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A DESCOBERTA DA TERRA Avellar Toledo
PARTE1 PARTE2 PARTE3 PARTE4 PARTE5 PARTE6
Edição atualizada de
"UM ET DESCOBRE A TERRA" (2a.)
Registro 107.970 no Escritório de Direitos Autorais
da Fundação Biblioteca Nacional - Ministério da Cultura*
PARTE1
Distorcendo O RACIOCÍNIO;
Só para quem pode ENTENDÊ-LA
Por que os homens têm PROBLEMAS;
Quando o pensamento é DISPENSÁVEL;
O galo, o macaco E NÓS;
HOMENS e MULHERES: respostas diferentes.
A RAZÃO, incipiente por toda parte;*
Da varanda de minha casa no largo do Castelo, norte do Rio das Praias, vi Alex entrar no carro e se juntar às centenas de outros carros de lanternas acesas que, no começo da noite, formavam uma torrente de luzes alaranjadas, arrastando-se no rumo da zona sul. O telefone tocou. Era Frederico Marlow, "Fred", jornalista americano, falando de San Miguel del Forte, capital de Taraga, depois de visitar minha filha Juana, a "Comandante Zada", em seu QG no monte Pessino, onde o "Batalhão das Rosas", dirigido por ela, integrado quase só de mulheres, resistia sozinho à ofensiva do Governo que, em menos de duas semanas, já havia posto fora de combate, através de suspeitos acordos ou pelas armas, as várias facções em que se dividia a UPT - Unidade Popular de Taraga.Para o Brasil, Taraga não existia. Por isso, tudo que vinha de lá me alvoroçava. Preso àquela voz chegada de terras ainda vivas na lembrança, tomado de forte emoção, eu me surpreendia com o amigo falando de minha filha e de seu bebê, prestes a nascer, como se fosse o pai. Falou-me também de Vic, minha ex-mulher, agora ministra do Interior, sequestrada há alguns dias por guerrilheiras comandadas por Juana (sua enteada e adversária política), em meio a uma fuzilaria durante a qual ambas teriam sido gravemente feridas.
Receava notícias ruins. Indaguei-lhe bruscamente: "Minha filha como está?"
*
A linha caiu. Esperei uma hora, nenhum contato. A ansiedade me sufocava. Decidi jantar fora, mesmo só. Pensei no Tip Restaurant, na av. Litorânea Sul. Imaginava um cantinho sossegado com vistas para o mar. Em caso de espera, ficaria de prosa com alguém da casa. Tinha bons amigos entre os empregados. Quem sabe, livre do confinamento doméstico em que vivia, eu me livrasse da pressão sobre corpo e alma, baixando a tensão que me dificultava até o convívio social.
O ar puro, a prosa fácil de Estevão, o gerente; a vivacidade das pessoas, me fizeram bem. Teria demorado mais se não tivesse esquecido de fechar o escritório. Não me encontrando, Marlow enviaria um fax.
Alex, que morava comigo e me tomara como sócio num pequeno comércio, suspeitava que eu e o "americano" estivéssemos metidos em alguma encrenca. Andava curioso. Por sorte, ele havia saído antes e chegado bem depois. (Melhor, porque o fax estava aberto para quem quisesse!)
*
O telefonema fora interrompido após a pergunta: "Minha filha como está?" O fax, sem rodeios, dizia: "Vai bem Jonas! Nenhum ferimento grave! Exageros da Imprensa! O bebê nada sofreu. A gestação prossegue normal. Sete meses contadinhos e teu neto estará entre nós! A mãe o espera bem protegida em seu QG. (Chegar até ela, 10km serra acima, sob a mira de ocultos fuzis, poucos se arriscariam!)
--- Não te preocupes com a Vic! Apenas um susto! Ela adorou a experiência. É outra mulher! Juana também mudou. Acredita agora que a violência em vez de panacéia, constitui o grande obstáculo no caminho do progresso; garantia de todas as injustiças; uma herança animal da qual se servem os fortes para preservarem seus privilégios. Está confusa, mas se lhe derem tempo, acabará vencendo a tentação da força. Só não admite perder!"
Aproveitei o telefonema de Marlow para lhe comunicar que pretendia ir a San Miguel entregar o dinheiro do pastor Banes deixado para Juana. Talvez fizesse falta naqueles tempos difíceis. Prometeu-me consultá-la e nunca mais tocou no assunto.
*
Na ensolarada manhã de céu azul, levados pelos ventos, dezenas de barcos singram as águas da baía, suavemente. Cobrindo a serra em volta do mar, unidas pelas copas, as árvores de Tojucan formam uma única extensão verde, entremeada de flores brancas, vermelhas, amarelas, que deliciam a vista, remoçando o espírito. (São milhões de pétalas de vivas cores!)
Sobre as areias, em mínimas peças (de vários tons), centenas de corpos se agrupam como ilhas multicoloridas. De meu sobrado, à beira da praia, ouço o barulho de crianças chapinhando nas águas; a algazarra dos banhistas no mar; o sussurro da multidão em meio ao murmúrio das ondas.
Diante da festa que é a vida em Rio das Praias, por que não me alegrar? No entanto, a bela paisagem deixa-me indiferente, como se eu fosse infenso aos sons e às cores; infenso ao perfume que ressuma da vegetação dos trópicos.
*
Olhando a tarde linda de céu azul, uma vontade louca de passear sem rumo tomou conta de mim. Peguei o Norte-Sul, imaginando saltar com o último passageiro. Meia hora de viagem e uma decepção - o fim da linha não era tão longe como eu queria; ficava ao lado da Estação do Norte, onde saltei, calculando retornar à casa para o jornal das 20h na tevê-N.
Depois de vaguear por ruas mal frequentadas, estava de volta, quando, numa esquina, à vista de muitos, três brutamontes me agarraram e, como reagi, me espancaram, me roubaram tudo e entre gargalhadas, queimaram minhas roupas, deixando-me no chão. (Pego de surpresa, de nada valeu minha força excepcional.)
*
Eram 22h quando cheguei ao terminal de ônibus, quase nu, apenas os quadris escondidos por trapos apanhados ao acaso, tão debilitado que desmaiei na rua.
O Hospital São Vicente, para onde levam os indigentes adoentados, assim registrou minha passagem: "Elemento recolhido às 23h na praça Eng. Blanco, sem roupa, valores ou documentos, queixando-se de assalto, com as costas recobertas de queimaduras leves. Um cobrador de ônibus informa que o viu algumas vezes no Largo do Castelo, usando sempre roupas finas."
Acordei na enfermaria, deitado de costas sobre um banco de madeira. Deram-me banho e me fizeram a barba que não passava nunca de 2cm. Fiquei alarmado ao descobrir que me haviam tirado sangue para exames. De madrugada, trajado de enfermeiro, driblei os guardas, voltando de taxi para casa, sem dinheiro e sem as chaves. Ao passar pelo portão de entrada, arrependi-me. Agora o taxista conhecia meu endereço. Mas que fazer? Tive medo de ficar pelas ruas àquela hora da noite, medo de morrer estupidamente em mãos de um assassino qualquer.
Em casa, para que não me vissem com o uniforme de enfermeiro, joguei-o na rua, por cima do muro, subindo as escadas de cueca à frente do atarantado motorista.
*
Alex (Alexandre Antônio D’Ávila) andava preocupado com minha instabilidade emocional. Contei-lhe que ladrões me roubaram até as roupas, enquanto esperava um taxi a poucos metros do prédio de Santinha com quem havia deitado duas vezes naquela noite. Mentira! O assalto ocorreu longe dali. Ninguém teria se interessado por ele, não tivesse acontecido um fato intrigante, ao qual alguns jornais indiretamente me ligaram.
Moradores da praia das Baleias falavam de um objeto todo iluminado que surgindo de trás da serra de Tojucan, depois de clarear o céu de um ao outro lado da cidade, mergulhou no mar a 2km da praia. Viram, num pára-quedas soltando fagulhas, alguém descendo atrás do Clube de Tiro.
*
À noite a tevê noticiava a passagem de um "Disco Voador". Rio das Praias não falava de outra coisa. O vigia do Clube de Tiro mostrou aos repórteres, a 500m do portão principal, os restos de um pára-quedas abandonado por alguém que fugia com as vestes em chamas; alguém de 1m50 no máximo.
Um jornal saiu com a manchete: "ET HOSPITALIZADO COMO INDIGENTE", informando que os médicos do São Vicente, impressionados com as semelhanças entre o homenzinho do Clube de Tiro e o indigente da praça Eng. Blanco, suspeitavam de que os dois fossem a mesma pessoa. (A diferença de estatura entre o primeiro - 1m50 - e o segundo - 1m80 - nem foi mencionada.)
Achei que minha fuga do hospital tivesse encerrado o caso, mas não encerrou. À noite, um certo Frederic Marlow, repórter do "Novak Tribune", de Nova Iorque, ligou-me para falar do "ET".
*
Fazia meses que eu, com o nome de Jonas Simpson, jornalista, vivia em Rio das Praias como correspondente da "Continental - Free Press" de Los Angeles para a América do Sul. Época de eleições no Brasil, a promoção pessoal em cima dos escândalos era moda e eu, alheio ao que pudesse estar motivando os moralistas do dia, entrei na onda.
Mandava para a agência a cada semana uma reportagem, prestigiando a campanha contra a corrupção, tida como a pior inimiga do homem, porque falseia sua mais importante função - a de pensar - eis que nenhum raciocínio pode chegar a conclusões justas, partindo de premissas viciadas. Distorcendo o pensamento ela distorce tudo o mais. Afirmava que ela pode ser controlada, desde que a recusemos como prática universal, como fatalidade. Mostrava que o corruptor precisa ter valores a oferecer, daí porque só pode corromper quem tenha alguma coisa que interesse ao outro.
Se a corrupção está por toda parte; se ela não é combatida com o merecido empenho, é porque os maiores responsáveis pela sua eliminação, receosos de que o remédio venha a ser usado contra eles, decidem fechar os olhos. Se tudo parece contaminado é porque, embora minoritários, os corruptos, sendo fortes, mandam no jogo e por cautela, impedem a limpeza. Ansiosa para acabar com a desordem que facilita a corrupção; mas, receosa de lutar por qualquer proposta disciplinadora que siga nesta direção, a maioria de comodistas prefere deixar tudo como está.*
Conheci o Dr. Sintra, psiquiatra de renome, lendo sua coluna "Mens Sana" aos domingos no "Jornal do Povo". Professor universitário, dono de um consultório frequentado pelas melhores famílias de Rio das Pedras, era tido pelos colegas médicos como um esquisitão. Sem filhos, trocava de mulheres com frequência. Boêmio, era fascinado pelo que imaginava ser a vida livre do jornalismo, que embora exercesse como atividade secundária, lhe proporcionava mais alegria interior que a psiquiatria. Nas apresentações dizia-se jornalista. Estava sempre entre nós. Meu primeiro encontro com ele foi na Associação dos Repórteres e Redatores de Rio das Praias. Tornou-se frequentador de minha casa, onde virávamos a noite "filosofando".Alex eu vi pela primeira vez no Clube dos Correspondentes, procurando emprego. Era bom fotógrafo. Por sugestão dele, viajamos pelas Américas, desde Ushuaia, sul da Argentina, até San Diego, na Califórnia. Depois da viagem, veio morar comigo.
Sonhava enriquecer no comércio, mas não tinha dinheiro para começar. Tanto insistiu que me associei a ele, fornecendo-lhe o capital para uma pequena loja de artigos fotográficos. Em casa, falávamos de política, melhor, de revolução, para ele, uma divindade à qual, verbalmente, se entregava com devoção.
Sem me consultar, trouxe para morar conosco, seu amigo Vilaça, sociólogo, inteligência privilegiada que havia abandonado o cargo de escriturário num banco oficial para investigar as causas da atração que a violência exerce sobre o homem, criatura que ele considera, ainda hoje, um incipiente racional, gastando milhões para matar, regateando ninharias para eliminar as causas das matanças.
*
O jornalista Marlow insistia num encontro. Noite passada, disse-me pelo telefone de uma só vez: "Simpson, é o Fred! Sabe onde me encontrar. Simpatizo com você, mas paciência tem limites! Depois, pode ser tarde! Te ligo à noite!" Desligou, deixando-me preocupado.
Telefonei para o "Novak Tribune". Ninguém o conhecia. Fiquei mais preocupado. Não queria recorrer às autoridades. Sabia que o Estado, embora oficialmente nos proteja, não sendo ele o ameaçado, se descuida, deixando-nos à própria sorte. Que poderiam fazer as autoridades, se o formalismo da lei, negativamente utilizado, acaba favorecendo os mal-intencionados. Melhor nos entendermos! Preparei-me para recebê-lo. Quando me ligou, eu, inusitadamente confiante, quis vingar-me de seus incômodos.
--- Como você me descobriu? - indaguei-lhe em meio ao fraseado de apresentação, sem lhe dar tempo para respostas. O teu editor-chefe, o Goldman, te ajudou?
--- Falou com ele?
--- Falei sim, ele não te conhece!
--- Pois bem! Sou Frederic Marlow e vai ser difícil te livrares de mim. Você está em desvantagem. Não sabes quem sou e eu sei pelo menos quem tu não és!
Há muito dinheiro em jogo! Posso vê-lo?
--- Amanhã ao meio-dia, dá teu endereço!
--- Amanhã às 20hs.
O que poderia ele contra mim? Talvez quisesse me conceder o verde para colher maduro. Do dinheiro mencionado, que só podia ser o do pastor Banes, Juana sabia pouco e Vic apenas desconfiava.
*
Tocou a campainha às 20h. "Sobe!", gritei-lhe da varanda, enquanto acompanhava sua progressão escada acima. Tinha uns 25 anos, 1m e 80 de altura, 75k de peso. Louro, a pele branca tostada pelo sol, olhos azuis ligeiramente oblíquos.
--- Boa noite, Simpson!
--- Boa noite! Vamos entrar!
Em vez de me seguir, ele se pôs a olhar da varanda para o mar com uma naturalidade inquietante.
--- Que bom Simpson! Um belo jardim, uma casa magnífica. Mulheres à vontade. De que mais precisa um homem?
Percebendo meu embaraço, se apresentou: "Sou Frederic Marlow, Fred Marlow ou Fred, como queira!"
Examinou a sala, olhou para os lados, calmo, calmo. Depois explicou: "Eu lhe disse que era do ‘Novak Tribune’, porque fiz um estágio lá. Conheci muitos jornalistas. O Goldman, não conheci!"
*
--- Sr. Marlow, que idade tem?
--- Pode me tratar por você!
--- Há quantos anos faz jornalismo?
--- Pouco tempo! Nunca passei mais de ano num jornal. Quis ser independente desde o início; gosto de investigações abrangentes, escolhidas por mim, feitas sem pressa. O jornalismo como profissão, impõe limitações. Sirvo-me dele, na maioria das vezes, como instrumento. Estive na Coréia, trabalhando para o Serviço Federal de Investigações (SFI) até ingressar na J-7, especializada na caça aos criminosos de guerra japoneses, embora continuasse escrevendo sem compromissos para alguns jornais. Adoro escrever. No começo de 91 entrei para o SISOVNI (Serviço de Investigações sobre Objetos Voadores Não Identificados), onde estou até hoje.
--- Criminosos de guerra japoneses! Estão velhos demais, adianta procurá-los?
--- No meu tempo tínhamos sempre alguém na mira. Quando sai da J-7 havia um caso pelo qual me apaixonei. Quis participar das investigações, mas era tanto ciúme que não me deixaram nem consultar o dossiê. Tive de xerocá-lo às escondidas.
*
Tratava-se de Harvey Massuda, natural de San Francisco, na Califórnia, filho de imigrantes, o pai, japonês, a mãe, italiana. Do casamento nasceram três filhos, duas meninas e ele - o caçula - desde cedo fascinado pelo Oriente.
Em 35, dizendo-se derrotado na "Batalha da América", o velho Massuda abandonou mulher e filhas, voltando ao Japão com Harvey, já adolescente. O garoto que no Ocidente se sentia discriminado como filho de japonês, no Oriente se dizia rejeitado por causa da mãe italiana. Queria tanto apagar sua "vergonha" que ao estourar o conflito já era um oriental por inteiro, dominado pela idéia fixa de matar americanos. (Tornou-se carrasco notável, embora guerreiro medíocre.)
Foi acusado de espancar até a morte o soldado Anthony Gordon, filho de um ricaço do Texas que pôs à disposição de quem o capturasse, muito dinheiro. Já lhe falei disso. --- Lembra-te?
--- Lembro sim! Mas não entendi nada! - disse - referindo-me ao dinheiro.
Vai entender! - prosseguiu Marlow. --- A fortuna será de quem entregar Massuda vivo. Tento localizá-lo desde que entrei para a J-7. Acabei montando minha própria agência.Tinha de trabalhar em outros casos para garantir a subsistência. Precisava compensar a perda de tempo com um processo que se tornara uma paixão. Utilizando recursos do SISOVNI pude chegar bem perto do objetivo. Hoje, mais que o dinheiro, importa a auto-afirmação que só virá quando puser as mãos no japonês.
*
Comecei minha busca procurando o velho Gordon em Dallas. Estava adoentado, padecendo de gota, sempre se queixando: "Fred! Eles não me entendem! Minha mulher, Nancy, nem ela me entende!
Aprendeu a medir a capacidade intelectual pelos diplomas, pela autoridade. Trabalham comigo sociólogos, psicólogos, todos esses logos, mas não me acerto com eles. Dizem que a comunicação ideal só ocorre entre falantes e ouvintes de igual nível cultural; dizem que é preciso haver o que chamam de paridade intelectual; que é perda de tempo dizer verdades a quem não esteja à altura de entendê-las. Tenho pena de vê-los a se vergarem diante de pessoas, só porque elas possuem mais títulos. Descontam em mim, olhando-me de cima, como se eu, porque não tenho diplomas, fosse incapaz de dizer alguma coisa aproveitável. Podem estar certos, mas não lhes perdôo a arrogância - acho que repetir não é criar. Tratam-me friamente, de patrão para empregado, mas sofrem porque não sou de lhes inflar o balão; porque, apesar da pose, comem pelas minhas mãos."*
"Gordon pai não perdia tempo.", prosseguiu Marlow, relatando seu encontro com o ricaço do Texas. "Vamos ao que interessa!", disse, passando ao assunto que me levara até ele. --- Meu filho era um fraco! Odiava a guerra até no cinema. Prevendo que seria convocado, quis ir para minha fazenda no México onde ficaria à espera de uma anistia. Criticado por mim, sem coragem para enfrentar-me, deixou-se arrastar ao matadouro como gado, sem nenhuma vontade de lutar. Acho que preferia morrer logo, a ficar matando gente todos os dias, estupidamente. Sua morte, à traição, com requintes de crueldade, suscitou em mim um enorme desejo de vingança e me fez criar o prêmio. Acreditando que o dinheiro me levasse até Massuda, enriqueci tanto que perdi o rumo e por pouco não o esqueci. Foi o remorso que me fez retomar o caminho. Massuda é mais que vingança, Fred!"
*
Encerrado o relato de sua visita a Gordon pai, Marlow ficou a me olhar como se quisesse perguntar: "Não te lembras de nada?"
--- Desculpa! Não me lembro! - eu disse - como se adivinhasse seus pensamentos.
--- Precisa lembrar! O japonês não tinha amigos, só você, Sr. Jonas Simpson (ou Jonas de Deus Inatto, como está no registro civil de Taraga, não é?) Sigo teus passos desde que você e ele, durante uma escala nos arredores de Londres, fugiram do avião da USAF que os transportava do campo de prisioneiros da ilha de Sompa, no Pacífico, para a América, onde seriam julgados, ele, por crimes de guerra e você pelo uso indevido dos documentos de John Butler, um "marine", prisioneiro dos japoneses, desaparecido durante tentativa de fuga, antes da retomada da ilha pelos americanos.
Viajavam também para satisfazer a curiosidade de cientistas interessados nas tuas anomalias somáticas e nos desvios psicológicos de Massuda, um torturador diabolicamente criativo. Vocês nadaram de Dover, na Inglaterra a Callais, na França, onde iniciaram uma correria pelo continente.
Jonas, você tem de me ajudar!"
*
Os vasos que irrigam o cérebro intumesceram, a vista escureceu e só não fui ao chão porque estava sentado. Envolvido por um leve torpor, temia a insistência daquele jovem, exigindo de mim informações que eu não possuía.
--- É o calor! Tira a camisa!, dizia alguém de longe.
--- Um pouquinho e tudo acaba!, acrescentava esse alguém que só podia ser ele, tendo sob minhas narinas um frasco de álcool ou coisa parecida.
Estranhei que mantivesse meu braço esquerdo levantado e com uma lupa o examinasse. Dizem que alguns serviços secretos identificam seus agentes pelas inscrições nas axilas. Dias depois, ele deixou escapar que havia trocado, por um outro, de última geração, o transmissor que, eu, sem saber, trazia embutido no corpo.
"Apanhou a correspondência?", ele me indagara minutos antes de deixar a casa, preocupado com o barulho de um carro entrando na garagem.
Mal Alex apagou as luzes do quarto, desci as escadas para pegar o material na caixa do correio - revistas, jornais, fotografias de lugares e coisas dos quais não tinha a menor lembrança, inclusive, uma foto do interior de uma caverna, contendo evocativa inscrição. Coisa de dezenas de anos! Interessei-me por um jornalzinho de Belém do Pará, norte do Brasil, relatando incidente entre a Polícia e um tripulante do "Trinidad Star", navio grego de má fama por aquelas bandas.
*
Recebi as revelações de Marlow com desconfiança e medo, pois reforçavam em mim uma crença persistente - a de que eu não era o homem normal que pensava ser. Fiquei preocupado. De uma hora para outra, Massuda, que parecia nunca ter existido, punha-se a meu lado, vindo de um passado cada vez mais real
Embora confusamente, recordava nossa fuga pela Europa, numa correria de mais de ano, com uma única parada maior (uma semana) em Trieste, terra de seus avós italianos. Lembrava-me de nossa despedida em Viena, de onde ele voltou ao Japão, calculando viajar por terra até onde desse.
*
Faminto, aparência de pedinte, tiritava de frio à entrada do porto de Hamburgo, norte da Alemanha, quando me arrastaram para um ferro velho tripulado por farrapos humanos, do qual só me livrei, ironicamente, contra a vontade, depois de anos e anos de servidão, com a qual, eu, totalmente desesperançado, já quase me acostumara.
Pela força me haviam embarcado naquele monte de sucata e, depois de muito tempo, também pela força, sem nenhuma explicação, impediram-me de voltar a ele.
Foi em Belém do Pará, de onde, decepcionado com os homens, me internei selva a dentro, para viver tão isolado que em alguns anos, tendo perdido todas as referências da vida em sociedade, já não conseguia pensar. (Deixara de ser racional.)
*
A vida na Amazônia foi coisa à parte. Sem noção do tempo, ignorando onde estava, imagino ter vivido naquele território do tamanho de Portugal, anos e anos, sem avistar um único ser humano. O isolamento tirou-me da memória tudo o que havia antes. Dali por diante, o que os sentidos registraram da idílica paisagem, ficou na mente, sob a forma de realidades isoladas que só mais tarde puderam ser combinadas para a recuperação do passado; para a antevisão do futuro. Eram lembranças de vidas estanques, das flores belas o ano inteiro, livres de invernos e primaveras; dos animais e suas crias, sem relacionar pais e filhos, como se tivessem nascido de si mesmos. Tais recordações agora me surpreendem porque sou de me lembrar das relações das coisas entre si, mas nunca da isolada percepção delas pelos sentidos. (Posso recordar o que pensei certo dia sob uma árvore, sobre as relações entre o tronco, as folhas e as flores, mas nunca me lembro só das flores, isoladamente; é preciso que surjam - digamos - num contexto, como partes interligadas.)
*
Com o cérebro contendo poucas e toscas imagens, umas isoladas das outras; eu, incapaz de pensar, devido ao crescente esvaziamento da memória, lutava para entender a babel que era o acampamento da UCC, onde agora vivia, quando pequenina chama iluminou-me o cérebro: "Não te desesperes! De um isolamento tão severo só podias ter imagens rudimentares, pouco acima daquelas de que é capaz um simples animal, imagens nascidas de impressões superpostas sem que tenham sido comparadas com outras, elaboradas por diferentes pessoas."
Tinham-me como um nativo do alto rio Negro. Não sabia o que dizer. Mas necessitado de me comunicar; o empenho com que me entreguei a este propósito, foi pouco a pouco me reativando a memória e eu passei a duvidar desta origem arranjada, pois, com frequência, vinham-me à cabeça, imagens de coisas que eu jamais poderia ter visto ali. Como aceitar - por exemplo - que ouvindo referências a velhas cidades européias, eu pudesse visualizar construções de alvenaria, edifícios enormes, eu que nunca havia posto os olhos numa casa, mesmo de barro ou pau a pique, antes de chegar ao acampamento!?"
*
Meio século atrás, zanzando pela Europa devastada pela guerra, não via como viver em paz, a não ser abandonando a civilização. Atordoado pela complexidade dos conflitos, limitava-me a observá-los, uns isolados dos outros, incapaz que era então de, entre as coisas, fazer comparações. "Por que os homens têm problemas?", eu me perguntava e respondia: "Porque são homens! Fossem tigres ou lagartos problemas não haveriam, pois em vez de os mentalizar, eles os viveriam."
O raciocínio parava aí, desalentado pela resposta quase automática. Munido de casuísmos, enredei-me na teia dos homens, em situação pior que a deles, porque tão confuso quanto eles, eu me impunha, como alternativa do caos, a idéia mestra de buscar a luz. Mas como encontrá-la se a noite estava em mim? De que adiantaria toda a claridade do sol se em meu espírito é que a névoa se instalara?! (Os homens parecem conformados com o destino, ou quem sabe, indiferentes a ele.)*
Antes da Europa, visões caóticas incutiam em mim a crença num mundo quase perfeito, quem sabe, minha terra ancestral. Tão perfeito que eu me angustiava de tédio, sonhando com a vida em perigo. Diante da mesmice de sempre, alimentava a nostalgia da barbárie. Mas, quando, entre os homens, vi o que era a violência, a visão de sangue derramado, repetida todos os dias, tornou-se igualmente enfadonha.
Não tendo encontrado a felicidade em meio à vida selvagem, temi que a culpa fosse minha. Agora, que a realidade me ensinou a mesclar aventura com estabilidade, entre vaidoso de certas peripécias, arrependido de outras, sinto saudades daquele mundo longínquo, do qual sou um egresso, sem esperanças de voltar.
Estou mudando; já não me deixo seduzir pela anarquia; quero disciplina, embora, sem exageros, porque sem ela a vida não flui para todos.
Na Terra sofri derrotas e vivi o êxtase. Se a sociedade dos homens, pela sua brutalidade, me decepcionou, o planeta, sob o aspecto físico, superou minhas melhores expectativas. Jamais vi paisagens tão belas. Quanta diversidade! Um sol, de brilho nunca visto, me alegra a alma como nenhum outro. Tenho medo de perder esse calor que me aquece a vida em seus mais íntimos recantos.
Mesmo quando sai para iluminar outras terras, eu o sinto no verde da mata, na moribunda luz do Ártico ou na fosforescência de uma lagoa azul, sem nunca me esquecer de sua melancolia ao entardecer, quando, apaixonado pela Terra, mas tendo de partir, ele desmaia no horizonte
*
Receio que, num processo inevitável, a memória esteja substituindo as lembranças de um lugar distante, de um tempo longínquo, cada dia mais embaçadas, pelas fortes impressões da vida aqui.
O que sei de mim começa no Pacífico, na ilha de Sompa, como se ali tivesse nascido já adulto. A Europa veio depois, a América, por último.
No "Trinidad Star" a vida seguia entre ameaças e promessas. "Se obedecer tem tudo!", arengava o comandante, um amarelo de pele gordurosa que numa taberna junto ao porto de Hamburgo, cheio de malícia, esteve a tarde toda junto de mim, embebedando-me, tirando-me as forças. "Se me desafia, a morte está ali!", ameaçava ele, apontando para as águas revoltas. Um marujo filipino se divertia, assustando-me: "Clandestinos não existem!" Às vezes acrescentava: "Existir é existir para alguém. A América é tão velha quanto as pirâmides, mas para o faraó que nunca ouviu falar dela, ela não existia. Ninguém sabe que você está aqui! Portanto, juízo!"
*
Inventaram um nome para mim: Joseph Douglas. Ganhava US$100 livres, por mês, que fortuna! Pouco a pouco eu me esquecia desta civilização que a violência e a fraude manipuladas por alguns, transformaram num inferno para a maioria que, possuindo iguais defeitos e virtudes, os tem numa proporção que lhe permite viver e deixar que outros vivam, enquanto a minoria de radicais do vem a nós, tão dependente se tornou do suor alheio, que não aceita que outros vivam senão para servi-la.
A boa vida alimentava o comodismo: "Para que mudar?!" Quase entendia aqueles que não sendo o cérebro da exploração do homem pelo homem, em troca das sobras, ajudam a sustentá-la.
Aparentemente conformado com a estabilidade por baixo, temia que a insatisfação estivesse para chegar. Algo teria de acontecer, algo, capaz de me tirar do morno aconchego e me pôr na estrada.
Escalávamos com frequência em Belém do Pará, porto brasileiro que na sofrida Europa do pós-guerra, imaginava fosse a entrada para as verdes planícies da esperança, onde queria viver longe do mundo.
*
Numa casa de câmbio junto ao porto, quis trocar dólares, mas depois de alguma espera, recebi ordem de prisão. "Dinheiro falso!", gritou o guarda. Ouvia falar de um "jeitinho", a que ninguém resistia, mas eu não sabia fazer a cara falsa que é preciso ter para comprar coisas fora do comércio. Ignorava que, para proveito dos donos do mundo, a virtude tivesse de estar no palco para se ausentar da vida.
O policial, ameaçando-me com as algemas, passou dos limites e eu me rebelei. Em segundos estávamos, ele no chão, a cara suja de sangue e eu em disparada pelas ruas.
Meses depois, vencendo rios conhecidos e desconhecidos igarapés, viajando de barco ou de pé, cheguei às cabeceiras do rio Negro, levando um canivete espanhol, a roupa do corpo, agora ensebada, sem o relógio suíço que vendi em Belém, já sabendo bem, como viver de caça miúda e frutos silvestres. (Se me perguntassem onde estava, não saberia dizer.)
*
Não havia ninguém sobre aqueles ermos limitados pelas planícies do Sul ao nível do mar e pelas montanhas do Norte ponteadas de agudas elevações. Da colina mais verde, fiz a capital do reino e dos altos da árvore mais alta, fiz meu refúgio contra o sol e a chuva; contra tigres e elefantes que imaginei fossem animais dignos daquela paisagem magnífica.
De manhã o sol iluminava a copa das árvores e eu, da janela recortada entre as folhas, contemplava rios e matas que me abasteciam de carne e peixe.
Diante da natureza intocada, eu era Adão no Paraíso, nos tempos da criação, sem Eva, pobre de mim! Como sinais de um impreciso verão, chegaram as chuvas, bem entendido, as grandes chuvas, porque as outras, as leves chuvas de sempre, nunca cessavam. A natureza recolhera-se a um silêncio compungido. As montanhas cobriam-se de névoa, enquanto rios e lagos eram invadidos por uma torrente de líquido amarelecido.
Inserta no contexto universal, a Terra cumpria impassível a rotina de suas estações. Ao alegre reencontro com os tempos de Adão, seguiu-se lancinante nostalgia da civilização.
Enquanto os animais recolhiam-se à espera das horas luminosas, eu, ameaçado pelo esvaziamento da memória, lutava para preservar a capacidade de pensar.*
Preocupava-me a crescente apatia mental causada pela abundância de bens naturais, que faz do pensamento um esforço dispensável. Sem poder registrar as palavras; não tendo ninguém para repeti-las, empenhava-me em retê-las, mudando, dentro da máxima simultaneidade possível, as idéias em palavras.
Os sentidos estiveram alertas um bom tempo, captando com avidez toda a diversidade das coisas locais. Todavia, tendo tudo à mão, dispensados de qualquer esforço para alimentar o corpo, eles, os sentidos, perderam sua acuidade. Por falta de concorrência, o cérebro descuidara da individualização das coisas na mente para que (aceitos pela maioria, a idéia da coisa e seu nome), cada um pudesse exercer sobre ela suas conveniências. Mas, para que preocupar-me com os bens da vida, se estavam à disposição; se ninguém mais havia ali que sobre eles pudesse manifestar pretensão? Inveja, vaidade, vingança, causas frequentes das disputas entre os homens, não tinham sentido naquele mundo de um homem só. Dispensada de alimentar o cérebro para o esforço de pensar, isto é, para o esforço de garantir a posse dos bens, a memória se desfazia como as nuvens se desfazem no céu.
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Quando batia a solidão, lamentava minha vida alienada, desculpando aqueles que no passado me desprezavam, porque em vez de me juntar a eles para lutar e viver, fugia desta civilização que é, queira ou não, obra minha também.
Cheio de desejos, eu me perguntava: "Que homem saudável não trocaria toda a paz destes reinos por um achego de mulher?!"
Até pouco tempo, num clima de verão, nem sei quantas vezes concebi, desabrochando-se em ondas de volúpia sob mim, Rimena, viçosa flor de Málaga; seus grandes lábios entreabertos em lânguido chamado; nossos corpos em mútua inserção, buscávamos nos completar numa só extensão em que, ajustadas saliências e reentrâncias, em meio à crescente tensão, o vaivém dos quadris nos conduzisse ao êxtase final, tão real que eu acabava molhado.
Porém, essas transas não aconteciam mais. Rimena, talvez suspirasse em Málaga.... longe de mim. Que pena!
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Num esforço para preservar a memória, percebi em meio à escuridão, pequenina chama que pensei tivesse vindo para atender inconsciente solicitação. À minha maneira traduzidas, inscrevi no chão, palavras que soavam como pungente exortação: "Não deixes escapar as idéias; por obra delas o mundo te cairá nas mãos!"
E tendo feito da volta à civilização minha tábua de salvação, agarrei-me a tais palavras como um náufrago, mas em vão. Olhando aqueles sulcos feitos no solo, elas me pareceram desligadas umas das outras e das coisas que deveriam indicar. (Compreendi que por conta própria jamais sairia dali.)
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Dale - que veio a ser minha mulher - chegou à região, quando o esvaziamento da memória ia tão adiantado em mim, que nosso primeiro encontro só não foi uma sequência de atos da natureza, porque, apesar do isolamento, perdurava em nós, centelhas de razão, a se manifestarem nos momentos de hesitação, como se, diferentemente dos outros animais, em plena ação, quiséssemos avaliar nossas conveniências. Contra minha primeira investida, ela reagiu, mas não com a invencível disposição da fêmea animal que fora do cio recusa o macho.
Refeito da surpresa, compreendi que aquele corpo modelado como contrapartida de minha virilidade, fora assim concebido como um convite à posse.
Entendida a mensagem, de lança em riste, parti para o ataque. Em meio aos trancos e truques, cansados, suando, fomos ao chão, onde, de cócoras, os olhos de um nos olhos do outro, hesitando por instantes e por instantes nos medindo, aconteceu que do fundo da memória nos acudisse a lembrança de que sendo filhos diletos de Deus, faríamos bem em transcender a natureza para criarmos a realidade nova do espírito, transferindo para dentro de nós, o centro da criação, fazendo-nos pela Razão, senhores do tempo de agir e de pensar, artífices do destino, prontos a trocar - por exemplo - a obrigação de procriar pelo honesto prazer do corpo.
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Dale tinha 1m70 de altura, 60k de peso, a pele cor de azeitona, queimada de sol; cabelos muito lisos, da cor de mel; olhos azuis, de rara transparência. Era tão diferente das outras índias, tão parecida comigo (moreno claro, de oblíquos olhos azuis) que se nos vissem juntos, perguntariam: "Tua irmã?!"
Mais tarde, descrevendo sua exótica beleza para o pastor Banes, ele me contou a história de um navegante holandês, bucaneiro perverso, ladrão até de irmãos, contra quem, por temor de seus excessos, uniu-se no princípio do século XVI, toda a pirataria das Antilhas.
Fugindo à perseguição geral, ele e seus gigantes de olhos azuis, subindo o rio Orinoco em busca do Eldorado, defrontaram-se com os guajacas que dominavam as nascentes. Mataram tudo o que era macho, até recém-nascidos; se apossaram das mulheres e por meio de uma recém-fundada Igreja do Cristo da Reforma, simbolizada pela cruz e garantida pelas armas, tendo-o como chefe, dominaram a região por muitos anos, até que, desaparecido o grande homem que se proclamava "Máximo Pontífice" e "Imperador do Povo Guajaca", a nação se desintegrou, deixando como herança, gigantes de pele esverdeada e olhos azuis, que se espalharam pelo alto Orinoco, aos quais se referiam muitas das crônicas missionárias do século XIX.
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Enquanto o pastor falava dos costumes daquele povo, um deles, obrigando a mulher sem descendência a trabalhar para a outra que tivesse dado filhos ao marido, lembrei-me de Dale empenhada em me explicar que tendo sido declarada estéril depois de dois anos de acasalamento, quando lhe tocou a vez de servir, achou iníquo o preceito, preferindo arriscar-se nas matas, na esperança de que ainda seria mãe.
Livre do cansaço, meus olhos desceram dos olhos dela até sua boca receptiva e um beijo prolongado inoculou em meus sentidos o incitante sabor de seus lábios. Meu corpo reagiu ao desafio dos seios eretos, apontados para mim. De novo pronto para a ação, sozinhos naquelas paragens, o mais forte sendo eu, contra sua resistência me enfureci.
Abandonando as gentilezas de um civilizado, contra ela investi e tendo em cada mão um feixe de seus cabelos, por eles empurrei-a de costas até que sua nuca tocou no solo a rústica paisagem e eu percebi sinais de rendição ao vê-la desfazer a trança das coxas que me impedia o acesso.
Silente, quietinha sob mim, como se fora uma fatalidade, ela me acolheu, na sinuosidade de seus movimentos, na excitante jornada que iria nos conduzir ao êxtase, se bem que, necessitados de uma nítida compreensão sobre este evento capital da vida, tivesse valido ele, menos pelo prazer de agora, do que pelas promessas de inefáveis momentos, de um dos quais nasceria Zada, filha nossa.
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Aos olhos de um cavalheiro, nosso primeiro enlace, embora acontecido entre flores e perfumes, não foi gentil. Nem seu nome perguntei, talvez porque para perguntar e responder, ao menos dois tem que haver e não só dois, mas dois cujas lembranças sejam a história de muitas vidas. Se entre nós, ela, a recém-chegada podia relembrar essas vidas; de minha parte, depois de anos de isolamento - uma só vida poderia haver, a que se vive no presente, pelos sentidos apenas.
Se ela tivesse me perguntado de onde eu vinha, como fazem as pessoas quando encontram desconhecidos e eu lhe tivesse respondido: "Venho de além mar!", teria sido uma resposta inútil, porque ao mencionarmos algo que não esteja sob nossos olhos, ou nos referirmos a ações passadas ou futuras, ou mesmo a ações presentes que estejam acontecendo longe de nós, essa realidade ausente dos sentidos, revelada pelo cérebro, só é válida se garantida por um lastro de credibilidade, fundado na lei das possibilidades, fortalecido pela crença em testemunhos que, vindos de longe, e solidificados por consistentes probabilidades, fazem-nos acreditar que a realidade assim obtida, seja quase tão viva quanto aquela que se exibe sob as nossas vistas.
Como fazê-la acreditar em minhas orígens no além mar, se não sabia nem o que era o mar! Seria como dizer a um civilizado destas bandas: "Venho do planeta Pu!" Como esperar que acredite numa tal afirmação, se jamais alguém viu aqui um "ET" vindo de Pu; se entre nós a própria existência de "ETs" é questionada; se as viagens interplanetárias não integram ainda o nosso reino das coisas possíveis?!
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Embora me restassem fulgurações de uma vida anterior, diferente da vida atual, vinham elas de tão longe, que, jamais acreditaria pudessem abalar o sentimento de que era um "autóctone", tão preso àquela paisagem, quanto a velha árvore que me dava proteção para dormir. Além do que a vista podia alcançar, não conseguia imaginar nenhum outro lugar na Terra. Mas, estranhamente, vislumbrava, com frequência, planetas sem conta, girando nos confins da "Via-láctea", nos quais a existência de seres inteligentes fosse até possível.
Embora apreciasse ver Dale apanhar flores sorrindo para mim; embora sentisse que nenhum animal fosse capaz de proeza igual, era difícil imaginar outros lugares com milhões de criaturas iguais a ela, gozando e sofrendo, exibindo-se no luxo ou mourejando nas fábricas.
Fascinado por aquele apetitoso corpo de mulher, tinha dificuldades de vê-la como um racional. Dominava-me por fora, desejos de sorvê-la inteira e, por dentro, o sentimento de quem contemplava um nobre exemplar da fauna local, bípede altivo, meu semelhante, nós dois, complementos um do outro, embora, dos abismos do ser chegasse até mim algo parecido ao sentir do leão que, de cabeça erguida, diante da savana imensa, olhando para ela, se jactasse: "Sou o rei dos animais!"
Ignorando o que fosse um racional, sem jamais pensar que pudesse tornar-me um deles, minha postura em relação aos outros animais era de inata superioridade. Talvez porque fosse macho, considerava-me diferente de Dale, diferente para melhor. Ela era quase igual a mim, o animal mais próximo de mim. Gostava dela, embora, recorresse à força bruta, se fosse contrariado. Não me atemorizava diante de outros animais, ainda que fossem mais fortes. Nasceram para me servir, era o que pensava. Embora jamais tivesse deparado com um leão, sua fama de "rei dos animais" nunca me impressionou. Zombava de suas virtualidades estagnadas e, mesmo sem títulos, me achava superior, rico de possibilidades, animal promissor que, avançando sempre, logo me tornaria o rei da Criação, nos calcanhares de Deus.
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Depois de repetir "Dale", "Dale", muitas vezes, conclui que esse era seu nome e ela, com palavras estranhas, seguidas de gestos mais compreensíveis, quis saber o meu e eu, valendo-me de iguais recursos, pedi que me chamasse de Jonas e tendo ela dito muitas vezes Jonas, assim ficou.
Dale ignorava que a idéia e sua expressão material - a palavra - só tem utilidade na disputa pelos bens da vida, numa sociedade em que, sob mil disfarces, com eles se joga o jogo do poder.
Se a força bruta já não pode ser livremente usada para obtê-los, há que recorrer às ameaças e tapeações, só possíveis pelas idéias e palavras que, embora não produzam mudanças físicas, quando bem manejadas, são capazes de convencer o outro a nos entregar seus bens ou desistir dos nossos, desde que haja poder material capaz de dar peso às ameaças.
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Não havia ali quem pudesse contrariar nossas pretensões. As disputas entre nós, únicos habitantes daquelas paragens, se limitavam às questões de sexo e, mesmo aí, eu pela força me fartava sempre que ela, por capricho, relutava em me ceder o corpo. Nem de nomes precisávamos, pois, existindo apenas um falante e um ouvinte, de perto eles eram desnecessários, de longe, não podendo ser ouvidos, para nada serviam. Decorridos dois anos, Dale havia esquecido até as palavras Vista Hermosa, ditas por ela ao contemplarmos de cima da árvore-mãe, o rubro horizonte de nosso primeiro amanhecer, que, a partir daí, ficou sendo o nome do sítio dos nossos amores.
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De pé, à entrada do acampamento, esperava-nos o senhor daquele mundo - o pastor Banes - nome tão repetido pelos que a seu mando nos sequestraram, que não foi surpresa vê-lo em pessoa. Tinha 1m80 de altura, 75k de peso, era louro, de cabelos finos, aparentando menos que seus 50 anos oficiais.
À nossa chegada dispensou os guardas, aproximou-se mansamente, afagou os cabelos de Zada, estendendo-me as mãos num cumprimento tão estranho quanto as linhas retas e curvas inscritas numa placa de madeira, formando as letras UCC, iniciais da Universal Christian Church fundada por ele na Califórnia em 1946, hoje com milhões de adeptos nas três Américas.
Águas Claras era então a Roma da nova igreja, graças à presença ali de seu máximo dirigente, ele, o pastor Banes, visionário incorrigível, sempre atrás de um mundo novo que haveria de nascer de suas mãos, ainda que no meio daquelas matas intocadas.
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Para alcançar a terra da promissão, tivemos de vencer 50km de território brasileiro, vindos de Vista Hermosa (local e nome só por nós conhecidos), onde vivíamos em estado natural.
De Águas Claras, garimpo de ouro próximo de três países, o pastor mantinha, sob controle imediato, num raio de 100km, mais duas minas: La Cuia, na Colômbia e San Izidro, na Venezuela.
O senhor daquele mundo nos alojou na casa principal, a "Casa do Pai", onde morava com a família - a mulher, Helen e a filha Victória (Vic). Naquela noite, o uivar dos cães, o barulhento amor dos gatos - domésticas reminiscências há muito tempo esquecidas - despertaram-me várias vezes. De madrugada, à luz da aurora, pude ver no chão, parte das peças que nos deram para vestir, das quais nos livramos a seguir, premidos pelo costume de viver nus.
Atordoada com a passagem da vida simples de Vista Hermosa para a complexidade do acampamento, minha filha dormia de cócoras como de costume e tendo eu constatado que havíamos instintivamente ocultado os umbrais da vida, compreendi que ela perdera a inocência e eu reencontrara a culpa.
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De manhã, com o sol brilhando na copa das árvores, o pastor entrou no quarto e virando-se para os lados do Oriente, exigiu que o seguíssemos. Adiantou-se a nós em direção à orla da mata, onde, numa praia coberta de cascalho, à beira de um límpido riacho, a comunidade nos aguardava para a cerimônia do batismo.
Certo de que o espírito só acolhe o que vem dos sentidos, o pastor Banes, criatura simples no dia a dia, enchia-se de pompa quando, proclamando-se representante de Deus na Terra, celebrava os atos litúrgicos.(Fascinava-o a pureza do branco e o brilho dos metais.)
Nessas ocasiões, apesar do calor, ele se deixava envolver por alva túnica de algodão mesclado aqui e ali por fios de ouro. De feltro branco, seu chapéu afunilado tinha a encimá-lo autêntica jóia - uma cruz do valioso metal, brilhando ao sol. Nas botas igualmente brancas, luziam ilhoses de ouro e, do nobre metal que simboliza as riquezas do mundo, era o cajado, a indicar seu mando. (Em meio ao verde da floresta, o brilho do ouro emergindo da branca roupagem, assim queria ele!)
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A poucos metros do remanso em que ali o córrego se transforma, o pastor volveu à esquerda e movendo-se de costas, alcançou uma larga poltrona trabalhada em ouro, recoberta por um toldo debruado igualmente em ouro.
Erguida a poltrona, à moda de um trono sustentado por mateiros, ele entoou o cântico "Em nome de Deus", acompanhado por adolescentes vestidas de branco. Cumpriu-se um longo ritual, ao fim do qual, espargindo sobre nossas cabeças água pura de uma ânfora dourada, ele a cada um perguntou que nome desejava e tendo eu balbuciado Jonas, e Zada se omitido, ele inscreveu no "Livro de Batismo" Jonas e Juana de Deus, seguidos do patronímico Inatto (não nascido) que, grafado com dois tês por capricho de quem é senhor das coisas, virou nosso nome de família.
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Éramos estranhos à babel em que se transformara a vida civilizada; éramos selvagens despojados de sua liberdade para atender aos caprichos de uma civilização capaz de realizar prodígios materiais, incapaz de organizar a produção em benefício de todos.
No país da inocência onde vivíamos, os bens da vida estavam à disposição, limitados apenas pelo apetite, sem que para desfrutá-los, precisássemos de uma única idéia. Mas em Águas Claras, modesto núcleo social, observando as relações entre os homens e entre eles e as coisas, compreendi que doravante, satisfazer os apetites iria exigir de nós, mais que o simples apanhar com as mãos. Para quem precisava entender e explicar a realidade, dando e recebendo informações sobre ela (porque esta é a função da linguagem), o que ali, a respeito dela, diziam as pessoas, era desalentador. Aquilo que em Vista Hermosa intuíamos como realidade - a vida sob nossos olhos - em Águas Claras estava tão distorcido pelas disputas entre os indivíduos; tão sublimado pelas exortações cívico religiosas daqueles que o poder autoriza a falar em nome de outros, que o mundo parecia uma casa de doidos. Só compreendi a razão daquele pomposo falatório, quando ouvi que não há nada melhor para esconder a realidade que a retórica surrada, mas rendosa, de políticos e agenciadores de Deus, que falam, falam, sem dizer nada, como o próprio Banes que não sendo homem loquaz, quando inspirado era capaz de alinhar dois sinônimos onde um era demais.
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Aceitar uma civilização que vive da mentira, virou desafio crucial para quem vinha de onde a realidade era vivida sem ser pensada, porque não havia interesse em disfarçá-la. Naquela modesta unidade civilizada, como em todas as outras para onde o futuro nos levou, as regras da etiqueta, da gramática e outras criações do homem que, aparentemente, nada têm com a luta pelo poder, constituíam com a moral e a religião, um sistema destinado a preservar as vantagens dos fortes, advindas de seu domínio sobre os fracos, garantido pela impessoalidade das instituições que só os fortes podem criar e manter.
Não foi difícil adaptar-me àquele mundo, porque reagi como se já soubesse a lição, bastando recordá-la. Mas para Juana, vencer a partir do nada, os desafios da vida civilizada, foi tarefa imensa. Apegou-se aos animais, especialmente a um cãozinho (bicho, para ela, desconhecido), que as crianças chamavam "Big" e ela tanto chamou de "Auau" que o nome pegou.
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at/170603 Depois de um ano, eu me fazia entender, embora, expressando-me num inglês rudimentar. Juana, porém, avançara pouco, recusando a convivência com as pessoas, privando-se da pratica das comparações, indispensáveis à elaboração do pensamento. Não conseguia emitir sons articulados, tampouco era capaz de reagir à voz humana convertida em palavras.
Naquela comunidade de trabalho obrigatório, Banes incumbiu-me de cuidar da biblioteca; de recolocar em seus lugares, centenas de livros espalhados pela casa. Com sua tácita aprovação, logo me dedicava mais à leitura que ao trabalho, como se disto dependesse meu futuro. Protegia-me abertamente, causando inveja nos hierarcas da UCC. Devotava-me tais cuidados que cheguei a duvidar de suas intenções. Com o tempo, passei a admirá-lo tanto que a mim mesmo surpreendia, pois diante de agenciadores de Deus iguais a ele, sempre mantive um pé atrás. (Ele, porém, era mais que um aproveitador!)
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Um dia, eu e minha filha, de cócoras no assoalho da varanda, ela, olhando-me com um olhar intencional que eu jamais observara em outros animais, deixou transparecer, sem disto se aperceber, que afinal empreendera o grande salto no processo (misterioso para ela e ainda confuso para mim) da capacitação para pensar, processo que a vida fácil em Vista Hermosa, no meu caso esvaziou e no dela nem começou por desnecessário que era. Não se expressava, nem reagia previsivelmente às expressões de outros, por falta do que expressar; por desconhecer o teor das manifestações alheias. Faltava-lhe algo anterior à expressão - a idéia a ser exteriorizada - embora eu percebesse indícios de que em sua cabeça ganhava alento o mágico processo do pensamento que logo iria lhe abrir as portas da condição humana.
Antes, aceitando a razão como dádiva da natureza e o processo de capacitação para pensar, como um processo individual que se desenvolvesse dentro de nós, apartado dos outros indivíduos, um processo com tempo certo para começar e acabar, semelhante - digamos - ao processo da capacitação sexual; aceitando essas crendices, temi que Juana estivesse condenada à inatividade intelectual por deficiência orgânica diagnosticada pelos apressados.
Consolava-me recordá-la em Vista Hermosa, gatinhando pelo chão da palafita onde morávamos. Vinha-me à cabeça a imagem de uma criança vivaz, tão saudável quanto os saguis nossos vizinhos, porém, superior a eles, porque era capaz de observá-los e com os olhos nos comunicar sua emoção. (Lembrava-me de sua infância e confiava!)
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Aturdida pela gritaria ininteligível das crianças; pela irritação verbal dos adultos (prenunciando violência física), Juana isolou-se. Para fugir à tristeza dos hinos religiosos que não lhe diziam nada; para não comer à mesa, de garfo e colher, os pratos cozidos que lhe repugnavam o paladar; ela ia à floresta - sua amiga - à procura do que mais queria: frutas, mãos livres para pegá-las e minha companhia.
Mas progredia. Agora, diante da algazarra infantil; da falação dos adultos e dos cânticos religiosos, já não tapava os ouvidos. Ligava-se nas palavras que no contexto das ocorrências, começavam a significar alguma coisa, separando-as de outras que suspeitava fossem recursos de encaminhamento da fala ou que na conversa tivessem a função do balançar dos braços numa caminhada.
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Quando os homens do pastor Banes chegaram à palafita para onde eu e Juana mudáramos depois da morte de Dale, tive impulsos de lhes cheirar o corpo como fazem os bichos, mas fui repelido. Faltava-lhes sensibilidade para perceber em nós, medo e alegria por estarmos diante de criaturas tão parecidas conosco. Embora vivendo no mais rigoroso isolamento, era como se, no íntimo, sentíssemos alguma afinidade com aqueles seres extravagantes.
No acampamento, um ano depois, utilizando ainda poucas palavras, acreditávamos que chegaria o tempo em que por meio dos nomes, um recurso de humana criação, poderíamos indicar tudo o que suspeitávamos fosse a civilização. Falar para se comunicar e, pela comunicação, criar outros mundos é o que importava agora.
Depois de alguns meses em Águas Claras, xucros como não havia iguais, prevalecia em mim a expectativa de que logo estaríamos em condições de pensar e pelas palavras expressar o pensamento. Éramos animais promissores, retardatários no caminho da razão, mas retardatários de ocasião, por falta de vida social.
Consolava-nos saber que mesmo as mais avançadas civilizações da Terra vivem, ainda hoje, a Idade da Força, eis que em todas elas, a razão incipiente faz do poder, pronto a se converter em violência aberta, a garantia da ordem.
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Em Vista Hermosa, um dos meus tormentos era sentir que o saber intuitivo ficasse no peito confinado. Era impossível transmiti-lo por falta de algo que no intelecto se constituísse em réplica do mundo exterior dentro de nós; algo resultante dos sentimentos mais frequentes, que o hábito, pela sedimentação, converte em idéias que, depuradas pelas comparações, ficam à disposição de todos, mesmo longe das coisas refletidas.
Indispensável também que a este sentir padronizado e solidificado - a idéia - presente no cérebro, se juntasse um instrumento capaz de torná-lo acessível, quando solicitado a partir do exterior, nascendo daí a representação universal externa da idéia, consubstanciada num signo (palavras, gráficos, gestos) que impressione os sentidos.Mesmo perdidos naquela imensidão verde, éramos guiados por uma intuição já superior à dos animais, que nos ensejava transmitir um ao outro, por repetição que se converte em hábito, as vivências do dia a dia, numa linguagem simplista, ainda assim, fora do alcance de qualquer outro animal, eis que certas espécies, embora produzam algo muito pouco parecido com idéias, não conseguem combiná-las para raciocinar, nem desenvolvê-las na memória como bases de novas e mais complexas combinações.
Se o olhar de um símio revela sentimentos inexistentes em outros animais e se esse olhar pretende nos transmitir o que recebeu do exterior pelos sentidos, ainda assim, a distância entre macacos e homens é incomparavelmente maior do que a que separa um galo de terreiro de um condor dos Andes. Se o galo bate asas a um metro do chão e se o chimpanzé ensaia pensamentos, nenhum dos dois vai além do impulso inicial. O galo não atingirá as grandes altitudes, tampouco o macaco igualará o mais primitivo dos homens no vôo do pensamento sobre mundos que os sentidos não alcançam.*
Sofria pensando que Vic a filha de Banes deitasse comigo só para contrariar o pai. Ela não acreditava no prazer físico. Ficava enojada de fantasiá-lo para satisfazer a vaidade do parceiro.
Confessou-me, ainda em Águas Claras, que jamais atingira o orgasmo, embora o desejasse. Cansara de falar sobre ele com amigas para lá de experientes, mas continuava tão confusa quanto antes. Prazer era para ela o prazer da conquista, gozo espiritual, de que se servia para finalidades estranhas ao sexo. Invejava e odiava os homens, daí a ânsia de conquistá-los; de tê-los a seus pés, para diminuí-los, para se vingar deles.
O que entre nós aconteceu, veio de sua iniciativa. Embora fuja dos amores de segundas intenções, pressionado por um longo jejum, diante de sua insistência, acabei cedendo. A princípio excitava-me sua estudada sensualidade em público, que desaparecia na hora da verdade. (Em vez de aquecer o parceiro, ela, com suas queixas, o esfriava.)
Certa vez, eu chegava ao ápice, quando ela me baixou ao chão, dizendo num momento impróprio: "De vocês é o gozo; pra nós sobra esse vaivém que não acaba nunca, o inchaço do ventre, as dores do parto."
Durante nossos encontros, seus lábios ficavam gelados; seu corpo virava uma extensão de fibras adormecidas; por fora a ausência de sangue a lhe ruborizar a face; por dentro nenhum sinal do úmido frescor desses momentos.
Numa tarde, enquanto se vestia, ela me pareceu a mais infeliz das mulheres e apesar de sua resistência aparente, lhe falei da vida com afeto.
*
Quis fazê-la compreender que nós, como racionais, podemos ajustar a natureza aos nossos fins, embora sem renegá-la.
--- O que tem isso a ver conosco?
--- Muito! Principalmente com você que deseja o prazer, mas, incapaz de alcançá-lo, se ressente.
--- Como pode saber dessas coisas sendo homem?
--- Raciocinando, fazendo comparações, só assim podemos saber o que se passa longe dos sentidos, coisas vividas por outros. --- A rigor não posso comparar o que acontece dentro de mim com o que vai no íntimo de outros. Não posso comparar se tomo o objeto da comparação - no caso o prazer sexual - como fato isoladdo, quando deveria ser examinado dentro de um contexto, pois não existe um ser único, totalmente isolado, sem ligações com o mundo. (Localizar alguma coisa num determinado contexto significa começo de explicação.)
--- A necessidade de simplificar é que nos faz tratar as coisas como unidades estanques, embora elas o sejam por convenção nossa, porque no mundo real, essa individualização não tem sentido. --- A idéia de qualquer ser, como toda idéia, abriga a idéia de outros seres. Uma casa é um ser, mas pode segundo nossas necessidades, desdobrar-se em tijolos, telhas ou grãos de areia. --- Uma casa é um ser; um tijolo também é. Se não pudéssemos aferir por comparação, o que acontece com os demais, não seríamos racionais. (Do que acontece longe dos sentidos, temos idéias e isso que não é a realidade, nos põe muito próximos dela.)*
--- Por que o discurso?!
--- Vic, sexo faz bem para o corpo e para a alma!
--- Os homens são estúpidos - ela me interrompeu. Delicados na rua, um agrado aqui, outro ali, fico enojada! Na cama são uns cavalos. Nos montam como potros, nos sufocam com seu peso e depois de todo um vai-e-vem ridículo, tonteiam de gozo e vão embora, deixando-nos insatisfeitas, impregnadas de sua nojeira.
--- É a vida! Nossas injustiças seguem as injustiças de Deus. (Só a razão pode trazer parcial compensação!)
Aparentando frieza ela me interrompeu:
--- Não sei de onde tira essas idéias.
--- Vic! Escuta! O racional, sendo capaz de fazer previsões, pode contrariar a lei natural; só não pode revogá-la. Embora a natureza lhe sugira abstinência, a gestante faz amor até o fim, porque a necessidade de satisfazer o homem para salvar a união, fala mais alto.
*
--- Detesto seu machismo!, disse.
--- Não é machismo! Falo com isenção das características de cada sexo. A reprodução embora não seja para os racionais o objetivo único da relação sexual é o principal, porque assegura a sobrevivência da espécie. Ela exige participação de ambos os sexos, embora participação desigual.
É indispensável a contribuição dos dois para a concepção, marco inicial do processo da reprodução que, normalmente, começa pelo entrelaçamento físico. Até aí, a superioridade física do macho, sua permanente disposição para o acasalamento, assegura-lhe, inclusive, a posse indesejada e com isto relativo domínio do processo. É natural que ele - atraído pelo prazer - tenha pelo coito muito mais interesse; daí porque a participação dela na cópula, pode nem ser ativa, basta que não seja impeditiva. Mesmo entre racionais, ao lado da inteligência basicamente igual, o macho detém a superioridade física que lhe garante a iniciativa. Se ele não quer, nada a fazer; se ela recusa, sobrevêm o estupro. Mas, depois do acasalamento eficaz, a relação torna-se desequilibrada. Cessa a participação do macho e cresce a da fêmea, que, no final, assume todas as responsabilidades.
*
São atrativos para o homem, o prazer gerado pela união carnal, somado à leveza da paternidade; são desestimulantes para a mulher, as dores e incômodos da maternidade, aliados à possibilidade de desatender o apetite sexual, pois a castidade não mata nem maltrata; enfim o gozo como incentivo para o homem e o sacrifício como desestímulo para a mulher - fizeram da relação entre os sexos uma fonte de conflitos, com o macho buscando sempre e a fêmea quase sempre resistindo, numa batalha de todos os dias, devido à necessidade de procriar e conviver.
--- A mulher pode conceber sem gozo, através de uma relação dolorosa até; o homem não pode, pois sem a ejaculação - ápice da sequência orgástica - ele não produz a gravidez, frustrando-se como reprodutor. --- O gozo físico, culminância da relação, é, para ele, importante por si mesmo. Não é assim com a mulher. Nela o prazer, incipiente, dissimulado, vem quase sempre, depois de outros interesses (por exemplo – vantagens materiais, na prostituição - ostensiva ou não.)
Aquilo que acontece antes, durante e imediatamente após a cópula são visíveis no macho. No homem a união carnal é muito mais ostensiva do que na mulher. As peculiaridades de cada sexo produzem respostas diferentes ao apelo dos sentidos, com reflexos psicológicos. No homem a realização como pai não arrefece o interesse pelo prazer físico, ao passo que na mulher, depois da afirmação pessoal proporcionada pela maternidade, o interesse decai, mal conservando, o prazer da conquista, um prazer espiritual. Para o homem o gozo físico é, por si mesmo, um poderoso atrativo; para a mulher nem tanto. Para ela avultam outros interesses que só têm a ver com o sexo por causa do permanente apetite do homem que de certa forma o põe na dependência dela.Jogando com sua possibilidade de abstenção, a mulher faz da resistência, o instrumento de uma gentil chantagem que domina sua sexualidade e que passa despercebida, porque a necessidade de auto-valorização impõe a dissimulação.
--- Por que essa injustiça? Vic perguntou.
--- Não sei! Antes que alguém falasse em justiça, a natureza já favorecia o macho!
--- Não se queixa porque só tem vantagens!
--- É verdade! Não tenho queixas, mas gostaria que homens e mulheres tivessem o mesmo prazer no sexo.
Os dois sairiam ganhando. Sempre me perguntei por que ao macho, a natureza, para atraí-lo, concede o prazer. Por que à fêmea, ela impõe para sua auto-realização, os incômodos da gravidez e do parto, até os riscos de vida! Lamento que a natureza, concedendo ao homem a superioridade física, pôs ao lado de cada mulher, um pequeno déspota a tiranizá-la dentro de casa todos os dias.
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Apesar de seu aparente cansaço, prossegui: "Você se deixa levar pela gabolice de mulheres segundo as quais, o ato sexual é, como nos homens, uma explosão de gozo, coroando uma ascensão vertiginosa.
Quanto exagero propiciado pela desinformação, facilitado pela anatomia! Na mulher o sexo, por sua retraída constituição facilita o disfarce, enquanto no homem, a maior exposição desencoraja a fraude. Graças à conformação dos genitais, mais resguardados nas fêmeas que nos machos, prostitutas experientes fantasiam vezes sem conta a excitação e o gozo, sem abalo de suas forças.
Para o macho é difícil fingir. Ele não pode penetrar, não pode iniciar o coito, sem que a companheira perceba e não pode concluí-lo sem deixar sua marca, "essa nojeira" como você diz. Na mulher a cópula evolui suavemente, proporcionando reações de difícil percepção, ao passo que no homem ela avança numa sequência de fases que se dão a perceber claramente: ereção, movimento obrigatório, o vulcão jorrando lava, um quase desmaio, alívio generalizado.
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No acasalamento - disse eu - a subposição imposta às fêmeas; a característica agressividade do macho e outras inconveniências, concorrem para que elas fiquem em desconforto. Nelas, o que se dá a perceber quando excitadas - certos odores, intumescências e típicos humores - vem da necessidade de atrair o macho e facilitar-lhe a penetração.
--- Tais estimulantes, são para o homem, desejáveis e para a mulher, quiçá agradáveis, porque favorecem a relação, embora sejam dispensáveis. (Mais ainda, sofrem limitação - ocorrem no cio.)
Machos e fêmeas (elas em ocasiões apropriadas) buscam o acasalamento também para aliviar uma excitação que chega a ser dolorosa e (principalmente entre os humanos) se faz acompanhar de profunda ansiedade.
Presente nos dois sexos prestes a se unirem, excitação e ansiedade surgem a qualquer tempo no macho e, durante o cio, na fêmea. A natureza exige do macho que esteja disponível. Ele não pode ser refratário à união como são as mulheres na maior parte do tempo. Uma fêmea no cio, com sua simples presença excita o macho, transmitindo-lhe ansiedade, obrigando-o a copular para se aliviar.
Machos e fêmeas se uniriam mesmo sem gozo, só para aliviar a tensão. Porém, se não houvesse o prazer como atração, o macho de humana condição, podendo contrariar a natureza e não podendo ser compelido pela força, resistiria às solicitações, frustrando a reprodução.
Através do prazer a natureza incita o macho a uma disponibilidade sexual permanente; através dos incômodos, ela impõe continência às fêmeas. O próprio parto, culminância do processo da maternidade, é, apesar de sua importância, um incômodo, desconhecendo-se mulher que tenha tido prazer com ele.
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--- Fim de papo ‘seu’ Jonas! O homem tem privilégios e nós mulheres estamos fritas!, ela exclamou.
--- Vic! Mesmo que não goste, é de mulher a tua condição. Para modificar o mundo, revolta só não basta! É preciso ter sobre o que se pretende mudar, exata compreensão. Você diz que os homens são grosseiros. Concordo que sendo mais fortes, eles tendam para a violência, mas, existe remédio.
Homens e mulheres são racionais e isso muda as coisas. É preciso desmontar essa estrutura de dominação dos fracos pelos fortes, nela incluída, a dominação da mulher pelo homem, de cuja ideologia faz parte, a ilusão de que são iguais no apetite e no gozo, tendo iguais necessidades. A criação de expectativas de prazer acima das possibilidades da mulher faz que ela se decepcione ou se vingue, culpando-se pelo fracasso ou culpando o parceiro, evitando o sexo para não se frustrar.
Essa distorção confunde também o homem: se ele não é correspondido por um gozo igual ao seu, ela é uma gelada ou não lhe tem amor; ou pior, está se fartando em outras fontes.
O sexo - acrescentei - por sua ressonância, virou mina de ouro da comunicação de massa, disto resultando mais desinformação que ciência. Na ânsia de servi-lo num banquete de todos os dias, homens e mulheres se culpam pelo fracasso, esquecidos de que a causa está mais na desinformação do que neles. (A mídia pensa em lucros, disto resultando prioridade para escândalos e exageros.)
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Nuvens escuras levaram a noite para o interior da mata. Pingos gigantes caíam sobre nós. Eu usava shorte e camiseta, ela vestia calça de brim e blusa de malha. "Tira a roupa!", ordenei. Ficou de calcinha e sutiã. Enquanto as nuvens escondiam o sol, eu recolhia folhas de "Chapéu do Mato", parecidas às da "Vitória Régia". Com elas cobri as roupas amontoadas no chão.
Nossos cabelos agora enleados se fundiram numa só transa. Ela sorriu ao perceber que só queria defendê-la da chuva.
A tempestade nos apanhou de pé, nus, abraçados, umbigo no umbigo, os seios roçando-me o peito. Pequeninos estálidos indicavam algo se dilatando em mim, algo que ela percebeu.
"Furioso você, ein?", exclamou, sorrindo, cúmplice.
O sol brilhou de novo. O céu voltou a ser uma extensão azul matizada de brancas nuvens. Logo estávamos enxutos. Vesti o shorte, ela tirou o sutiã, ficando de seios à vista. Aproximou-se de rosto alegre e me puxou para o acolchoado verde, onde, a seu pedido, voltamos à posição de antes - eu sentado, as costas escoradas no tronco de uma árvore, ela entre minhas pernas, a nuca apoiada em meu peito.
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"O que vamos fazer?", perguntou.
Prossegui como se nada tivesse ouvido: "... Falávamos da estrutura que enseja a exploração das mulheres, fundada na distorção da realidade, pois o desequilíbrio de forças entre os sexos, daria quando muito, para que um dominasse o outro, de indivíduo para indivíduo, sem as garantias de uma estável dominação."
Olhava para Vic à espera de uma reação que veio rápida, demonstrando sua aversão a "essa linguagem corrompido pelo uso, despojada de seu original conteúdo, simples papaguear, que nada significa."
Adiantou-se a mim: "Sei que vai falar de razão, verdade, justiça! Tenho horror a essas palavras de todos os dias, das quais cada um tira o que quer!"
--- Você está certa Vic! O esvaziamento desses conceitos constitui forma de mentira que hoje, graças à mídia, faz pelos privilegiados o que em outros tempos fazia a força bruta.
Parecia aborrecida. Deixara transparecer que eu era pedagógico, cansativo e pretensioso. Lembrei-me de seu pai, sempre falando dos mesmos assuntos, todos eles, estranhos à maioria das pessoas; sem ninguém para ouvi-lo de boa vontade. (Talvez por isso, me quisesse tanto.)
"Só se discrimina o que é diferente e mais fraco!", prossegui, indiferente a seu estado de espírito. Embora fisicamente inferiores, as mulheres são inteligentes tanto quanto os homens e tão necessárias quanto eles para mudar a natureza, só possível pela razão, que nasce da integração das inteligências, metade mulheres."
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Estava sonolenta, próxima do sono. Bem perto de nós um casal de saguis copulava em paz. Com a fêmea presa entre os braços, parte do corpo inserido nela, o macho ia e vinha com ar prazenteiro, enquanto ela se impacientava.
Vic despertou a tempo de ver o macaquinho se contorcendo nos derradeiros movimentos. Antes de refluir do corpo da companheira, ele se deu ao luxo de nos olhar com ares de triunfo como se humano fosse.
--- Machuca a pobrezinha e ainda posa de herói, pode?!
--- Verdade! Mas conosco é diferente...
--- Acabaram as queixas!, disse ela, esquecendo os macaquinhos, voltando-se para mim. "Seja como quiser meu amo e senhor!", brincou.
Espalhou-se, lânguida sobre mim, num jogo sensual digno de elogios. "Chega de palavras, vem!", falou, visivelmente ansiosa, envolvendo-me qual serpente. "Não quero te importunar", eu disse, fazendo-me de rogado.
"Vem!", insistiu.
Desta vez cooperou. Não parecia sentir mais que um leve prazer, mas a alma estava radiante.
Quando me perguntou sorrindo: "Gostou?", fui tomado de grande alegria.
Caminhamos até a orla do bosque, de onde ouvíamos a algazarra das crianças na escola. O sol desaparecia no horizonte. De pé, trocamos um longo beijo, um beijo de despedida. No outro dia ela viajou para Taraga.
**1
Volta
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Segue
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Pg.inicial
Ansiosa para acabar com a desordem
que facilita a corrupção,
mas, receosa de lutar,
a maioria de comodistas
prefere deixar tudo como está. (A DESCOBERTA DA TERRA***Parte1)
at/210603