ðH geocities.com /joseavellar/decima_pagina.html geocities.com/joseavellar/decima_pagina.html delayed x oÔJ ÿÿÿÿ ÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÈ 0’ ¶ OK text/html €õ0k ¶ ÿÿÿÿ b‰.H Sat, 02 Aug 2003 21:16:50 GMT Mozilla/4.5 (compatible; HTTrack 3.0x; Windows 98) en, * oÔJ ¶
O HOMEM,UM ANIMAL PROMISSOR Avellar Toledo
PARTE4
CAP.19 - No meio-termo a possibilidade do ATENDIMENTO;
CAP.20 - A RAZÃO, consequência da mútua dependência;
CAP.21 -LIberdade nos códigos; FRUSTRAÇÃO na vida;
CAP.22 - Da necessidade de ter INIMIGOS;
CAP.23 - NA RECUSA da oposição, a volta ao rebanho;
"PODER ou não poder"
*
CAP. 19
NO MEIO-TERMO
A POSSIBILIDADE DO
ATENDIMENTO DE TODOS
*
Tão pesada é a herança animal que a inteligência, não podendo indicar a verdade, para se compensar, busca a ilusão. Com que volúpia nos deixamos enganar, quando a mentira nos favorece! Acreditamos que, por conta própria, somos capazes de bom comportamento. Os mais afoitos enchem-se de santa indignação, se lhes pintam o retrato sem retoque.É de fora que nos dirigem, mas, agimos como se as rédeas estivessem conosco. O orgulho nos mostra a consciência como coisa nossa, embora ela não seja senão barreiras que a nós, como seus integrantes necessários, a comunidade impõe como condição de sobrevivência grupal.
A moral vale muito, mas vale como advertência: desafiá-la significa desafiar a força bruta que está por trás dela. Por menos que os ingênuos gostem; por mais que nos envergonhe, todo o mecanismo de dissuasão depende de força bruta pronta para a ação, caso falhe a implícita ameaça contida na moral. São vozes alheias aquelas que dentro de nós se erguem contra nossos propósitos, por mais torpes que sejam. (A rigor, para nós, tudo é permitido, pois a moral, como realidade individual, não existe.)
*Ninguém se submete a um julgamento, submete-se à força que está por trás do juiz, dando vida à sentença. Na hora de julgar, ninguém julga seu igual. Aquele que julga tem de estar acima e não é à toa que nos tribunais o juiz fica em plano superior, invariavelmente. A moral e outras criações do cérebro pouco valem como elementos de dissuasão. Seriam flanqueadas pelos indivíduos, não fora a certeza de que por trás delas, está a força bruta que ou os detém pela ameaça de iminente destruição física, ou efetivamente os destrói, solucionando o problema ao gosto da selva. Por ordem, somos, primeiro, animais, depois, racionais.
Por mais vergonhoso que seja, a verdade é que, tendo de escolher, poucos prefeririam morrer como homens, a viver seja como for. Morre o corpo, fim da esperança. A realidade não deixa de ser, só porque nos desagrada. Sob ameaça, a inteligência, tentando sobreviver, aceita o eclipse. Mais gente do que se imagina, vive do corpo apenas, vida animal, mas, d vida e com ela a esperança de que o sol volte a brilhar.*Descrentes de uma vida racional, os homens, no seu mútuo relacionamento, parecem contentes com a vida nas sombras, daí sua ojeriza à verdade - bússola da razão. Ela se opõe a que somente os iniciados lhe detenham os mistérios. Ela não precisa ter donos, nem tutores. Por isso não é bom que demasiado se interessem por ela e, muito menos, que façam dela objeto de um culto profissional.
Dizem que o intelectual é o garimpeiro da verdade. Descobrí-la onde esteja, é sua razão de viver. Missão estranha, dirão os nossos, desconfiados de tanto sacrifício para revelar o que estaria à vista, se, de propósito, não o escondessem. Na Terra, me dizem que de dois garimpeiros, um é charlatão; existe mais interesse em ocultar a verdade do que em vivê-la. (O mundo ficaria em silêncio, se todos portassem um detetor de mentiras.)*Contra a verdade, sedução e ameaças. A violência atrai os homens como a luz atrai os insetos. Paralisa-os sua formidável presença, como o brilho da luz paralisa os insetos. Presos desde que o mundo é mundo, cada um a seu feitiço, os insetos, embora tenham asas, não conseguem voar, enquanto os homens, apesar da inteligência, não conseguem pensar. Diante da violência, poucos podem dizer: "ignorei o teu fascínio e não me acovardei!"Muitos existem que, vencidos pelo tédio, na brutalidade buscam excitação. Adventícios de uma seita tão velha quanto o mundo, clamam pelo sangue com místico fervor, pois que, tomados de náusea, nada concebem de mais eficaz que ele para lavar os pecados desta corrupta civilização.
Ungidos de Deus, só a excelsa honraria não lhes basta. Mais que o triunfo do espírito, que este, a vista curta não percebe, anseiam pela glória palpável, pela consagração retumbante (espúria, não obstante) do homem de ação.
O ruidoso impacto da força atemoriza e pelo temor conquista até intelectuais, desses que, inconscientes ou não, lutando pela consagração, na brutalidade de massa, ironicamente, buscam a própria negação.
Rebeldes por natureza, nem os artistas resistem ao canto de sereia da violência (a mais velha das servidões humanas). Muitos existem que, tomados de santa exaltação, escolhem seus modelos por antecipação, como se nada houvesse mais digno da arte, que um homem e seu fuzil.
*Ovelhas negras dos apriscos totalitários, pelos próprios irmãos discriminados, não se dão por achados, esses intelectuais soldados. A independência (apanágio da inteligência) perdem-na esses desavisados, sem perceberem que, perdendo-a, com ela perdem muito mais.No abandono à força o intelectual adormece o senso crítico que o distingue. Em lugar da dúvida que fecunda, adota ele a certeza que esteriliza, esquecido de que a dúvida é graça divina, só Deus a pode dar, enquanto certezas de adoção, dessas que não resultam de espontânea e geral adesão, qualquer vocação de ditador, aos de baixo pode impor. (A dúvida, clamando pela verdade, põe o cérebro a trabalhar. Tivéssemos apenas certezas, nem precisaríamos pensar.)
*Quem não padece de dúvidas; quem só tem certezas, faça por salvar a pele porque o espírito já era. A libertação pela autofagia, eis o equívoco dos intelectuais a serviço da violência, quase sempre, intimamente amedrontados, prontos a agredir quem não lhes ofereça perigo, muitos deles, autênticos lambe-botas de tiranos. Mas que fazer, se a tudo preside cruel fatalidade: a inteligência que só um Deus pode dar, qualquer imbecil, de um golpe, tirando o corpo, com ele pode tirá-la. (Bom lembrar que também nos intelectuais, se a alma é sensível, o corpo não é de ferro!)*Conhecer sua essência, eis o primeiro passo para a cura de um mal. Mas, como poderão os homens se livrarem da violência, fonte de todos os males, se, com relação a ela, nem certos estão de sua dependência?!A questão fundamental está na busca da verdade, eis que não pode o homem, nem o mais brutal, fugir à racionalidade, recusando o consenso geral por ela indicado.
Porque o homem só é homem, enquanto racional, a importância da verdade deixa de ser um jogo de palavras e o que de bom não vier por meio dela, pela mentira é que não virá, pois que esta é só um artifício para fazer de quem não vê claramente, um joguete de quem enxerga longe.
*Foi assim no início do mundo e será assim por muito tempo. Apesar disso, a mentira está sempre ameaçada, porque não tem vida própria, só existe em função da verdade, como seu disfarce. A verdade se mantém por si mesma a qualquer tempo, por toda parte, bastando que saibamos identificá-la. Com a mentira não é assim. Vai muito bem um homem e suas mentiras, pelo tempo em que a si e aos outros consegue enganar. Perde ele o ímpeto, quando se descobre errado. Entra em pânico, quando, além de se saber errado, percebe que os demais já lhe descobriram o erro, como também descobriram que ele próprio se tem por errado.O fanático só é impetuoso enquanto se acredita o dono da verdade. Daí a necessidade que a intolerância tem de fechar os olhos de suas vítimas, exasperando-lhes as paixões, por medo de que, conhecendo a verdade, elas esmoreçam no combate.
O ser inteligente, a criatura racional, jamais conseguirá, como tal, viver sem a verdade, pois, sem ela não é possível pensar. (O que seria da ciência se continuássemos apegados à teoria da imobilidade da Terra?) Na busca da verdade, a mentira surge para desviar e confundir. Por isso, só a minoria pode trocar a verdade pelos interesses, eis que, sendo minoria, sua impostura não consegue invalidar a verdade da maioria. (É bom repetir que a mentira, enquanto não lhe tiram a máscara, passa pela verdade.)
*O erro, isto é, a violência e sua capa, a mentira, com frequência se dão ares de triunfo, com bons motivos, se levarmos em conta apenas aqueles poucos - os extremistas - aos quais favorece a lei das compensações. De fato, tanto nos grandes quanto nos pequenos lances da vida, os radicais só podem exagerar, porque uma larga maioria existe que, mais sensata, se permite moderar, para o erro deles compensar.Com base naquilo que é aceito pela maioria, é que todos nós - inclusive os radicais - conseguimos nos guiar. Se metade só dos homens, em vez de conciliar, exigisse tudo, o mundo viraria um pandemônio e ninguém seria atendido. (Longe dos extremos, no meio-termo, está a possibilidade do atendimento de todos.)
*Perguntados sobre as causas da vitalidade do erro, só podemos responder, argumentando com a similitude da alma humana. Deixamos que o erro floresça, mesmo que nos prejudique, apenas porque, existe em nós a secreta esperança de que um dia, ele nos favoreça. Contra isso, pouco há que fazer, porque, no fundo, o que todos querem é vencer, mesmo à custa de erro. O fracasso dos moralistas de carreira, sempre de dedo em riste, acusando, prontos a dar conselhos (geralmente interesseiros), acontece porque que eles, embora sendo homens, procedem como se não fossem. Passíveis, tanto quanto os demais, de natural suspeição, não admitem ser vigiados, fazendo-se, inquestionáveis.Esta é sua preocupação. Mais ainda: querem tão só pela negativa, ocultarem os estigmas da humana condição, como se fosse possível. Porque partem da impostura, nunca poderão dizer a verdade desinteressada. Ousam construir sua ilusória (mas rendosa) credibilidade, exagerando a realidade. Seu retrato de homem, irrealisticamente ampliado, em defeitos e virtudes, perde relação com o natural, jamais podendo servir de modelo para o comum dos mortais, pois que divide os homens esquematicamente em "bons" e "maus", segundo suas conveniências.*
Para que possam, como integrantes da classe dos "bons", aconselhar e, com isso, orientar os "maus", os espertos minimizam as próprias virtudes, de maneira a que todos entendam o contrário, ou exageram seus vícios, de modo a que não sejam acreditados.O que temem esses falsos modelos é serem tratados como homens iguais aos outros, portadores de virtudes e defeitos. Porém a eles importa serem perfeitos, pois que se fossem iguais aos outros, que autoridade teriam para aconselhar? Todavia acreditar que sejam diferentes, seria acreditar que os médicos, só porque aconselham seus doentes, sejam imunes às doenças.."De médico e louco todo mundo tem um pouco", ; diz o povo. Mas. se os médicos também adoecem e se o erro não deixa de ser uma doença, como poderíamos curar a doença de errar, se, já de início, nos declarássemos livres do erro?Assim, todos nós que aconselhamos, ou seja, os médicos que todos nós somos, continuaremos errados e o erro, por causa disto, jamais será erradicado. (Se para aconselhar, alguém tem que se dizer imune ao erro, haverá erros de sobra, pois que o conselheiro, ele também um homem, já começa errado, ao dizer que não erra.)*
Porque se acreditam imunes ao egoísmo, alguns cuidam de, através de conselhos, extirpá-los nos outros, esquecidos de que o egoísmo é parte do animal que existe em nós; é, inclusive, princípio de ordem, a primeira diretriz da vida, dai porque jamais conseguiríamos extirpá-lo sem inibir o próprio homem.Fossemos todos altruístas irremediáveis, seria difícil subir no elevador. "Entre, por favor!", "Obrigado! Entre o Senhor!", e ficaríamos nisso.Se agirmos com sinceridade, o que poderemos fazer e nisso residem nossas esperanças, será compatibilizar o egoísmo de um com o egoísmo dos outros. Contudo, a este destino auspicioso, não chegaremos senão pela primeira das verdades, aquela, segundo a qual, embora, na aparência, diferentes, somos todos, na essência, iguais - homens, simplesmente. E, se, de indivíduo para indivíduo, existem diferenças perceptíveis, integrados os homens num grupo, elas desaparecem.Acobertada por belos disfarces, a indefectível presença do egoísmo entre indivíduos e coletividades, somada à segurança que de qualquer união resulta, fortalece de tal modo a tendência egocêntrica, que o egoísmo de uma classe contra outra classe, seja bem mais intenso que a média do egoísmo de seus integrantes, isoladamente considerados.**19
A razão é, no indivíduo, uma imposição de fora, tolerada de má vontade, pela necessidade de convivência. Ao contrário dos instintos que, no berço, já estão prontos e acabados, a razão depende da integração das inteligências para nascer. Da inequívoca prevalência dos instintos resulta que o indivíduo, apenas secundariamente pode recorrer à razão como alternativa, uma vez que, isoladamente, como indivíduo, à natureza já está ele preso desde o nascimento, graças à precedência dos instintos.A razão (filha do homem como criatura social), bem assim, a verdade, a justiça e o mais que só vive em função dela (para afirmá-la), também a mentira, a injustiça e tudo aquilo que, embora (para negá-la), também vive em função dela, enfim, a razão (e toda sua descendência, boa ou má), sem que o saibam, os homens a constróem dia a dia, numa urdidura de todos.Ela significa reação ao determinismo do mundo exterior, reação que não sendo ainda capaz de impedir a natureza de impor a violência como solução para o conflito de vontades, tem, de positivo, pelo menos a propriedade de não se conformar com a solução natural - a solução do mais forte - a ela contrapondo a humana solução - a solução racional - só possível pela aceitação da mútua dependência entre os homens, isto é, desde que eles passem de inimigos efetivos, a cúmplices e aliados; inimigos apenas potenciais.*
A razão só prospera entre aliados, entre aqueles que, por serem mútuos dependentes, estão impedidos de usar a força para solucionar os conflitos, que, adormecidos, subsistem entre eles. Da mútua dependência e da consequente impossibilidade de usar a força, nasce a razão - meio-termo ideal entre as vontades conflitantes. Desde que seja possível o uso da força, ela se deixa usar sem constrangimentos, sem remorsos.A razão só tem vez, quando o uso da força é impossível. Entre inimigos não há lugar para a razão, porque, entre eles, livre é o recurso à força e só por falta de forças é que não se chega à física destruição.A razão nasceu da impossibilidade do uso indiscriminado da força, por parte de todos os homens, vale dizer que ela veio da necessidade de ordenar a vida no contexto duradouro da luta pelo poder, da qual participam, não só inimigos, como também, cúmplices ou aliados que, ao menos, por algum tempo, convém poupar.Porque a vida social necessita de um mínimo de ordem para funcionar, uma caótica batalha entre os indivíduos, seria inviável. Para que a própria luta entre os homens se desenvolva há de existir alguma disciplina, só possível através de ajuntamentos de indivíduos, resultantes, na aparência, de adesões, na verdade, frutos de submissões, porque o homem não é de aderir, sua vocação é dominar. (Os homens, fracos ou fortes, temem o caos e deste temor surge a inevitabilidade de um poder maior, pois que só o maior pode, ao menor, impor disciplina.)*
A maioria mais teme perder a vida que a vontade, daí porque mais importante que matar o inimigo, é ameaçá-lo de morte para que, à custa de mantê-lo vivo, se lhe tire a vontade, pondo-a, ainda que insatisfeita, a trabalhar para quem a vida lhe poupou. Evidente que ameaças só rendem quando feitas por quem tenha forças para, se necessário, efetivá-las. Eis porque a concentração de poder se faz em torno dos fortes, tendo no mais forte, o centro de atração.De ameaças expressas e de veladas ameaças, surgiram grandes concentrações de poder, as quais, por necessidade de se defenderem, umas, das outras, ou de terceiras, entraram em alianças ou se deixaram absorver. Tornaram-se cada vez mais poderosas, até que chegassem a ser o que hoje são. (Eis a gênese das nações!)*
O alinhamento, embora a contragosto, das vontades individuais, necessitadas de se defenderem de outras vontades também alinhadas, produziu desde grupamentos menores, vinculados por consanguinidade, até as complexas nações dos nossos dias, todas elas aglutinadas pela mesma fatalidade que impele o homem a dominar para não ser dominado ou aproveitar as circunstâncias para se fechar em grupos, transformando-os em universos à parte, a salvo, ao menos, e ainda que precariamente, de outras dominações. Dai esse amontoado de duvidosas soberanias, em que se converteu a Terra, planeta que, por isso mesmo, não conhece valores universais, dado que a razão é uma em cada região.*
Não existe razão sem mútua dependência, pois, se ninguém dependesse de ninguém a razão seria desnecessária. Ela só faz sentido, onde os indivíduos, embora inimigos potenciais, formem uma união que lhes restrinja a vontade. Eis porque, a razão só pode prosperar no interior dos grupos, dado que só no interior deles, prevalece um poder maior, capaz de impor restrições ao uso da força pelos particulares. Sendo tal poder uma instituição, no caso, o Estado, ele só pode significar poder impessoal. (Embora controlado por pessoas físicas.)Tal poder depende, mesmo que difusamente, dos indivíduos, pois que não existe instituição sem que antes exista o indivíduo que lhe dá vida. Sem a mútua dependência, limitando a vontade, não haveria razão, tampouco instituição. (Haveria poder pessoal com o maior a engolir o menor.)*
A razão pressupondo limites ao uso da força pelo indivíduo, depende necessariamente de poder institucionalizado, único que, por constituir-se na expressão ideal das forças de cada um, pela representatividade geral nele contida, é capaz de inibir a vontade pessoal em benefício da vontade grupal, embora, na prática, seja esta manipulada pelas mais fortes individualidades do grupo.Ainda hoje, a Terra ignora a razão como valor universal, pois que nenhum poder existe, acima das nações, capaz de lhes impor restrições ao uso da força, um poder maior do qual seriam todas dependentes, poder supranacional, o qual, por ser instituição, fosse também dependente delas. Inexiste lei positiva que prevaleça contra todos, em toda a terra. No campo internacional, mal saímos da barbárie, tudo dependendo da circunstancial relação de forças entre as partes.*
Nada constitui remédio eficaz contra o egoísmo. A inteligência jamais poderá conceber algo que não se ponha a serviço dele, simplesmente, porque tudo de bom que vem dos homens, só poderá vir da razão, que, no entanto, precisa ser elaborada dia a dia, enquanto os instintos já estão prontos, vêm do berço.Só esta prevalência do animal sobre o racional explica a desenvoltura de alguns (por sinal os donos do mundo) de se servirem das próprias instituições, sem poupar nemr aquelas tidas como acima de quaisquer ambições. Fazem tal sucesso como arautos dessas entidades, principalmente, contra aqueles que mais ameaçam a eles do que a elas, que somos tentados a crer em algo instintivo, anterior à razão, inacessível ao comum dos mortais, que desvinculado de compromissos que não sejam com o individual, se põem a nos dizer, zombando de nossa boa fé: "o egoísmo não se deixará convencer nem pelo óbvio; por nada que seja criação do homem, ainda que a mais sublime. Existe isto: o indivíduo, um eterno pretendente a Deus (e suas ambições.)*
O interesse dos de cima é que os de baixo ignorem essa verdade ou, que, vindo a conhecê-la, permaneçam inativos. Considerações de ordem moral não entram nesta conta sem limites. A nosso favor, vale tudo, desde o mais vil ao mais sagrado, porém, sendo um só o propósito de todos, é necessário crescer em astúcia para, aos outros, enganar.Precisamos tirar do mundo, o que for possível, sem remorsos, fazendo, no entanto, crer aos demais que, longe de nos servirmos dele, nós é que somos seus servidores.Mas, para a maioria acomodada, agir assim fica difícil, porque os ativistas, embora minoritários, arriscam mais e enxergam longe. Usando de malícia quando só a força bruta não basta, eles se tornam os donos do mundo.*
Existem limites além dos quais poucos se arriscam. Diante do que é grandioso, a maioria, por temor fraqueja. Não é do bem, nem do mal que se trata. A questão está em compreender e ousar. Diante de Deus - por exemplo - o comum dos mortais se inibe. Dele se serve apenas quem foi capaz de entender que afora o Deus verdadeiro (o ignoto Deus de todos os homens) do qual, por isso mesmo, nem se fala, todos os deuses que pululam na Terra ao sabor de interesses locais, não passam de deuses criados, passíveis de serem, como tudo o mais, conspurcados.Serve-se de Deus quem for capaz de compreender e, principalmente, de ousar, pois são poucos os que se atrevem a tê-Lo como serviçal. A maioria se inibe diante da grandiosidade, ainda que, simples criação do homem. Porém, aquele que for capaz de transpor esse impreciso limite que, para quase todos, parece intransponível, este, pertence ao número dos eleitos e só não fica satisfeito, porque é mesmo insaciável.As instituições, porque implicam na limitação da vontade, a contragosto foi que o homem as criou, apenas por temor à insegurança geral decorrente da vontade ilimitada que, por sua vez, gerava a violência indiscriminada.A instituição, limitando nossa vontade, e, consequentemente, o uso da força, inscreve a razão como guia dos homens, daí porque, ao surgir, ela se constituiu num acontecimento capital*
Dirigida de longe, lá do infinitamente distante, a natureza jamais recuará diante de nosso anseio de liberdade, porque, sendo imutável em sua essência, ela o é por falta da inteligência que no homem produziu a necessidade de mudar, necessidade que ela (porque não tem), em nós soberbamente ignora.Prevalecendo-se de que, pela fisiologia, somos seus dependentes, ela, apesar da nossa rebeldia, nos trata como uma espécie qualquer, submissa tanto quanto as outras, ao império de suas leis imutáveis. Entre o homem em estado de natureza e o homem integrado numa instituição, ela não faz distinção, eis que a fisiologia é a mesma, tanto para aquele que institucionalmente representa milhões, quanto para o menos representativo de seus representados.Incapaz de compreender, a natureza jamais será capaz de mudar. Ela ignora as instituições e, passando por cima delas, continua impondo-se ao que de matéria existe em nós, esquecida de que, no contexto da eterna luta que dentro do homem se trava entre o animal e a inteligência, o surgimento da instituição (resultado do entrelaçamento de vontades), constituiu-se numa vitória da razão.*
Submissos aos desígnios da natureza, necessitada de em nós realizar a força, produzindo a violência, mesmo dentro das instituições, os indivíduos continuam agindo como se entre a vida numa dessas entidades e a vida natural, não houvesse diferença.Alguns assim agem por conveniência. São os fortes, porque a vida natural os favorece. Outros assim procedem por ignorância. Estes, se não lhes faltasse visão, logo perceberiam que a natureza, tanto em relação ao homem, como a tudo o mais, privilegia o forte, o mais apto a viver, disto resultando que toda a luta do homem não é mais que esforço imenso para desfazer esta natural preferência, porque, os fracos, que também se julgam com direito à vida, não se conformam.*
Ao tempo da vida natural, inexistindo a razão, faltava sua descendência - a verdade e seu reverso, a mentira - e tudo o que do cérebro vem, daí porque, tal qual ocorre entre os animais, cada um contra o outro se afirmava (ou se anulava), graças tão só ao poder físico individual. Os indivíduos, mesmo quando se associavam para lutar, faziam-no, menos por adesão do que por imposição, tendo a força bruta como determinante da hierarquia no interior dessas rudimentares associações, que haveriam de se transformar nas atuais instituições.Nasceu a instituição, da impossibilidade da plena realização de todas as vontades, porque, absolutistas e conflitantes, elas, as vontades, entregues às suas originais tendências, produziriam o caos ou a vida natural, com o que, ninguém se conforma. A instituição implica na limitação das vontades, implica em que, alguém fale pelos demais e desde que os fortes jamais consentiriam que os fracos falassem por eles, dentro das instituições prevalece a voz do mais forte.*
Do oportunismo não escapam nem as boas intenções e, com frequência, aquilo que veio para benefício de todos, levado à prática, acaba, pela corrupção, transformado em instrumento de opressão, desvirtuado que foi por seus manipuladores, pois que afinal a iniciativa é muito mais deles que dos outros e não seriam homens se deixassem de lucrar com isso. ("Quem parte e reparte, leva a melhor parte.")O instinto dominador do homem, sobrepondo-se pela anterioridade ao que existe de racional, no próprio seio da instituição, continua a luta pela dominação. Em pouco tempo, a entidade - qualquer que seja ela - acaba degenerando-se em organismo espúrio, tendo os fortes como cérebro e os fracos, como um corpo sem vontade, condenado a servir.Da impossibilidade de o fraco representar o forte e da inevitabilidade da representação, resulta que o forte é que é o representante. À sua vontade pessoal que já era maior, ele acresce mais poder, resultante da subtração (pela força ou má fé) de parcela da vontade dos representados, com isto, desequilibrando a relação de poder dentro da instituição.*
Esta disparidade de forças, aliada à notória infidelidade do representante a seu representado, fazem das instituições, entidades monstruosas que, nascidas para conter a gula do individualismo, se transformam em túmulos da individualidade. Legítima, como expressão da vontade grupal, mas distorcida pela desproporcional distribuição de forças entre seus membros, a instituição acaba privilegiando a vontade dos fortes. (Mesmo assim, houve progresso, porque aceitando a instituição, o homem, se comprometeu a viver conforme a razão e se não o faz, é traição, é dívida com a comunidade.)**20
Embora no interior das nações, a lei admita discriminações de raça, credo, sexo e outras, isto é, no interior do grupo social, a lei dificulte a integração, o principal obstáculo à racionalização do mundo, está no desencontro entre a liberdade nominalmente concedida e sua frustração na vida, desencontro resultante da disparidade de poder, originária, por sua vez, do descompasso entre o progresso material e o progresso das relações humanas.O avanço material - que não vem das boas intenções - e que no geral se realiza à revelia dos homens, destruiu velhas servidões, não porque fossem injustas, mas, porque, sujeitas ao tempo, como tudo o mais, elas, caducando, se tornaram pesos mortos.A industrialização, exigindo do homem do povo participação maior na produção e, principalmente, valorizando-o como consumidor, aumentou-lhe as oportunidades no lazer, na saúde, na educação, até na vida social, a ponto de que hoje nas festas já não haja como distinguir entre um trabalhador do comércio ou do serviço público. Houve progresso na distribuição de renda, mas em grau tão abaixo do esperado que é melhor não falar dele.O avanço tecnológico tem sido perverso. O extraordinário aumento dos ganhos empresariais por ele proporcionado, além de não ter sido competentemente distribuído, tornou-se responsável por uma das maiores tragédias do nosso tempo, o desemprego, porque, para quem vive do trabalho, salário baixo é ruim, salário nenhum é ameaça de morte por inanição.*
Movido por interesses imediatistas, o progresso material, se a quase todos beneficiou, a alguns favoreceu mais que a outros, criando por culpa dessa desigualdade, novas servidões, menos ostensivas, porém, igualmente, inaceitáveis. Teria sido melhor, se a liberdade do outro fosse a preocupação de todos ou pelo menos do segmento ativo da sociedade. Se assim fosse, a inteligência bem cedo teria encontrado a solução, pois que embora real, a complexidade do mundo, mais que obstáculo, é pretexto para que não se ande muito nesta direção.*
Não fosse o desejo de preservar os privilégios, os homens, reunidos de boa fé, para qualquer problema encontrariam a solução. Se nos deixássemos guiar pela verdade, a experiência do dia a dia, logo nos ensinaria que neste longo e difícil caminho, o maior obstáculo, é, entre os indivíduos, o desequilíbrio de poder, seja de que natureza for, pois que a força tudo sobreleva, direitos e o mais, daí porque, tem ela na liberdade do outro, seu maior desafio.A multiplicação das potencialidades pela máquina, realizando-se em proveito maior das elites, em pouco tempo iria produzirgigantescas concentrações de riqueza, diantes das quais, os potentados de antigamente, se dessem de gabar sua grandeza, ficariam desacreditados. (Um operário tem hoje mais conforto material que um rei de outrora, se bem continue insatisfeito, porque se ele tem muito em relação aos grandes do passado, tem quase nada em comparação com os magnatas de agora.)*
A sociedade se reorganizou em função de seu objetivo maior: enriquecer com a produção e o consumo. Aos grandes interessava quebrar os antigos vínculos do homem comum para que nada o afastasse do novo ideal. Perdas e acréscimos de poder que antes, pelas armas, se decidiam, agora iriam resultar de um processo difuso, correndo entre a produção e o consumo. O dinamismo característico da sociedade industrial, cedo iria encontrar o instrumento sob medida para a efetivação das trocas. Graças à sua eficácia corruptora, capaz de igualar na lama, príncipes e mendigos, o dinheiro se tornaria o fator primordial da erosão de todos os valores. Deus, a Pátria, o apego à terra, a convivência familiar, nenhuma recompensa espiritual haveria de resistir ao apelo dos tempos dissolutos.O espírito comunitário desapareceu de vez. Crentes e descrentes das muitas crenças e descrenças, por cima de suas desavenças, iriam encetar unidos, a perseguição ecumênica do lucro, numa desatinada emulação que acabaria por avacalhar o próprio simbolismo religioso.*
O consumismo insaciável (porque motivado mais pela ganância do produtor, do que pelas necessidades do consumo) erigiu-se em filosofia de vida, roubando a paz do homem comum, porque, mesmo aquilo que ele não teve tempo de consumir, embora intacto, já foi superado pelas novidades do mercado (nem sempre melhores que as antigas), numa ilusória renovação, cuja primeira finalidade é a de lhe tomar o último tostão. Espicaçado pela publicidade, que faz de mulheres e crianças, seu instrumento de chantagem, lá vai o chefe de família, que mesmo sugado de seu último vintém, ainda assim não se contém, tudo comprometendo através do crediário.Quando o consumismo delirante degenera em compulsão, condicionando-lhe a vontade, o homem engajado nesta corrida sem fim (porque dele estão sempre exigindo mais) por medo de ficar atrás, acaba sacrificando o convívio familiar, pondo, seja onde for, mulher e filhos a buscar dinheiro, enquanto ele mesmo, exauridas as possibilidades decentes, abeira-se do crime, prostitui-se, trapaceia, frauda o semelhante e só escapa da cadeia porque secretos interesses econômicos preferem tê-lo como consumidor ativo do que inútil prisioneiro; também porque os ilícitos civis, tão comuns se tornaram que já não escandalizam ninguém; e ainda porque, a elevação dos preços, faz com que todos paguem por ele, inocentes e culpádos.*
Vencedor ou vencido, o homem de hoje não é feliz, porque não há patife, mesmo bem sucedido, que não inveje o êxito honestamente construído, pelos caminhos da concorrência leal, aberta a todos, sem pressões que encerram verdadeiras extorsões.Por isso há desalento no interior de douradas mansões, eis que por confiarmos demais na invencibilidade do dinheiro, acabamos esquecendo que muita coisa não está à venda. O amor que se vive por inteiro, a amizade sem reservas, preciosidades que as mãos não tocam, o dinheiro não as compra, visto que estão fora do comércio. (Feitas de sincera afeição, elas jamais nascerão de quem, nessas coisas, seja comerciante também.)