ðHgeocities.com/joseavellar/nona_pagina.htmlgeocities.com/joseavellar/nona_pagina.htmldelayedx oÔJÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÈ0 ’VëOKtext/htmlpaõ0kVëÿÿÿÿb‰.HSat, 02 Aug 2003 21:14:44 GMTMozilla/4.5 (compatible; HTTrack 3.0x; Windows 98)en, * oÔJVë Avellar Toledo
O HOMEM,UM ANIMAL PROMISSOR
Avellar Toledo

PARTE3

CAP.11 - Garantia de todas as INJUSTIÇAS ;
CAP.12 - O CONLUIO da violência com a mentira;
CAP.13 - Invertendo a DIREÇÃO da vida;
CAP.14 - O ÚNICO animal apto ser racional;
CAP.15 - Contrariando a VONTADE do outro;
CAP.16 - A saída para o IMPASSE original;
CAP.17 - A luta de CLASSES não é a verdade inteira;
CAP.18 - O homem, ainda JOGUETE da natureza.

*
 
 

CAP.11
A FORÇA
GARANTIA
DE TODAS
AS INJUSTIÇAS

*
Dependentes da lei natural, os homens, em seu mútuo relacionamento não fazem o que querem; fazem o que a natureza lhes impõe ou o que as circunstâncias permitem. Exclusivista, a força tem como inimiga a independência, daí porque ela tudo faz para reduzir as opções, a fim de que, obrigando o homem a fazer concessões até pelo pão de cada dia, a ele imponha sua ordem, baseada na dependência de quem pode menos àquele que pode mais.

Obedecida esta lei de ferro, outra qualquer torna-se irrelevante, disto resultando - por exemplo - que uma vocação de comerciante se realize num boteco, numa Igreja, tanto quanto num jornal. Nesse mundo irracional (porque ainda dirigido pela força), nem para salvar a vida os olhos se abrem, quando a morte vem de cima, enobrecida pelas grandiloquências de sempre.

*

Sem ao menos saber porque, milhões de homens matam e morrem nas guerras, enquanto os que sabem - os belicistas - para os quais a guerra é um grande negócio, ou uma fonte de prestígio, esses, de tão poucos, dá para contá-los nos dedos.
Numa sociedade rigidamente estruturada em forma de pirâmide, o poder (única fonte de decisões), de tal modo se concentra no vértice, que num planeta de bilhões, não chega a um milhão o número de reais participantes.
Do primeiro ao último escalão, a papelada incoerente, a burocracia infernal (regalo dos chefes incompetentes); o conflito de leis e regulamentos, tudo isso, impedindo o andamento lógico das coisas, acaba marginalizando os de baixo, deixando tudo à mercê de quem tenha poder de decisão que, de mais a mais, pode decidir sem riscos, porque, se errar, não vai pagar, eis que a irresponsabilidade generalizada absolve-o da injusta decisão.
(A sorte do mundo pende da cabeça de mil homens, no máximo.)
Porque absurdos iguais a este, pela força, prosperam, os homens se atrasaram no caminho da libertação. A maioria, brutalizada e posta à margem exatamente pela força, ainda assim dela não consegue se livrar, seja por culpa do hábito, da apatia ou da falta de visão. A minoria (mais esclarecida e mais influente) que, por isto, muito poderia fazer contra o domínio da força, nada faz, ao contrário, o fortalece, a ele se submetendo, conscientemente, como único meio de manter suas posições, que, sendo de privilégios, só a força pode manter.
Para os homens, o pretexto basta, até porque, temem eles, antes de tudo, a verdade, a qual pondo-lhes diante dos olhos a realidade (de sua sujeição à força), lhes indica a solução racional que eles ainda não podem aceitar, pois ela induz ao fim dos privilégios, atraindo a ira dos beneficiados, sem suscitar o entusiasmo dos demais que não perdem a esperança de um dia, virem a ser os privilegiados. (Ninguém é contra os privilégios, desde que seja ele o privilegiado.)

*

Fora da razão e da força nada há que possa dirigir as relações entre os homens. Os impacientes e os obtusos - que existem em grande número - não podendo negá-la, falam da razão como de um sonho impossível. Todavia, ninguém deixará de afirmar, sem a si mesmo como homem se negar, que não é a força, mas a razão, que nos deve servir de guia. (Sabemos dessas coisas, mas, não seríamos homens, se apenas por sabermos, desistíssemos de injustas pretensões..)
A razão, se a todos não sacia, porque o egoísmo quer sempre mais, pelo menos atende a todos, sem que a uns contente mais que aos outros, ao passo que a força, exclusivista por natureza, só atende aos fortes, com o sacrifício dos fracos.
O tratamento desigual que favorecendo uns poucos, aos demais prejudica; a recusa da concorrência leal; tudo o que não pode ser feito à luz do dia, por temor da maioria (sempre atraiçoada), enfim tudo isso a que os homens chamam de "o mal", isso tudo, é a força (padroeira das injustiças) que sustenta e nunca a razão, pois que esta, a todos dispensa tratamento igual.

*

Da violência vem o mal, que não existiria, sem a força para sustentá-lo, pois quem, de vontade própria, acolheria, aquilo que é de todos indesejado? Que mal poderá fazer a outro quem não tenha forças? A condição de vítima não agrada a ninguém, até por questão de orgulho. Se é assim, como admitir que a alguém se imponha um mal, contra a sua vontade, a não ser pela força?
Tudo o que beneficie um em prejuízo de outro, todo favorecimento desleal, só a força pode manter, até porque, está para nascer, aquele que, podendo, não se agarre aos privilégios ou aquele que, não podendo, os aceite em outros, quaisquer que sejam esses outros.

*

Se se livrassem do fascínio exercido pela força, veriam os homens, a um exame atento, que a corrupção - seja ela qual for, é patrocinada pela força e só pela força sobrevive. Compensaria arriscar-se em troca do que é justo? De certo que não, pois o que é justo se abre a todos. À maioria não se permite a corrupção, pois que esta, por natureza, restrita a poucos, se a todos se abrisse, que vantagens traria? A final a recompensa disso que todos sabem ser feio, é o ganho fácil que por justiça não viria.
Corrupção só pode ser privilégio, concorrência desleal, em benefício de poucos, às custas de muitos, daí porque só a violência pode mantê-la. Não tivesse ela a força para defendê-la, quem acreditaria na passividade de suas vítimas, isto é, da maioria que impossibilitada de usá-la, tem que suar sangue para conseguir aquilo que alguns, contra tudo o que se aprende nas escolas ou nas igrejas - por baixo dos panos - num instante, conseguem.

*

Nesse mundo dominado pelo egoísmo, quem tenha força, de pouco mais precisa, daí porque, só a ingenuidade permite crer na moralidade de algo imposto pela violência. Amoral por excelência, não tendo compromissos senão com ela mesma, a força ainda que de início se dê ares de estrita pureza, logo, logo, degenera, seguindo seu curso natural.
Mesmo soberana, sobrepondo-se à própria razão - única barreira contra o egoísmo - a força não resiste à corrupção. Eis porque toda ditadura está condenada a se corromper e, quase com certeza, aquele que só por medo não se prostitui à luz do dia (na verdade a maioria), livre do medo pela proteção da força, fatalmente se venderia.

*

"A ocasião faz o ladrão!" dizem. De fato, é preciso desconhecer a natureza humana, sua ganância, seu inato oportunismo, para não vislumbrar na promessa de impunidade contida na força (mesmo que originariamente destinada a outros fins), o sinal verde para a corrupção. Por que não? Diante do exclusivismo da força, desfalece a virtude e o mais; diante dela um só pecado existe - a inconformação com ela.
A mentira institucional (que se a alguns favorece, aos demais prejudica), por isso mesmo não se manteria de pé sem a força para sustentá-la, pois que logo iria ao chão, sob os golpes daqueles aos quais enganou.

*

Haverá uma só virtude da força capaz de resistir a um exame cuidadoso? Aqueles que são dados à violência, dirão que só ela pode contra outra força. Um só mérito, ainda assim, duvidoso, se nos lembrarmos de que, seja por culpa de uma ou de outra, a força, mesmo neste caso, não está fazendo mais que solucionar provisoriamente um problema que ela própria criou.
Se pudéssemos ver mais que a violência ostensiva; se pudéssemos vislumbrar a força que se impacienta no seio das instituições e que, insuspeitada, garante o dogma, a impostura, o abuso de poder e a própria inércia que eterniza os privilégios; que infunde vida à decisão de um funcionário qualquer (incompetente ou interesseiro), que recostado em sua poltrona como um rei chinfrim, àqueles que dele se socorrem, diz não, quando deveria dizer sim, ou diz sim, quando deveria dizer não; enfim, se os homens pudessem compreender que é violência tudo aquilo que se afasta da razão, conheceriam eles a verdade e conhecendo-a perceberiam, ainda que no fim do túnel, o sol da liberdade, pois que fora da razão não há salvação, desde que se tome a humanidade como um todo.

*

A sociedade dos homens abandona-se ao caos. Se a violência, por constituir-se numa persistente manifestação de animalidade, não pôde ser vencida mesmo quando era, ao menos, em teoria, combatida, dificilmente o será agora, quando alteando-se em filosofia de governo, exibe-se com as cores da esperança, qual parteira de um mundo novo. Os mais ambiciosos, embora, individualmente, tão impotentes quanto os demais, ainda assim se agitam e de maneiras diversas exibem seu inconformismo, tentando, pela audácia, imprimir sua marca no processo de vida e morte que escapa ao comum dos mortais.
Viver a violência; acercar-se lucidamente da morte; é para alguns, forma de realização pessoal tão excitante quanto é para outros, escalar o Himalaia ou correr em Indianápolis. A diferença está em que o esportista, ao vencer o desafio, a si e a todos engrandece, ao passo que o matador de homens, ao vencer seu semelhante, se de um lado triunfa como indivíduo, de outro, perde e se envilece como parte que é, queira ou não, de toda a humanidade que aviltou.

*

Tendo a impulsioná-la, vento favorável, a violência inundará o mundo, pois que, arrogante, exclusivista por natureza, nada existe de respeitável que lhe faça frente, a não ser violência igual. Travestidos de humanistas, brotarão da terra os assassinos, pois, nem o ridículo os deterá. Na falta de uma única verdade que justifique a morte do semelhante, os fetichistas do sangue arranjarão pretextos de sobra, por mais fúteis que sejam. A integridade das nações estará ameaçada de dentro, por reles bandoleiros, acolhidos, todavia, como distintos cavalheiros, graças ao poder de suas armas e à perplexidade moral então reinante. As instituições, presas a suas naturais limitações, ficarão à mercê de bandos numericamente insignificantes, aos quais a audácia e a falta de escrúpulos concederão poder aterrador.
Por toda parte haverá movimentos de libertação nacional, disfarçando em belas roupagens, o que não é mais que fome de poder pessoal.

*

A violência será tida como panacéia contra todas as injustiças, sejam elas promovidas pelos homens ou impostas com o nascimento, pelas mãos de Deus, se bem que a vingança atinja apenas os mortais, porque Deus é inalcançável. Como justiceira infalível, a violência será exercitada por toda parte, até sua inteira exaustão, pois neste mundo de egocêntricos, onde cada um se julga com direitos acima dos demais, difícil encontrar alguém que não se tenha por injustiçado.
Se a força tudo pode e isto lhe mostram a toda hora, vítima nenhuma da injustiça ficará em paz com sua consciência, enquanto não aderir à violência, pois do contrário, sempre estará a se culpar de não ter ousado utilizar o remédio eficaz. À violência recorrerá também, ao menos como íntima compensação, mesmo aquele de cuja mágoa secreta, homem nenhum é culpado, pois que nele, tanto quanto em qualquer injustiçado, mais que a dor da injustiça, dói a dor de não se ter vingado.

*

Por grandes que sejam os riscos, a violência pode ser e é, com frequência, um excitante processo de auto-afirmação. Mesmo que não seja por recompensas, que seja só para acompanhar a moda, tornar-se-á irresistível a tentação de participar (principalmente para a alma gregária do homem comum), pois que a seu ver, só por afastar a solidão, participar já se constituiria numa boa razão.
Por considerá-lo acima de suas forças, a maioria, em circunstâncias normais, fecha os olhos ao apelo da brutalidade organizada. Porém em épocas de crise, espicaçado em seu orgulho pelo exemplo de outros, o homem comum acaba aceitando-o, embora continue de olhos fechados.
Logo chegará o tempo em que a selvageria se tornará irrecusável e o cidadão comum, fora outros motivos, terá mais um para aderir, pois que, incapaz de, por conta própria se conduzir, ele, receando ficar de fora, aceitará o grande desafio, tornando-se da violência de massa, um cúmplice e participante.

*

Até as pessoas ajuizadas, para sobreviverem se livrarão dos escrúpulos, pois, estará perdido quem só em legítima defesa se disponha a matar, de vez que será irrelevante, distinguir entre tantos assassinos iminentes, quem primeiro irá atirar. (Questão de oportunidade, apenas.)
Mesmo entre criaturas razoáveis de outrora, haverá exaltados agora, que não tendo obtido da razão o que esperavam, sentir-se-ão atraiçoados e para compensarem a frustração, hão de matar a torto e a direito, com o furor próprio dos ressentidos. Segurança não haverá, nem para os grandes. Todos pagarão, inocentes e culpados. O mundo será um campo minado, com a morte a espreitar de todos os lados.

*

O perigo nos seguirá como a própria sombra. Não haverá tranquilidade em parte alguma, pois que o tique-taque de um relógio, talvez indique uma bomba marcando nossos minutos finais em terra, no ar ou no mar; numa igreja, numa escola ou no próprio lar.
A violência, atingindo o paroxismo, ofuscará a incipiente razão. Com a terra imersa em trevas, a lei desaparecerá e o homem volverá aos tempos da justiça particular; ao puro arbítrio da força. Nada restará para fazer, senão se defender da violência que anda solta pelas ruas.

*

Evidenciada a superioridade da força, ninguém acreditará em outra coisa que não seja em seu próprio poder, tornando desnecessário qualquer apelo a falsas razões, pois que então, a razão verdadeira, ela própria, não valerá mais nada.
A sociedade posta a nu, haverá violência pura, gratuita, indiscriminada, de indivíduo contra indivíduo, grupo contra grupo, gerando saques, assassinatos, estupros, num caos sangrento, em comparação com o qual, os momentos de horror vividos por uma ou outra de nossas comunidades durante breves hiatos de autoridade, não serão mais do que trágicas amostras do que está para acontecer.
Sobrepondo-se a tudo o que possa facilitar as relações humanas, a violência tornar-se-á um fim em si mesma. Atirar para matar será uma necessidade para todos e um esporte excitante para muitos.

*

Os homens serão, de outros homens, caçadores e o que em estado de embrião já existe, mais que podemos qualificar ainda de perversão, amanhã será fato comum da vida, pois que, transformados em franco atiradores, muitos serão - por exemplo - os que, do alto dos telhadoss mandarão bala para se divertirem, desinteressados de quem ou quantos morram na multidão. Peles do bicho homem abatido, segundo a importância do falecido, ornamentarão nossas paredes, como troféus gloriosos, lembranças de um feito inesquecível. Será livre a caça a esse insólito animal que, jamais tendo saído de seu planeta, ignora outras inteligências e apenas por isso, embora sabendo que exagera, se tem na conta de consumado racional.

*

Se para manter a ordem não se encontra logo um sucedâneo para a força, cedo faltará quem cuide da produção e a Terra conhecerá o caos, pois que, diante do perigo indiscriminado, vindo de onde não se sabe, isto é, de todos os lados, para não serem postos em desvantagens, os homens viverão de dedos no gatilho, à espreita um do outro, cada qual cuidando de sua própria vida, de vez que o Estado, apesar de seu gigantismo, estará ele próprio ameaçado e, bipartido diante da violência generalizada, mal poderá conter o propósito determinado da violência específica, que agora como sempre, hoje mais do que nunca, luta pela posse da nau estatal.

*

Nem as sociedades totalitárias estarão a salvo, pois que nelas, embora o Estado detenha o monopólio da violência, erigindo-a em filosofia de governo, só pode fazê-lo, negando a quase todos, exatamente aquilo que distingue o homem, do animal, ou seja, o exercício da liberdade, tão desmerecida pelos tiranos, porque entre eles, os poucos que a têm, têm-na em demasia, rareando-a para a imensa maioria.
E se apesar de tudo, ainda levam vantagem os pastores do Oriente, contraponto ao inferno dos homens no Ocidente, a bucólica paz de seu rebanho, isto puderam fazer até aqui, em parte, porque reinam sobre terras onde o homem comum jamais provou o gosto da liberdade, pois que a estrangularam nos seus primeiros vagidos; por cautela, sufocaram-na antes que tivesse nascido.

*

Diga-se, que nesses reinos de despotismo arraigado, o homem do povo, secularmente acorrentado, nunca ousaria imaginar que lhe concedessem a liberdade, daí porque, pelo menos, de início, sente-se até recompensado pelos que sem lhe dar nada, indiretamente lhe deram alguma coisa, nivelando-o aos demais, não importa que por baixo. Mudança pouca! A liberdade política, eterno privilégio de minorias poderosas, apenas trocou de benefiários. Favorece agora os hierarcas do partido único, que a exercitam com exclusividade, sonegando-a da imensa maioria.

*

Por mais que desagrade aos que só na força acreditam - justiça não é luxo; o exercício da liberdade é o primeiro dos direitos e a não ser para aqueles que, apoiados na força, se beneficiam da iniquidade, engordando com ela, jamais haverá salvação fora da justiça, pois que a alternativa é a lei da selva à qual, o homem como tal jamais poderá voltar, pois que isto significaria retorno ostensivo à pura animalidade, ostensivo e inconcebível.
O totalitarismo, qualquer que seja ele, erra, ao pretender, depois de entronizado no poder, subtrair a liberdade prometida pelo pão de cada dia, tripudiando sobre a ânsia de liberdade presente no coração dos homens, de todos os homens. Alguém, imaturo ou desesperançado, que não veja na liberdade o bem maior da vida, mudaria de idéia, se observasse à sua volta como todos, principalmente os tiranos, avançam na liberdade alheia.

*

Por isso, não poderá falar em justiça, nenhuma sociedade, no interior da qual, alguns poucos - seja a que pretexto for - comecem por usufruir em demasia o que na vida é o mais importante, isto é, a mesma liberdade que negam à maioria.
A liberdade subtraída, um dia será restituída, pois que o homem é homem em qualquer parte. Pelo fato de que a tornam inverificável; precisamente por isto (porque isto é sintomático), cabe duvidar de uma espontânea aceitação do totalitarismo, tanto quanto da perenidade de uma paz derivada menos das virtudes do sistema, do que de seus muitos defeitos, dentre os quais avulta a indisfarçável ojeriza à liberdade, capaz, só por isto, de ameaçar-lhe a estabilidade.

*

Nenhuma ditadura é eterna e a paz mutilada de sociedades demasiado simplistas para que sejam humanas, logo estará ameaçada pelas chamas do incêndio que lá fora elas ajudam a atiçar, pois que esta paz é - só não vê quem não quer - a paz do rebanho, nunca a paz dos homens.
Sabem os que se têm por pastores de povos, tanto quanto sabemos nós, que acima do senhor feudal, de burgueses e operários, acima do homem circunstancial, existe o homem de sempre, eterno, universal, que, cedo ou tarde, cansará de ser ovelha, ainda que lhe dêem bom pasto.
Já nos nossos dias, dos abismos desse mundo glacial, embora tímidas, despontam as forças incoercíveis da natureza humana que nenhuma violência será capaz de, para sempre, sepultar. (Um dia, o feitiço vira contra o feiticeiro.)
Resta a esperança de que num futuro não muito distante, quando a alma do homem, como um livro se abrir diante de todos, os equívocos sejam desfeitos. Então, à luz dos novos tempos, saberemos, quantas vezes, a pretexto de belas causas, a paz foi escamoteada apenas porque era necessário erguer, ainda que sobre milhões de cadáveres, a arena sobre a qual os grandes inconformados com a transitoriedade dessa vida, pudessem gritar bem alto o seu desafio à morte.

**11



 

CAP.12
DO INEVITÁVEL
CONLUIO
DA VIOLÊNCIA
COM A MENTIRA
*
Sustentáculo de todas as injustiças, apesar disso, a força ainda é o esteio da ordem e, por isso e nada mais, é que se impõe aos homens, para os quais, a ordem está em primeiro lugar. Guardiã de todos os vícios, nem assim, a força, de seu trono desceria, não estivesse ameaçada pela própria expansão, eis que, progredindo, desordenadamente, vem se transformando, de esteio da ordem, em fonte de anarquia. (Isso lhe tira sua básica justificativa.)

A força foi e será por muito tempo ainda, a senhora do mundo, graças à ignorância da maioria que até bem pouco tempo não sabia que, se nos negócios do homem, a inteligência tem boa participação, isto se deve a que, a força - cega que é - dela necessita como guia. (É como guia de cego que a inteligência sobrevive.)

*

A força - só ela - não bastaria para ordenar a vida, se cada um, por conta própria, dela se servisse à vontade, pois então seria o caos. Sob pena de degenerar em anarquia, o uso da força só é possível sob a direção de poucos e, consequentemente, em benefício de minorias. Por isto - como instrumento primitivo de ordenação da vida - ela depende da mentira (disfarce da verdade), uma vez que nada podendo uma força contra outra, só pela mentira se conseguirá que a força de um se ponha a serviço da força de outro, tanto melhor se aquele que foi logrado, continua acreditando que trabalha pela própria causa. Nada podendo a força de poucos contra a força de muitos, só pela mentira se conseguirá que a força de muitos se ponha a serviço de poucos, melhor ainda, se esses muitos continuam acreditando que é para as grandes causas que trabalham. (Eis, para que servem as religiões, ideologias, todas essas grandiloquentes mentiras.)

*

Durante muito tempo, a fraude esteve ao lado da força, prestando-lhe bons serviços. Mas isso foi num tempo de geral ignorância, quando a maioria, por ser então, tanto quanto agora, lenta de raciocínio, só com a experiência é que aprendia. Naquela época um aprendizado difícil, porque era um mundo de distâncias quase invencíveis, em que os homens nem fisicamente se comunicavam.

Hoje, graças ao extraordinário progresso das comunicações, tendo a tevê como veículo principal, o mundo é um cenário devassado, um palco sem cortinas.

Quando alcançarmos a Idade da Razão; quando a violência já não tiver mais encantos, Gutemberg, sem haver derramado sangue, será glorificado como reformador social, quaisquer que tenham sido seus propósitos. Mais do que as intenções valem os resultados, até porque, as más intenções nunca vêm à tona.

*

Apesar da permanente presença da violência em nossos dias, a realização pessoal através da arte de matar, torna-se cada vez menos heróica, a não ser no cinema. A justiça particular, como prática do coronelismo (feudalismo atenuado), ameaçada pelo Estado nacional, entrou em declínio.

Os conflitos entre nacionais, se de um lado, ensejam ainda, demonstrações de coragem pessoal, de outro, por se constituírem numa guerra suja entre irmãos, não propiciam o surgimento de heróis, pois que não há herói que o seja pela vitória contra os do próprio sangue. A guerra externa é, cada vez mais, uma guerra de botões. Poderão ser tidos por heróis aqueles que, do alto, protegidos pela distância, apertaram os botões que sepultaram Hiroshima e Nagazaqui, produzindo, em segundos, cada um, número tão grande de mortes como jamais se viu em toda a História?

*

Comparada com a criação do jornal, do rádio, do cinema, da tevê, e agora, da Internet, isto é, com o extraordinário alcance da comunicação de massa, parece duvidosa a contribuição para o progresso social, de guerreiros que há pouco tempo, considerávamos paladinos deste ideal, pouco importa que a ele tenham dado o melhor de suas intenções. Graças aos revolucionários de brancos aventais, o mundo inteiro vem a nós, principalmente, pela tevê, com a qual aprendemos sobre a vida num só dia, tudo o que o homem do passado levaria anos para aprender.

As lições da vida, ninguém as quer em tom professoral, como as que vêm dos púlpitos e das cátedras, onde um fala, cabendo aos demais ouvi-lo, no ambiente que é dele, como se fosse ele um anfitrião, daí porque, em tais ocasiões, o que se diz, entra por um ouvido e sai pelo outro.

A tevê, ao contrário, está em nosso lar, no ambiente que é nosso, e a nós se impõe pela sua insistente presença. Vejam a diferença: se em nossa casa, um ditador qualquer - ele próprio - zomba de nossa inteligência, com seus disparates oficiais, livramo-nos dele na hora, basta um clique no botão. (Ouvindo-o pessoalmente teríamos ainda de aplaudi-lo.)

*

Porque a tevê depende, ainda que numa pequenina parte, de nossa determinação de a ter ligada ou não, isto é, de lhe darmos um poder que está em nossas mãos ou de não lhe darmos nada (mantendo-a desligada), então, ela terá que nos conquistar a vontade e, para tanto, haverá que nos conceder em troca, nem que seja um mínimo de verdade, pois que, a não ser assim, melhor será que fique apagada. Esse mínimo de verdade que a tevê nos concede, incansavelmente repetido, basta para abrir os olhos de muita gente que, mantida, propositalmente na desinformação, por conta própria, raciocinando, jamais os abriria.

*

Diante da força de convencimento inigualável da realidade, cada dia mais difícil de se ocultar, que será desta moral, tolamente apregoada por pais e mestres, se tudo o que dizem, sem muita convicção, logo será desmentido pela vida, cujas entranhas a tevê nos exibe até à exaustão? Quem poderá subtrair das crianças de hoje, a acuidade crítica que as caracteriza, sem imbecilizá-las numa época em que elas, mais do que nunca, precisam de vivacidade? Cedo as crianças aprendem a ler nas entrelinhas e daquilo que lhes ensinamos com fins edificantes e do que a tevê lhes mostra sem propósitos aparentes, elas tiram suas conclusões. Sabem muito bem encarar a virtude despojada de sua costumeira louvação, tanto quanto sabem enfrentar o vício desacompanhado de sua obrigatória condenação.

*

Livre de preconceitos, mas prevenida contra as falácias do mundo, a juventude prefere sinceridade à virtude fossilizada. No âmago do coração juvenil, rebelde por natureza, o "happy end" - por exemplo - é apenas um arranjo; a morte do bandido, mera concessão ao duvidoso ensinamento de que o crime não compensa, enquanto a violência, indisfarçável realidade, aos jovens seduz mais que aos velhos, pois que neles, mais que nos velhos, maior é a carga de energia necessitada de liberação.

Não fora isso, diante da morte, como explicar o desprendimento dos jovens, para os quais a vida é ainda um encanto? Como explicar nos velhos o apego a essa vida que, para muitos, já não passa de um encargo?

*

Como esperar que renuncie à violência (a não ser por covardia ou incapacidade de ver) esse habitante de um mundo sem mistérios, do qual, o interesse publicitário não esconde nem as trapaças envolvendo milhões, nem a verdade de que, das brigas de vizinhos às contendas entre nações, ganha, não quem esteja com a razão, mas quem tenha força?

O homem comum foge da violência porque a teme. Mas adiantaria fugir dela, quando ela é que se impõe a nós, como fatalidade; quando ela não poupa nem aqueles que por razões de ofício estão armados para combatê-la; quando nem eles em suas casas ou nas repartições estão seguros?

Chega a hora em que mesmo os acomodados a ela se rendem, para que possam, ao menos, preservarem alguma iniciativa; para que não sejam abatidos como lebres, ao arbítrio de qualquer irresponsável, oficial ou particular.

*

Diante do homem de hoje, que tudo vê pela tevê, como negar a primazia da força sobre a razão, se ele acompanha todos os dias - quando interessa à comunicação de massa - o desfilar dos crimes de figurões que, dos piores delinquentes, só se distinguem pelo poder que os mantém fora das prisões.

Como negar o predomínio da força, quando a tevê mostra a toda hora, que a lei prende (e a alguns prende demais), porém, prende só quem tenha pernas curtas, porque os grandes saltam por cima, não só pela cumplicidade de juizes e policiais, mas também porque são eles - os grandes - é que fazem as leis e, por cautela, as fazem pensando que um dia necessitem se livrar delas. Afinal "errar é humano", dizem. De fato, grandes e pequenos erram, se bem que os grandes só muito raramente pagam pelo erro.

*

Como contestar a primazia da força, se num mesmo dia, a tevê nos mostra a história daquele que apodrece na prisão, não tanto por culpa, mas por falta de grana para se defender, enquanto o outro, delinquente notório, munido de defensor pago com dinheiro do crime, exibe-se intocado, alegre, cheio de privilégios, gozando da justiça mais que de outra coisa qualquer.

Fora dos tribunais todos nós deploramos as prisões cheias de criaturas que muitas vezes, não podendo (de tão chucras) distinguir entre o bem e o mal dão aos desafios da vida, resposta emocional e se perdem. A esses párias, muitos dos quais, lá não estariam se conhecessem a lei, os juizes, nada podendo fazer, fecham os olhos à verdade, castigando-os com base na ficção legal, melhor dizendo, iniquidade legal de que todos conhecem a lei. Ora, como exigir de milhões de analfabetos, intimidades com esse emaranhado de leis, decretos e regulamentos em meio aos quais os próprios doutores se perdem?

Na cadeia, pelas mesmas razões ("quem pode mais chora menos"), eles é que habitam os porões, enquanto os diplomados, cem vezes mais culpados (porque erram conscientemente), estes gozam de prisão especial. É a vida, dizemos nós. Mas esta vida que não os poupa, evitaria ao menos escandalizá-los, se não fosse tão servil diante do poder.

*

Que sociedade poderá (com base na razão) exigir de quem tenha um mínimo de visão, que voluntariamente renuncie ao uso da força, se não existe em parte alguma da Terra (nem mesmo como exceção), um único grupamento humano, "civilizado" ou não, que, para manter a ordem, não tenha a seu dispor, força pública pronta a matar em defesa do todo?

Como esperar que se abstenha da violência, mesmo o homem comum do nosso tempo, ao qual ela se impôs como fatalidade, seja pelo seu natural fascínio, seja pela sua avassaladora presença, através da comunicação de massa, especialmente a tevê? Mas, o que é que dá vida ao hábito - bom ou mau - senão a contínua repetição, o martelamento incessante? Não fosse a constância da violência e sua consequente aceitação, a estrutura mental do soldado comum - na maioria das vezes, um homem pacato em ttempos de paz – dificilmente suportaria a guerra, na qual se mata dia a dia, anos a fio. (Acabamos por aceitar aquilo cuja presença não podemos evitar.)

**12



 
 
 
 
 
 
 
 

CAP. 13
A COMUNICAÇÃO DE MASSA
INVERTENDO A
DIREÇÃO DA VIDA
*
Profusamente difundidas pela comunicação de massa que as transformou em negócios como outros quaisquer, a arte e a notícia, embora fiéis àquele mínimo de verdade, sem o qual não seriam nem arte, nem notícia, empreenderam a conquista das massas - monstro sagrado do século vinte - mas em vez de esclarecê-las e com isso libertá-las, preferiram por baixa conveniência, mantê-las na dependência, explorando predatoriamente a inconformação do homem com sua má sorte, que usualmente se manifesta através da violência, da ânsia de escandalizar ou da ingênua adesão ao inusitado, como sinal de recusa da vida atual.

*

Como explicar a esse desiludido dos nossos dias (do qual tomam as dores, artistas e comunicadores), mais por interesses próprios do que por amor à justiça; como explicar a este sofredor, cuja mágoa, uns e outros, demagogicamente exploram, que, se o sol nasceu para todos, muitos existem que - não por culpa dos homens, mas por culpa lá de cima - sequer têm olhos para ver.

Como demonstrar a este descrente a insensatez de toda intolerância travestida de redentora do mundo, se é o ressentimento que não lhe deixa ver que as injustiças dos homens, eles as constróem sobre o que na falta de outro nome chamaríamos de injustiças de Deus? É culpado aquele que explora outro menos dotado, mas, de quem, em última análise, é mesmo a culpa, se, pelo nascimento, um recebe de menos, o que o outro recebe de mais? Embora nenhuma sabedoria consiga alcançar os secretos desígnios desta - digamos - injustiça congênita, ou seja, deste tratamento, já no berço desigual, ele não só existe, como é ele que torna viável a exploração do homem pelo homem. (Se todos tivessem iguais aptidões, ninguém exploraria ninguém.)

Dos muitos que nasceram modestamente dotados, que é que se espera? Que se sobreponham àqueles poucos aos quais favoreceu um desígnio superior? Mas como levar os deserdados a aceitarem isto a que chamam sua desdita, talvez porque, sem se medirem, vivem de olhos nos primeiros lugares? Desde que todos querem o melhor, não há quem não tenha queixas deste mundo. Disto se vale a demagogia para exagerar até ao paroxismo as ambições possíveis ou impossíveis do homem comum.

*

Em nosso tempo, graças à insistência da comunicação de massa, o que é relevante, aquilo que se fez digno de interesse porque é excepcional, com tal frequência é repetido que assoma ao primeiro plano, enquanto o lugar comum, o que na vida é prosaico, e, por isso, ausente da arte e da notícia, esse fica esquecido, não obstante para a vida seja tão importante quanto o próprio ar.
O labor de milhões de criaturas nos campos e nas cidades, passa em branco, porque é o esperado, embora nem por isso deixe de ser essencial, ao passo que as estrepolias de um bandoleiro qualquer, configurando o dramático, o inusitado, ganham as primeiras páginas dos jornais e vão, talvez, inspirar uma obra de arte. (A cordura passa despercebida enquanto a violência se destaca.)

*

Criou-se uma conjuntura insólita: graças ao martelamento incessante na cabeça do homem comum (pouco inclinado a questionar), aquilo que, embora notável, é da vida, apenas parte, tornou-se mais vivo que a própria vida, enquanto o acontecimento natural, aquele de que não se fala, justamente porque na vida está implícito; aquilo que não precisa ser destacado porque é essencial (porque sem ele a vida não seria); esse fica relegado às sombras, com o que, este mundo, já perigosamente adernado, ameaça ir ao fundo.
A arte é o espelho da vida. Mas, será arte apenas se for verdadeira. (O resto é arbítrio.) A vida é bem mais abrangente. A arte, se bem reflita o que no mundo é relevante, o que de um modo ou de outro, destacou-se do comum, nem por isso refletirá toda a realidade, pois que muito mais existe na vida que a arte não alcança. A arte é um extrato da vida, mas não é a vida em sua plenitude, do mesmo modo que a essência não é o licor, daí porque viver conforme a arte, seria tão extravagante quanto beber a essência em vez do licor. (Este é, no entanto, o sonho de muitos.

*

É da própria vida que os heróis sejam poucos, pois, do contrário, como seria? Se a platéia subisse ao palco, nem espetáculo haveria, porque na arte, tanto quanto na vida, só existe lugar para os heróis, porque eles são poucos. A violência, porque é cega, porque depende da razão como guia, jamais poderá erigir-se em ideal da vida. No entanto, o imediatismo e a falta de escrúpulos daqueles que manipulam os meios de comunicação, fazem de seu aspecto dramático, a isca para fisgar o homem comum, pouco se lhes dando que, inauditamente multiplicada pelo mecanismo repetidor da comunicação de massa, ela se tornasse a heroína do século.
Incitado a viver uma vida que só a poucos é possível, o homem comum - condicionado pela tevê - não se conforma. O herói da moda é o herói violento - modelo a ser imitado - levando a sociedade atual a uma crise de valores sem precedentes. No corpo social, tronco e membros, feitos originariamente para carregar (a cabeça), até porque ela é mais leve, hoje, supervalorizados pela comunicação de massa, decidiram que a cabeça é que deve carregá-los.
Se à maioria fosse dado ver com clareza; se lhe fosse possível discernir entre o que, no mundo se deve conservar, melhorar ou rejeitar; se a maioria distinguisse entre o desejo e a vida, entre o possível e o impossível, entre a promessa e a dádiva, talvez ela conseguisse romper com seus demônios (a inveja, o ódio, a vingança) para perceber o que só não percebe quem se deixou cegar: com a cabeça a sustentar tronco e membros, o corpo todo iria ao chão.

*

Sob os golpes do progresso rolaram por terra as mentiras sacrossantas, que aos enjeitados do mundo serviam para mascarar o imperdoável - o fracasso. Agora todos sabem de que &eacuute; feito o triunfo e já não há como embelezar a derrota. O caminho da fuga está cortado e os eremitas, desacreditados. Não há como disfarçar o medo e a inércia com mentiras edificantes; nem há como engrandecer a renúncia e salvar a face. Deus foi outrora o refúgio dos vencidos, a mentira redentora que docemente nos lograva mais de dentro que de fora, mas Deus é morto e não nos ajuda mais. A moral está no chão e nós, habitantes deste mundo cão, se dele não somos cúmplices, como explicar nossa apatia, senão por covardia? Sem ilusões, ressentido, exasperado, o homem comum do século vinte quer um lugar ao sol. Se todos são iguais perante a lei, porque ele é que tem de ser platéia?! Invadirá o palco mesmo que acabe com o espetáculo.

Porque seu mundo se ergue sobre as bases da violência, aos grandes, cabe apenas se resguardarem dela, condenando-a episodicamente, nunca definitivamente, pois que, condená-la, qualquer que seja ela, seria minar os próprios alicerces.
Por isso, os poderosos, embora a muitos deles, isto desagrade, só podem continuar grandes, prestigiando a mentira institucionalizada, renegando, com isto, o que de mais belo possuem - a inteligência.
Porém nada de bom nascerá da mentira e da intimidação, as quais, cada uma a seu modo (pela falsidade ou ameaças), visam, antes de tudo, frustrar a vontade de um, em benefício de outro, com o que abalam os fundamentos do mundo, erguendo-o sobre vacilantes pilares.

*

Neste século violento, quem disponha de mínima coragem, instruído pela escola da vida, já sabe o que fazer – violar todos os limites, doa a quem doer. Aquele, a quem o medo e a inércia frustram a vontade, deixa de ser homem para ser uma fraude e melhor será que fique em casa, porque, na rua, joguete que é, mesmo não o querendo, trabalhará pela iniquidade, pois que só a ela interessa negar a livre manifestação da vontade.
Diante daquilo que a vida nos lança na cara a toda hora com um realismo exemplar, só por medo ou incapacidade de discernir, deixaremos de concluir que a força sobrepõe-se a tudo o mais e que o homem vale pelo poder que tenha, não importa como o conseguiu.

*

Se a força é assim o bem maior e se o poder absolve todos os pecados, como esperar que se abstenham da violência para vencer, os que cedo aprendem; os que não temem (enfim os dominadores), o segmento ativo da população, a energia que move o mundo?! Aquela figura hoje insólita, a que no passado chamavam homem de bem, está com os dias contados, pois que o juízo que de si ela mesma faz, não é o de um modelo, mas o de uma fraude.
Espicaçado pelo sucesso publicitário da violência; posto em brio pelo crucial desafio; ao homem de hoje, só resta desatar-se em fúria e se a maioria não o faz - por medo ou comodismo - basta que o faça um número razoável, para que a Terra se torne ingovernável.
Todavia pode ocorrer que de onde não se espera, venha a salvação: a violência, expandindo-se aterradoramente, vai, por culpa de sua caótica disseminação, tornando o mundo ingovernável. Daí porque, em vez de alongar a Idade da Força, talvez que apresse a Idade da Razão.

**13



 
 
 

CAP.14
DO ÚNICO
ANIMAL
APTO A
SER RACIONAL
*
A razão é entre os homens um luxo, pois que ainda podem, pela força, ordenarem a vida. Mesmo as comunidades mais progressistas continuam sendo por ela disciplinadas, discreta ou abertamente. Mas, tratando-se de racionais, mesmo incipientes, a força bruta, embora predominante, não é o bastante. Na sua eterna luta pelo poder, já que não podem suprimir a inteligência, os mais espertos criam toda sorte de ideologias (deístas ou não) para no interior delas aprisionar a maioria de dominados, visando imprimir à sua força bruta a direção que interessa aos dominadores. (Não há na Terra cidadezinha que não tenha prisão e igreja, embora a muitas falte até um pequeno hospital.)

*

O acentuado desnível entre os terráqueos, impede-nos de corretamente classificar uma nação ou até uma cidade. Pelos nossos padrões não conseguiríamos nem mesmo identificar o nível cultural dos homens: a Terra abriga hoje, simultaneamente, todos os estágios de que nos fala a História das civilizações, desde os primórdios da Idade da Força, até os umbrais da Idade da Razão.
Existem povos que se alimentam de caça e pesca; ignoram a agricultura organizada e a escrita, vivendo ao lado de comunidades altamente desenvolvidas, principalmente na fabricação de armas, se bem que nem destas seja apropriado dizer que tenham já superado sua predominante animalidade. (Em alguns centros privilegiados, comunidades próximas da racionalidade, convivem com outras socialmente situadas pouco acima do tribalismo.)

*

Por culpa de seu exagerado egoísmo, os homens são refratários ou inimigos do progresso social. Não fosse a inteligência irrenunciável, na certa, escolheriam a vida animal, segundo as leis da natureza - sem renúncias - em vez da vida racional com as renúncias que ela exige.
Porém, a mesma sina que faz a água contornar os obstáculos em busca dos planos inferiores, leva a inteligência a vencer o egoísmo do indivíduo, em busca do progresso de todos. Não há inteligência que subsista no isolamento e a necessidade de viver em sociedade (sem o que o homem não se realizaria como racional) obriga o animal que há em cada um de nós a ceder, ainda que de má vontade, à racionalidade que de fora lhe é imposta pela abertura da inteligência.

*

O racional não existe individualmente. Existe, sim, o indivíduo inteligente apto a ser racional, aptidão que só se realiza em sociedade. No seu relacionamento mútuo os homens revelam o paradoxo que lhes rege a vida. Exageradamente individualistas, cada um deles gostaria de ser o centro do universo; sonho irrealizável, não só porque todos querem a mesma coisa, como também porque a inteligência que não encontra outra para com ela se realizar, produzindo a razão, como inteligência se frustra, permanecendo na pura animalidade. Indo às últimas consequências, poder-se-ia admitir a existência isolada de um único irracional, mas não a de uma solitária inteligência que singularmente se realizasse. (São necessárias, no mínimo, duas inteligências para se fazer um único racional.)
O animal inteligente que, exatamente pela inteligência, se destaca do simples animal, só se realiza como racional em comunhão com outro ser também inteligente. Racionalidade quer dizer mútua dependência, interatividade. Apenas o indivíduo é capaz de pensar, embora o pensamento não seja um exercício isolado. (É impossível raciocinar sem referências.)

*

Imaginamos pensar sozinhos, independentemente dos outros, porque não reparamos que em nossa memória estão arquivadas milhões de referências do passado, das quais nos servimos para raciocinar no presente. Está à nossa disposição, todo um riquíssimo acervo de referências de coisas e homens que se foram há séculos e séculos. Por isso, ainda que submetidos a um isolamento absoluto, graças ao prodígio da memória, nos faríamos livres no tempo e no espaço para reviver em pensamento fatos e coisas há muito tempo acontecidos. O corpo pode atuar sozinho, o cérebro, não, pois que ele não é uma individualidade; ele é o centro de uma teia de relações em permanente interação. Um ser inteligente que, por uma razão ou outra, jamais tivesse entrado em contato com outro ser também inteligente; que nunca tivesse podido inscrever na memória pontos que lhe servissem de referências, jamais seria capaz de pensar.

*

Para ajustar o mundo a seus interesses, o homem precisa pensar, porém, ele o faz relutantemente. Raciocinar é, para a maioria das pessoas, um sacrifício, obrigando muitas delas a agir por instinto, valendo-se da força, ou do hábito. E se recordarmos que este é ainda um mundo de razão incipiente, tal relutância em pensar, de certo modo se justifica, pois, pensar, além de cansativo, significa aceitar a existência do outro ou seja, nos limitarmos.
Os homens ignoram ou preferem ignorar que a violência só lhes permite impor a lei do mais forte, numa vitória que a alguns, pessoalmente, pode ensejar a conquista do mundo, mas, que à humanidade como um todo, nada acrescenta, até porque, significa tão só deitar sementes num campo já semeado, pois que essa lei, da qual ninguém jamais duvidou, vige sobre toda a extensão do planeta, antes e acima de qualquer conquistador. (Lei natural, ela propõe a cada um o grande desafio: pela inteligência ajustar a natureza a seus fins ou a ela submeter-se como um animal qualquer.)

*

Compelido a viver em sociedade, o homem prefere cumprir seu destino gregário utilizando-se da força, de vez que a solução racional, implicando em concorrência leal, ameaça-lhe a vocação exclusivista que faz do ego o centro de gravitação universal.

Se a força é própria para guiar a vida no rebanho, para dirigir o homem, como tal, ela não é, se bem que quase todos a tenham como a fonte inesgotável de disciplina. Entre os animais, seu uso é controlado pela natureza, porém, entre os racionais, a inteligência buscando a independência, contesta a natureza, daí que as relações de poder se tornam instáveis e, em consequência, efêmera é a solução de força. Expressão, por excelência, do mundo animal, a força é refratária ao que no homem exista de superação da animalidade. É pois no egoísmo - resíduo animal que em todos nós subsiste - que ela, a serviços dos fortes, vai encontrar seu guia natural. Da violência jamais poderá nascer uma sociedade justa, pois a força serve a si própria e a nada mais; daí porque, tudo o que pela força se instala, acaba em opressão.

*

Deixanndo de lado a injustiça - porque ela nada significa para quem só no triunfo encontra justificativas - a solução de força peca, já de início, pela natural limitação - ela não atinge a todos e, precisameente, por isto, deixa de ser solução, pois que, solução é solução para todos e não só para os fortes, para os vencedores, até porque os fortes não precisam de soluções, eles que na força encontram a garantia contra quaisquer perturbações.

E os fracos? Que fez o mundo até hoje, senão buscar uma solução para os fracos? Todavia, com que forças, eliminar pela força, os males que afligem os fracos, se é justamente de forças que eles precisam?

Os fracos têm problemas porque não dispõem de forças para resistir aos fortes que são a causa dos seus males. Seria necessário repetir que a força é uma solução para os fortes?

Será preciso acrescentar que a força diante de outra igual ou maior, se anula ou se retrai? (Sendo a solução dos fortes, a força não faz mais que perpetuar a milenar opressão do fraco pelo forte.)

Seria bom esclarecer que a grande fraqueza do homem comum (maioria no conjunto da sociedade) está no desconhecimento de sua importância numérica capaz de, conscientemente, como consumidor, pressionar os produtores e através deles, a classe dirigente.
Confuso, desconhecendo que a força bruta é boa para destruir, mas não é boa para administrar justiça, ele, movido pela emoção, acreditando na conquista de um poder que jamais será seu, põe seus braços a serviço de radicais, muitas vezes, saídos de seu próprio meio, mas que amanhã, tendo se tornado fortes, pela própria natureza do poder, serão, inevitavelmente, os novos opressores. (Numa sociedade freneticamente consumista como a nossa, o homem comum vale muito como consumidor e ainda, quase nada, como ser humano.)

*

Afora preocupações de ordem moral, às quais, os homens são infensos, cabe dizer que a aparente inevitabilidade da força, sua insistente presença como instrumento de ordenação da vida, decorre da precariedade de suas soluções: o remédio tem que estar à mão porque alivia o mal sem impedir novas ocorrências. Incapaz de inserir-se igualmente por todo o corpo social sobre o qual atua; alheia a noções de qualidade, a força destrói partes do todo, às cegas, e o que lhe escapa, aquilo contra o qual ela não pôde, resta intocado e - portador dos mesmos males - uma vez mais se expõe às mesmas soluções.
Destrói partes sem modificar o todo, ao passo que a inteligência modifica o todo sem destruir as partes. Incapaz de produzir mudanças qualitativas, a força, enquanto resolve um problema, põe dois outros no caminho. Ela - que aos espíritos imediatistas se apresenta como potência imbatível - trás dentro de si o mal que a encerrra: ela não soluciona sem amputar e nisso está sua maior fraqueza, pois jamais conseguirá amputar o todo, sem que nesta operação ela própria se consuma.
Igual ao tronco que extirpado de seus galhos, logo se cobrirá de verde, também o tronco social remanescente, aquele contra o qual a força não pôde, logo estará em pleno viço e os mesmos males que levaram às primeiras mutilações, estarão outra vez a exigir novas amputações, num círculo vicioso que a nada mais conduz, senão à desesperada busca do poder, pois que, sendo a solução de força, a solução dos vencedores, só no poder estará a salvação.

*

Manifestação elementar da natureza, nascida à revelia dos homens e a eles se impondo, a força, alheia aos fins imediatos que lhe dão, age conforme sua própria dinâmica, independente dos anseios de seus manipuladores. Realidade acima dos homens, abarcando muito mais que o mundo dos homens, é natural que termine por lhes escapar das mãos, submetendo-os a seu perigoso jugo.
Impossibilitada de agir sobre si mesma, a força exige outra que lhe faça frente e se outra não existe, ela a faz nascer. Se a outra sucumbir ou for submetida, do ventre da própria unidade remanescente surgirão divisões, independentemente da vontade dos homens, mas por exigência inelutável de sua dinâmica.
Eis porque às vezes nos surpreendemos - por exemplo - com a aparente gratuidade das agressões entre expoentes de uma mesma sociedade: o que fazem, umas às outras, essas criaturas inteligentes; o estranho modo com que se conduzem, tudo nos parece sem sentido e, de fato, assim é, mas na aparência, porque, para além de sua conduta à primeira vista, estúpida, tais criaturas - condicionadas pela força - estão a incitar, inconscientemente, as divisões que ela, incompatível com a unidade, está a exigir.

*

O mundo jamais viverá sob uma só ideologia, impingida pela força, mesmo porque, ideologias não são impostas; o que pela força se impõe é o domínio, embora sob a capa das idéias. Enquanto se deixe orientar pela força, a humanidade não terá nunca uma só religião, uma só filosofia de vida para todos, pois que a força que a dirige recusa a unidade. A força - alheia aos desígnios do homem - incita à criação de novas unidades, para que, da pluralidade, sujam os conflitos sem os quais ela não tem sentido. (Falta muito para que tenhamos por toda parte uma só filosofia de vida a sustentar a Idade da Razão.)

*

A paixão qualquer que seja ela, obscurece a razão e os homens, que de má vontade, aceitam opiniões, embrutecidos pela violência recusam simples constatações. Quem ousaria negar que a violência é tão velha quanto o mundo? Quem se atreveria a apontar nela qualquer coisa de novo, capaz de, ao menos pela novidade, infundir esperanças? Não se trata de opiniões, trata-se de constatações a que não se pode fugir.
Apesar disso, a violência exibe-se como coisa nova e seus apóstolos se apresentam sob as cores da esperança. Os mais exaltados nem concebem progresso que não venha pelo sangue, como se, pelo sangue, ocorresse o milagre da purificação.
Diante de sua paranóia homicida é como se os males do mundo decorressem do pouco sangue derramado, embora, ninguém ouse negar que se a violência endireitasse os homens, o mundo seria uma perfeição.

*

Nas eternas disputas entre os homens, o acúmulo de forças nunca foi tido como um fim em si mesmo, mas, como o instrumento ideal, segundo uns, impróprio segundo outros, para a consecução do objetivo final que é a justiça. As coisas podem ser meios ou fins, dependendo da ocasião e do vínculo entre elas. Importante é a ligação que as aproxima ou as afasta, o compromisso entre o meio e o objetivo imediato ou final a ser alcançado. A força é entidade natural e como tal comprometida com a destruição física, enquanto a justiça, filha da razão, é entidade artificial criada pelos homens e como tal dependente do consenso entre eles. Os homens procedem, no entanto, como se o acúmulo de forças fosse um fim em si mesmo, desinteressados, pelo menos, aparentemente, do implícito compromisso com a desintegração material, desinteresse de funestas consequências. (Poder significa, no mínimo, ameaça latente de destruição física.)

*

Acúmulo de poder quer dizer intenção de abusar. O meio ideal para alcançar a justiça haverá de ser sempre o equilíbrio de forças. Mas, devido ao choque de interesses, a vida se afasta do ideal e aquilo que a alguns pode salvar, a outros na certa perderá. A justiça poderá ser o objetivo final para os injustiçados, mas não para aqueles que vivem da iniquidade.
Por causa da divergência entre a linguagem abstrata do homem universal e a linguagem concreta do homem particular, isto é, do homem de carne e osso que, no dia a dia, se opõe a outro homem, a aparência ofusca a realidade; o pretexto substitui a verdade e os meios importam mais que os fins, de tal modo que aquilo que se apresenta como o meio ideal para atingir determinado fim, acaba, com frequência, constituindo-se no principal obstáculo à sua consecução.
A força arrolada como instrumento para alcançar a justiça, por conta própria, erige-se em fato consumado, irremovível, e, realidade acima e além dos homens, a ela não importa que a chamam de meio ou de fim; a ela o que importa é sua realização, pouco se lhe dando que a justiça fique para amanhã ou nunca.
 
 

**14



 
 
 
 

CAP.15
DA NECESSIDADE
DE IMPEDIR A
REALIZAÇÃO DA
VONTADE ALHEIA
*
Aquele que exagera, a si mesmo rouba a credibilidade. Mas, quem evitaria o microscópico, se nele o exagero facilita a busca da verdade?! Quem usaria a lente, se ela, aumentando para a vista, aumentasse também a realidade?!

Gente existe que não querendo ver, fala de exagero quando se atribui à tendência absolutista do homem, as causas concomitantes da luta pela dominação de uns pelos outros e de seu consequente recurso à força para isto conseguir.

Todavia, o microscópico não exagera o nada. Aumenta o que existe, para que, honestamente exagerando-o, se possa finalmente percebê-lo. Além disso, tratando-se de humanas tendências, o exagero honesto faz-se, neste caso, ainda mais necessário, porque se o micróbio não se encolhe e requer o microscópio por ser mesmo pequeno, nelas, nas tendências do homem, a conveniência deles, conscientemente ou não, encurta-lhes o tamanho, para impedir sua natural percepção.
Muito além da nossa (e da humana compreensão), princípio e fim de todas as coisas, eis o absoluto, o todo, que às partes (o homem e o mais), impõe os limites do possível. A criatura, porém, inconformada com a criação, ousa em seu delírio de grandeza, negar o próprio criador. Cada homem se tem na conta de um universo à parte, num desafio à unicidade do todo, do absoluto (ou de Deus, como queiram).

*

Visivelmente impedido de se atribuir a paternidade do mundo e não podendo se negar como criatura, o homem de certo modo se compensa, baixando o Criador à sua altura, negando-lhe a eterna presença, antes, agora e depois de tudo. Alguns negam Deus expressamente, à luz do dia, enquanto outros, medindo-o pelas medidas da humana inteligência, acabam - sem que o digam - igualmente por negar-lhe a existência. Embora a Deus tanto faz que o neguem ou que o afirmem, para os homens a questão é relevante, pois negar Deus, implica em negar que algo exista, que pela simples existência, imponha limites à nossa vontade; implica ter nossa vontade como vontade absoluta, imune a qualquer limitação, com o que nos condenamos a só realizá-la pela força, pois que, opondo-se a ela, tão ilimitadas quanto ela, erguem-se, com iguais pretensões, as vontades de todos os outros.
A inteligência é inconformação com o possível. É a busca do impossível. O simples animal - sem inteligência que o oriente - deixa-se guiar pela natureza e por isto desconhece problemas. No homem, porém, a inteligência, embora dependente do corpo que a encerra; efêmera, tanto quanto ele, ainda assim não se conforma e desta inconformação nasce o que no contexto dos homens, eles chamam de problemas, mas que num contexto único de que eles são apenas parte, não é mais que o fluir da vida.

*

No íntimo do homem, ocorre um combate desigual entre o velho (que persevera na sujeição à natureza) e o novo (que busca uma diretriz própria) e, do mínimo que a inteligência consegue contra a força, afirma-se a individualidade, que não se conforma com a vontade da espécie, tampouco com a vontade do absoluto.
Nasce enfim o homem, na medida em que, destacando-se da espécie, toma ciência de sua individualidade. (Com a afirmação do indivíduo, surge a vontade própria, a oposição aos outros indivíduos e, com ela, os problemas que a todos afligem.)
Orientada pelas necessidades do indivíduo, que a si mesmo não impõe limites, nossa vontade tende para o absoluto. Se pudesse cada homem seria o dono do mundo, o próprio Deus presente e só a existência de outras vontades tão absolutistas quanto a sua, impede que ele o seja.

*

A simples existência do outro, mostra-nos que ou teremos de destruí-lo para que seja cumprida a nossa vontade, ou teremos de, com ele, dividir o mundo, aceitando os limites que sua mera presença nos impõe. A realização de uma vontade, implica, necessariamente, na limitação das outras. É a negação delas, daí porque, tão importante quanto a realização da nossa - sempre ameaçada pela outra - é impedir que os outros realizem suas vontades, garantindo a plena realização da nossa.
A tendência absolutista, decorrência do reconhecimento da individualidade, existe nos homens, tanto quanto em todos os seres inteligentes. Ela só não vai às ultimas consequências por uma razão que nós, a duras penas conseguimos entender, mas da qual, os homens, ainda enquadrados pela força, não querem saber - absoluto só Deus, porque é uno, sendo uno pode ser. Abaixo de Deus, somos nós e os outros, esses outros, nossos limites.
O absoluto será sempre a tentação dos homens, sua mais persistente miragem. Nada podemos contra o próximo que ele não possa contra nós. Somos todos mortais e bastaria esta inafastável condição, para que, seguindo a vida que as encerra, nossas tendências chegassem ao fim, antes que tivessem podido chegar às últimas consequências.

**15



 
 
 
 
 

CAP.16
NO SACRIFÍCIO DO OUTRO,
A SAÍDA PARA O
IMPASSE INICIAL
*
O erro inicial (e fundamental) no qual todos os outros se apoiam, é a violência, utilizada pelo homem, por egoísmo, conveniência pessoal (desde que seja ele o forte) ou por incapacidade de compreender, ainda hoje, aquilo que de peculiar existe na condição humana.
Comparado com o resto da criação ele é criatura especialíssima. É, pela fisiologia, dependência da natureza ou seja, parte dela. Pela inteligência é realidade única, singularmente colocado acima do mundo, abaixo só de Deus.
A natureza que em parte ele é, está submetida às leis do todo. A matéria que existe nele, sujeita-se tanto quanto outra qualquer à destruição física, que a natureza só pode consumar, pela realização da força - seu elemento dinâmico, produzindo o que os homens, lutando uns contra os outros, chamam de violência. (Procedimento arbitrário, proporcionado pela força.)

*

Tanto a destruição da matéria, quanto a inequívoca diretriz que a preside, isto é, o favorecimento do mais forte, não são mais que manifestações de uma inteligência acima e além do mundo, à qual os mortais não têm acesso. Não fora esse um objetivo infinitamente alto, ininteligível pela natureza e pela inteligência, ela e nós, dependentes de uma inacessível ordem cósmica, o mundo jamais conheceria tufões, terremotos e outros fenômenos apenas explicáveis, como impulsionadores desse misterioso processo de mutação do mundo físico.
No reino da natureza, o que chamamos de violência não é mais que a ativação de um de seus elementos fundamentais - a força - com objetivos preestabelecidos, num contexto de normalidade. Tudo tende para a destruição física, a fim de que siga em frente o interminável processo de transformação da matéria. Segundo essa lógica, o insólito seria - por exemplo - a inexistência da lei da gravidade; da oposição dos contrários ou da diferenciação entre os seres vivos em fracos e fortes; enfim de tudo aquilo que - tanto quanto podemos perceber - só se explica como incentivo à realização da força, necessária à transformação do mundo físico.

*

Se o homem fosse apenas fisiologia, a doença, a morte, todos esses incômodos acontecimentos, não significariam mais que a busca do equilíbrio natural para o qual, supérfluas seriam quaisquer explicações. O homem, porém, não é só natureza; ele (e só ele), mais que isso, é inteligência, ou seja, inconformação, inclusive, com a natureza, à qual pertence, ao menos, em parte. (O homem é um pretendente à imortalidade, com todas as suas consequências.)
Desta perene inconformação, nasce o imemorial conflito que em nossas entranhas opõe a natureza à inteligência, conflito de iniciativa da última, porque ela é que pretende mudanças, enquanto a natureza, obediente a seu invisível comando, jamais contra ele se rebela. Não fosse a inquietude da inteligência, a natureza (nela incluído o homem) viveria em paz, cumprindo a eterna rotina do nascimento, vida e morte.
O homem é natureza, mas não é só; sua característica marcante, aquela que singularmente o distingue do resto da criação, é a inteligência, graças à qual - e só a ela - pode ele por o mundo dentro de si. E tendo tudo inserido em seu âmbito intelectual, o indivíduo se acredita o Senhor de todas as coisas e no íntimo de cada um, em seu universo interior, o absoluto se faz. Tal sensação, se raramente aflora é apenas porque, neutralizando-a, existe igual pretensão de todos os outros.

*

Não estivéssemos submetidos a um milenar condicionamento, veríamos que esta propensão, absurda, mesmo como tal, só não se manifesta abertamente, por circunstâncias alheias ao indivíduo, tal seja a oposição de outros. Em tempos remotos, quando o desproporcional poder de alguns lhes permitia fazer o que quisessem, tais pretensões eram não só abertamente proclamadas, como também, impostas aos de baixo. Mesmo hoje, florescem exemplos dessa megalomania, praticada com rara desenvoltura naquelas sociedades intolerantes (laicas ou religiosas), no interior das quais, o culto à personalidade, impulsionado pelo interesseiro fervor dos iniciados, transforma simples mortais em divindades, fazendo deles criaturas infalíveis, em aberto desafio à inteligência de todos (inclusive, a deles) numa trágica demonstração de como o homem pode menosprezar a razão, quando existem interesses em contrariá-la.
Todavia, o indivíduo que pode pela inteligência, levar o mundo para dentro de si; que pode abarcá-lo em seu âmbito intelectual a ponto de o confundir consigo mesmo, esse indivíduo jamais poderá ir além, isto é, nunca poderá a si mesmo abarcar em seu tempo e espaço interiores, porque então seria o nada. (O indivíduo é irredutível por si mesmo)

*

Tendo reduzido o mundo à unidade (que é ele), o homem, cônscio de sua individualidade, descobre que não está só. A seu lado, outro existe, que, também inteligente, pode, tanto quanto ele, pela inteligência, transportar o mundo para dentro de si, embora este outro indivíduo, da mesma forma que o primeiro, a si mesmo não possa reduzir, porque ele, como indivíduo, é, tanto quanto o outro, por si mesmo irredutível. São duas irredutibilidades que apenas por existirem, tornam irrealizável o sonho absolutista que no homem é irrenunciável. Mais ainda, o ser inteligente que tudo o mais pode levar para dentro de si, inteiramente, a outro ser inteligente, só pode reduzir (levar para dentro de si), parcialmente, porque, esse outro, sendo inteligente e, portanto, capaz de criar, isto é, modificar, a cada instante, a realidade (e a ele próprio como parte dela), pode, pela criatividade, escapar, ainda que também parcialmente, à percepção alheia, pois que sempre haverá nele algo de novo, de imprevisto (como reação contra qualquer alheio esforço de compreensão), que ao menos por algum tempo, o outro não será capaz de em si mesmo inserir, isto é, compreender.

*

Irredutível por si mesmo, o ser inteligente, só pode ser reduzido por outro ser inteligente, ainda assim, parcialmente, porque nele, só é redutível o que é animal - aquilo que já está acabado -- ou aquilo que, não obstante venha da inteligência, vem não de uma só, mas de uma inteligência que na busca do universal, com outra se integrou, realizando-se na razão, com o que se fez previsível, ou seja, passível de redução. (No mais, será irredutível tudo o que vier de uma única inteligência, enquanto sobre ele não se fizer um consenso que o torne previsível.)
Debaixo do céu, na própria Terra, algo existe que o homem não pode compreender (levar para dentro de si), inteiramente. Este algo não é senão o outro homem, porque nele, no indivíduo que ele é, se o animal é redutível, a inteligência não é. Só é passível de redução a inteligência já realizada, aquela que deixou de ser individual para, integrando-se com outras, produzir a razão, daí porque, no homem, se a razão é redutível, a inteligência como tal, ou seja, como realidade individual, não é.

*

A inteligência é irredutível, mas é também irresignada. Ela não recua diante de nada, nem de Deus e, absurdo ou não, tentará, ainda que em vão, abarcá-lo em seu mundo, a ele que é o todo do qual ela é uma ínfima parte. Tal é seu destino e se assim não fosse viveríamos ainda a Idade da Pedra. A inteligência se desqualificaria como tal, se retrocedesse diante dos obstáculos, por mais altos que fossem. (O impossível de hoje, poderá ser o possível de amanhã.)
Queira ou não, diante da irredutibilidade do outro; frente ao desafio de quem é, tanto quanto ele, irredutível e inconformado, o homem conhece o impasse inicial e com ele sua frustração original, causa primeira da inimizade de uns contra os outros. A vocação absolutista é tão forte que a inimizade entre os indivíduos assoma ao primeiro plano, sobrepondo-se ao conflito anterior, aquele que no íntimo de cada um, opõe a inteligência à matéria, a primeira, buscando subtrair da natureza, isto é, do todo, o que no homem é matéria, o corpo (parte deste mesmo todo que é a natureza).

*

A inteligência mais que inconformação é ânsia de construir um mundo próprio. À cegueira da matéria ela pretende, com sua luz, impor a direção. Porém, sendo, tanto quanto a matéria, parte integrante da unidade que é o indivíduo, são os rumos deste indivíduo, os que ela precisa impor e, desde que, em cada um existe igual pretensão, tudo volta ao impasse inicial. Opondo-se a outra individualidade em tudo igual, a inteligência não consegue sair do impasse, a não ser com a destruição do outro (aviltando-se), ou com a aceitação de sua presença, o que é possível, porque lhe foi outorgado o privilégio de modificar a natureza.

*

O eu além de primeira pessoa é pessoa especial, sem a qual o mundo não teria sentido. Por isso nada prevalece contra o individualismo, nem a dignidade intelectual.

Habitando um corpo perecível, a inteligência, também ela, sujeita-se ao tempo. Por mais que deseje, ela jamais conseguirá livrar o homem da morte, porque a morte é exigência do todo, ou seja, da natureza, na qual está inserido o corpo.

É no sacrifício da vontade do outro (pela ameaça de, ou pela efetiva destruição de seu corpo) que o homem descobre a saída para o impasse causado pela irredutibilidade dos indivíduos.
O corpo, abrigo da inteligência, é passível de destgruição. Sem ele a inteligência se apaga. Pressionada, ela, para sobreviver, desvia-se de sua vocação universalista, aderindo ao individualismo. A inicial contradição resolve-se pela física destruição. Se nós, por conta própria, não conseguimos uma solução, a natureza já tem a sua e, com ela, a garantia da humana sujeição.

**16



 
 
 
 

CAP.17
EMBORA VERDADEIRA,
A LUTA DE CLASSES
NÃO É A
VERDADE INTEIRA
*
Vem do princípio do mundo a luta pelo poder, se bem que a maioria, dela só perceba as manifestações ostensivas (na linha de seus propósitos), pois que se muitos lhe decifrassem os segredos, o poder não estaria com tão poucos. Cobrir-se de trajes insuspeitados é um de seus primeiros cuidados, exatamente, para que, fazendo dos círculos do poder, ambientes rarefeitos, deles exclua tantos quanto possa, para gozo maior da minoria de eleitos.

A história da humanidade é a história da discórdia entre os homens, pouco importa que os ingênuos, por estultícia e os espertos, por malícia, tudo façam para negá-la. (Nos círculos mais próximos, a luta é de indivíduo contra indivíduo, até no seio das famílias.)

*

No geral, cada homem vê no outro homem um inimigo. Mas, para que continuem por cima; para que tudo permaneça como está, os detentores dos diversos mandos, da boca para fora, dizem deste mundo que ele é um mundo de irmãos.
Todavia, quem quiser entender os homens, aprenda primeiro a desconfiar, seja do amor de que muito se fala, seja do ódio sobre o qual se cala, pois que, de um e de outro, boa coisa não se espera. Passar por amigo é prática tão velha quanto o mundo que, apesar de muito usada, sempre rende alguma coisa. (Seria estupidez pretender que inimigos, como inimigos se dessem a conhecer.)

*

Ainda hoje, em meio a todas as garantias de que, bem ou mal gozamos, o desconhecido nos inspira temor . Prova disto é que só o aceitamos, depois que, tendo recebido sobre ele, de terceiros ou dele próprio, suficientes informações, ele deixou de ser um estranho, uma presumível ameaça.
Este temor que nada tem de gratuito, demonstra que os homens, uns em relação aos outros, se têm por inimigos - na melhor das hipóteses, inimigos potenciais - que nem sempre chegam a praticar suas inimizades, porque os impede, o jogo das conveniências e das possibilidades.
Sobre o que pensamos uns dos outros, mais do que as juras de amor, fala este indisfarçável temor, pois que ele exibe com toda crueza, a idéia que fazemos do outro. O desconhecido é, como homem, um inimigo potencial e, para nós, ele só deixará de o ser, depois de contrariar nossas expectativas, fazendo com que o tenhamos como diferente de milhões de outros que anônimos, porém, potencialmente, ameaçadores, perambulam por este mundo. (Não fosse esta a idéia que temos daquele de quem nada sabemos, isto é, do homem desconhecido, então porque, contra ele, tanto nos acautelarmos?!)
O homem é uma caixa de segredos, até para os íntimos. Por isso, diante dele, estaremos sempre com um pé atrás e por mais que o conheçamos, haverá sempre a tendência de ver nele algo daquele desconhecido inquietante que habita os porões de cada um de nós.

*

Diante da brutalidade da vida na Terra, que ninguém ousaria negar, desfaz-se a lenda do homem amigo do homem, que muitos, alguns, por simplicidade, outros, por astúcia, se empenham em propagar. E desde que não há como despojar o homem de sua crueldade, tampouco explicá-la como fruto da amizade, mais não cabe fazer, senão dizer, que em vez de amigos, os homens são inimigos. Nem a razão faz o mundo de todo explicado, pois que, também ela, é obra do homem, que já era animal antes de ser racional.
A vida na Terra, esse planeta incoerente, seria inexplicável, não viesse explicá-la, a mútua inimizade entre seus filhos. (Depois é que veio a razão.)
Quem quiser entender os homens, precisa vê-los tais como são, inimigos uns dos outros, ainda que não se enfrentem por iniciativa própria, mas por força de irresistível compulsão que neles faz tão presente quanto outros instintos, o instinto de dominação que a sua verde inteligência não podendo controlar, egoísticamente exaspera, transformando-o em paixão dominadora, movida em boa parte pela insegurança.

*

Incapaz de mudar, indiferente ao que a inteligência, ainda que num futuro remoto, contra seu rígido comando, possa fazer, a natureza - preocupada em realizar a força - continua impondo aos homens a violência, embora eles, devido a que a inteligência é irrenunciável, conquanto lutem entre si, lutam também contra tal imposição, daí porque, ao menos por enquanto, guerra e paz, o bem e o mal - isso que é ainda hoje uma cruel civilização - enfim, o que no mundo exista - obra do homem - vem, de um modo ou de outro, da inimizade entre eles e da humana recusa desta compulsão.
Para que serviriam, verdade, justiça e paz,se todos fossem amigos?! Essa nobre e extensa linhagem só existe pela necessidade de convivência. Que sentido teriam tais valores se não houvesse o que pacificar?

Hoje quase todos aceitam a existencia da luta de classes, que não é senão uma etapa superior da luta entre os indivíduos, apenas interna e momentaneamente pacificados por uma necessidade maior - a de juntos se oporem a outras pessoas - pelas mesmas razões agrupadas. No entanto, fecha-se os olhos para o embate principal, o mais virulento, aquele que entre os indivíduos se trava, muito embora, a vida, no seu dia a dia, não faça mais que exibí-lo. Até aqueles que ao poder subiram, incentivando a luta de classes, tão logo alcançaram seus objetivos imediatos,esqueceram-na, de vez, receosos de que o feitiço virasse contra o feiticeiro.

Embora verdadeira, a luta de classes não é a verdade inteira. Mais frequente e muito mais cruel é a luta entre os indivíduos e, se desta, pouco ou nada se fala, é apenas porque ela explica muitas coisas que melhor seria não explicar.Mostra - por exemplo - porque a revolução devora os próprios filhos. Explica também, porque os vencedores, depois de inverterem a seu favor as posições, lutando entre si pelos primeiros lugares, fazem-no com tal paixão que acabam esquecendo quem os pôs lá em cima e ficou de fora.

*

Quanto maior a ambição de mando, mais os homens a disfarçam chamando os outros de irmãos. Alcançado o poder, razão principal de sua luta, exatamente como os antigos, procedem os novos senhores. Para que os de fora não se mexam e as posições não se invertam, fazem que, num passo de mágica, cessem os conflitos, tanto se dá que sob suas botas gemam quase todos. Sob o signo da força reina a paz, pois é a paz que agora convém. Instalados no poder, os lobos não deixam de ser lobos. Ocorre que, à custa da maioria de ingênuos, os espertos se fazem tão fortes que só eles podem continuar lobos, enquanto que sem forças, ao resto da matilha não cabe mais que seguí-los, como dócil rebanho. É como se um milagre, tivesse encerrado a luta de classes; os indivíduos já não guerreassem entre si e a nação se constituísse agora num corpo só, do qual os de cima fossem necessariamente o cérebro.

*

Homens inteligentes, mas, com o cérebro engessado pelo uso da força, não percebem que é a vida que negam, quando negam o nascimento de novas classes, como se a realidade deixasse de ser só porque eles fecham os olhos. Até os inimigos doutrinários da paz social, aqueles que a carreira fizeram, denunciando-a como impostura das classes dominantes, tão logo subiram ao poder, para nele permanecerem, a ela se referem agora, como o ideal de uma sociedade perfeita, tão imune aos conflitos, que se julga capaz de suprimir por desnecessário, direitos como o de greve, num estado que se diz proletário. Provando que o homem é homem em qualquer lugar, lá, onde, por cálculo, a criatura suprimiu o Criador, exalta-se a fraternidade do povo operário com o mesmo zelo hipócrita com que em outras plagas se incensa a fraternidade do povo de Deus, com isto, se beneficiando os dois lados, desta criação artificial, desta paz social, tão distante da natureza humana, quanto próxima dos interesses daqueles que por decreto a criaram e pela força a mantém.

**17



 
 
 
 
 

CAP.18
O HOMEM
AINDA JOGUETE
DA NATUREZA
*
at/130603
O hábito - que só prospera afastando o raciocínio - e a descrença geral numa alternativa para a força, permitem aos homens tocar a vida, fingindo ignorar sua dura sujeição à natureza. Dependentes da força, nela enxergam o que é circunstancial, manifestação ostensiva, crítica erupção, como se do vulcão, percebessem as cinzas, indiferentes ao mistério que as lança no espaço. O escasso conhecimento que de si ostentam, lhes fecha os olhos para a verdade de que, entre eles, a ameaça rende quase tanto quanto sua efetivação. Por isto, fecham os olhos para a ameaça velada, contida na força latente, fingindo que o vulcão, porque dormita, está morto.

*

Tão intensa quanto no passado, embora mais difusa, a luta pelo poder indica o grau da sujeição dos homens à força, sujeição contra a qual pouco fizeram, desde o tempo das cavernas até hoje. Vivem de cabeça quente e dedo no gatilho. Só na força enxergam o remédio e nós mesmos, inseridos em sua realidade, não teríamos como indicar-lhes outra solução, principalmente, porque nenhum deles ousaria romper a corrente da violência, expondo-se inerme ao que, nas condições atuais, entre eles, mais seria um convite à agressão. Tão presos estão à fatalidade de sua sujeição à força que, diante de um confronto iminente com o inimigo, ninguém arriscaria deixar as armas, pela certeza de que, por enquanto, ninguém resistiria à compulsão da violência.

*

Com tal fatalismo se rendem à força e há neles tamanha descrença na libertação, que muitos - mesmo intelectuais - se despojam dos escrúpulos e por desespero ou cálculo, dando voltas à inteligência, ousam, quanto à força, exaltar a arte de bem servi-la, fazendo por escrito a apologia desta servidão.
Misto de animal e inteligência, a inteligência desde o berço orientando o animal, tudo o que vem do homem, mesmo que seja negação de humanidade, tem que ser, na aparência, racional. Por isso, haverá sempre um pretexto buscando justificar o ato de força, embora ele, por sua natureza, prescinda de explicações. É que o pretexto, mesmo o mais tolo, é essencial, pois que a falta, nem que seja de um simulacro de verdade, desqualificaria o homem como racional, luxo a que não se pode dar, nenhuma criatura inteligente, nem a mais brutal.

*

Mundo à parte, subordinado a uma realidade acima da natureza, o homem acredita que é dono de seu nariz, principalmente, porque, todos os atos seus, mesmo aqueles que mais evidenciam o predomínio da força, não escapam de uma certa racionalidade, fruto da inevitável convivência, dentro de nós, da força com a inteligência. Por isso, quem quiser compreender o homem, preocupe-se menos com o pretexto que se mostra e mais com a verdade que lhe ocultam.
Que é a verdade senão a bússola da razão? Porém, entre os homens, o pretexto esconde a verdade; as aparências encobrem a realidade, porque, embora estejam a caminho, não chegaram ainda ao âmago da razão.
Se na busca da verdade, deixássemos de lado o pretexto, examinando cuidadosamente, não as causas superficiais, mas o obscuro encadeamento de causas aparentemente irrelevantes, veríamos, que antes da gota d'água que transborda e que se apresenta como a causa única, o copo já estava para transbordar, graças à água de muitas causas despercebidas que a força - senhora dos homens - ali já havia depositado, visando armar os conflitos para que ela, pretextando solucioná-los, acabasse por se realizar.

A necessidade de justificação da força, inexistente entre os animais, no homem é essencial, pois que sem isto, ele se desqualificaria como racional. (A aparente justificação faz que ele, da força, passe por senhor, embora, dela não seja ainda mais que inconsciente servidor.)

*

Como esforço para encontrar a verdade, aceitemos explicar os conflitos por suas causas aparentes, desde que essa explicação - que aos homens serve de consolo (porque eles não concebem um sucedâneo para a força), a nós que já nos libertamos, sirva apenas para argumentar. Sobre que incide a vontade dos homens? Fugindo à mentira que tão bem serve aos desígnios da força, diríamos que a vontade dos homens incide basicamente sobre bens materiais que lhes satisfaçam as necessidades do corpo e bens imateriais que lhes atendam os anseios da alma. Dos últimos, uns são inerentes ao homem; outros, simples frutos da luta pelo poder. Dos bens imateriais inerentes ao homem, cabe dizer que estão de tal modo ligados a nós que ninguém ousaria deles privar alguém, não fosse a luta pelo poder que, fazendo dos homens, inimigos uns dos outros, transforma até esses bens em presa de guerra. (Quem se preocuparia - por exemplo - com seu inato direito à liberdade, se ele não estivesse ameaçado?!)

*

Dos bens imateriais, frutos da luta pelo poder, cabe dizer, que só se justificam no contexto do homem inimigo do homem. Que sentido teria o próprio poder, numa conjuntura de paz, se os homens não precisassem lutar uns contra os outros?
Dos bens materiais, cuja escassez constitui causa frequente dos conflitos, diríamos que existe sim, enorme escassez, porém, escassez artificial, fruto de uma egoística distribuição patrocinada pela força para suscitar futuros problemas.
Não fossem dominados pela violência, os homens teriam como produzir o bastante para que todos fossem contemplados.
Comportam-se com uma passividade sintomática. Por medo, a maioria, já de si, confusa, acomoda-se a tal ponto, que outra coisa não faz, senão prestigiar hábitos que na conjuntura atual de predomínio da força, melhor serve a ela do que à razão, eis que, bom ou mau ele só perdura, afastando o raciocínio.

*

Em vez de evitar o consumo dos mesmos bens, numa mesma época, a maioria mantém o hábito, diminuindo as disponibilidades, em benefício da força, ansiosa para criar problemas. Incentivando ainda mais a subserviência aos desígnios da força, existe irresistível tendência a se apossar das coisas, com o que uns excluem outros de seu gozo, rareando-as para os não possuidores.
Na acumulação abusiva de bens, acima da capacidade física de digerí-los, os homens revelam - mais que a necessidade de prover o futuro; mais que necessidade de satisfazer o apetite - a obscura preocupação de criar os problemas que justifiquem o uso da força.

*

Ninguém ignora que a propriedade privada é a principal causa de violências, mesmo porque, se é forte o desejo de propriedade, tão forte quanto ele, é a inconformação com a propriedade alheia.
Se conseguíssemos vislumbrar a força que se oculta no âmago das instituições, veríamos que ela é que mantém a propriedade particular; veríamos ainda que a apropriação de bens ou seja a interdição de seu uso aos demais, aliada à correspondente inconformação dos não proprietários, constitui-se numa rica sementeira de problemas e, por consequência, no mais frequente pretexto para a realização da força.
A violência, destruindo, não aumenta os bens, pelo contrário, os diminui. Argumento verdadeiro, mas, insuficiente, se lembrarmos que a carência artificial de bens, constatada desde o princípio do mundo, constitui uma exigência da força, digam o que disserem. (A escassez é o pretexto, enquanto a necessidade de realização da força pelos homens é a verdade.)

*

Igual ao doente que foge do médico pelo receio de se confirmar a doença, o homem evita pensar para não conhecer a realidade de sua subserviência à força, da qual, não tendo como escapar, se consola, na ignorância de que nesta subordinação reside a causa primeira da violência. (Não fosse este, um assunto tabu, os homens saberiam que a violência, longe de ser o remédio, é a própria doença.)
No homem, o domínio firme da força sobre a inteligência paralisa o raciocínio. Não fora assim, logo ele saberia que se não tem ainda explicações sobre as causas e os males da violência, é porque está inibido pelo temor de que não pode viver sem ela.

Apesar de fértil, a imaginação dos homens se recusa a conceber o mundo sem a força para comandá-lo, com bons motivos, pois que a ausência dela, no estágio atual da humanidade, viria produzir um vácuo que a razão não tem ainda como preencher. (Mesmo assim é preciso crer!)

*

Se a memória dos homens é débil, cabe lembrar-lhes que só nos últimos cem anos, afora as intimidações e ameaças, isto é, afora a violência latente, ocorreram mais de cem milhões de mortes em guerras, revoluções e outras sangrias, assim mesmo, porque mais não puderam matar.
Persistem as feridas da última grande guerra e não existe garantias de que outra não ocorra. Como explicar a passividade diante da atual corrida armamentista, refreada, mas, não paralisada, senão como um abandono à violência?! Todos sabem que essa dispendiosa empreitada, além de impedir a melhoria da vida na Terra, acabará por levar o homem a um conflito de consequências imprevisíveis. (Armas são feitas para serem usadas.)

*

A guerra - a mais ostensiva manifestação de violência - é defendida com argumentos tão fracos que servem apenas como evidência de uma necessidade que o homem tem de se justificar, só para que não o tomem por irracional. A frequência com que ocorrem as guerras mostra que o homem está longe de chegar à razão, na sua inteira acepção, isto é, em sua dimensão universal, diante da qual, carece de sentido qualquer guerra, patriótica, guerra santa ou ideológica, uma vez que o egoísmo nacional, a religião, a ideologia, poderiam explicá-las, no melhor das hipóteses, sob um critério parcial, ou seja, no contexto de um mundo dividido em facções, como obra de homem contra homem, isto é, do homem como joguete da natureza, mas, nunca por meio de um critério universal, tendo o ser inteligente como fração ideal de um todo indiviso, mesmo porque, a violência, como elemento natural que orienta o animal inserido no homem, é de si inexplicável, pelo menos, segundo humanos critérios, ou seja critérios racionais.

*

Ainda hoje, a paz não é mais que uma expectativa de guerra, para a qual, aqui e ali, gregos e troianos se preparam abertamente. A explicação dessas matanças como decorrência de causas econômicas, a mais universal e, portanto, a mais próxima da verdade, falhou ao esquecer que antes da propriedade privada e da economia, a guerra já era realidade do dia a dia. Falhou também ao colocar o carro adiante dos bois, esquecendo-se de que o homem é anterior à economia, sem o qual ela não existiria. Sob qualquer sistema econômico, ele continuará lutando pelo poder - motor principal da guerra e da economia - pelo menos, enquanto não conseguir se libertar da sujeição à violência imposta pela natureza que o faz acumular poder em forma de riqueza, para, de outros homens se defender. (A riqueza material, poder cristalizado, é nada sem força bruta que a sustente.)

*

O capitalismo ainda vive e os mais atentos já despertaram do sonho de uma paz nascida de suas cinzas. O sonho durou enquanto houve um só país comunista. Bastou que surgissem outros para mostrar a vitalidade do egoísmo nacional e a tendência a se aproveitar das ideologias com fins exclusivistas.
Se a muitos a paixão não deixa raciocinar, basta abrir os jornais para recordar que não faz muito tempo, os dois grandes de um mundo nascido como oferta de paz, só não chegaram a um conflito de sérias consequências por fatores estranhos à disputa entre eles, dentre os quais avulta, o temor à superpotência capitalista que era forte e se fortaleceu ainda mais.
A estatização da economia, prematura, porque, forçada, acabou - como se esperava - concentrando num punhado de burocratas, poder jamais sonhado por qualquer capitalista, ficando o mundo à mercê de sua intransigência e a paz, tão ameaçada como antes.

*

Por orgulho ou descrença numa alternativa para a força, os homens procedem à maneira do viciado que de tal modo se condicionou ao vício (nele, uma segunda natureza) que sequer admite a hipótese de se libertar.
Não fosse a presença da força a lhes tolher o raciocínio, a inteligência dos homens não deixaria sem respostas, indagações que a vida, a toda hora, lhes faz.
Como explicar a inimizade entre os homens, se eles, em estado de lucidez, a condenam? Servindo-se do pretexto para fugir à verdade, dirão uns, que a culpa é dos outros, o que pode ser explicação, num mundo dividido em facções, mas, não o será se considerarmos a humanidade como um todo.
Como explicariam os homens a perpetuação da violência? Acaso não percebem que a solução que se eterniza deixa de ser solução para ser problema?
O instinto de dominação, aguçado pelo temor de um indivíduo frente a outro (ou ele ou eu), exige atendimento que só a violência pode dar, isto é, nós só poderemos atendê-lo, submetendo-nos à lei do mais forte, a lei natural, pois que, para tal propósito a razão jamais serviria. Se é assim, se qualquer homem, por simples que seja, sabe que ninguém se deixa dominar a não ser pela força, então, como explicar esta ânsia de dominação que é a marca do homem?

*

O argumento mais convincente não será suficiente para levar alguém a se submeter a outro, pois que, inteligência quer dizer liberdade e se às vezes nos deixamos iludir diante de milhões de acorrentados, aparentemente resignados, isto resulta de que tais criaturas, ante o risco de perder tudo, quiseram conservar, pelo menos, a primeira das liberdades, a liberdade de viver e com ela a esperança.
Ser homem é não se conformar com a lei natural, com a lei do mais forte. Então, como entender que o homem, para solucionar seus problemas, se utilize desta lei com tanta frequência?
A falta de uma convincente explicação para o apego do homem à violência, faz legítima a conclusão de que entre os dois existe um vínculo que, embora transcenda a razão, justamente por transcendê-la, rompe o véu da humana sujeição.

*

Ao indagarmos das causas de problemas como o da inimizade entre os homens, que remonta ao princípio do mundo, cada um de nós é igual ao viajante que pega o trem no meio do caminho. Considerando as questões que se nos apresentam como fatos consumados, insuscetíveis de exames, diríamos que a discórdia entre os indivíduos ocorre por culpa da inteligência que, atraída pela voragem absolutista, opõe indivíduo contra indivíduo.
Não obstante, tudo o que vem do homem, vem necessariamente de matéria e inteligência que, por igual, o constituem. Por isso, se num esforço maior, nos livrássemos de velhos condicionamentos, veríamos, abaixo da superfície, que a mútua inimizade vem tanto da inteligência (que na busca da imortalidade nos impõe o absolutismo da vontade), quanto da natureza, que necessitada de realizar a força, para em nós realizá-la, nos impõe o instinto de dominação que só podemos atender pela violência, de vez que o conflito se arma na cabeça, mas, só passa, da mente para a realidade, graças à natureza, para a qual, mais importante que a inteligência e a própria imortalidade, é a ação que lhe permita cumprir sua missão transformadora, ação a que o homem não pode se furtar, pois que ele é matéria também, carente de transformação. Tal conflito não passaria das hipóteses, se o homem, espicaçado pela natureza, que lhe impõe o instinto de dominação, contra ela pudesse dizer não.

*

Todavia, a negativa é impossível, ao menos, individualmente, porque se alguém a tanto se negasse, ficaria privado de ação, que no indivíduo é orientada pelo instinto (que está pronto, é anterior à razão), nunca pela inteligência que, isolada, não é mais que expectativa, necessitada de outras, para com essas outras, se integrar, produzindo a razão. Desta (e apenas dela), se podemos dizer que substitui o instinto como guia dos homens, também podemos dizer que só consegue fazê-lo como transcendência do indivíduo, pois que, ao contrário da inteligência - realidade individual - a razão vem da integraç&atillde;o dos indivíduos, daí porque ela os transcende, situando-se acima e além deles, feita de cada um deles, luz no alto, a lhes guiar os passos.
Ainda que inteligente, como indivíduo, isoladamente, o homem só pode agir movido pelos instintos que, a seu turno, se orientam pelos sentidos, isto é, pela natureza, daí porque, o individualismo é que dá o nó pelo qual nós nos deixamos prender ao mundo natural; daí ainda porque, o homem, como indivíduo, é dependência da natureza, seja pela matéria, seja pela própria inteligência, pois que esta, sendo a marca do homem e sua única perspectiva de libertação, no indivíduo ela não passará de perspectiva, enquanto nele não se ofusque o individualismo, em favor da integração com outros indivíduos para o nascimento da razão.

*

A ditadura dos instintos sobre a inteligência, ostensiva nos recém-nascidos, nos adultos, para ser percebida, requer muito esforço. É que o adulto, com seu individualismo desenvolvido, tende a considerar a inteligência algo individual que isolada, tal como o corpo que a encerra, por conta própria, atingisse a maturidade, desvinculada de outros indivíduos.
Para se convencer de que nele, o instinto é que orienta a ação, um homem teria necessariamente que, fazendo uso da abstração, situar-se no mundo como o único ser inteligente, sem passado e sem futuro, num esforço quase impossível. Assim isolado, seria como um bebê, mais atilado, porém só de instinto; um bicho-homem, pouco mais que um chimpanzé!

Este único ser inteligente - a inteligência, porém, como simples expectativa - sem a mínima experiência, sem uma única referência, tendo a ação por imprescindível (dado que vida e ação se confundem), para agir, como se guiar, se a razão, para surgir, depende da integração de no mínimo duas individualidades?

A este indivíduo em estado de natureza, não restaria outra alternativa que a de se guiar pelos instintos, isto é, submeter-se ao domínio do mundo natural, ainda que para salvar a pele.

*

Se fosse possível, ainda que só para raciocinar, livrarmo-nos de todos os condicionamentos, de todas as referências, saberíamos que assim isolados, isto é, nós, como indivíduos, só nos restariam os instintos como guia, ou seja, saberíamos de nossa sujeição à natureza, embora soubéssemos também que, de volta ao contexto atual, o orgulho de criaturas inteligentes, nos impediria de confessar a dependência, por mais gritantes que fossem as evidências, isto porque, para mitigar nossa vergonha, nada melhor que a ilusão de que, da força, em vez de escravos, nós é que somos os senhores.
A possibilidade de libertação decorre daquilo que, de razão, antes de nós, construíram as gerações passadas. A inteligência finda com o último supiro; só a razão, porque é obra de todos, como obra de todos, transcende o indivíduo, para constituir-se numa herança que a cada um de nós cabe acrescer.

**18





Pg. Inicial

***

A seguir

 











Para que serviriam
verdade, justiça e paz,
se todos fossem amigos?!
(UM ANIMAL PROMISSOR**Cap.17)