamente, dos indivíduos, pois que não existe instituição sem que antes exista o indivíduo que lhe dá vida. Sem a mútua dependência, limitando a vontade, não haveria razão, tampouco instituição. (Haveria poder pessoal com o maior a engolir o menor.)

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A razão pressupondo limites ao uso da força pelo indivíduo, depende necessariamente de poder institucionalizado, único que, por constituir-se na expressão ideal das forças de cada um, pela representatividade geral nele contida, é capaz de inibir a vontade pessoal em benefício da vontade grupal, embora, na prática, seja esta manipulada pelas mais fortes individualidades do grupo.
Ainda hoje, a Terra ignora a razão como valor universal, pois que nenhum poder existe, acima das nações, capaz de lhes impor restrições ao uso da força, um poder maior do qual seriam todas dependentes, poder supranacional, o qual, por ser instituição, fosse também dependente delas. Inexiste lei positiva que prevaleça contra todos, em toda a terra. No campo internacional, mal saímos da barbárie, tudo dependendo da circunstancial relação de forças entre as partes.

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Nada constitui remédio eficaz contra o egoísmo. A inteligência jamais poderá conceber algo que não se ponha a serviço dele, simplesmente, porque tudo de bom que vem dos homens, só poderá vir da razão, que, no entanto, precisa ser elaborada dia a dia, enquanto os instintos já estão prontos, vêm do berço.
Só esta prevalência do animal sobre o racional explica a desenvoltura de alguns (por sinal os donos do mundo) de se servirem das próprias instituições, sem poupar nemr aquelas tidas como acima de quaisquer ambições. Fazem tal sucesso como arautos dessas entidades, principalmente, contra aqueles que mais ameaçam a eles do que a elas, que somos tentados a crer em algo instintivo, anterior à razão, inacessível ao comum dos mortais, que desvinculado de compromissos que não sejam com o individual, se põem a nos dizer, zombando de nossa boa fé: "o egoísmo não se deixará convencer nem pelo óbvio; por nada que seja criação do homem, ainda que a mais sublime. Existe isto: o indivíduo, um eterno pretendente a Deus (e suas ambições.)

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O interesse dos de cima é que os de baixo ignorem essa verdade ou, que, vindo a conhecê-la, permaneçam inativos. Considerações de ordem moral não entram nesta conta sem limites. A nosso favor, vale tudo, desde o mais vil ao mais sagrado, porém, sendo um só o propósito de todos, é necessário crescer em astúcia para, aos outros, enganar.
Precisamos tirar do mundo, o que for possível, sem remorsos, fazendo, no entanto, crer aos demais que, longe de nos servirmos dele, nós é que somos seus servidores.
Mas, para a maioria acomodada, agir assim fica difícil, porque os ativistas, embora minoritários, arriscam mais e enxergam longe. Usando de malícia quando só a força bruta não basta, eles se tornam os donos do mundo.

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Existem limites além dos quais poucos se arriscam. Diante do que é grandioso, a maioria, por temor fraqueja. Não é do bem, nem do mal que se trata. A questão está em compreender e ousar. Diante de Deus - por exemplo - o comum dos mortais se inibe. Dele se serve apenas quem foi capaz de entender que afora o Deus verdadeiro (o ignoto Deus de todos os homens) do qual, por isso mesmo, nem se fala, todos os deuses que pululam na Terra ao sabor de interesses locais, não passam de deuses criados, passíveis de serem, como tudo o mais, conspurcados.
Serve-se de Deus quem for capaz de compreender e, principalmente, de ousar, pois são poucos os que se atrevem a tê-Lo como serviçal. A maioria se inibe diante da grandiosidade, ainda que, simples criação do homem. Porém, aquele que for capaz de transpor esse impreciso limite que, para quase todos, parece intransponível, este, pertence ao número dos eleitos e só não fica satisfeito, porque é mesmo insaciável.
As instituições, porque implicam na limitação da vontade, a contragosto foi que o homem as criou, apenas por temor à insegurança geral decorrente da vontade ilimitada que, por sua vez, gerava a violência indiscriminada.
A instituição, limitando nossa vontade, e, consequentemente, o uso da força, inscreve a razão como guia dos homens, daí porque, ao surgir, ela se constituiu num acontecimento capital

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Dirigida de longe, lá do infinitamente distante, a natureza jamais recuará diante de nosso anseio de liberdade, porque, sendo imutável em sua essência, ela o é por falta da inteligência que no homem produziu a necessidade de mudar, necessidade que ela (porque não tem), em nós soberbamente ignora.
Prevalecendo-se de que, pela fisiologia, somos seus dependentes, ela, apesar da nossa rebeldia, nos trata como uma espécie qualquer, submissa tanto quanto as outras, ao império de suas leis imutáveis. Entre o homem em estado de natureza e o homem integrado numa instituição, ela não faz distinção, eis que a fisiologia é a mesma, tanto para aquele que institucionalmente representa milhões, quanto para o menos representativo de seus representados.
Incapaz de compreender, a natureza jamais será capaz de mudar. Ela ignora as instituições e, passando por cima delas, continua impondo-se ao que de matéria existe em nós, esquecida de que, no contexto da eterna luta que dentro do homem se trava entre o animal e a inteligência, o surgimento da instituição (resultado do entrelaçamento de vontades), constituiu-se numa vitória da razão.

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Submissos aos desígnios da natureza, necessitada de em nós realizar a força, produzindo a violência, mesmo dentro das instituições, os indivíduos continuam agindo como se entre a vida numa dessas entidades e a vida natural, não houvesse diferença.
Alguns assim agem por conveniência. São os fortes, porque a vida natural os favorece. Outros assim procedem por ignorância. Estes, se não lhes faltasse visão, logo perceberiam que a natureza, tanto em relação ao homem, como a tudo o mais, privilegia o forte, o mais apto a viver, disto resultando que toda a luta do homem não é mais que esforço imenso para desfazer esta natural preferência, porque, os fracos, que também se julgam com direito à vida, não se conformam.

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Ao tempo da vida natural, inexistindo a razão, faltava sua descendência - a verdade e seu reverso, a mentira - e tudo o que do cérebro vem, daí porque, tal qual ocorre entre os animais, cada um contra o outro se afirmava (ou se anulava), graças tão só ao poder físico individual. Os indivíduos, mesmo quando se associavam para lutar, faziam-no, menos por adesão do que por imposição, tendo a força bruta como determinante da hierarquia no interior dessas rudimentares associações, que haveriam de se transformar nas atuais instituições.
Nasceu a instituição, da impossibilidade da plena realização de todas as vontades, porque, absolutistas e conflitantes, elas, as vontades, entregues às suas originais tendências, produziriam o caos ou a vida natural, com o que, ninguém se conforma. A instituição implica na limitação das vontades, implica em que, alguém fale pelos demais e desde que os fortes jamais consentiriam que os fracos falassem por eles, dentro das instituições prevalece a voz do mais forte.

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Do oportunismo não escapam nem as boas intenções e, com frequência, aquilo que veio para benefício de todos, levado à prática, acaba, pela corrupção, transformado em instrumento de opressão, desvirtuado que foi por seus manipuladores, pois que afinal a iniciativa é muito mais deles que dos outros e não seriam homens se deixassem de lucrar com isso. ("Quem parte e reparte, leva a melhor parte.")
O instinto dominador do homem, sobrepondo-se pela anterioridade ao que existe de racional, no próprio seio da instituição, continua a luta pela dominação. Em pouco tempo, a entidade - qualquer que seja ela - acaba degenerando-se em organismo espúrio, tendo os fortes como cérebro e os fracos, como um corpo sem vontade, condenado a servir.
Da impossibilidade de o fraco representar o forte e da inevitabilidade da representação, resulta que o forte é que é o representante. À sua vontade pessoal que já era maior, ele acresce mais poder, resultante da subtração (pela força ou má fé) de parcela da vontade dos representados, com isto, desequilibrando a relação de poder dentro da instituição.

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Esta disparidade de forças, aliada à notória infidelidade do representante a seu representado, fazem das instituições, entidades monstruosas que, nascidas para conter a gula do individualismo, se transformam em túmulos da individualidade. Legítima, como expressão da vontade grupal, mas distorcida pela desproporcional distribuição de forças entre seus membros, a instituição acaba privilegiando a vontade dos fortes. (Mesmo assim, houve progresso, porque aceitando a instituição, o homem, se comprometeu a viver conforme a razão e se não o faz, é traição, é dívida com a comunidade.)

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CAP. 21
A LIBERDADE
NOMINALMENTE
CONCEDIDA E SUA
FRUSTRAÇÃO NA VIDA

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Embora no interior das nações, a lei admita discriminações de raça, credo, sexo e outras, isto é, no interior do grupo social, a lei dificulte a integração, o principal obstáculo à racionalização do mundo, está no desencontro entre a liberdade nominalmente concedida e sua frustração na vida, desencontro resultante da disparidade de poder, originária, por sua vez, do descompasso entre o progresso material e o progresso das relações humanas.
O avanço material - que não vem das boas intenções - e que no geral se realiza à revelia dos homens, destruiu velhas servidões, não porque fossem injustas, mas, porque, sujeitas ao tempo, como tudo o mais, elas, caducando, se tornaram pesos mortos.
A industrialização, exigindo do homem do povo participação maior na produção e, principalmente, valorizando-o como consumidor, aumentou-lhe as oportunidades no lazer, na saúde, na educação, até na vida social, a ponto de que hoje nas festas já não haja como distinguir entre um trabalhador do comércio ou do serviço público. Houve progresso na distribuição de renda, mas em grau tão abaixo do esperado que é melhor não falar dele.
O avanço tecnológico tem sido perverso. O extraordinário aumento dos ganhos empresariais por ele proporcionado, além de não ter sido competentemente distribuído, tornou-se responsável por uma das maiores tragédias do nosso tempo, o desemprego, porque, para quem vive do trabalho, salário baixo é ruim, salário nenhum é ameaça de morte por inanição.

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Movido por interesses imediatistas, o progresso material, se a quase todos beneficiou, a alguns favoreceu mais que a outros, criando por culpa dessa desigualdade, novas servidões, menos ostensivas, porém, igualmente, inaceitáveis. Teria sido melhor, se a liberdade do outro fosse a preocupação de todos ou pelo menos do segmento ativo da sociedade. Se assim fosse, a inteligência bem cedo teria encontrado a solução, pois que embora real, a complexidade do mundo, mais que obstáculo, é pretexto para que não se ande muito nesta direção.

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Não fosse o desejo de preservar os privilégios, os homens, reunidos de boa fé, para qualquer problema encontrariam a solução. Se nos deixássemos guiar pela verdade, a experiência do dia a dia, logo nos ensinaria que neste longo e difícil caminho, o maior obstáculo, é, entre os indivíduos, o desequilíbrio de poder, seja de que natureza for, pois que a força tudo sobreleva, direitos e o mais, daí porque, tem ela na liberdade do outro, seu maior desafio.
A multiplicação das potencialidades pela máquina, realizando-se em proveito maior das elites, em pouco tempo iria produzirgigantescas concentrações de riqueza, diantes das quais, os potentados de antigamente, se dessem de gabar sua grandeza, ficariam desacreditados. (Um operário tem hoje mais conforto material que um rei de outrora, se bem continue insatisfeito, porque se ele tem muito em relação aos grandes do passado, tem quase nada em comparação com os magnatas de agora.)

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A sociedade se reorganizou em função de seu objetivo maior: enriquecer com a produção e o consumo. Aos grandes interessava quebrar os antigos vínculos do homem comum para que nada o afastasse do novo ideal. Perdas e acréscimos de poder que antes, pelas armas, se decidiam, agora iriam resultar de um processo difuso, correndo entre a produção e o consumo. O dinamismo característico da sociedade industrial, cedo iria encontrar o instrumento sob medida para a efetivação das trocas. Graças à sua eficácia corruptora, capaz de igualar na lama, príncipes e mendigos, o dinheiro se tornaria o fator primordial da erosão de todos os valores. Deus, a Pátria, o apego à terra, a convivência familiar, nenhuma recompensa espiritual haveria de resistir ao apelo dos tempos dissolutos.
O espírito comunitário desapareceu de vez. Crentes e descrentes das muitas crenças e descrenças, por cima de suas desavenças, iriam encetar unidos, a perseguição ecumênica do lucro, numa desatinada emulação que acabaria por avacalhar o próprio simbolismo religioso.

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O consumismo insaciável (porque motivado mais pela ganância do produtor, do que pelas necessidades do consumo) erigiu-se em filosofia de vida, roubando a paz do homem comum, porque, mesmo aquilo que ele não teve tempo de consumir, embora intacto, já foi superado pelas novidades do mercado (nem sempre melhores que as antigas), numa ilusória renovação, cuja primeira finalidade é a de lhe tomar o último tostão. Espicaçado pela publicidade, que faz de mulheres e crianças, seu instrumento de chantagem, lá vai o chefe de família, que mesmo sugado de seu último vintém, ainda assim não se contém, tudo comprometendo através do crediário.
Quando o consumismo delirante degenera em compulsão, condicionando-lhe a vontade, o homem engajado nesta corrida sem fim (porque dele estão sempre exigindo mais) por medo de ficar atrás, acaba sacrificando o convívio familiar, pondo, seja onde for, mulher e filhos a buscar dinheiro, enquanto ele mesmo, exauridas as possibilidades decentes, abeira-se do crime, prostitui-se, trapaceia, frauda o semelhante e só escapa da cadeia porque secretos interesses econômicos preferem tê-lo como consumidor ativo do que inútil prisioneiro; também porque os ilícitos civis, tão comuns se tornaram que já não escandalizam ninguém; e ainda porque, a elevação dos preços, faz com que todos paguem por ele, inocentes e culpádos.

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Vencedor ou vencido, o homem de hoje não é feliz, porque não há patife, mesmo bem sucedido, que não inveje o êxito honestamente construído, pelos caminhos da concorrência leal, aberta a todos, sem pressões que encerram verdadeiras extorsões.
Por isso há desalento no interior de douradas mansões, eis que por confiarmos demais na invencibilidade do dinheiro, acabamos esquecendo que muita coisa não está à venda. O amor que se vive por inteiro, a amizade sem reservas, preciosidades que as mãos não tocam, o dinheiro não as compra, visto que estão fora do comércio. (Feitas de sincera afeição, elas jamais nascerão de quem, nessas coisas, seja comerciante também.)

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Se o vencedor inescrupuloso, pode apoiar-se no lugar comum de que o mundo é todo assim, a ele, jamais será dado gozar a ventura de estar entre aqueles poucos, graças a cuja inusitada disposição para acertar, o mundo, apesar dos pesares, se faz a cada dia um pouquinho melhor. O progresso voltado para a produção, insensível diante do homem, trouxe conforto, mas não trouxe felicidade. Erradicados de suas origens, movidos pela ilusão de uma vida melhor, milhões de párias adentram as cidades, deformando ainda mais o ventre putrefacto das megalópolis, em cujo interior, como desajustados, eles se constituem em focos de tensão social. (Vivendo em míseros casebres, privado de convívio familiar, o migrante de hoje, tornou-se criatura irritadiça.)

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Sem recusar a violência, embora usando-a secundariamente, quando a mentira não for suficiente, a nova sociedade haveria de fazer do dinheiro (expressão usual do poder), o instrumento primordial da acumulação de mais poder.
A caça ao lucro, em teoria, aberta a todos, faria da vitória a qualquer preço, o objetivo principal da vida, aumentando os contendores, elevando ao paroxismo, a porfia entre eles. A batalha tornou-se incrivelmente áspera, pois no passado, a não ser trajetórias excepcionais, o homem do povo tinha, pelo nascimento, seu lugar nos baixos da sociedade e - perdedor nato - esta circunstância intimamente o absolvia de sua miserável condição, tal como nos absolveria da pecha de maus corredores se fôssemos coxos. (Hoje ninguém se conforma.)

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Por suas leis, a sociedade insiste em que todos são livres, cidadãos de igual categoria, conquanto seja verdade que a maioria, é livre de direito, mas não de fato, eis que a liberdade - o bem mais precioso da vida - mesmo que a tenhamos por decreto, há que ser dia a dia, ferozmente, preservada.
Para o homem comum, senhor presumível de seu destino, vencer tornou-se compulsiva necessidade, pois que só é livre, quem por conta própria garanta sua liberdade. Nesse planeta beligerante, onde o pacifismo sincero passa por fraqueza, busca-se a vitória a todo custo, eis que a liberdade rejeita os perdedores. Todavia, a igualdade de todos, mesmo que assegurada só pelos códigos, constitui um avanço, inibindo o homem-animal, produzindo importantíssima vitória da humanidade.

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O igualitarismo convertido em lei, na medida em que abriu a todos o caminho do êxito, aumentou a responsabilidade de cada um pela vitória ou pelo fracasso, que seria justo, se os grandes, para evitar a luta de igual para igual, não tivessem feito desta abertura uma farsa. Não por acaso, o poder, qualquer que seja ele, sempre teve entre seus primeiros cuidados, garantir a melhor posição, a partir da qual, estando por cima, possa ditar as regras do jogo.
Impedidos de usar o chicote ostensivamente, embora continuem a usá-lo escondidamente, os donos da confraria que manda, servindo-se quase com exclusividade, das férteis possibilidades que a elevada posição lhes confere (de fazer e desfazer a lei), cedo iriam se guardar dos riscos da concorrência honesta por meio de uma estrutura legal, de cujas imperfeições, visíveis demais para que não sejam intencionais, decorre a conclusão de que nasceu para lhes assegurar garantias suficientes para fazer do capital, a vantagem inicial que o homem de mãos vazias, só excepcionalmente, alcançaria, embora, no papel, a lei acene a todos com tratamento igual.

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Por culpa deste renovado desequilíbrio de poder que nenhuma violência poderá desfazer, a sociedade atual que se define como associação de homens livres, fundada na igualdade perante a lei, instada a defender os pequenos da cobiça dos grandes, entre o dever de justiça e as realidades do poder, outra coisa não consegue fazer, que lavar as mãos, deixando que a vida, pela inexorabilidade da lei natural (a lei do mais forte) contra todas as promessas de igualdade, encontre a solução e com ela o fim de uma ilusão. Sendo a força, por natureza, garantidora de privilégios, o triunfo de uma revolução armada significa apenas troca de posições; significa que ela reverteu a favor dos atuais vencedores, o mesmo desequilíbrio de poder que assegurava os privilégios dos vencidos.

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Um homem não será feliz sem se comparar com outro. Não será feliz, ainda que tenha o suficiente, desde que o outro tenha mais. Não fora assim, o enorme crescimento da produção, em breve poria a felicidade ao alcance de qualquer um.
Uma comparação honesta entre a grande fortuna e o homem de ganho médio, mostraria que diminui dia a dia, a lista das comodidades materiais abertas aos ricos, que ao comum dos mortais seja inacessível.
A diferença nem poderia ser grande, visto que tanto o rico quanto o pobre tem no apetite, a medida de suas necessidades. Mesmo as delícias do sexo, feitas de sabor inigualável, a riqueza não as prolonga, quando o apetite acabou. Não fosse a exibição de poder a marca de um mundo em que a riqueza material vale mais que tudo, o conforto maior proporcionado por - digamos - cinco automóveis, não compensaria a trabalheira menor de um carro só.

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Num tempo de promessas e desencantos, a menos que lhe falte um mínimo de sensibilidade, o homem do povo é um ressentido e com razão, pois, quem não se ressentiria ao perceber que o bem maior da vida - a liberdade - inscrita em todos os Códigos, pode ficar e fica, na dependência de um simples guarda de quarteirão? Como não haveria de se ressentir o homem do povo, se ele, por falta de garantias, sabe o quanto é preciso ceder no dia a dia, para manter esta ilusão, que a lei bem intencionada, mas vazia - apesar de tudo, lhe assegura?

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O homem ressentido é (ou se acredita) injustiçado. Ele se ressente, antes de tudo, com a própria justiça que se não tivesse falhado, dele não teria feito o ressentido que ele é. Por isso, acima da justiça que já uma vez lhe faltou, e que por isso mesmo não lhe inspira confiança, o injustiçado busca a vingança que indiretamente poderá vir até pelos tribunais, porém só naqueles casos em que a injustiça como injustiça seja por eles entendida.
Jamais poderá o homem do povo, mesmo indiretamente se vingar, através de decisão judicial, da injustiça que mais do que tudo o atormenta, isto é, a de se saber livre segundo a lei, mas prisioneiro na vida, isto porque, a mesma sociedade que pelas suas leis, a todos promete igual liberdade, por outras leis consagra o desequilíbrio de poder que na prática, à maioria de mãos vazias, nega quase tudo.
Contra essa injustiça causada pela estrutura social, que os tribunais não entendem como tal, o homem do povo, privado de poder, outra coisa não consegue fazer, senão ruminar seu ressentimento.

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Nada favorece mais o envilecimento que a impotência. Incapaz de viver sem esperança, tendo de sobreviver apesar de tudo, ao homem desesperançado, uma última esperança resta alimentar - a de que ninguém mais realize a sua, numa vingança negativa, despreocupada de justiça, eis que, fruto de nossas fraquezas, ela se compraz em ferir a esmo quem esteja por perto, justamente aqueles que compartilhando conosco, dia a dia, da incerteza entre culpa e desculpa, a rigor se fizeram dignos do benefício da dúvida, mormente quando se sabe que esta vingança aleatória, que toma por alvo a humanidade inteira, inibida por sua peculiar cegueira, acaba poupando os grandes culpados, porque eles nunca se põem ao alcance das mãos.

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Se deixarmos de embelezar o próximo, para nos fazermos bonitos também, concluiremos que o sentimento de justiça é secundário nos homens. Ele existe apenas como esperança dos fracos contra a prepotência dos fortes. Desde que o fraco se torne forte, com a mudança vai o sentimento de justiça.
Até entre bebês, cada um puxa para si. Os homens quando fazem justiça, agem por conveniência, pela necessidade de aceitação do outro e será esta mesma necessidade que os haverá de salvar um dia, quando, alcançado o equilíbrio de poder entre os cidadãos, tornar-se-á inviável a solução de força e a justiça - reconhecida como necessidade imperiosa terá que ser exercida conscientemente, embora, com certa nostalgia.

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O desejo de vingança, maior que o de justiça, é que, no dia a dia, impele os homens, uns contra os outros e que nas situações de crise transborda nas tempestades. Incapaz de identificar os verdadeiros culpados por sua desdita, o homem comum faz o jogo do inimigo, investindo às cegas contra seu igual, vítima, tanto quanto ele. Tolhido em sua liberdade, ele se vira contra quem, ainda que, momentaneamente, seja mais fraco. O ódio, alimentado pela inveja ou sede de vingança é que, individual ou coletivamente, leva os homens ao desatino, inclusive, à morte. Só ele, é que, exacerbando o ressentimento das multidões é capaz de derrubar governos, coisa que o delicado sentimento de justiça jamais conseguiria fazer.
A mágoa recalcada explode ao menor pretexto e o homem comum, com uma frieza digna dos grandes criminosos, rouba e mata quem nem mesmo indiretamente poderia ser causa de sua desgraça: aquele pacato operário que, do minguado salário, tira o sustento para os seus. Em casa, abusando da superioridade física, agride mulher e filhos e se os vizinhos reclamam, ele os ameaça como se fosse o rei do pedaço. (Usando de seu poder, ainda que momentâneo, ele, esquecido de justiça, age com a prepotência de um grande senhor.)

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Ocorre que as vítimas de procedimentos injustos e frequentes, tão indiscriminadamente quanto são ofendidas, para a frente passam as ofensas, resultando desta mútua crucificação que a sociedade se põe à beira da anarquia, a ponto de que os choques entre a lei e esses que, de uma certa forma são compelidos a renegá-la, crescem a cada dia em número e audácia, atingindo tal gravidade que suas escaramuças se não chegam a configurar uma guerra civil, assumem, não raras vezes, as proporções endêmicas de uma guerrilha, capitaneada por gente jovem, capaz de um futuro melhor, se esta sociedade que pelos maus exemplos a desencaminha, pudesse usar a cabeça, mais que os punhos, para conceder a muitos, dos quais ainda se pode esperar alguma coisa, ao menos tempo para, no amadurecimento, esfriarem o sangue.

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Porém, como o homem não está pronto para a convivência, a não ser, pela força, a preocupação de justiça, principalmente, em épocas de crise, deixa de ser virtude para ser fraqueza, enquanto que a violência - esperança dos brutos e impacientes - surge como o remédio providencial, pouco importa que ela, pela sua natureza, ceifando os inimigos de agora, acabe semeando novas inimizades e com elas, novos problemas.

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Para milhões de criaturas atavicamente acorrentadas (livres, só nominalmente), a responsabilidade pesa tanto quanto os grilhões e tão penoso quanto obedecer é assumir as decisões. Vazio de poder sem o qual a liberdade é nada, extinta a hierarquia em meio à qual ele se inseria e, por bem ou por mal, se ajustava, o homem do povo destes tempos inseguros, sente-se mais perdido que livre, abandonado, muito mais que senhor de seus passos.
Sem saber para onde ir (porque incapaz de por conta própria, se conduzir) é como se o tivessem deixado de mãos vazias, livre, porém, entre feras bravias, presa fácil de um tirano qualquer, que em troca da liberdade lhe dê, ainda que seja uma vida de clausura, porém, que ao menos lhe tire dos ombros a responsabilidade de vencer (psicologicamente despreparado) a batalha pela vida, da qual participa como recruta entre profissionais.

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Para as multidões despojadas de poder, a liberdade é um presente de grego. Incapaz de perceber que o desequilíbrio de forças é que impede sua liberdade, o homem do povo desespera e, desesperado, só tem olhos para a vingança, mesmo ao preço da vida. Este componente suicida, presente no desejo de vingança do homem desesperado, acaba levando água ao moinho dos tiranos. Ocorre então a trágica parceria, tantas vezes repetida, entre o homem comum, confuso, mas sedento de vingança, e a larga visão do outro, dominador por excelência, ave da tempestade, que buscando o poder acima de tudo, faz dele a prioridade número um, embora saiba (ou como condutor de homens deveria saber) que longte da liberdade não há esperança, pois a violência, possível apenas para quem tenha forças, ainda que bem iniciada, acaba em opressão.

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CAP. 22
DA NECESSIDADE
DE HAVER
INIMIGOS

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O totalitarismo, ao tratar como inimigo do sistema, quem, na corrida pelos primeiros lugares, não tenha sido bem sucedido, termina pondo em dúvida a fidelidade de todos à causa, ao privilegiar a lealdade ao primeiro da fila, instaurando o culto à personalidade, alimentado pelo pior que existe no homem. (Mesmo entre políticos tradicionais, é usual esquecer a causa, para seguir o chefe.)
Durante a luta pela sucessão de Lenin, fundador da URSS, Trotski, o segundo na linha de sucessão, era tido como inimigo de Stalin, mas, não do sistema que ambos haviam montado e do qual eram expoentes. Derrotado na disputa pessoal, o primeiro foi proclamado traidor da causa e assassinado no México, confirmando a sina dos perdedores, tidos, invariavelmente como traidores, apenas porque decaíram do poder.

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Se há veracidade nas acusações levantadas naquela época, para justificar o extermínio físico de boa parte dos fundadores da URSS, com justiça se poderia dizer que, na luta por uma boa posição, eram, todos eles, capazes de traição, restando de tudo isso, uma só conclusão - a de que em qualquer ditadura, só não é inimigo ou suspeito de inimizade quem está por cima.
O totalitarismo da direita vê em cada adversário um comunista, enquanto o outro que se diz socialista, depois de décadas de brutal repressão, vê burgueses por toda parte, visão, que a ser verdadeira, em termos de humanismo, constitui prova cabal de fracasso.
Isto se explica. Sem inimigos, a violência carece de sentido, daí porque, qualquer tirania tem de os possuir, necessariamente, pois, sem eles, ela não se justificaria. E se no passado, dos inimigos do tirano se dizia que eram inimigos de Deus, agora, deles se diz que são inimigos do povo. O que antes, em nome de Deus se fazia, hoje, em nome do povo, convertido em tabu, é que se faz.
Tal é possível porque o poder e apenas ele, dá principalmente, aos temperamentos radicais, uma couraça e com ela um cinismo tal que lhes permite cometer às vésperas do terceiro milênio, em escala ampliada, contra a liberdade do indivíduo, tantas e tais monstruosidades, quanto aquelas que no passado, em nome de Deus se cometia.

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Aquele de quem subtraíram a liberdade não vive senão para a vingança e dele não se espera mais que ódio. O poder ilegal, fundado na violência, transforma em inimigos cada um daqueles sobre os quais se exerce. Ter inimigos é de sua natureza. Reais ou imaginários, é preciso tê-los, até porque, contra quem não seja tido por inimigo, a violência carece de sentido.
As sociedades enquadradas por estados totalitários, só poderiam conceder paz e justiça para todos, se não tivessem inimigos. Mas, se não os tivessem, como justificar o terrorismo de Estado, o gigantesco aparelho repressivo que é sua principal característica? Todos, gregos e troianos, concordam que o poder discricionário é ilegítimo. Seus defensores só conseguem explicá-lo como poder de exceção para vencer ameaças excepcionais. Mas, se não há ameaça ou ela deixou de existir, como justificá-lo? Por precaução mais que alucinação, os tiranos cultivam fantasmas.

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O totalitarismo nutre-se de inimigos. Ele os faz e deles se desfaz. Por isso, nele, a brutalidade é questão de vida ou morte, pois, gerando inimigos a toda hora, se para destrui-los não agisse rápida e impiedosamente; se usasse os mesmos lentos processos das sociedades abertas, então ele, ameaçado por uma avalanche de inimigos, estaria perdido.
É lastimável que a maioria dos homens, inclusive, intelectuais, seja mais de ver que de prever. Não fora isto, como aceitar que tenham sido necessários tantos anos para que se soubesse, ainda assim, pela boca de quem não podia dizer muito, aquilo que, em linhas gerais, na década de vinte, já não era segredo.

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Entre o poder que se instala pelo voto (ainda que imperfeito) e aquele que nasce de um fuzil (mostre-se ele, de início, mais que perfeito), de boa fé se pode ver uma diferença notável que, embora assim visível, aos interesseiros e apaixonados, não se dá a perceber. A diferença está em que, ao contrário do poder originário do voto e que pelo voto se renova (e implicitamente se limita, ao menos, no tempo), o poder pelas armas instalado, desde que não aceite ser pelo voto renovado, não deixa à oposição outra alternativa que, pelas armas, derrubá-lo, daí porque, no estado totalitário, o opositor deixa de ser uma contradição aceitável para se transformar, por falta de alternativas, num inimigo armado, previamente condenado ao aniquilamento físico. (O espírito de oposição, componente essencial da humana condição, existirá sempre.)

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É preciso repetir que a violência é o mal, enquanto a liberdade é o bem e que o futuro melhor pelo qual nos batemos, terá que vir de uma busca nesta direção, necessariamente. Mas é preciso dizer também que a violência, sendo um mal para suas vítimas, é, para aquele que a exerce, um bem inigualável, enquanto que a liberdade, sem dúvida, o bem maior de cada homem, vista do angulo dos tiranos, constitui, nos outros, mal imperdoável, porque lhes estorva os passos. (É esta relatividade do bem e do mal que obscurece o cotejo de vantagens e desvantagens entre os atuais modelos de sociedades.)
Em graus diferentes, a violência e sua companheira - a fraude - existem, ainda hoje, por toda a parte. Não persistissem no mundo capitalista, fortes resquícios de uma e de outra, seriam tão evidentes suas vantagens, que nem haveria como compará-lo ao socialismo à moda russa. Este, se, de um lado, pôde aproveitar o clima propício deixado pelas duas últimas guerras mundiais para conduzir milhões de homens ao trabalho escravo e com isso acelerar sua industrialização, de outro lado, num aspecto essencial, ou seja, no respeito aos direitos elementares, produziu vergonhoso retrocesso, pelo qual, seus responsáveis serão condenados, com o mesmo horror com que hoje condenamos os torquemadas.

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Apresentando-se como novidade, empunhando a bandeira da esperança, este novo - o socialismo totalitário - exerce inegável atração, mas, constitui ponto negativo para ele (que a estas alturas, deixou de ser novo), constatarmos que mais de meio século de messianismo agressivo não lhe foi suficiente para conquistar metade deste mundo vulnerável. Em muitas regiões, onde a ferro e fogo, pelas armas estrangeiras se implantou, ele só não foi ao chão, graças à insaciável sede de poder e a correspondente falta de escrúpulos dos que o defendem. Fosse a superioridade desta nova ordem tão evidente quanto se proclama; não contivesse ela, ao mesmo tempo, belas promessas e funestos presságios; meio século teria sido mais que suficiente, para que, nesta época de rápidas transformações, o mundo inteiro virasse comunista.

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Do poder pende a liberdade, a justiça e o mais, daí porque, acabará em opressão tudo o que, intentando melhorar o mundo, comece por fazer dele, propriedade de poucos. A degenerescência do poder que insista na ilegalidade, por mais justificáveis que sejam suas origens, constitui uma fatalidade, principalmente, se tal como acontece com os totalitarismos do nosso tempo, seu monopólio decorra de um compromisso ideológico que se considera atraiçoado pela simples admissão de um revezamento no poder.
Sintomaticamente, o homem do povo, qualquer que seja o sistema em que viva, é, de certo modo, instigado a acreditar que o exercício do poder não lhe diz respeito; é assunto dos grandes que só os grandes podem tratar, como se o poder (garantidor de tudo, a começar da liberdade), não fosse a coisa mais importante do mundo, a ponto de que, sem ele, até o que é bom deixa de ser, pois exatamente por ser bom, fazendo-se alvo da cobiça geral, torna-se ameaça para aquele que sem forças o detenha. (Um tesouro bilionário, sem poder que o defenda, na casa de um operário - por exemplo - é desgraça na certa.)

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Quem não tem poder, fica à mercê de quem o tem. Então, como pode ser justa, uma sociedade totalitária, que não se vexa de conceder a alguns, em prejuízo de quase todos, justamente ele - o principal? Como pode ser justa se ela, tudo centralizando, compromete-se expressamente com o desequilíbrio de poder que em todas as épocas tem sido o sustentáculo das injustiças? Como pode ser justa uma sociedade que fazendo do monopólio do poder um compromisso ideológico, começa por distribuir desigualmente o que na vida é o mais importante - o poder, sem o qual nada permanece de pé?
A justiça é indivisível; se discrimina, justiça não é. A aceitação do outro, a convivência com a oposição que não se proponha à violência, constituem princípios sem os quais não é possível falar em justiça. (Negação de tudo isto, o Estado totalitário nunca poderia ser justo.)

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O fato de que muitos, nas mais desencontradas posições, estejam sempre falando em nome do povo, deveria induzir a gente simples a ter mais cautela; o povo no poder é uma balela. A nobreza, a burguesia, puderam e podem, onde ainda existem, estar no poder, porque são minorias. Porém o proletariado ou qualquer classe numerosa, exatamente, porque é numerosa, jamais estará no poder, eis que, multidões no poder, se isso fosse possível, quer dizer anarquia (falta de governo) e o homem, por mais que amadureça, não poderá viver sem governo. Sintomático é que a extinção do Estado, tida como possível por ilustres bolcheviques russos, antes da tomada do poder, depois, foi relegada ao esquecimento.

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Se alguém ainda crê que a ditadura do proletariado é o proletariado no poder, a este alguém seria bom dizer que o poder que se diz do povo, isto é, aquele que se diz de todos, a ninguém pertence. Melhor dizendo, pertence àqueles que intimamente o manipulam. Tudo o que em teoria pertence a todos, porque, na prática, necessita de quem zele por ele, cai, inevitavelmente, em mãos da minoria de ativistas que, bem ou mal, faz o mundo funcionar. A maioria (até mesmo pelo seu elevado número) está condenada a ficar de fora, em casa, longe dos gabinetes.
O poder é, em teoria, do povo, mas quem dele usa e abusa é a minoria. Por toda a parte, basta a simples observação para mostrar que o poder público é mais de quem dele usa, mesmo que abuse, do que do público propriamente. Este mais, que em todos os sistemas sociais, distingue vantajosamente o cidadão que usa, do cidadão que apenas tem; este mais, que é a inevitável paga do uso, é que hoje, mesmo nas chamadas democracias ocidentais, faz dos funcionários do Estado, uma classe, cuja importância seria bem menor, não fosse a inevitável tendência de se passar do uso para o abuso.

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Enfim, este mais é que faz com que no mundo comunista, onde o poder é por definição irrestrito, a diferença entre o cidadão que tem e o cidadão que usa; entre quem exercita o poder e quem só nominalmente o tenha, assuma importância capital, porque foi esta diferença, aparentemente irrisória, que, paulatinamente, sobre as cinzas do capital e entre os botões entreabertos do jardim operário, acabou com o sonho igualitário, transformando a classe dos manipuladores do poder (em toda parte e, por natureza, inclinada ao abuso) no segmento mais conservador e opressivo de quantos a História já viu. Sem surpresas, porque onde o Estado controla praticamente tudo, poucas esperanças resta para quem ficou de fora. Por interesse ou pelo temor de pagar por seus abusos, o funcionário do poder apega-se ao cargo com a mesma gula com que o burguês defende seu negócio.

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A propósito de sonhos que se transformaram em pesadelos, nada há que dizer àquele que na fé bem ou mal escolhida, acredita, porque nesta crença, errada ou certa, está o consolo para sua íntima desdita; nem há o que dizer àquele que acredita por necessidade, porque, para ele, mais importante que a verdade, é crer, aconteça o que acontecer. Também não há o que dizer a quem, temendo a luz, fecha os olhos, porque, por razões que só ele conhece, jamais será capaz de mudar sem desabar.
No entanto, a muitos que a boa fé impede ver, caberia dizer, que o diabo jamais se apresenta como tal; que o lobo na pele do cordeiro é das figuras mais verdadeiras do folclore universal e que, enquanto a gente simples não for capaz de tratar os grandes, com a mesma cautela com que trata seus iguais, estaremos condenados a construir o país da iniquidade, sonhando com a terra prometida.

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Sobre a questão crucial da democratização do poder, o que resta fazer, é acelerar a rotatividade dele, de tal modo que, substituindo-se com regularidade as inevitáveis minorias de mandantes, se dê oportunidade a que o maior número possível de pessoas possa exercê-lo. (Se o objetivo é acertar, por este caminho é preciso avançar.)
Apesar da violência e da fraude que nelas ainda imperam, as sociedades abertas têm sobre as totalitárias, uma vantagem - a sucessão feita pelo voto secreto e direto. Depreciadas pelos impacientes, elas, embora levadas, por suas imperfeições, a produzirem rudimentares democracias, ainda assim, porque implicam num implícito compromisso de revezamento no poder; desarmam os adversários e tratando-os como válidos sucessores, concede a todos uma perspectiva de paz.
Menos ambiciosas, porque não se obrigam à perfeição, nem à supressão do passado, as sociedades abertas, desde que se desfaçam da violência e fraude que ainda hoje as infelicitam, podem, pelo jogo das contradições (próprio do homem), oferecer a todos, gradualmente, sem injustificáveis sacrifícios, a perspectiva de um mundo melhor, pelo qual, muitos batalham desde o início dos tempos.

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A conclusão a tirar de vantagens e desvantagens, de um e de outro lado, é que pelas desvantagens responde a violência, seja aquela herdada e preservada nas sociedades abertas; seja aquela metodicamente cultivada nas sociedades totalitárias de nosso tempo, conclusão que induz a outra mais importante: não há recompensa material que justifique a perda da liberdade, porque o homem é homem mais pelo espírito do que pelo estômago; porque a liberdade é sem nenhuma retórica, o bem maior, daí porque, no futuro, homens e mulheres serão julgados pelo que fizeram por ela ou contra ela, tal como hoje, nós, fascinados pelas conquistas materiais, embora ainda impregnados de violência, começamos a julgar os tiranos do passado.
O homem do futuro será glorificado pelo que fez em prol da liberdade. Só interesses ainda quentes, fazem que sejam poupados muitos que menos de um século atrás, a toda pressa, utilizando trabalho escravo, sobre milhões de cadáveres, ergueram impérios formidáveis, mas que, mal baixaram à cova, se tornaram abomináveis, até para os seus.

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A ameaça proveniente não do uso, mas do abuso, fez da liberdade o bode expiatório do século vinte. Para o radical de esquerda, a liberdade do burguês responde por todas as injustiças, tanto quanto, para o radical de direita, a liberdade do homem do povo é a causa desta antevéspera do caos que a quase todos ameaça. Confundindo, por ignorância ou má fé, uso com abuso, extremistas dos dois lados porfiam contra a liberdade, sabotando-a dia e noite, servindo-se dela, para golpeá-la. A liberdade está na defensiva, mesmo naquelas sociedades que num passado recente, faziam dela a bandeira dos novos tempos e que depois a conservaram, mais por hábito do que por entranhado amor.

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Governos discricionários cobrem metade do mundo, ameaçando com seu zelo militante, instáveis democracias. Dizer que depois do eclipse, a liberdade ressurge mais viva do que nunca, embora seja verdade, é, também, um consolo para as gerações sacrificadas. Dizer que a liberdade é mais forte que a tirania, não serve para dissuadir os tiranos porque a eles, quaisquer que sejam eles, comunistas, fascistas e outros istas, importa é o que lhes aconteça em vida. Não se preocupam com a opinião dos pósteros, desde que em vida, a liberdade alheia calcada a seus pés, lhes facilite o gozo do poder, paixão de todos eles. (Depois de mortos, o mundo que se dane!)
A liberdade é o bem maior, tanto que os tiranos, embora inimigos dela, hostilizam apenas a liberdade alheia, porque a deles, eles a querem mais do que tudo. Igual ao ar que respiramos, a liberdade é um bem natural, do qual sentimos falta apenas quando já estamos sufocando. Por isso, nas sociedades onde subsiste, mesmo desmerecida por quem jamais poderá lhe dar o justo valor, ela aceita o segundo plano, transformando-se, não raro, em moeda de troca com a qual obter coisas bem mais tangíveis.

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O burguês, entre a liberdade e os negócios, não hexita, sendo, em épocas de crise, cliente certo do fascismo. Por sua vez, o trabalhador, que no capitalismo tem menos liberdade que o burguês, mas que, ainda assim, a tem mais do que em qualquer totalitarismo, longe de levar isto em conta, por ressentimento contra os que a têm mais do que ele, se conforma em trocar o mínimo de liberdade que tem pelo pão, na secreta esperança de que todos sejam por igual despojados da sua.
Nada é bom para quem não sabe, por si mesmo, valorizar. Melhor caminhar sobre pedras, pelos próprios pés, do que trilhar o asfalto, como cego, pelas mãos de outro. Mas, para muitos a escolha é difícil, porque a maioria está ainda mentalmente despreparada para seguir o próprio rumo. Terá que se esforçar muito porque, seja entre pedras, ou sobre o asfalto, o interesse da minoria que manda, até mesmo para preservar o mando, é que ela, como cego, se deixe guiar.

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Porque a ordem está sempre em primeiro lugar, o sacrifício da liberdade em prol de uma ordem, justa ou injusta, constitui fatalidade que nosso tempo acentuou, eis que o acirramento das paixões fez o homem esquecer o principal: sem liberdade, não existe justiça. A esperança que, apesar de tudo, subsiste, advém menos do amor à liberdade pelos que a possuem, do que da verdade nunca desmentida de que nenhuma religião, ideologia, ou ambição nacional foi ou será capaz de dominar o mundo inteiro, por todo o tempo, porque nem a violência mais brutal conseguirá suprimir a necessidade de contradição que é da natureza do homem, daí porque, qualquer tirania, atingido o estágio em que a digestão se faz impossível, torna-se vulnerável e de seu próprio seio, qual uma fatalidade, surgem os conflitos, não porque entre os chefes, alguns queiram mais a liberdade alheia do que outros, mas, porque todos querem por igual o máximo de poder, disto se aproveitando a natureza para realizar a força, seu elemento transformador.

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Se a liberdade deverá constituir-se no mais forte apelo do futuro, isto decorre da necessidade que as facções, lutando umas contra as outras, têm de empunhar bandeiras representativas de suas diferenças. Onde a liberdade foi perdida, porque foi perdida, tornou-se valiosa e como bandeira dos oprimidos será irresistível.
Se de seus propósitos não consta a dignificação do homem, uma sociedade acaba lucrando, ao privá-lo de liberdade, porque, tendo liberdade ele exige o pão, ao passo que sem ela, terá de se contentar com o que lhe puserem nas mãos. Estando a ordem em primeiro lugar e desde que não exista preocupação de fazer da justiça um valor aceitável, a liberdade alheia torna-se, de fato, um estorvo.
Para uma sociedade disposta a conceder a todos tratamento igual, garantir a liberdade decada um , virou tarefa difícil, daí se pode avaliar quanta vantagem levam sobre ela, aquelas outras que, de pronto, decidiram, pela força, eliminar do rol de seus problemas, o maior deles - a liberdade - o que, embora condenável, é possível, ao menos, durante certo tempo, pois que a ausência de liberdade, maltrata, mas não mata, enquanto sem o pão, o corpo, não aguenta.

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Abstração feita de qualquer anseio de justiça, parecem evidentes as vantagens tanto de manter a paz entre acorrentados, quanto de impedir oposições, suprimindo eventuais opositores.
Nos últimos cem anos muito se falou dos direitos do homem, entre eles, do direito à liberdade. Mas, tão logo surgiam no papel, eram, na prática, invalidados por uma persistente investida contra eles, principalmente, contra o primeiro deles - o direito à liberdade e sua consequência, o direito de oposição, investida patrocinada pelo Estado e levada adiante, de alto a baixo, pelos seus agentes.
Para tanto, o dogma da vitaliciedade e virtual infalibilidade dos funcionários do Estado (calcado na força) foi trazido do limbo onde estava para as entranhas de governos exclusivistas, frustrando a razão, pois que, seu resultado - o Estado cirurgião - em vez de, como primeira instituição, garantir a boa convivência dos homens (entendidos como inimigos apenas potenciais) o que faz é amputar a raiz desta convivência - o direito de oposição - sem o qual, não há razão, até porque sua sausência ausência estanca o próprio processo de racionalização.
Sem divergências,

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Se diante da mesma realidade, vista por mais de um, à opinião do primeiro, faltasse, do lado dos outros, um mínimo de oposição, hoje teríamos branco o cérebro - como as ovelhas - e a História não seria mais que uma sucessão de és, muito próxima da sucessão de bés, que ao ser humano torna insuportável a vida no rebanho. O sim, reflete espontânea adesão, só quando, em vez de sim, poder-se-ia dizer não. Faltando liberdade, o sim, ainda que sincero, soará como rendição e isto ofende a dignidade que insuspeitada, subsiste no mais simplório dos homens.

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CAP. 24
24 - "PODER OU
NÃO PODER",
EIS A QUESTÃO

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Apesar do progresso material, vivemos o tempo da insatisfação, porque o conforto físico não é tudo o que o homem quer. Fosse esta a única ambição, a máquina com sua estupenda capacidade de produzir, logo daria a solução.
A vida se confunde com a realização de nossa vontade, permanentemente ameaçada pela necessidade que o outro tem, de também realizar a sua. Mas o que é a vontade, senão o esforço consciente para dominar um mundo disponível só em parte, porque se o fosse inteiramente, a vontade careceria de sentido, eis que, então, todo ele, estaria ao alcance das mãos, sem nada entre nós e ele, sem que para desfrutá-lo, tivéssemos de fazer o mínimo esforço.
Nada ameaça a vontade de Deus porque Ele é uno e, como tal, onipotente. Mas e o homem? Poderá ele realizar sua vontade sem restrições? A resposta é não, porque outros homens existem que, em tudo iguais a ele, possuem igual pretensão. A negativa significa pouco, porque se o homem não fosse um eterno pretendente ao impossível, e se neste pretender não pusesse seu melhor empenho, a vida, toda ela, não seria mais que uma lenta agonia.

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De que necessita o homem para realizar a vontade? Necessita de liberdade ou seja da possibilidade de ter o mundo à sua disposição, possibilidade relativa, pois que, existindo pluralidade de homens, todos com a mesma pretensão de ter à inteira disposição, esse mundo que é um só, a liberdade absoluta torna-se irrealizável, embora constitua o sonho de todos, a obsessão de muitos.
Segundo a única sabedoria que nos é acessível (a sabedoria humana) Deus e só Ele dispõe de liberdade absoluta, embora, para Ele, isto não tenha sentido, exatamente porque sendo um só e, por isso mesmo, todo poderoso, a liberdade não Lhe acrescenta nada, absolutamente nada.

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Ela só encontra sentido em meio à pluralidade e entre aqueles que constituindo-se pela matéria em organismos realizados, pelo espírito só se realizarão através da integração em um todo. Por isso, a liberdade só encontra pleno significado onde haja a um só tempo, pluralidade de matéria, buscando a unicidade do todo, ou seja, a liberdade só encontra significado entre os homens, posto que segundo as leis da procriação, que nem mesmo a criatura inteligente conseguiu radicalmente modificar (pelo menos até agora), um homem nasce de dois, daí porque ao abrir os olhos, já está cercado de concorrentes que se constituem em obstáculos à realização de sua vontade, concorrentes com os quais, apesar disso, terá de se integrar, seja como for, para que as inteligências possam, integrando-se, cumprirem seu destino racional.

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Porque a realização da vontade depende dela, a liberdade se constitui na razão de ser da vida; e porque é relativa, os homens a exigem segundo o princípio do quanto mais melhor; e porque a liberdade de um ameaça a do outro, ter mais e mais liberdade será sempre o sonho de todos.
No dia a dia, a liberdade nossa constitui o limite da liberdade alheia, ocorrendo que, a partir daí, sendo a liberdade uma só, num espaço e num tempo determinados, as modificações só podem acontecer, através de somas e correspondentes subtrações, eis que, a liberdade que se acrescenta à de um, corresponde àquela subtraída de outro.
Mas, como de um homem subtrair a liberdade, se ela, por ser a condição primeira da realização da vontade é que dá sentido à vida? Uma inteligência amadurecida jamais alimentaria tais propósitos. Porém, nós, porque ainda estamos longe da maturidade racional, preferimos resolver o existencial conflito de vontades em torno da liberdade, pelo choque de matéria contra matéria, pela violência.
Em sua ânsia de perfeição, o espírito busca a harmonia. A transformação a que está condenada a matéria, só possível pelo choque de uma contra a outra, lhe é estranha. As idéias, fisicamente, não colidem, nem se destroem; elas se tocam, se envolvem, mutuamente se atraem, se traspassam e se ajustam, para no final, integradas numa hierarquia que vai do particular ao geral, harmoniosamente iluminarem o céu de todos nós. O choque das idéias - se assim poderíamos chamá-lo - por mais inconciliáveis que sejam elas na aparência, desde que a matéria não se meta, será sempre benfazejo; não causará danos a ninguém.

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Por mais contundentes que sejam, as idéias jamais derramam sangue. Quando, mal utilizadas, elas funcionam como pretextos. Não foi o conflito de idéias que produziu a carnificina das guerras religiosas, nem as fogueiras da Inquisição. Vieram, o sangue e as cinzas, do aço penetrando as vísceras, das chamas consumindo os corpos. As idéias, na sua quietude, apenas aguardavam o tempo em que a vocação universalista de todas elas superasse as distorções particularistas impostas pela matéria, para que houvesse a aceitação de uns pelos outros. Embora as idéias religiosas continuem conflitantes, quase tanto quanto antes, parece difícil hoje, pelos mesmos pretextos, reeditar morticínios iguais aos de antigamente.
O conflito de idéias, no âmbito das idéias se resolve e é precisamente a ausência ou a confusão delas que, roubando ao homem a lucidez, torna inevitável a solução dos conflitos pela transformação da matéria, com todas as consequências. Desde que não sejam entendidas como coisas imutáveis, para uso próprio, as idéias, fiéis ao sentido universalista em direção ao qual avançam, se integram a outras mais extensas, nas quais estejam implícitos os princípios da convivência. (Elas ignoram fronteiras.)
Por isto não se deve condená-las pela sua origem como estamos acostumados a fazer. Nasçam de gregos ou troianos, elas pertencem à humanidade inteira.

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O homem é um pretendente à divindade e só não realiza tal pretensão, porque o corpo no qual o espirito se aloja, é matéria e, como toda matéria, sujeita-se à destruição. Mas, se lá do alto lhe negam a imortalidade, que fazer? Será Deus entre os homens, embora um Deus a prazo certo, no breve lapso de tempo que na Terra lhe concede o Deus verdadeiro. (Mil anos atrás iríamos para o fogo se duvidássemos de um Deus de carne e osso, presença diária entre os simples mortais.)

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O mundo espiritual ignora discriminações. Um homem, ainda que seja grande o seu poder; ainda que enorme seja a matéria sob seu domínio, apesar de toda a sua grandeza, não será, apenas por isso, nem a única, nem a mais fulgurante estrela da constelação imaterial.
O mundo espiritual transcende os indivíduos e insuscetível de apropriação, se abre a todos, pela porta da igualdade, a única que, na sua relatividade, lhe dá acesso. Isto que à primeira vista serviria apenas de consolo para os fracos, é relevante, posto que, sobre as dores do mundo, é na direção do absoluto que o homem avança e só não chega ao fim, porque, se o diabo nos tenta com as delícias do Olimpo, os deuses, antes, cuidaram de nos fechar as portas. (Tendendo para o absoluto, mas, dependente de outras para se realizar, a inteligência é obrigada a se limitar.)

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Porque sem ela, a inteligência não teria sentido, a liberdade é o bem maior da vida, a presa mais cobiçada na guerra dos homens. Exercitá-la sem frustrar a do outro, seria possível se nos guiássemos pelo espírito, preponderantemente, pois que então, a liberdade faria da igualdade, a medida do atendimento de todos.
Teria sido assim desde o início, se a exasperação da tendência egocentrista, não nos tivesse levado a uma perigosa inversão, por culpa da qual, menosprezamos o espírito em favor da matéria.
Será assim quando, desvanecido o sonho absolutista, o homem se lembrar de que não é a matéria, mas o espírito, que o faz tão próximo de Deus; quando se lembrar de que esta peculiar distinção, é que lhe permite resolver seus conflitos, sem que o seja pelo choque da matéria, pela física destruição. Esta auspiciosa possibilidade, aberta aos homens com exclusividade e que ainda hoje parece distante, só podemos entendê-la como expressão de uma vontade superior imperceptível apenas para quem se deixou cegar pela ânsia de uns aos outros dominar.
Se não pudéssemos resolver os conflitos a não ser pelo choque da matéria, pela física destruição, de que nos serviria a inteligência? No entanto, a solução violenta, porque é direta, visível e pessoal, jamais deixará de fascinar os impacientes, pois que do alto de seu egocentrismo, eles não conseguem entender que ela é a solução do homem-animal, nunca a do homem-criatura-inteligente.

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Os homens nascem livres e morreriam livres, se cada um respeitasse a liberdade do próximo. A inteligência, pela aceitação do outro, lhes diria como solucionar seu mais difícil problema: a coexistência da liberdade própria com a liberdade alheia.
A dificuldade maior vem da apaixonada visão que o homem tem de si mesmo; tão peculiar, que igual a ela ninguém pode ter, enquanto que a nossa visão dos outros, jamais coincidirá com aquela que de si mesmo, cada um tem.
Visto por si mesmo, o homem é uma obra prima; visto pelos outros, é coisa diferente. Embora, inconscientemente, cada um se tem na conta de criatura especial, em torno da qual gira tudo o mais, ao passo que o outro homem, a quem ele, em público, trata como semelhante, esse outro homem, embora tão iluminado quanto quanto qualquer um de nós, por mais semelhante que seja, haverá de ser sempre o outro homem, pouco mais que uma coisa qualquer.
Esta distinção que fazem de si e do outro, justifica no íntimo de cada um, os maiores absurdos; é ela que explica a desconfiança com que mutuamente nos tratamos. Apoiados nela, dispensamos a outras criaturas, tão inteligentes quanto nós, tratamento indigno de um simples animal. (O que de nós mesmos, nós pensamos e daquilo que, por justiça, nos achamos merecedores, está muito acima do que de todos os outros nós pensamos, e daquilo que, em consequência, nos dispomos a lhes conceder.)
Como aceitar a parcialidade com que, em todas as partes, os homens de todas as condições mutuamente se tratam? Cada um se julga criatura iluminada, mas é cego para a luz que do outro se irradia. Por culpa desta visão pejorativa de uns em relação aos outros, o corpo humano - matéria sacrossanta em cuja intimidade o espírito prospera - torna-se para o outro homem, simples matéria, suscetível como tudo o mais, de física destruição. Habitando um corpo cuja vulnerabilidade o outro não se vexa de ameaçar, o espírito, embora iluminado, receando a destruição do corpo que lhe dá abrigo, acaba cedendo.

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Negando-se como criatura inteligente, o homem descobre finalmente, como usurpar a liberdade alheia, lançando matéria contra o que é também matéria - o corpo com o qual o espírito se integra. A morte tornou-se a inimiga número um da liberdade, daí porque, muitos, pelo receio de perderem a vida e com ela tudo o mais, tanto consentem no esvaziamento do espírito, que por fim se tornam corpos apenas, matéria animada, porém, vazia de vontade, simples instrumento de destruição que os mais fortes alinham em fileiras e lançam uns contra os outros, como robôs, em proveito próprio. (Não fosse o medo da morte, nenhum homem a outro se curvaria, eis porque, todas as tiranias, contra o espírito da vida, mobilizam o anjo da morte.)

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Do mistério inicial, juntas procedem, a vida e a liberdade, que só o poder - criação espúria dos homens - consegue, ameaçando uma, usurpar a outra. Criação espúria sim, pois que se a liberdade é a norma, e se ela, como atributo da vida, nasce com o homem e desde que não haja intromissão, com ele segue até o fim, então, o oposto, isto é, a privação da liberdade, constitui ilegitimidade que só pode vir de outro homem, como negação do sentido original da vida, traçado por quem já existia desde que o mundo é mundo.
"Ser ou não ser", dizem os homens pela boca de um dos seus, Shakespeare, garimpeiro da verdade. "Poder ou não poder", dizem os nossos que já não precisam disfarçar a natureza das coisas.
Que é o poder, senão o instrumento de realização da vontade ou seja a capacidade física de maltratar ou matar alguém e graças a ela, pela intimidação, submeter-lhe a vontade, pondo-a, mesmo inconformada, a trabalhar pela realização da nossa?
Poder é simplesmente matéria, pouco importa que os homens, devido à complexidade de suas relações e a necessidade de uns enganarem os outros, procurem disfarçá-lo, a tal ponto que a maioria passa a vida toda sem perceber que não subsistiriam quaisquer formas de poder, sem a capacidade física de maltratar ou matar alguém que basicamente as sustenta.

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O espírito não mata nem maltrata; para tais coisas não serve. Fisicamente nada acontecerá sem o choque de matéria contra matéria, daí porque, poder é matéria sob domínio de um homem, da qual se serve ele, para limitar a vontade de outros homens, transformando-os em outras matérias à sua disposição. É o corpo humano que, privado de vontade, vira carne de canhão, matéria bruta a ser lançada contra outros homens em proveito de quem a domine; é o pão acima do apetite de um, do qual o outro necessita e, para não morrer de fome, aceita trocá-lo por sua vontade.
É, apesar de todos os disfarces, a capacidade física de maltratar ou matar, sem a qual não haveria poder, pois que se não existisse o temor do sofrimento físico ou da morte, aliado ao desequilíbrio de forças que permite ao forte, valendo-se desse temor, ameaçar os fracos, a matéria estaria à disposição de todos. (Homem algum consentiria que nos armazéns do vizinho, se acumulasse o instrumento com que lhe ameaçam a liberdade.)
Não fosse a persistência desta capacidade de matar ou maltratar, nenhuma convenção restaria de pé e o próprio dinheiro - expressão usual do poder - com tal frequência seria contestado que perderia sua utilidade.

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Se, de um modo geral, os homens dispõem da mesma aptidão para viver, então, o que é que habilita alguns a usurpar a liberdade dos outros? A resposta está no desequilíbrio de poder que existe desde que o mundo é mundo, mas que os homens em vez de recusar, conseguiram perigosamente agravar. Para o bem ou para o mal, os homens apoiam suas construções sobre fundamentos assentados muito antes deles. Servindo-se das diferenças físicas entre os indivíduos, pelas quais, nem de longe são culpados, construíram eles - com base no favorecimento natural do mais forte - um sistema de dominação de uns pelos outros, que sendo tão velho quanto o mundo, perdura até hoje, embora contestado pelos fracos.

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Se desta injustiça original, os homens não têm culpa, porque ela os precede, são todavia culpados por terem na sua exagerada preocupação de segurança, menosprezado o espírito como guia de suas relações e de tal modo se apegado à matéria, que o consequente sistema de dominação, calcado na lei do mais forte, mesmo à luz desta lei, tornou-se irreconhecível.
A preocupação dos grandes em proteger sua prole, acabou, no geral, desfigurando o próprio direito do mais forte, pela concessão de vantagens a criaturas, que dos outros se distinguem apenas pelo poder herdado de quem lhes deu a vida. Resultado é que o mundo está hoje de tal modo injustamente hierarquizado que, para cada homem bem situado que merece o seu lugar, dez outros existem, que deixados à própria sorte, apesar de paridos lá no alto, logo resvalariam para suas merecidas posições, tal a falta de aptidões, físicas, inclusive. Justamente por temerem a queda, tais criaturas se apegam a suas posições, com empenho igual aos de suas inaptidões. (Fazem qualquer coisa para se manterem onde o mérito jamais as colocaria.)

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O homem necessita essencialmente de liberdade, mas, liberdade sem poder que a garanta é nada, daí porque a liberdade de um, tornou-se ameaça à liberdade do outro. Em consequência, cada um se vê compelido a tirar a liberdade do outro, para que a sua não fique ameaçada, com o que ela se tornou alvo da cobiça geral. Porque ninguém, a não ser pela força, se deixa privar de sua liberdade, ter forças passou a ser tão importante quanto ter liberdade, graças ao que, na escala das humanas preocupações, o poder assoma ao primeiríssimo lugar.

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A liberdade não é um bem que se concede a outro, nem a si próprio. Tanto quanto a inteligência, cada um a recebe, com a vida, na medida suficiente, sem que esteja à altura de alguém, qualquer que seja esse alguém, conceder uma ou outra. O que pode um homem fazer é, do outro subtraí-la, agindo contra o espírito, que não aceita discriminações.
Só o poder material de um, consegue pela destruição ou pela promessa de sua consumação, eliminar a ameaça à própria liberdade, presente na liberdade do outro. Só a força bruta, conferindo credibilidade às ameaças, pode, de alguém, subtrair a liberdade, querendo isto dizer, que ela se transforma em mera dependência do poder e o homem poderoso que, ainda assim, é incapaz de concedê-la, ameaçando o corpo do outro ou destruindo-o, será capaz de extirpá-la. E se, às vezes, nem com a morte se consegue dobrar a vontade alheia, o fracasso serve, ao menos, como advertência para terceiros.

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Mais uma vez a matéria prevalece contra o espírito e até que cesse esta prevalência, o homem se verá na contingência de acumular poder, não para que através dele consiga sua liberdade, eis que esta, cada um, se dele não a tiraram, tem o suficiente. O poder só lhe servirá para impedir que, pela força, o outro faça o que lhe é possível fazer - usurpar a liberdade alheia. A expansão do poder material - criação do homem – resulta de sua vocação absolutista e não teria nascido e crescido, se lhe faltasse finalidade. Ao contrário da liberdade que é inerente ao homem, o poder é artificial e nasce da preocupação de usurpar a liberdade alheia, precisamente porque, nesta usurpação, reside a única possibilidade de alguém ter, comparativamente, mais liberdade que outro. Incapaz de a si mesmo acrescentar mais liberdade, resta ao homem uma única possibilidade: a de aumentar a sua, diminuindo a do outro, ou, privando-o dela.

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Quem tem poder, com ele tem a liberdade. O poder não concede, mas garante a liberdade preexistente. Mas, quem só tem a liberdade com a qual nasceu, cedo ou tarde haverá de perdê-la, porque o outro homem, todos os outros homens, que jamais poderão concedê-la, através do poder material, por via da intimidação, usurpá-la, eles poderão. (Isto o homem pode!)
Se a liberdade concedida no papel não deixa de ser importante como compromisso assumido por todos de respeitá-la, isto, no dia a dia, é pouco, porque o poder tem o mau hábito de fugir aos compromissos. E se o poder de um (sua capacidade material de atemorizar) é capaz de frustrar a liberdade do outro, então, a liberdade depende necessariamente de poder que a garanta. Ela sem ele, dura pouco.
Talvez porque a maioria não saiba e alguns poucos saibam demais, os poderosos do nosso tempo, ainda que de má vontade, aceitaram, com o progresso, a liberdade de todos, grandes e pequenos, mas, com relação ao poder, tiveram o cuidado de mantê-lo e aumentá-lo a ponto de que, graças a ele, a liberdade concedida no papel, virou pouco mais que letra morta.

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A razão só tem vez,
quando já não é possível
usar a força. (UM ANIMAL PROMISSOR***CAP.20)



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