Hgeocities.com/joseavellar/oitava_pagina.htmlgeocities.com/joseavellar/oitava_pagina.htmldelayedxoJ0 OKtext/html`0kb.HSat, 02 Aug 2003 21:12:39 GMTMozilla/4.5 (compatible; HTTrack 3.0x; Windows 98)en, * oJ Avellar Toledo

O HOMEM,UM ANIMAL PROMISSOR
Avellar Toledo


PARTE2

CAP.5 - A terra imersa em TREVAS;
CAP.6 - DA RELATIVIDADE do bem e do mal;
CAP.7 - O TRIUNFO da vontade sobre...;
CAP.8 - Impossvel DESMISTIFICAR a violência;
CAP.9 - NA CABEA antes de estar na vida;
CAP.10 - TROGLODITAS em trajes de cavalheiros.

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CAP.5
A TERRA AINDA
IMERSA
EM TREVAS
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Nenhum de nós morreria na Terra por incompatibilidades fisiológicas, apesar das diferenças de clima; da alimentação primitiva (muita carne e pouco verde); dos hábitos insólitos (dormem na horizontal, dificultando o bombeamento do sangue) e dos riscos sanitários, eis que, metade do planeta carece de saneamento básico. O câncer e outras doenças extintas entre nós, fazem ainda milhões de mortes.

A grande ameaça vem do próprio homem. É mínima a diferença entre o número de mortes naturais e o de mortes ocasionadas por ele, nas matanças coletivas e conflitos individuais. Se considerarmos que a fome e a maioria das doenças subsistem por culpa do desvio para as guerras, de astronômicas quantias que deveriam ser gastas no combate a elas, concluiremos que a natureza mata menos que os homens e que eles gastam mais para matar do que para salvar.

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Donos de uma extraordinária inteligência, eles se caracterizam por um egoísmo extremado que os priva de uma visão global dos problemas. Transformaram-se em incansáveis açambarcadores de vantagens e pródigos distribuidores de sacrifícios. Gastando perdulariamente tempo e inteligência em disputas estéreis; agindo quase sempre em função de seus interesses imediatos e para os outros transferindo os sacrifícios pelo bem comum, não é de se estranhar que, apesar de excepcionalmente dotados, culturalmente se encontrem tão abaixo de seus irmãos de outros mundos.

Utilizando metade de suas energias para subir e a outra metade para não cair, pouco fazem pela coletividade, embora digam do bem comum que ele é sua razão de viver. (Os de cima não se interessam pela racionalização da vida. Ela significaria para eles, perda de poder, coisa que, mais do que tudo, temem perder.)

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Inimigos da concorrência leal, movidos por um temor instintivo que os impele uns contra os outros, os homens buscam desesperadamente uma segurança que, por ora, acreditam seja possível apenas com a submissão alheia. A instabilidade física e psicológica se revela a cada instante. Não sabem o que fazer das mãos e para tomarem coragem, fumam, bebem ou fazem coisa pior. Esta generalizada insegurança opõe indivíduo contra indivíduo, família contra família, nações contra nações, numa guerra que só findaria com a conquista do mundo. (Porém, são milhões de conquistadores lutando por um mundo só.)

Decorrerão séculos até que a inteligência ganhe da animalidade, obrigando o homem a compreender, ainda que por necessidade, que é animal, porém, um animal singular, ao qual foi dado sonhar com a perfeição e em sua busca se realizar.

Até que chegue esse tempo, continuarão se destruindo, orgulhosos de sua tecnologia da morte, alheios à brutalidade que lhes rege a vida em sociedade. Há entre eles, almas de escol, capazes de compreenderem que não é o impossível que se lhes pede. São até numerosas, porém, cedo ou tarde, elas se rendem, fascinadas pelo brilho do ouro, atemorizadas pelo retinir de espadas, na prática, convencidas de sua impotência, por obra da minoria de ativistas, senhora do mundo.

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Se existem focos de onde emanam breves lampejos que nos fazem crer no futuro, a Terra como um todo está ainda imersa em trevas. Sendo assim, como pretender que os homens compreendam toda a estupidez da guerra, se ainda existe entre eles quem glorifique o homicida e legiões de ingênuos que aguardam contritos a salvação pelo sangue?!

Como recusar a tortura se ainda não conseguem compreender que é a humanidade inteira que desce à vergonha, quando um dos seus violenta o indefeso?!

Praticada às ocultas, a tortura vige pelo mundo afora e, apesar de que raramente sejamos dela, testemunhas, temos tanta certeza de que existe, quanto temos certeza de que os casais fazem amor, embora seja também difícil pegá-los em flagrante.

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Como pretender que vivam o sexo com dignidade, quando são ainda infensos à beleza deste canto imemorial à vida, que vem da íntima união de homem e mulher?!

Como exigir do homem que respeite a liberdade do semelhante, se os seus são ainda sonhos de dominação? Estará ele à altura de compreender que poder e liberdade são grandezas relativas, faces de uma única moeda, que só enriquece um, na medida que empobrece o outro?!

A igualitária distribuição de poder que define a Idade da Razão, na Terra é ainda um sonho, eis que, por toda parte, o poder continua em mãos de poucos.

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Grassa a fome entre os homens, endêmica em muitas regiões, não por falta de alimentos; má distribuição, simplesmente. Por vezes a criatura nascida para triunfar sobre a animalidade, degenera a tal ponto que usa a inteligência para eximir-se de obrigações a que não fogem os próprios animais. Sufoca o instinto natural de proteção à prole, pelo mau uso de seu poder de decisão. Em vida gera órfãos e de sua irresponsabilidade nasce a vergonha do mundo, esta infância abandonada, à qual os bons regateiam proteção, enquanto os maus, de graça, concedem a perdição. (Apesar da pílula e dos abortos, existem milhões de crianças abandonadas.)

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Desnorteados, não resta aos homens nem Deus como ultima esperança. Tudo conspurcaram na sua luta pelo poder. Cada um cria um Deus à sua imagem, basta que não tema o Deus verdadeiro.

Porque as religiões perderam sua força coercitiva material, os messias pululam pela Terra, preocupados em tirar proveito do sofrimento alheio. Como se Deus dependesse de seus préstimos, põem-se a ameaçar o próximo com o verbo divino. Alardeiam milagres e cobram caro, mas, não ficam à espera de que Deus os pague; cobram dos próprios homens, pois que neles, a fé em Deus não é tão firme que os leve a confiar. Ademais a recompensa que pleiteiam é de uso neste mundo mais do que no outro. Tiram dos ingênuos, tudo o que os ingênuos, nesta vida podem dar, em troca de promessas que a Deus, na outra vida, incumbem de pagar.

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Existem, ainda hoje, mortais que pairam arrogantes sobre outros mortais, exibindo em sua genealogia o sinal da divindade, como se diante do Deus impessoal, não fossem iguais príncipes e mendigos. Há na Terra mais deuses que no céu, tantos quanto permite o efêmero poder dos mortais que os sustentam. Fizeram de Deus um cúmplice na luta de uns contra os outros e onde cada potentado impôs o seu, não restou lugar para o Deus verdadeiro, o Deus de tudo e de todos.

Para compreender os homens é preciso situá-los em seu tempo, numa época que para nós já vai longe. De indivíduo a indivíduo, temos iguais inclinações e se nos escandalizamos à vista de práticas correntes na Terra, é porque, para nós, elas se tornaram aberrações, situadas além do possível - que é, como se sabe, a primeira das justificativas.

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A Justiça é para nós um fato da vida, garantido pela igualitária distribuição de forças. Na Terra, o desequilíbrio é tão grande que a força se sobrepõe à razão e é tal a fraqueza intrínseca da Justiça que ela necessita esmerar-se em ritos e pompas para que pensem que existe, ao menos externamente.

Os homens não são infensos ao progresso. Venceram já grandes distâncias. A escravidão (coisificação do homem), que já foi lei, hoje consome-se na clandestinidade, estigmatizada pela maioria, desesperançada de reabilitação.

Quem ousaria hoje, mesmo entre nós, para gozo próprio e sofrimento alheio, extirpar de uma vida, a fonte de outras vidas? E, no entanto, menos de mil anos atrás, nos haréns do Oriente, príncipes decrépitos enlanguesciam de prazer, indiferentes à solidão dos eunucos, aos quais, sua maldade tornou inacessível o corpo das mulheres, enquanto nas igrejas do Ocidente, ouvidos piedosos se deliciavam com o canto dos emasculados, pobres meninos, nos quais, o egoísmo dos grandes desfez a expectativa da multiplicação de si mesmos.

Por fim, a bem dos homens, quem ousaria negar que, mesmo na Terra, estejam praticamente extintos o canibalismo, os sacrifícios em prol dos deuses (determinados por simples mortais), práticas generalizadas há menos de cinco mil anos.

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Não sou um detrator dos homens. Vivendo entre eles, constato sua brutalidade e tento compreendê-la, na esperança de refazer o equilíbrio emocional que o choque de civilizações desfez em mim.

Andava tão perturbado, tão desatento, que me chamavam de esquisitão. Em Paris cheguei a caminhar duas milhas para alcançar uma biblioteca, porque a rua que ia direto a ela, tinha o sinal de contramão e eu me esquecera de que estava a pé.

No aeroporto de Tóquio, tive de enfrentar a multidão porque, inteiramente desligado, deixara a sala de banhos vestindo paletó e camisa; as calças e as roupas de baixo ficaram lá dentro no cabide penduradas.

O tempo não passa em vão e não há quem possa esvaziá-lo de seu conteúdo. Nada nos fará volver impunemente aos tempos pretéritos, como se o lapso que nos separa dos homens, fosse de vácuo apenas. Não está em nós invalidar o legado das gerações que nos precederam e inverter o curso da vida que tende para a dignificação do homem como a bússola tende para o Norte.

Na procura imperiosa de luz que me guiasse, empreendi a vertiginosa viagem no tempo e no espaço. Volvi ao mundo longínquo de meus antepassados, numa queda de milhões de anos. Habitei o interior das cavernas; corri templos e palácios e na intimidade de museus povoados por figuras de cera, revivi cenas de uma crueldade atroz. E foi como se vivesse entre os homens de hoje, porém, agora eu experimentava um grande alívio. Começava a confiar no animal promissor que o homem é, pois que, no passado redivivo, os meus, com os humanos se confundiam.

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CAP.6
DA RELATIVIDADE
DO BEM
E DO MAL

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Diria que a Terra é uma casa de loucos, se trinta anos atrás, de uma só vez, me houvessem contado o que hoje sei dos homens. Filho de uma das mais avançadas civilizações solenitas (habitantes do sistema solar), íntimo de outras civilizações irmãs, tão iluminadas quanto a minha, antes de deixar Mitilan, última escala para a Terra, eu jamais poderia imaginar seres inteligentes tão desorientados quanto os homens.

Dirão que exagero, mas atentem para sua vida de todos os dias. Quem não se escandalizaria, por exemplo, diante da cumplicidade permitida que incentiva os advogados, aqueles que mais sabem da vida de seus clientes, a frustrarem a punição dos culpados, através do tranquilo exercício da mentira e de outros vícios, sob as barbas do juiz?!

Quem, ignorando o fascínio que o dinheiro exerce sobre os homens, poderia aceitar que os honorários que unem o advogado a uma das partes no processo, garantir-lhe-iam imunidades para praticar atos que fora dos tribunais seriam atos criminosos, atos pelos quais ele é remunerado enquanto outros são punidos?

Como entender a dolorosa experiência sexual dos homens, paradoxalmente, ditada por ressentidos que não podendo usufruir, se vingam em proibir? Nesta questão, como em tantas outras, o caminho fácil leva à desinformação mais do que ao conhecimento, deixando na obscuridade aspectos importantes como - por exemplo - a enorme diferença de interesse pelo sexo entre homens e mulheres.

Como admitir que jornalistas, médicos ou educadores escolham estas respeitáveis profissões para que do alto de sua natural credibilidade, possam ludibriar a boa fé alheia?! Como aceitar que a fatalidade da doença leve certos profissionais a praticarem autênticas extorsões?! Num país ao sul do Rio Grande, médicos tomavam dinheiro da Previdência, submetendo a cesarianas, quem delas jamais precisou.

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Que dizer de uma sociedade inteligente que no seu desvario, acolhe e honre até o matador de homens, o degolador de crianças, o anjo mau do terror aleatório, desde que o crime se disfarce de política?! Que juízo faríamos nós de alguém que pregasse a violência como instrumento do progresso, se estamos cansados de saber que na rejeição dessa herança animal, funda-se a esperança de que os seres inteligentes como tais se entendam?! (Pior é que a perplexidade moral faz com que muitos desses paranóicos sejam tratados como heróis.)

Quem poderá sequer imaginar que à conta de uma hipotética melhoria da sociedade sejam assassinadas milhões de criaturas, a maioria de inocentes?! A reforma social feita de mortes, mesmo que, de início, ilusoriamente vantajosa, seria a solução digna do homem? Afinal vive-se uma só vida! Esses mortos não contam? Não teriam eles direito ao seu quinhão de felicidade nesse decantado mundo novo nascido de seus padecimentos?

Que razão, por mais tortuosa que seja, nos fará aceitar a lógica demoníaca de que "o justo paga pelo pecador"; "de que, na dúvida, é melhor castigar um inocente do que salvar um culpado"; a lógica perversa "do mal menor"; do "quanto pior melhor" ou de que "os fins justificam os meios"?!

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Os homens possuem notável inteligência. Creio que eles, quando recolhidos ao silêncio, percebem muitos de seus absurdos. Triste é que são pouco dados à meditação e menos ainda a seguirem os ditames da consciência. Logo voltam à vida de sempre, aliviados pela constatação de que são todos iguais ou pela crença de que não podem fazer mais que o possível, embora, não se preocupem em dilatar, no mínimo que seja, as fronteiras do possível.

"Eu é que não vou consertar o mundo", dizem com fingida humildade, embora, de olhos cerrados pelo egoísmo, nenhum deles se acredita culpado por piorar o mundo um pouquinho mais, desde que isto reverta em proveito pessoal, pequeno que seja.

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Os homens desconhecem o erro absoluto, aquele que seja erro para amigos e inimigos. Aquilo que condenam como vítimas, defendem como autores - a violência - por exemplo. Inimigos uns dos outros, segundo esta lógica não há absurdo que não seja defensável. (Fazem do erro alheio, uma justificativa para retaliações, daí porque, de vingança em vingança, acabam no inferno.)

Bem é o que me dá prazer; mal é o que me faz sofrer. Eis o bem e o mal, considerados não de uma visão estática, mas do único ponto de vista do homem, que haverá de ser sempre o ponto de vista individual.

"Desta água não beberei!". Tal juramento os homens não fazem, ainda que se trate do mais abjeto mal - a tortura - por exemplo, talvez porque, ainda que obsccuramente, saibam eles da relatividade do bem e do mal, pois o que é o bem para um, pode e é com frequência o mal para o outro, dependendo da posição onde se está, por baixo ou por cima.

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Não se tem notícias de vítimas da tortura que no poder a tenham recusado. Por ela, de certo modo, somos todos culpados. Não fora isso, ela jamais existiria com tamanha desenvoltura. Em política, à tortura só poderemos opor, o direito de acesso universal ao poder, pois que, do contrário, seu monopólio não deixará a todos que, por igual o desejam, outra alternativa que o desafio armado que, por sua vez, não deixa aos guardiães do poder ameaçado, outra saída que a de, pela brutalidade, enfrentá-lo. Em questões fundamentais como a do poder, só a ingenuidade permite crer, que se o inimigo não fala, a tortura fique de fora.

Havendo ditadura, haverá tortura. O homem vive de secreta esperança e nesse mundo instável de dominados e dominadores, a violência, que é o mal para a vítima de hoje, ser-lhe-á um bem irrecusável quando chegar a sua vez de dominar.

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Quem dotado de um pouco de lucidez não se escandalizaria diante da incoerência dos homens? São doidamente contraditórios e é como se não dessem conta disto. Há um abismo entre o que fazem e o que dizem fazer.

As palavras não guardam fidelidade ao pensamento. A fala pública, visa antes ocultar do que revelar as intenções. Soltam a língua quando o silêncio não lhes convém. Se falam em nome de muitos, perdem autenticidade e chegam a ser ridículos quando - por exemplo - se põem de um lado e de outro a vociferarem infantilidades como razão para a guerra entre eles. (O que se diz na intimidade dos gabinetes, não pode ser, em público, repetido.)

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Com frequência percebemos certo enfado em suas justificativas. Diríamos, usando uma expressão deles, que falam "para inglês ver", ou seja, não falam pra valer.

Defendem grandes absurdo, mesmo quando desconfiam da incredulidade geral; defendem apenas para que não sejam considerados praticantes de atos gratuitos. (Tentam justificar o que sabem ser injustificável, só pela necessidade de aparentar certa racionalidade.)

Têm preguiça de raciocinar. A razão parece-lhes um fardo difícil de carregar. Em caso de opção preferem a força. São instáveis: vão indo bem e, quando menos se espera, damos com eles no fundo dos abismos, arrastados pelo carisma e a falta de escrúpulos de um visionário qualquer.

Passam a vida em guerra pelo poder, embora a maioria não o perceba, talvez porque a necessidade de uns enganarem os outros, os leve a disfarça-lo sob formas insuspeitadas de quase todos.

Apesar da mútua dependência, metade do gênero humano (os homens), luta silenciosamente contra a outra metade (as mulheres), pelo domínio dos sexos. As nações erguem-se umas contra as outras, as classes digladiam entre si, até que finalmente indivíduos se opõem a outros indivíduos, numa batalha que, embora menos dramática, é de extrema crueldade, porque é a guerra do dia a dia na qual não se poupam nem laços de família.

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Máscara nenhuma resiste a essa guerra entre os indivíduos. Na intimidade do lar ou no âmago do poder, as pessoas aparecem nuas como nasceram, bastando que a proximidade nos permita contemplar-lhes a inteira nudez, embora, desde que seja possível, mesmo nesses círculos restritos, continuem elas, umas enganando as outras.

Os homens se iludem com a aparente fraternidade que une os grupos menores, sem compreenderem que é a própria animosidade entre eles que faz nascer essas uniões efêmeras. Cada um, queira ou não, pertence a um grupo, sendo obrigado a sopitar interesses menores para atender aos interesses maiores da luta contra outros grupos.

Quem entre nós, ignorando a crueldade da luta pelo poder entre os humanos, poderia sequer imaginar a extensão do sofrimento entre eles? No ntimo, sentem tal necessidade de fazer o outro sofrer que a vida sem sofrimentos perderia boa parte de seus atrativos. Isto que pode parecer uma aberração, não é mais que a necessidade de exibir forças num mundo em que o poder vale mais do que tudo.

Haverá manifestação de poder mais eloquente do que proibir o gozo e impor o sofrimento? Sofre apenas quem não tem forças para evitar o que todos, podendo, evitam. Só a incontida ânsia de dominação de uns pelos outros explica porque a humanidade necessita de sofrimento quase tanto quanto de pão. Explica também a gratuidade de certas ofensas do dia a dia que o são apenas na aparência.

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Da luta pelo poder ninguém escapa. Cada homem vira carrasco de outros homens e embora muitos se insurjam contra essa verdade, eles o fazem porque na espiral de sofrimento que é a vida na Terra, às vezes não se sabe quem é a vítima, quem é o carrasco. Com frequência, o feitiço vira contra o feiticeiro e se acaba sofrendo por fazer os outros sofrerem.

Que outro desígnio, senão dar mostras de poder, pouco importa que a gregos e troianos faça sofrer, leva a Igreja (onde ela ainda pode fazê-lo) a proibir o sexo, a menos que seja feito com sua licença?

Como explicar - por exemplo - a imposição do matrimônio indissolúvel a duas criaturas que pouco ou nada sabem uma da outra naquilo que lhes será o pão de cada dia, num mundo que é um campo minado em que os casais se formam no escuro, guiados por toda sorte de interesses, em vez de se unirem pelas suas mais profundas afinidades? Como exigir que homens e mulheres se prendam por um pacto recíproco de fidelidade, quando a natureza dotou o macho de um interesse permanente pela união carnal, interesse, que na mulher, é menor e sazonal?!

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É que a Igreja, para a qual restou, na divisão dos poderes, o sexo por quinhão, perderia, como vem perdendo, toda a importância, se o controle da sexualidade lhe escapasse das mãos, pouco importa que esse controle em nossos dias, dependa mais da força do Estado que da religiosidade dos cidadãos. Sem se dar por achada, a Igreja, que hoje em outros campos posa de rebelde, aqui, onde se sofrimentos existem, dela é a culpa maior, aqui ela mantém-se conservadora. Insistirá até o fim, não importa que a chamem de retrógrada.

Sintomática é sua posição ante o aborto, comparada com sua indiferena diante das matanças, pelas quais foi, muitas vezes, responsável. As grandes igrejas ao combaterem o aborto, fundam-se na defesa da vida, esquecidas de que nenhuma delas triunfou pelas idéias; todas cresceram pelas armas, pela matança dos infiéis. Mesmo hoje, quando, pela pressão das circunstâncias, elas tiveram de evoluir, o observador atento distingue bem entre o fervor com que defendem a vida antes do parto e o conformismo com que aceitam a morte de milhões de jovens sacrificados nas guerras e guerrilhas que pipocam mundo afora, muitas delas abençoadas pelos que se intitulam porta-vozes de Deus. (O inferno estaria lotado se para lá fossem mandados todos os cristos que transgrediram a lei maior - não matarás!)

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O que é a frigidez feminina, senão em boa parte o resultado de uma obscura reação da mulher contra a dominação do homem? A si mesmas castigando, muitas delas, inconscientemente, frustram o desejo do homem de lhes produzir o que seria o orgasmo feminino, para - fazendo-o sofrer em sua vaidade - mostrar-lhe seu secreto poder. Tal reação mais difundida entre as casadas, advém de que elas sintam necessidade de reagir duplamente: contra o homem, qualquer homem, e, particularmente, contra o marido, esse homem que o natural sectarismo da sociedade patriarcal, acentuadamente religiosa, através da instituição do matrimônio, consagra como cabeça do casal, seu dominador oficial, contra quem, embora aparentemente resignada, a mulher não deixa de opor secreta resistência. (Dai a apatia das esposas e a vitalidade das amantes.)

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O insuficiente conhecimento dos mecanismos da conduta humana pela maioria inculta e o interesse em esconder a verdade por conveniência da minoria que manda, perpetuam mentiras que deveriam estar mortas há muito tempo. Talvez para evitar dissabores, os homens se preocupam demais com a natureza de Deus, sem se preocuparem com as íntimas razões de seu comportamento em relação aos outros. Por orgulho ou comodismo, cuidam de metafísica, mais que de seu psiquismo. São capazes de revelar os mais secretos desígnios de Deus, embora até bem pouco tempo, não conseguissem explicar porque se envergonham tanto ao tratarem de sua sexualidade. (Sobre ela falam constrangidamente, entre rizinhos, ou avacalham o assunto.)

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Há milhares de anos o homem procura decifrar o que é de si indecifrável e só recentemente voltou os olhos para os segredos de sua própria alma. Sua audácia não conhece limites. Os mais ousados não se detém sequer diante do grande mistério, transformado em eterno desafio para a alma humana, que, infundindo vida ao que não a tem, procura encontrar em Deus, a explicação para sua presença no mundo.

Da ignorância alheia, fazem uma fonte inesgotável de poder e glória, daí a importância de Babel na luta pelo poder seja onde for, pois o êxito, no geral, depende do acesso à cultura; daí porque, ao povo, em qualquer parte, já de início, melhor será fechar as portas.

Uma das espertezas mais rendosas consiste em se apossar com fins escusos de entidades às quais a maioria, por razões profundas, cerca do mais puro respeito. Acobertados por tão sublime disfarce, outra preocupação não têm esses falsários, que a de perseverarem na exploração da boa fé dos incautos, daí porque investem contra quem lhes tira a máscara com tal fúria que nos faz desconfiar de interesses feridos, embora por não respeitarem nem o que é sublime, possam tais sacripantas se darem por seráficos guardiães até do que deveria ser imune à corrupção.

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Na pia batismal, a mentira dá o nome da verdade e com ele sai pelo mundo. Porém, nem tudo que se diz é, porque a verdade é mais de ser do que de dizer. Se as palavras fossem fiéis à realidade, muita gente existe que se chamaria Judas.

Mesmo aqueles que prosperaram condenando a exploração da boa fé alheia, através das palavras, logo que se instalam no poder, para nele permanecerem, de pronto, dos escrúpulos se livraram, retomando em proveito próprio, a garimpagem deste rico filão. A palavra é um indicativo da realidade, mas não é a realidade. Quanto mais repetida menos indicativa ela se torna, perdendo relação com a vida, passando a indicar a si mesma, tão somente.

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A corrupção generalizada pôs o mundo de cabeça para baixo e diante da inversão de todos os valores, até o que era sublime esvaziou-se de seu fino conteúdo. Deus, a Pátria, a Família, tudo que não seja palpável, principalmente, quando, superiormente respeitável, acabou transformando-se em meras abstrações, por detrás das quais, gente de carne e osso defende interesses que, à luz do dia, seriam indefensáveis.

A moral tornou-se a arte de impor freios aos outros e nos dar rédeas soltas. "Façam o que eu digo, mas não façam o que eu faço", é o que se depreende do comportamento geral. Os fortes procedem com os fracos como outrora os adultos procediam com as crianças, impondo-lhes regras de cujo cumprimento, eles, pelo seu poder, se acham desobrigados, até por falta de quem os obrigue a tanto.

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Da lealdade fizeram um caminho de sentido único: só funciona do pequeno para o grande. Com o desembaraço que só a falta de escrúpulos permite, muitos, embora destituídos dos mais comezinhos sentimentos, exaltam a fraternidade entre os homens, não obstante saibam que a solidariedade só existe em meio ao perigo, por conveniência, quando, todos - frente a uma comum ameaça, a ela necessitam opor comum reação. (A solidariedade dura o quanto duram as tempestades. Tempo bom cada um cuida de si, na melhor das hipóteses.)

Se ao menos pudéssemos vislumbrar o que nos vai pela alma, saberíamos que não se morre pela causa alheia, por mais nobre que seja, a não ser que nos faltem luzes para perceber que o interesse de outros é que nos empurra para o matadouro, ao qual só chegamos por culpa de nossa covardia; por temor reverencial a esses mitos de que homens todo poderosos - os arcanjos da morte - são palpitantes encarnações. Saberíamos também que ninguém deve nada a ninguém, pois que mesmo no mais puro martírio, mais do que sacrifício, existe um fundo de realização pessoal. (O autêntico mártir se sente recompensado pela sina de morrer gloriosamente.)

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Para subirem, ambiciosos que estão a caminho, desfraldam a bandeira igualitária, embora saibam que não há quem deseje a igualdade com os de baixo e que o anseio de todos pela igualdade com os de cima, faz do igualitarismo, algo tão insustentável quanto uma pirâmide invertida.

Sabem os espertos que é por desespero; para fugir à opressiva igualdade da planície que os homens se arriscam pelos traiçoeiros caminhos da montanha, esquecidos de que, a montanha é, por natureza, a morada de poucos, dai porque, ela, com vigor, se defende dos muitos que a pretendem.

A bandeira da igualdade não aproveita aos ingênuos que a seguem de longe. Ela serve para fazer superiormente desiguais, os poucos que a têm nas mãos.

Plantada em solo propício, a impostura criou raízes tão fundas entre os homens que erradicá-la de uma só vez seria quase tão perigoso quanto mantê-la intocada: ela nos ajuda a levar a vida, dando aos oprimidos a ilusão que lhes suaviza o jugo.

Por enquanto, sem ela o mundo conheceria o caos, negação da inteligência a que os homens não podem renunciar.

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CAP.7
O TRIUNFO DA
VONTADE SOBRE AS
LIMITAÇÕES DA MATÉRIA
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Hoje, conhecendo bem a vida na Terra (onde a integridade física das pessoas continua diariamente ameaçada) espanta-me como pude sobreviver todos esses anos, eu - um zênio - criatura a quem, mais que outra coisa, repugna o caráter retrógrado de toda violência, talvez porque ela não seja para nós, mais que resquícios de taras ancestrais, das quais, alguns povos não conseguiram ainda se livrar. Problema de saúde mental como outro qualquer; psicose relacionada entre as doenças restritivas da vida social, entre nós, a violência perdeu seus atrativos, desmerecendo quem a usa e, tratada como doença, sua ocorrência constitui fato excepcional.

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Na Terra, porém, sentindo-me inferiorizado; incapaz de vencer os homens nesse combate em que eles são mestres, acreditei-me, de início, perdido e, entre prestigiar a filosofia de vida local - matando - ou ficar em paz comigo mesmo - recusando matar - o orgulho me pôs do lado de c, escolha que me deixou confuso e inseguro.

Para nós a coragem é o elixir da vida e a morte, sendo a grande ameaça contra a firmeza do caráter, é que põe à prova o lutador. O herói é um trágico que faz do desafio à morte, uma serena afirmação da vontade sobre a força do destino. A perspectiva de sucumbir (recusando matar) ou viver de mortes e ameaças para provar coragem me deixava humilhado. Teria de passar a vida inteira fugindo, fugindo.

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Corajoso não é aquele que mata para não morrer ou seja, aquele que, matando, busca eliminar o perigo. Este é jogador pela metade, jamais arrisca muito e, confiando meio a meio na sorte, o que faz é fugir tanto quanto possível da morte, cuidando de dá-la primeiro a seu rival. A coragem está em não fugir nunca ao desafio da imponderável inimiga, pois que, ao aceitar sua provocação, investindo de olhos fechados contra nosso igual - mais não fazemos que aviltar o combate.

Coragem significa consciente aceitao dos riscos. Valente é aquele que recusando matar, ao outro concede implícita garantia de vida, com o que assume a plenitude dos riscos e, ignorando seu igual, arrasta para o combate a desconhecida de todos, a onipresente ameaça, da qual ele e o outro não são mais que obscuros joguetes.

A aceitação de um combate desigual do indivíduo contra algo que paira acima do mundo; a prevalência de uma vontade individual sobre os desígnios do absoluto - isso tudo que requer esforço verdadeiramente heróico - é que faz a coragem, provada na determinação de se valer da única chance de vencer a morte, pela recusa em compactuar com ela, ainda que à custa de lhe ceder a vida. (Por isso bem poucos são os heróis.)

A não ser ainda para os homens, o herói é aquele que, pequenino, desnorteado pelo mistério da morte, mesmo assim ergue contra ela a face indômita e apesar de tê-la como certeza, embora amante da vida, decide morrer para não se submeter, transcendendo pelo triunfo da vontade, as limitações da matéria, atitude que os homens, por enquanto, não conseguem entender, eles que ainda ignoram quem seja o verdadeiro inimigo.

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No dia a dia a matéria afirma sua prioridade. É possível esquecer a alma sem que se perca de todo a esperança, mas é impossível esquecer o corpo no qual se aloja a alma. Foi sublime em pensamento, até que a morte me pôs à prova e eu fracassei. Não foi porém uma derrota sem luta. Algo dentro de mim prenunciava mudanças. Vivia febril, a cabeça em desordem. "Não há entre os homens lugar para teu pacifismo; ficarias à mercê dos assassinos.", eu me advertia, reagindo como qualquer terráqueo. "De que te valerá o orgulho, o mundo inteiro, se com a morte, tudo o mais vai contigo?!"

Para sobreviver, ainda que negando-me por dentro, percorri toda a escala da violência entre os homens, como se fosse um deles, embora cheio de náuseas. Não sou adepto da força bruta, mas nunca permiti que me tomassem por inofensivo - falta imperdoável entre os homens - dai porque, hoje, por fora, ninguém me distingue dos demais, goste ou não goste desta vida selvagem. (Aproximei-me tanto dos terráqueos, que se revelasse minhas origens ninguém acreditaria.)

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Receio que o passar do tempo faça de mim um homem como outro qualquer e que, à custa de adaptar-me à vida na Terra, eu perca a sensibilidade original de que tanto me orgulhava. Agora compreendo a angústia dos humanos e começo também a desesperançar-me.
Habitante circunstancial deste planeta, já não consigo imaginar uma sociedade que não tenha na violência a garantia última da ordem, embora saiba que em outros mundos, seja possível, isto que na Terra consideram um sonho distante - viver em paz e viver bem.

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Paradoxalmente, tão grandes mudanças, suscitaram em mim novas esperanças no futuro da humanidade. Eu, que em outros planetas desfrutei de uma vida sem violências; eu, a quem a experiência mostrou a viabilidade de um mundo dirigido pela razão, para sobreviver, acocorei-me diante da força e o fiz com uma presteza que escandalizaria os próprios homens, soubessem eles do meu passado cheio de luz.

Se foi assim comigo, será assim com os demais. Quase todos, pelos ventos se deixam levar e chego a acreditar que esses milhões a que chamamos de maioria silenciosa, seriam bem mais cordatos, outra fosse aqui a diretriz da vida, pois que, mesmo na Terra, este covil de feras que mutuamente se devoram, muitos sãos os que vivem em paz e não se queixam. (A maioria nunca matou e não se sente frustrada.)

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Quantos eu vi na guerra, incitados por sádica emulação, cuspindo fogo como demônios, que hoje, vendo-os mansos como naturalmente são, só me ocorre pensar que matavam com tanto furor, apenas porque, tendo mesmo de matar, não gostariam que outros o fizessem melhor. Por falta de autenticidade muitos matam e morrem pelo medo de serem tidos por medrosos. Tratando-se de matanças dirigidas - na guerra, por exemplo - a maioria mata porque a isto é compelida pelos chefes, seja por ameaças de morte, seja pela exploração do temor referencial de dizer não ao que, apresentando-se como algo grandioso, pela própria grandiosidade infunde terror, pairando acima da humana compreensão. Se o objetivo é matar indiscriminadamente, dia a dia, não pode haver alternativa, ao menos para a maioria, pois que se houvesse, logo, logo, ela se cansaria.

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Agora mesmo, à mesa, com este companheiro de tantas matanças, hoje, um pacato cidadão (seu feitio natural), relembro atroz cena de guerra: o amigo, alma gentil, bondade sem exibição, fala de quase tudo, diz amenidades. Eu - com o queixo apoiado nas mãos - nem sei o que diz. Observo-o com simpatia, mas estou em outro tempo. Absorto, recordo incrédulo, alguns anos atrás, eu e ele neste mesmo salão. Quem diria, um homem desses, a paz em pessoa, garantido por mim, só de uma vez, degolou três. Eram três soldadinhos que dormiam e ele os matou por medo de que além deles houvessem mais.

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No entanto, a vida continua. "Após a tempestade vem a bonança."

O sol brilha no céu outra vez e quem restou são e salvo (talvez pela sorte), põe-se de novo a sorrir. Que fazer? É deixar o barco seguir, sem perguntar. E menos ainda, pretender, o curso da vida inverter. Que bom seria se nós nos deixássemos levar mansamente, porém, ao animal inteligente não é dado viver assim, passivamente, embora no princípio (ao por em movimento o mecanismo do pensamento), nossa participação seja quase nada, porque se o cérebro, nos seus impulsos iniciais nos obedecesse, tal como nos obedecem os pés e as mãos, quem sabe pudssemos então, estancar a fonte desta inata curiosidade, que lançando o homem na incessante busca da verdade, faz dele um eterno sofredor. (Se ao menos pudéssemos esquecer, talvez, viéssemos a saber o que é a felicidade, embora já não fôssemos homens.)

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Sabem os humanos que é da violência que vem todo o mal e tanto sabem, que embora usando-a dia e noite, jamais a defendem ostensivamente, até porque, humanamente, não haveria como fazê-lo, pois que seria impossível justificar segundo critérios racionais (os únicos disponíveis), aquilo que é anterior à razão, algo ao qual estamos ainda umbilicalmente presos.

O máximo que podemos fazer pela violência, é a defesa, não dela, mas a de usá-la como instrumento de um fim benfazejo. Contudo, nem esta oblíqua defesa, a ela consegue defender. Aí o propósito é outro, pois o que se pretende não é a justificação da violência nem mesmo como instrumento, e sim, a defesa de quem a usa, da condenação de usá-la.

Sabem os homens que a violência é indefensável. Tanto sabem que, mesmo na Terra a lei expressamente a condena e como instrumento de justiça particular ela é proibida, por grandes que sejam as razões e se, apesar de tudo, seu uso entre os homens é mais que frequente, eles a usam, certos de que estão errados, única e exclusivamente apoiados, na força de sustentação dela própria.

Sabem os homens que a violência é retrograda e nem é preciso muito esforço para se chegar a tal conclusão; basta comparar o presente com o passado para ver que tudo que de belo existe; tudo o que seja digno do homem; isto que, apesar dos pesares, constitui uma respeitável civilização, não é mais que terreno da violência, conquistado pela razão.

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Se arriscando um olhar pelo tempo, este século nos parece o século da força, por excelência, ainda assim não cabe desesperar, pois que a entusiástica adesão a ela em nossos dias, resulta de um doloroso equívoco, cujo fim, a seu tempo virá: a crença no reino da Justiça, construído pela violência.

Acreditando que é senhor de seus atos, o homem se rende ao fascínio da força, seja para vingar injustiças passadas ou prevenir futuras injustiças, porém, ao adentrar o círculo vicioso da violência, onde ela é que dita as leis, acaba deixando de lado justiças e injustiças, descobrindo tarde demais que a força, quando excepcionalmente faz justiça, ela o faz por acaso, pois que ela é, por natureza, a fonte das iniquidades, até porque seria ter o mundo de cabeça para baixo, esperar que o forte, pelo fraco se deixasse injustiçar, única situação que faria da violência, o instrumento da Justiça. Com exceção dos brutos, dos loucos e interesseiros, os homens em sã consciência, condenam a violência, sem que isso os impeça de usá-la todos os dias. (Embora a considerem um mal, de suas relações com ela ignoram o principal: sua dependência dela.)

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Na luta pela sobrevivência, ao tempo em que aderia à violência, fazia crescer em mim, propositadamente, este orgulho de criatura superior e graças à autoconfiança que disto me veio, pude enfrentar os homens, de cima: eu, como domador, eles, como feras iguais a todas as outras. De início, apesar de artifício, o truque me ajudou e quando seu efeito cessou, eu já estava ambientado.

Queria continuar domador, mas a hora da verdade havia chegado: as construções que arbitrariamente levantamos dentro de nós, quando opostas à realidade, acabam cedendo às evidências exteriores. O que eu pudesse ter sido em outros mundos, aqui não era. Em consequência, meu orgulho esmoreceu e hoje é como fera que eu combato os meus combates.

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Num certo momento percebi alarmado, mudanças também na estrutura mental, como se à minha revelia, corpo e espírito mutuamente se ajustassem, ajustando-se ambos à vida na Terra. Limites até então precisos entre razão e violência, parecem-me agora indecisos e cada vez mais eu, tal e qual os homens, me inclino a julgar os males da violência, segundo critérios da razão, o que seria possível, se entre as duas houvesse dependência; se a última, sobre a primeira, tivesse alguma ascendência.

A cada dia me deixo prender mais e mais a uma potência terrível, que, indiferente ao bem e ao mal, me leva a perpetrar agressões, das quais em seguida me arrependo. Um olhar de mofa, num instante me rouba a serenidade e em dias de fossa, assalta-me uma vontade louca de brigar, quebrar tudo, às cegas, de matar todos, sem deixar de fora ninguém e quanto mais me sinto humilhado e ressentido e quanto mais me convenço de que desta mágoa, ao mesmo tempo funda e vaga, sou o principal culpado, então eu sinto necessidade de me desatar em fúria assassina; de me converter em justiceiro universal, vingador das multidões (e de mim, principalmente) e me vejo de espada na mão - anjo degolador de milhões - embora a covardia moral me impeça de agir por conta própria e acabe frustrando em mim esta vocação de grande criminoso da História, a menos que me cubra com o manto da reforma social.

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Vivo to condicionado pela força que a simples ojeriza pessoal, me tira do sério e foram muitas as vezes em que me vi envolvido na mais feia das violências a agressão física por motivos fúteis.

"Perdeste a cabeça", diziam-me os homens ajuizados e embora dê no mesmo, a mim me parece que nestas ocasiões, perdi foi a independência e me entreguei por inteiro aos desígnios da natureza, necessitada de em mim realizar a força, produzindo a violência. Então percebi a fragilidade de todas essas críticas ao uso da força com base na razão e deste modo cheguei a compreender porque os homens, embora condenem a violência, dela façam uso com tanta frequência.

Para a força, tanto faz que a condenem ou não. Importante é que os homens a obedeçam e eles o fazem com presteza, pois que sendo ainda joguetes dela, precisam atendê-la, embora, como artífices da razão, sejam obrigados a condená-la, o que não gera incompatibilidades, porque, neste caso é possível condenar e usar e é o que fazem agora e continuarão a fazer, enquanto não se libertarem.

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Se algo existe que eu inveje nos homens, é este alheamento fatalista diante dos problemas, porque eu, com frequência, me desespero. Às vezes surpreendo-me a falar de cima, na voz da razão: "estúpidos, cessai toda violência" para em seguida lembrar-me de que tudo o que os homens sabem dos males da violência, só puderam saber pela razão e se bem venham progredindo nesta direção, falta-lhes consciência de que suas relações com a força, são ainda de dependência. (Só quando isto compreenderem é que poderão, de pouco a pouco, se libertarem.)

Como resposta a um desafio intelectual, insisto em minhas prédicas de gente bem intencionada: "Libertai-vos do círculo da violência!", para constatar, angustiado, que os homens, mesmo que o quisessem, não teriam ainda como fazê-lo. (Falta-lhes romper os grilhões que os prendem à natureza.)

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CAP.8
DA IMPOSSIBILIDADE
ATUAL DE DESMISTIFICAR
DE UMA VEZ POR TODAS
A VIOLÊNCIA
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O egoísmo nasce conosco e conosco segue até o fim. Nos primeiros anos de vida ele se exibe sem disfarces. À medida que nos preparamos para a luta diária pelo poder, seja no ambiente familiar, entre vizinhos ou nas grandes batalhas sociais, vamos, na maioria das vezes, inconscientemente, aprendendo a disfarçá-lo, a tal ponto que a maioria se escandaliza só em admitir a existência de um instinto tão natural. Convém negá-lo para iludir o outro, para enfraquecer-lhe a vigilância, e mais facilmente dominá-lo. Contra esse instinto, necessário à sobrevivência de cada um, a melhor defesa é ficar alerta. Agindo em função da natureza, de dentro da própria cidadela do homem, o egoísmo responde pela criação dos problemas, que o são apenas para os homens, porque, para a natureza, eles não são mais que incentivos à movimentação da força - instrumento principal de sua missão transformadora; incentivos aos quais o homem, sem o saber, é sensível, pois que sendo, ele próprio, por seu corpo, constituído de matéria, como toda matéria, carece de transformações.

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Mas o que é um problema, senão um fato natural questionado por essa realidade elaborada pelo homem que é a razão? Para a natureza, problemas e soluções não são mais que ações e reações, através das quais, ela movimenta o processo de transformação das coisas materiais. Aquilo que é para os homens um problema, para a natureza não é mais que rotina; acontecimento globalmente relevante, mas que isolado, é apenas um fato, nem mais, nem menos importante.

A própria morte, vista do ângulo dos homens, não obstante esperada, constitui problema crucial. Porém, vista do ângulo da natureza, talvez fosse problema se não viesse, mas, vindo, não passa de fato banal. Se a natureza se condoesse de humanos problemas, o que seria deste mundo. Se quem vive não morresse, haveria lugar para tanta gente?

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Os problemas existem porque os homens, por serem criaturas inteligentes, não se conformam com a lei natural, a lei do mais forte, a menos que ela individualmente os favoreça. Desta inconformação que é a marca do homem, surge a necessidade de uma alternativa à lei da força, daí porque, refreando seu egoísmo, sejam os homens constrangidos a - integrando, umas com as outras, suas inteligências - chegarem à razão, a alternattiva da força. E, porque surgiu esta alternativa, surgiu também o problema. Se ela não existisse, a lei da selva prevaleceria, o mais forte ganharia e era tudo natural.

Os problemas só se configuram à luz da razão, pois, se cada um tivesse das coisas, uma peculiar opinião ou não tivesse nenhuma, então não haveria consenso, nem razão e, por consequência, não haveria problemas, dado que eles só existem em função dela, como naturalidades transfiguradas por ela.

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Como age esse agente infatigável (o egoísmo), ponta de lança da natureza? Age com eficiência notável e nem carece de uma diretriz expressa para suscitar problemas, pois que eles vêm dele, naturalmente, como ervas daninhas das quais não é preciso cuidar.

Porque existe o fraco e o forte, da base ao topo da pirâmide social, também existem, como consequência, grandes e pequenos problemas, os quais perduram na obediência à diretriz imposta pela natureza, segundo a qual, aquilo que ao forte desagrada, ele, pelas próprias forças, repele, enquanto o fraco, não tendo forças para repelir é obrigado a engolir.

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O egoísmo é em si mesmo a fonte dos problemas, pela simples razão de que ninguém jamais se conformará em sacrificar o seu, para satisfazer o egoísmo de outro. É também, pelas mesmas razões, multiplicador e mantenedor dos problemas, pois que não havendo quem sacrifique o seu, em benefício do egoísmo alheio, a inevitável satisfação de um egoísmo, só ocorre pela inibição do egoísmo de outro, só possível pela força ou intimidação. Entre egoísmo e violência existe vínculo arraigado, eis porque, se repelem egoísmo e razão, dado que a razão, se de todos exige renúncias, de nenhum exige submissão.

Por que existe o fraco? Por que existe o forte? Coisas do mistério inicial.

Alimentando nosso instinto dominador, o egoísmo suscita entre nós, a luta pelo poder, o primeiro e o mais difícil problema que temos para resolver, pois que é dele que nascem todos os outros.

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Dispondo os homens como inimigos, deles fazendo, vencedores e vencidos, dominados e dominadores, o egoísmo pode finalmente descansar, pois que, a partir daí não será por falta de problemas que o irão despertar.

Árdua é a batalha contra a natureza, principalmente, porque o principal instrumento dessa luta - a inteligência - habitando um corpo que é tamb&eacutte;m natureza, de sua influência, não consegue por inteiro escapar. Luta desigual porque a razão, exigindo renúncia, não seduz a alma humana, ao passo que a violência, servindo ao egoísmo, constitui-se por isso mesmo, numa tentação difícil de evitar. (A razão não nos concede mais que o nosso quinhão, enquanto a violência, porque se sobrepõe a direitos e deveres, a cada um acena com o dele e com o do outro.)

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Mundo à parte, apesar disso, a inteligência não escapa, por inteiro, à compulsão natural do corpo (matéria) que a encerra, daí o apego à violência até em criaturas de cérebro excepcional; daí porque é uma fatalidade a prevalência do egoísmo sobre a razão, principalmente entre homens de ação, afinal os condutores do mundo.

Mesmo hoje, a força é que determina o comportamento dos homens, estimulando os fortes, inibindo os fracos e tanto nos habituamos com ela que nem a percebemos. A maioria ignora a violência na forma de silenciosa ameaça, daí porque não pode entender sua enorme eficácia como invisível advertência de que se ela falhar como instrumento de intimidação, aquilo que era ameaça, mudará em violência efetiva.

Porque ela é, na maioria das vezes, apenas esta silenciosa expectativa, embora pronta a se efetivar, ficamos na ilusão de que não somos assim tão dependentes da força, ilusão que a vida desmente a cada passo, mostrando que onde quer que homens lidem com homens, eles só não chegam à destruição física, porque diante da ameaça invisível, mas presente, de uma violência latente que logo poderá converter-se em violência efetiva, a maioria faz que não vê as provocações; o fraco se submete e a violência passa despercebida.

Se enfrentássemos os desafios que nos chegam de todas as partes, a todo instante, não haveria força bastante para manter a ordem. Se todos pudessem exigir seus direitos sem temer violências, na certa, o fariam e então, os homens teriam fatalmente de encontrar uma alternativa para a força que, aliás, já existe (a razão), só que os mais fortes tudo fazem para sabotá-la. A perspectiva de supressão (mesmo da pequena violência) é que, pelos seus inevitáveis reflexos, assusta a minoria de poderosos que entre os homens vive às custas da maioria de deserdados.

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Numa sociedade em que alguns poucos detêm a quase totalidade do poder, disto resultando que só eles podem fazer e desfazer, a racionalização da vida defronta-se com enormes obstáculos, isto porque a minoria de privilegiados, comodista como todos nós, principalmente, porque o comodismo, neste caso a favorece, prefere a inércia a um esforço militante em prol da solução de grandes e pequenos problemas, eternizando as injustiças do dia a dia, das quais os grandes, pelo seu poder, escapam, mas que fazem da vida do homem comum, um fardo difícil de carregar.

Tais injustiças, perfeitamente sanáveis, persistem, devido à necessidade que a minoria tem de preservar o princípio da essencialidade do uso da força como instrumento de manutenção da ordem, princípio imprescindível às oligarquias, pois que só pela força podem elas manterem suas privilegiadas posições.

A derrocada do princípio básico da exploração do homem pelo homem, abriria as portas à razão, abertura com a qual os de cima jamais poderiam concordar, até porque a razão a ninguém concede privilégios de posição. (Sob o aspecto da distribuição do poder, a Terra não conhece ainda sociedades que não sejam oligarcas.)

A não ser naqueles casos em que a injustiça tão escandalosa é que lhes ameaça as bases, tais entidades, intrinsecamente impossibilitadas de fazer justiça, têm como preocupação maior salvar as aparências. Naquelas áreas em que o "statu quo" não chega a ser diretamente ameaçado (pelo menos, a juízo de seus mantenedores), o poder público, através dos tribunais, confessa implicitamente sua impotência, muito próxima da conivência, ao sacramentar acordos para cuja realização, mais que a vontade das partes, importa a premência do tempo para quem não possui reservas e a descrença geral numa pronta reparação.

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"A justiça tarda, mas não falta!" dizem os homens. Pífio consolo! Não só porque nesta conta não entra a justiça que falhou, como também porque o tempo vivido na injustiça passou e ninguém poderá trazê-lo de volta. Muitos se deixam injustiçar, acreditando que "mais vale um bom acordo que uma tardia sentença" e graças ao pessimismo emanado desta verdade, a maioria das lesões aos direitos do homem comum morre com ele.

Lamentavelmente este receio de recorrer aos tribunais; de, até como testemunha, frequentá-los, longe de esvaziá-los, enche-os cada vez mais, isto porque, para quem pode esperar, é vantagem no direito do outro avançar, mesmo sabendo-se errado, pois, quando a sentença chegar, o réu, mesmo perdendo a causa, teve, como prêmio de sua má fé, tempo de sobra para usufruir do que não era seu. Escaldado o homem do povo foge de autoridades, mesmo que seja para colaborar, pois sabe que de sua cooperação, se não lhe sobra coisa pior, sobra, no mínimo, amolação.

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Lei ineficaz é pior que lei nenhuma, porque, mesmo incapacitada de garantir quem nela confia, desta prerrogativa ela não abre mão. Não faz, nem deixa fazer, resultando daí que o homem de bem, torna-se presa fácil, constituindo-se (porque não quer adiantar-se à lei) no alvo dos malfeitores.

Nos acordos entre patrões e empregados, quem faz concessões é o empregado. Se ele tem direito a mil, patrão algum lhe dará mil e cem. Até aí, sendo natural que cada um puxe para si, tudo bem. Estranho é que o acordo, no caso, se faça por menos de mil, porque, acima disto, nenhum acordo haveria, eis que o patrão (porque pode esperar), prefere aguardar a sentença que, na pior das hipóteses, não lhe exigirá mais do que mil. Lamentável é que, no caso de gente humilde, os juizes, pretextando excesso de processos, façam de tais acordos, uma rotina, esquecidos de que eles são feitos à custa dos empregados. Não se sabe de patrão ou de juiz que, mesmo por excentricidade, tenha concedido ao empregado mais do que a lei previa.

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Diante da ineficácia da lei penal, civil, tributária (melhor dizendo, da lei em geral), o homem de bem sente-se logrado; vítima de concorrência desleal, feita por ele mesmo, pois que, se muitos prosperam contra a lei, quem, espontaneamente a cumpre, por conta própria se põe em desvantagem. (Eis um dos grandes incentivos para o descumprimento da lei.)

A não ser nos casos de muita repercussão, casos que por isso mesmo rendem prestígio, e, através dele, dinheiro, um processo não reflete nem a décima parte do que aconteceu. Dai porque o dia a dia da Justiça é falho. Os juizes nada podem contra mentiras acintosas das partes e das testemunhas, ficando com a responsabilidade de acertarem sozinhos, graças exclusivamente a seu bom senso.

Existe alarmante expectativa de impunidade, a qual, concorrendo para aumentar os conflitos, termina fazendo que muitos, mesmo contrariados, recorram à Justiça, congestionando-a ainda mais.

Forma-se então um círculo vicioso, difícil de romper: a pressa no exame das questões, produz falhas nas decisões, aumentando, em consequência, as chances de impunidade, situação que, encorajando os inescrupulosos, acaba fazendo com que outras vítimas procurem os tribunais, piorando a Justiça ainda mais.

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Será assim enquanto pudermos culpar os códigos antiquados, sem nos preocuparmos em atualizá-los; enquanto continuarmos perdidos neste emaranhado de leis e regulamentos, desinteressados de racionalizá-los; enquanto não nos convencermos de que o rigorismo formal aplicado sobre leis defeituosas, corrompe os próprios fundamentos da Justiça, daí que, se não podemos abandoná-lo, porque isto deixaria a lei ao arbítrio de seus executores, então, a solução será modificá-la, a fim de a tornar exequível.

A insensibilidade diante de um problema tão premente como o da racionalização dos códigos, só pode ser entendida como fruto da resistência latente contra a melhoria na distribuição de justiça a todos os cidadãos por uma diversificada gama de profissionais que, de um jeito ou de outro, se beneficiam com seu emperramento.

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A Justiça continuará existindo, pois é necessário que ao menos pensem que ela existe. Continuará funcionando mal enquanto não reconhecermos - por exemplo - que o acúmulo de trabalho (uma das mais velhas desculpas para sua lentidão) não é causa, mas consequência, pois que, se o efeito da sentença, fosse, num curto prazo, igual ou maior que a ofensa, os tribunais estariam vazios.

"Dividir para reinar" é o que fazem as sociedades controladas por minorias (como são ainda as da Terra, sem exceção), pois, se entre os de baixo houvesse união, eles nunca seriam dominados. A realização da justiça mesmo entre os pequenos, ao contrário do que se diz, não agrada aos de cima, pois que, cessadas as iniquidades na planície, a montanha, por extensão, estaria em perigo.

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O interesse da minoria, consciente ou não, é fazer que os de baixo crucifiquem uns aos outros, para que, de rabo preso, não se unam contra ela. Isto explica a olímpica indiferença dos grandes, frente a toda sorte de abusos praticados cá em baixo, uns contra os outros, inclusive, por gente que para ficar quietinha, dos de cima, bastaria um beliscão. Tais abusos, embora de per si, nenhuma vantagem tragam para os grandes, tendem a se eternizarem, porque nas sociedades rigidamente dominadas por minorias, não é aconselhável que elas se preocupem sinceramente com justiças e injustiças, pois, isto acabaria desmoralizando o princípio de que só pela força é possível manter a ordem, desmoralização impensável numa sociedade disciplinada por ela, como é ainda a sociedade dos homens. Suportamos, na maioria dos casos, inconscientemente, a injustiça vinda de cima, repassando-a para os de baixo.

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À medida que a racionalização da vida nos degraus inferiores, for impedindo que injusticemos os de baixo, também nós nos sentiremos fortalecidos e justificados para exigir que cessem contra nós as injustiças dos de cima. Só a vital preocupação de preservar o princípio da essencialidade do uso da força (que os homens sintomaticamente confundem com autoridade), explica - por exemplo - que arruaceiros vulgares se salvem, desmoralizando a própria sociedade em cujo nome atuam, mobilizando a seu favor, a inconsciente cumplicidade dos sucessivos escalões do poder, cumplicidade da qual o corporativismo é apenas uma faceta.

No fundo os de cima temem que a racionalização das relações entre os inferiores, termine por estender-se aos demais, pondo em risco seus privilégios, ameaça real, porque a razão, alheia a grandes e pequenos, não garante privilégios de posição.

É bom lembrar que o poder se constitui de camadas superpostas, umas, sustentando as outras, daí a impossibilidade de eliminar ainda que fosse uma só delas, sem produzir um vácuo perigoso. Resta fazer, vez ou outra, o que efetivamente se faz, pegar um bode expiatório e crucificá-lo de maneira a satisfazer o público sem abalar as estruturas do poder.

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Ao egoísmo cabe criar, multiplicar e perpetuar os problemas, tarefa da qual se sai bem, utilizando a força (elemento dinâmico da natureza) para impor aquilo que os homens - refletindo sua inconsciente submissão à natureza - chamam de solução natural (solução de força), que não é solução coisa nenhuma, porque, a natureza, não tendo problemas, não precisa de soluções, ganha o mais forte e acabou-se.

Aquilo a que os homens chamam irrefletidamente de solução natural - solução de força - para a natureza não é mais que a esperada resposta ao seu desafio; resposta que, precipitando a ação, vai alimentar o complexo processo de transformação a que estão sujeitas as coisas perecíveis, entre elas, o corpo humano. (A solução de força apenas descaracteriza o problema, reduzindo-o a um fato natural.)

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Porque nasce da inconformação do homem com a lei natural, o problema, se não lhe derem a solução racional, deixará de o ser apenas para aqueles a quem a solução de força beneficiou, continuando problema para os demais e, a não ser pela razão (que a cada um concede seu justo quinhão) não há como definitivamente solucioná-lo. Através da lei natural, egoísticamente, isto é, pela violência, tudo se resume em satisfazer os fortes, marginalizando os fracos ou suprimindo-os fisicamente, isto porque, o egoísmo, avesso a limites, sempre quer mais, tendência que levada às últimas consequências, faria e faz com que, tendo a força por instrumento, a solução final de um problema só possa vir pela física destruição de quem lhe dá vida (o homem), o que pode ser um acontecimento natural, nunca, porém, a solução digna da inteligência.

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Ao aceitarmos a solução de força, não estamos fazendo mais que desertarmos do mundo dos homens, onde, por existirem problemas, também existe - para solucioná-los - a razão e nos refugiando, ns e os nossos problemas, no mundo da natureza, onde, nós, como racionais, deixamos de existir e eles (os nossos problemas), simplesmente nunca existiram, daí porque temos a ilusão de que foram resolvidos.

Segundo a lei natural, a lei do mais forte, os mortos e os submissos deixam de ser problemas. Porém, segundo a lei dos homens - que só a falência intelectual revoga - os problemas sobrevivem aos mortos e submissos até que sejam racionalmente solucionados.

Deste ponto de vista, que não sendo o mais cômodo é o ponto de vista universal, a revolução cruenta com seus milhões de mortos e seu indizível sofrimento, tal como os terremotos e as epidemias, poderá ser um grandioso espetáculo da natureza, mas não será jamais a epopéia do homem.

Só porque os mortos não falam e são logo esquecidos, a violência passa por remédio eficaz, não obstante seja ela a grande escamoteadora dos problemas. Isto explica porque a extrema ambição de poder (habilmente disfarçada) e a ânsia de perfeição (demagogicamente proclamada), presentes em qualquer intolerância que se diga redentora do mundo, encontram na violência seu instrumento insubstituível, eis que, pela eliminação física dos concorrentes, aumenta-se o próprio poder, além de num só golpe escamotear atuais e futuros problemas, com a eliminação da fonte de todos eles - o homem. E se o emudecimento dos inconformmados não soluciona os problemas, nem trás a perfeição, trás ao menos a ilusão e isto basta aos intolerantes, aos quais o que importa é o gozo exclusivo do poder.

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O sucesso do extremismo fantasiado de justiceiro explica-se pela ausncia de uma viso universal do homem, daí porque, isto que é inegavelmente um mal (ao menos para quem tem a justiça como fim e não como isca) para o extremista se converte numa vantagem inigualável que lhe permite ignorar o que de bom e de ruim existe em todo homem, no homem de sempre, para apaixonadamente se lançar contra aquele que no momento ele tenha por inimigo; contra o homem contingente, patrão ou empregado que hoje explora (em boa parte para que amanhã não seja o explorado), enfim, contra o homem sujeito às injunções que ele, tendo previamente, julgado e condenado, pode agora, desde que lhe permitam as forças, abater sem remorsos, até com certa justiça (ao menos segundo seu peculiar ponto de vista), pois que apesar de uma vocação universalista e de um desprendimento que certa astúcia elementar, aliada à falta de escrúpulos, lhe manda ostentar, tal justiceiro, porque é extremista, ou mais apropriadamente exclusivista, jamais consentiria numa solução racional, porque isto requer mais que a visão estreita de um zelote; requer generosidade espontânea que permita repartir não só o pão de cada dia, mas, principalmente, o gozo do poder e este, os intolerantes (deístas ou ateístas) armados em salvadores do mundo, jamais consentirão em repartir, porque neles, maior do que tudo é a fome de mando; porque eles têm o poder como algo indivisível.

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Com os problemas e soluções de força, a natureza fecha o cerco em torno do homem. Desafios e respostas, eles e elas, constituem as saliências e reentrâncias através das quais o ínfimo organismo do homem se ajusta à colossal máquina da natureza, deixando-se triturar por ela, como outra matéria qualquer. Dando ao desafio da natureza, a resposta esperada - a solução de força - o homem sem o saber, joga de cartas marcadas e não acrescenta nada ao que existia. (O uso da força vem do princípio do mundo.)

A suscitar esperanças, existe a razão, pois, criação da inteligência - ela escapa ao determinismo natural, abrindo aos homens as portas de um mundo novo. Por isso, diante do desafio da natureza, a única resposta possível é a solução racional, se bem que enquanto os homens puderem usar a força para ordenar a vida, a razão não terá vez entre eles. (Assim foi em todos os tempos; assim será por muitos séculos ainda.)

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CAP.9
NA CABEÇA,
ANTES DE
ESTAR NA VIDA
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Muitos se escandalizariam se lhes disséssemos que o homem é, ainda hoje, dependência da natureza. Não um dependente qualquer, porque sendo inteligente pode, ao menos, parcialmente, pela inteligência se libertar. Tal possibilidade aberta a ele, como criatura singularmente privilegiada, vem das particularidades de sua inteligência, que se subordina menos à natureza, do que a uma sabedoria superior, da qual o homem e a própria natureza, são igualmente dependências.

Pela fisiologia o homem depende da natureza, mas - realidade única - pela inteligência ele se põe acima dela. Esta é sua vantagem na luta contra a lei natural e só por isso lhe é dado modificá-la.

Progredir, verbo só dos homens conhecido, implica em contrariar a natureza, aprimorá-la quando possível ou afastar-se dela em busca de um mundo próprio - o mundo dos homens. (Um exame do lento caminhar da humanidade, confirma esta verdade.)

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A natureza guia a espécie de longe, ignorando anseios individuais. Isto basta aos animais, porque entre eles, o indivíduo é uma igualitária fração da espécie. Mas, ao homem, que é também animal, porém, um animal promissor, este comando global não satisfaz, pois que, entre eles, o indivíduo pretende ser a própria síntese do universo e se as leis da natureza o ignoram como indivíduo, a ele, que tem na afirmação da individualidade, sua preocupação número um; a ele, para quem o indivíduo importa mais que a espécie, só resta fugir ao comando destas leis, criando as suas. Tal é seu destino!

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Na luta contra a natureza, o individualismo é para os homens, ao mesmo tempo, o grande incentivo e o grande obstáculo, pois que se ele os incita à luta contra a lei natural, também os leva com empenho igual, a lutarem uns contra os outros pelas primeiras posições. Do que o homem ganha com a inteligência, seu ponto forte, sobra pouco, por culpa da exacerbação do egoísmo, seu ponto fraco. Isto transforma sua batalha contra o mundo exterior, numa quase derrota, pois, cabendo-lhe modificar a seu favor o "statu quo", se vantagens e desvantagens se igualam, vence a natureza, posto que ela, não ganhando nada, ao menos conserva o que era seu.

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Nas entranhas do homem a natureza infiltrou seu cavalo de Tróia - o egoísmo - e é por meio dele que maneja os cordões. Utilizando-se deste fidelíssimo agente, ela inicia a partida, com metade da batalha vencida, ao jogar os homens, uns contra os outros, fazendo com que através da única lei que isto permite - sua lei, a lei da força - alguns dominem os demais, obtendo, deste modo, a cumplicidade dos dominadores (o segmento ativo da humanidade), tornando ainda mais difícil a defesa dos demais, pois que, não fora isso, estariam todos enfileirados contra ela. (A vantagem da natureza é ainda maior, pois sendo cada homem um pretendente a dominador, essa pretensão faz de todos eles, da natureza, cúmplices eventuais.)

Contra o homem, a natureza luta abertamente, dominando-o por meio de seu determinismo fisiológico que ela controla com mão de ferro; dissimuladamente, utilizando-se do egoísmo para incitar as inteligências, umas contra as outras, minando, destarte, todo esforço de libertação.

Por isso, o egoísmo a serviço da natureza, nada mais tem a fazer, senão impedir o fortalecimento da razão, o que é possível, dado que a razão não vem de uma só inteligência. (Isolada, a inteligência é apenas expectativa de racionalidade.)

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A razão vem da integração das inteligências, daí porque o egoísmo cumpre muito bem sua finalidade, impedindo que elas se integrem. Por isso, sua implícita missão, sua missão natural é sabotar o entendimento entre os homens e ele o faz com eficiência tal que em certos momentos, chegamos a descrer no futuro da humanidade.

Coube ao homem a inteligência para que atribuindo-lhe a dimensão espontânea - a dimensão universal - com os outros homens se compusesse, criando, na medida do possível, um mundo próprio, livre das peias que o prendem ao mundo natural. Porém, na infância do indivíduo, tanto quanto na infância do mundo, a inteligência é frágil para submeter o animal. A humanidade mal começa a gatinhar, pois que em termos de convivência social, a força que dá o tom. Sejamos lcidos! Vivemos na Idade da Fora!

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Inibida a inteligência pela primazia do animal, os homens puseram-na a serviço do egoísmo e em vez da unanime recusa da violência, frente a ela, dividiram-se por inato oportunismo: os fortes, enquanto fortes, servem-se da força, porque ela, aos fortes, favorece, ao passo que os fracos, só enquanto são fracos, é que a ela se opõem, se bem que nem eles a recusem definitivamente, contando sempre com uma virada que lhes mude a sorte, fazendo que o fraco de hoje, amanhã seja o forte, o dono do mundo.

Se os de cima, em teoria, rejeitam a lei natural, a lei da força, fazem-no sem entusiasmo, por cautela, para que amanhã, numa eventual troca de posições, estando por baixo não venham a ser sacrificados por ela.

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Os homens não podem, por enquanto, dispensar o uso da força, pois, vivendo da exploração de uns pelos outros, só possível pela violência e incapazes de abafar sua ânsia de dominação, nada existe que substitua a força para conseguir aquilo que todos querem, ou seja, as melhores posições. Isso explica a luta pelo poder que a todos envolve, luta incessante, porque ao contrário do simples animal que é hoje e sempre fraco ou forte, o homem pode pela inteligência mudar a sorte. Assim, de um lado o forte para se manter, e de outro, o fraco para forte se fazer, enfim, fracos e fortes, todos os homens, previamente se condenam à violência, pois, se todos eles visam antes de mais nada, o poder, como não recorrer à força se nada existe melhor que ela para se fortalecer?

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Entre os irracionais a vontade satisfaz-se nos limites da natureza; as consequências do conflito não ameaçam a ordem natural. Entre eles o conflito ocorre na vida sem que antes tenha estado na cabeça. Reagindo a um estímulo sempre de fora, o conflito ocorre na hora, limitado no tempo e no espaço e tal como ocorre, assim se resolve, pela lei do mais forte que vencidos e vencedores cumprem sem, ao menos, suspeitarem que ela existe.

Já entre os racionais, a vontade vai além dos limites da natureza e, exclusivista, tende para o absoluto, com o que, pelo menos, em tese, faz-se inevitável o confronto com outras vontades que também exclusivistas, igualmente para o absoluto tendem. Entre os racionais, o conflito de vontades está na cabeça antes de estar na vida. Independe de estímulos de fora, não sofre limitações no tempo, nem no espaço, sendo, a rigor, insolúvel, desde que, por solução, se lhe dê como única, a solução natural, com a qual os vencidos não se conformam.

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Entre os animais, a força realiza-se disciplinadamente, sem riscos para a ordem natural. Entre os homens, dirigida por vontades absolutistas, insuscetíveis de contentamento, que se opõem, umas às outras, ela tende a realizar-se continuadamente e, perpetuando-se, deixa de ser a solução para ser o problema, hoje, mais que um problema, uma grave ameaça, pois que, armado de espantosa capacidade de destruir e incapaz de boa convivência, à beira do precipício, o homem talvez já não possa evitá-lo. Trágico é que, mesmo inconformados com a lei natural, dela temos que nos valer, pois que ainda não conseguimos implantar a nossa.

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Se o fraco se conformasse com o triunfo da força, não haveria problemas, pois que eles nascem exatamente de sua inconformação com a derrota, nos termos da lei do mais forte. Triste é que apesar de inconformado, tenha o homem, fraco ou forte, de se dobrar à natureza, pois nele, ainda hoje, a ascendência do que é animal sobre a inteligência, é tão forte que só lhe resta obedecer.

Se a inteligência se conformasse com a concorrência do outro; se ela, compreendendo, aceitasse os limites que na pessoa do outro, o absoluto lhe impõe, então ela se imporia ao animal que subsiste no homem, livrando-o da fatalidade que governa o mundo exterior, ao qual, apesar de sua rebeldia, ele, continua preso. Porém, a inteligência, débil ainda, submete-se à força, servindo menos à integração, que à destruição, até porque, morte e violência, não são mais que manifestações de um todo, do qual o homem só escapará, ainda que parcialmente, pelo triunfo da razão.

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CAP.10
TROGLODITAS
EM TRAJES
DE CAVALHEIROS
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Extremados em seu egoísmo, os homens menosprezam a razão como instrumento de ordenação da vida e desde que não podem fugir à integração social, resta-lhes pela força, submeterem-se uns aos outros. O que deveria resultar de concessões recíprocas, decorre de usurpação pura e simples. São incapazes de renúncia - base de qualquer acordo - tanto nos litígios entre pessoas, quanto nas disputas entre as nações. (Não se entendem e não se preocupam com entendimentos. O fraco submete-se ao forte - assim tem que ser.)

O egoísmo dita a lei da integração que faz do indivíduo o núcleo de aglutinação. Sendo a lei da natureza igual para todos, resulta que de livre vontade cada um puxaria para si e nunca se integraria. A força torna-se, por consequência, o principal instrumento de ordenação da vida em sociedade, pois que só pela força se pode vencer o egoísmo de um em benefício do egoísmo de outro.

O fraco insere-se na órbita do forte, inevitavelmente e desta diretriz fatal nasce a organização política da Terra que muito nos intriga, porque dela não conseguimos extrair nenhum princípio racional.

Basta examinar de perto os mapas para percebermos as consequências dessa degradante submissão à força. Só a lei do mais forte vigora em toda a extensão do planeta, exatamente, porque, sobrepondo-se ela a tudo o mais, tudo o mais vige enquanto a ela não se oponha.

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Incapazes de conviver segundo a razão, integrados socialmente por coação mais que por vontade própria, cada homem, embora anseie pelo domínio de todos, se obriga, segundo a grandeza de suas forças, a se acomodar em compartimentos estanques, para a constituição dos quais, prevalece a diretriz segundo a qual, cada um, conforme suas forças, almeja construir o próprio mundo, onde, embora querendo mais, esteja, pelo menos, a salvo de outros mandos. A organização política da Terra é o resultado possível da vocação do homem de dominar todos e não ser por ninguém dominado. (Não fosse o temor de forças superiores, cada município seria um império, tendo, no prefeito, seu czar todo poderoso.)

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A sujeição universal à lei do mais forte deixa tudo o mais para trás. Nada há que vincule por igual todos os homens. Idiomas, religiões, pesos e medidas, que miscelânea! Nem a moeda é a mesma para todos, numa época de comércio intenso! Tudo decorre da circunstancial relação de poder. Leis e costumes apontam a incoerência dos homens: a poligamia pode ser crime ou não, dependendo de onde se esteja. O matrimônio é indissolúvel para algumas confissões religiosas e não o é para outras. A pena de morte vige em certas partes e em outras não, acontecendo, às vezes, que num mesmo país, ela seja adotada ao norte e recusada ao sul. O mapa político reflete as complexas relações de poder. São poucas as nações capazes de, por conta própria, sustentarem suas independências. Muitas sobrevivem graças apenas ao equilíbrio das forças rivais que as ameaçam. Alguns Estados não passam de equívocos. Só por hábito, lhes respeitamos a soberania, embora, por fim, a independência deles acabe tendo nesse hábito sua melhor garantia.

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Existem países continentais e outros de dimensões irrisórias. Disso resultam absurdos clamorosos e os homens, que preterem qualidade em favor de quantidade, se contradizem: na sociedade que congrega as nações da Terra, o veto de um desses estados de brincadeira, vale tanto quanto o voto de nações que realmente pesam na balança do poder mundial. Nesse tipo de farsa de que os homens são mestres, milhões de japoneses - por exemplo - valem tanto quanto mil e poucos ilhotas que a conveniência dos grandes transformou em duvidosas soberanias.

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A razão submete-se à força; a ética rende-se às conveniências da política e os homens, férteis na elaboração de preceitos, são ainda melhores na arte de ignorá-los ou interpretá-los a seu favor. O princípio de não intervenção, que jamais salvou alguém da cobiça dos fortes, aos fortes serve, no entanto, para justificar omissões imperdoáveis, ditadas pelo interesse ou pela covardia.

Tal é o cinismo vigente no campo internacional que algumas nações, por culpa de meia dúzia de filhos inescrupulosos, ficaram marcadas como coiteiras de dinheiro sujo, enquanto que certos tiranetes (que se pesam na balança do mundo, pesam como contrapeso), disto se servem, com o propósito de fazerem de seus feudos, autênticos santuários do crime. A má fé, não raras vezes, transforma, o salutar princípio da independência numa garantia de impunidade, não para pequenos crimes de alcance local, mas para crimes de lesa-humanidade.

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Quem, matando ou roubando, atingiu a casa do milhão, se faz intocável e, lá fora, passa por respeitável cidadão. O direito de asilo vigora a esmo e, em consequência, delinquentes notórios afrontam a consciência do mundo com a impunidade obtida pela transposição de fronteiras. A falta de um tratado internacional de extradição é uma vergonha! Fruto do interesse dos grandes, o exílio serve apenas aos grandes, eis que os pequenos, por falta de meios, nem fugir podem. Confiantes na imoralidade reinante no campo internacional, os grandes de cada país, principalmente os políticos, subvertem a ordem interna, certos de que basta a simples transposição de fronteiras para se livrarem de qualquer punição, embora deixem para trás milhões de inocentes a pagarem por suas aventuras.

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A ausência de uma visão universal do homem garante, ainda em nossos dias, a sobrevivência de figuras sinistras como a do mercenário, aquele que mata por dinheiro, se bem que mais escandalosa que a sua existência, é, com relação a ele, a generalizada complacência que lhe permite praticar em terras alheias, atos que, sem dúvida, o levariam à cadeia, se praticados em seu país, contra gente sua.

A bandeira do progresso pretende justificar a colonização de povos ditos atrasados. Simples pretextos! Progresso material, talvez os colonizadores possam dar, mas progresso social; aquele que resulta do aprimoramento da natureza humana, este a civilização, no estágio em que se encontra, pouco tem que oferecer à barbárie.

O progresso material embeleza o homem por fora mais do que por dentro. Nada distingue substancialmente as relações humanas na América, na Europa ou na Polinésia. São todas difíceis desde que é a lei do mais forte que por igual as dirige.

Os povos ditos civilizados não se impõem aos nativos pela sabedoria, mas pela força. Se assim não fosse, os conquistadores pouco teriam que ensinar, talvez devessem aprender, ao menos, pureza d'alma. Apesar de escandalosa, a disparidade cultural não preocupa ninguém; se preocupasse teria desaparecido faz muito tempo.
As elites nacionais ou internacionais são indiferentes à ignorância dos povos, até porque ela as favorece.

No insólito planeta que é a Terra, a selvageria convive com a civilização desde que uma a outra se submeta. Entenderemos todo o mal que vai pelo mundo, a crueldade de grandes e pequenos déspotas; a impunidade de quem favoreça outro ainda maior, se atentarmos para o que entre os homens e as nações, os de cima dizem aos de baixo: "favorecei os nossos mandos que ns perdoaremos vossos desmandos."

O progresso social nasce da inteligência. É integração, é transformação da natureza, especialmente da natureza interior em benefício da convivência geral; o mais é destruição ao alcance de todos, inclusive, dos irracionais. (Aquilo que exige anos e anos para ficar de pé, por obra de um imbecil qualquer, num instante vai ao chão.)

O notável desenvolvimento material atingido por algumas nações; o fantástico progresso da tecnologia da morte, é, sem dúvida, digno de admiração, mas apenas pelo que num tal esforço se contém de elaboração; pelo que nele não se pode dissociar do legítimo sentido da inteligência.

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O uso bem direcionado do cérebro é que importa. Os homens usam-no mais para destruir do que para construir, embora, no fundo de suas consciências, quando abstraídos de seus interesses, saibam muito bem que o sentido original da inteligência é o da construção e que só puderam invertê-lo, pervertendo-a. Não fora isso, o homem - animal extremamente vulnerável - teria sucumbido. Ainda assim, por culpa desta inversão, a humanidade, como um todo, avança com exasperante lentidão.

Mesmo nos mais desenvolvidos países é espantoso o contraste entre o progresso material (que não é tão grande) e o progresso social (que é deplorável), levando os nossos a dizer dos homens, mesmo dos mais cultos, que eles não passam de trogloditas em trajes de cavalheiros.

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Num grande número de planetas, povos menos orgulhosos que os homens, embora mais jovens, atingiram um grau de civilização do qual a Terra está ainda muito longe. É que o orgulho põe viseiras nos olhos e fecha as janelas que no indivíduo, pela maravilha da inteligência, se abrem para o mundo, aguçando a sensibilidade.

Extremados em seu orgulho, os homens não vêem nos semelhantes senão criaturas inferiores e o que de mais cruel possa acontecer a um deles, só preocupa o outro, segundo a distância que os separa. À proporção que se eleva na hierarquia social, o homem vai esquecendo suas semelhanças com os de baixo, até que por fim consegue tratá-los como animais ou coisas, dos quais ele, como senhor, pode, sem constrangimentos, dispor.

Coisificar o semelhante é a preocupação, principalmente, daqueles que o jogo sujo colocou em posições onde, pelo mérito, jamais estariam.

A sorte dos outros só nos comove quando nos ameaça, ainda que por reflexos. O distanciamento geográfico ou social nos faz ignorar crueldades que não suportaríamos em nossos vizinhos. (A morte mil homens na China não nos afetaria tanto quanto a de um nico morador de nossa rua.)

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Há pouco mais de cem anos, os africanos - por exemplo - eram mercadorias como outras quaisquer. Vendidos pelos próprios irmãos, primeiro lhes tiravam a alma para mais facilmente transformá-los em animais domésticos, impedidos até de constituir família. Às mulheres negras não era dado o direito sequer de escolher aqueles que se tornariam pais de seus filhos. Submetiam-se ao peso de reprodutores manipulados pela conveniência dos patrões, sob as bençãos de todas as igrejas. Se isso já não acontece hoje, ao menos, ostensivamente, é que o homem, por humilde que seja, apesar dos pesares, é um animal promissor, capaz de se rebelar, ainda que lentamente, contra quem o trate como simples animal.

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O orgulho faz dos homens apóstolos da força, adversários da inteligência e por fim os leva ao paradoxo de terem, nesse mesmo orgulho, sua tábua de salvação, pois que, não fora ele, acabariam loucos como decorrência dos inevitáveis reflexos na consciência, da crueldade com que mutuamente se flagelam. (Não sendo possível suprimi-la, resta-lhes pelo orgulho amortecê-la.)

"Mais orgulhoso que um mit, só outro mit!" dizem. Eu, que bem conheço os mits e começo a entender os homens, digo dos primeiros que são até humildes em comparação com os últimos. É quase como um homem que eu falo: por orgulho somos capazes de tudo, de descer aos infernos; somos capazes de arruinar nossa própria vida.

Diria àqueles que jamais poderiam conceber crueldade igual à da vida na Terra, que o orgulho é a couraça do egoísmo. Por ele nos fazemos insensíveis ao sofrimento alheio, por mais doloroso que seja. Graças a ele, ainda que fisicamente próximos, nos afastamos a tal ponto que, do alto, não conseguimos ver em nossos semelhantes senão vultos distantes, coisas inanimadas, cuja sorte nos é indiferente. (Nada facilita mais a luta pelo poder que a coisificação do homem.)

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O orgulho vence até laços de sangue. Quantas vezes, com uma indiferença desconhecida dos simples animais - porque eles não tem orgulho - muitos, na ânsia de se beneficiarem da interesseira paternidade das multidões, chegam à extrema frieza de negligenciá-la diante dos filhos biológicos. A presunção de que nasceram para salvar milhões da orfandade concede forças a esses fanáticos, de um e de outro lado, para descuidarem daqueles que por razões de sangue deveriam constituir-se no objeto de suas imediatas atenções. Sem o orgulho, com a alma aberta às angústias de nossos semelhantes, como poderíamos suportar e incentivar até, esse trágico espetáculo da guerra, em que, na solidão das trincheiras, milhões de jovens conhecem a morte, antes de conhecerem a vida.

Só o orgulho pode fazer tão insensíveis homens que protegidos do perigo, se arriscam de longe sobre os campos de batalha, atirando lenha na fogueira, indiferentes a essa vergonha do gênero humano que é o sofrimento dos civis em tempos de guerra.

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Graças ao orgulho marchamos impávidos rumo ao alto, pisando indiferentes, corpos de amigos e inimigos, de culpados e inocentes, pois aquele que se deixou embriagar pela ambição de poder, não vê nos outros, nada mais que seres inferiores, homens a caminho de coisas inanimadas. Agimos todos com o mesmo orgulho, com igual brutalidade, levados por nossos apetites e nossas forças.

O orgulho não é privilégio dos grandes, dos condutores de povos, até porque, todos estão de tal modo enredados uns nos outros que poucos são capazes de por conta própria caminhar. Há sempre um conduzindo outros. Condutor de poucos ou de milhões, tanto faz, sem orgulho nada podemos, pois que, se nos livrássemos dele, para aceitar a igualdade com os demais, então com que direito nos atreveríamos a exercer sobre eles o nosso mando?

Imaginai que vileza é tirar do trabalhador o último centavo com que vai alimentar os seus! E, no entanto, os assaltantes de rua, os velhacos de todas espécies, os patrões desonestos, vivem disso e dormem em paz, graças ao orgulho. O que é que sustenta a crueldade nas favelas, onde o valentão dispõe de vidas alheias como se fossem dele?!

É preciso conhecer a arrogância dos foras-da-lei para conceber crueldades iguais às suas! O poder aumenta o orgulho enquanto diminui a sensibilidade. Que outro sentimento poderia alimentar esse jugo do dia a dia, exercido entre quatro paredes, por chefes de família que nos seus, se vingam dos ressentimentos da vida, embora nas ruas pareçam dóceis como ovelhas?! (Triste destino o dos homens, porque eles têm no orgulho a semente de todas as crueldades.)
 
 

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A seguir

 






Favorecei os nossos mandos
que ns perdoaremos
os vossos desmandos.

(UM ANIMAL PROMISSOR**Cap.10)







at/210603