ðHgeocities.com/joseavellar/quarta_pagina.htmlgeocities.com/joseavellar/quarta_pagina.htmldelayedxoÔJÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÈÀ‘TéOKtext/html`ªõ0kTéÿÿÿÿb‰.HSat, 21 Jun 2003 19:40:21 GMTMozilla/4.5 (compatible; HTTrack 3.0x; Windows 98)en, *oÔJTé Avellar Toledo

A DESCOBERTA DA TERRA
Avellar Toledo


PARTE4
Ninguém quer FICAR DE FORA;
TEM QUE HAVER problemas;
SÓ RESTA obedecer;
GARANTIA de impunidade;
DETERMINANDO o comportamento;

Sonhando com a BOINA DO "CHE".

*


Penso melhorar o mundo todos os dias, embora cheio de dúvidas. E Juana a dizer sempre, como se fosse para mim: "Quem em si mesmo descrê, não chega a ser." E mais: "Se nós próprios, de nós duvidamos, como esperar que outros nos acreditem?!"

Não sabia que reformar o mundo significa ajustá-lo às nossas conveniências e, consequentemente, mexer com o interesse dos outros, principalmente, daqueles que o dirigem, para os quais, ele é o melhor dos mundos.

Dependemos tanto uns dos outros, que tudo o que altera a vida de um, afeta os demais. A relação de dependência é tão complexa que mesmo os bem situados, para continuarem onde estão, dependem de outros, embora em menor proporção.

Quem pretenda mudar o mundo, precisa alterar a relação de poder, pois ninguém aceita mudanças desfavoráveis, se tem forças para evitá-las. Mesmo as reformas bem intencionadas, que, de início, suscitam grandes esperanças, levadas à prática, deixam a desejar. Durante o fervor dos primeiros tempos, elas, para alegria dos que pretendem mais vingança que justiça, pioram, como era de se esperar, a vida daqueles que, pelos seus excessos, lhes deram causa.

Porém, conquistado o poder, para usufruí-lo em paz, os novos donos promovem um realinhamento de forças, feito, como sempre, de astúcia, oportunismo e má fé, recursos fora do alcance dos milhões que, por seu empenho físico, garantiram a vitória, mas foram logo esquecidos, voltando à planície dos enjeitados.

No interior da nova sociedade, cada vez menos revolucionária, inevitavelmente estruturada pela ambição de poder, volta a prevalecer a lógica de sempre, segundo a qual, os privilégios, pelos quais todos lutam, não se abrem a todos, do contrário, não seriam privilégios.

Lutamos todos pelo poder, muitas vezes sem saber, daí porque aqueles que já o tem, querendo mais, usam, em relação aos deserdados, a manha de prometer, sem se comprometer, isto é, prometer, sem prazo para cumprir, vantagens tão vagas quanto mirabolantes, em troca de ajuda real, imediata que lhes aumente as forças. Na hora da paga, esquecem as promessas, preocupados em preservar os antigos poderes e consolidar os novos.

*

Com o surgimento das instituições, nascidas para substituir a vontade real de cada um, pela vontade ideal da coletividade, na prática, pela vontade dos dirigentes, o mérito deixou de ser decisivo para situar o indivíduo na sociedade, cedendo lugar à hierarquia regulamentada. Eis porque, estamos cansados de ver, pessoas mais capacitadas, submeterem-se a outras, que a elas se impõem, só porque nasceram lá em cima.
À medida que o progresso vai dificultando o recurso à violência ostensiva, a dominação de um pelo outro, passa a depender em grau maior do convencimento, antes desnecessário, pois, no passado, quem tivesse força não precisava convencer.
Impossibilitado - exceto em épocas de exceção - de usar a violência com a desenvoltuura de antes, o homem de hoje faz da ameaça, o instrumento ideal do convencimento, empenhando-se em mostrar ao concorrente (e todos o são) que na falta de outros meios, podemos obrigá-lo a ceder algo para não perder tudo. (Se a superioridade é notória, o convencimento fica de fora.)

*

O poder, sob variadas formas, algumas insuspeitadas, determina o comportamento dos homens. Na corrida pelas melhores posições, fala-se de justiça e outros valores, não porque sejam essenciais à ordem social - a força é que é. A finalidade é disfarçar o objetivo real das disputas - a apropriação de bens alheios - dando ao perdedor a ilusão de que lutava por motivos nobres, salvando-lhe a face, coisa importante mesmo entre incipientes racionais como ainda são os homens.
Para modificar a relação de forças através das idéias é necessário decifrar as intenções alheias. A habilidade em distinguir as falsas, das verdadeiras e a disposição de usar as falsas, divide os homens em vencedores e vencidos, exploradores e explorados.
A linguagem das primeiras intenções, as verdadeiras, prevalece entre os íntimos, geralmente, cúmplices, refletindo tanto melhor os anseios individuais, quanto mais homogênea for a comunhão de interesses entre falantes e ouvintes.
*

A outra, a linguagem das falsas intenções, caracterizada pelo desnível social entre falantes e ouvintes, domina a comunicação em público, sendo exercitada principalmente pelos políticos (em sentido amplo) que se servem dela para enganar quantos possam. Ela opõe, de um lado, um falante, expressando-se, unilateral e abusivamente, como porta-voz de uma instituição e de outro, a massa amorfa, condenada a ouvir, aplaudir ou calar.

A necessidade de recorrer a essas contrafações, vem da impossibilidade de se utilizar hoje, na exploração do homem pelo homem, com a mesma liberdade de outrora, a espada que tão bem funcionava no tempo em que o derramamento de sangue humano era livre, tido como fenômeno natural, fora de controle.

A linguagem das segundas intenções, as falsas, constitui hoje o principal sustentáculo da desigualdade social e, para que possam exercitá-la comodamente, os predadores da comunicação de massa não sabem o que mais inventar de baixarias e indignidades para distrair suas vítimas, impedindo que elas abram os olhos (A mentira, enquanto não a desmentem, ajuda a viver, mitigando a dor e a desesperança.)

*

Quantos querem melhorar o mundo? Quase todos, pois a inconformação faz parte da natureza humana. A insatisfação atendida, não se contenta, exige mais, daí porque, com tanta gente disposta a melhorá-lo, esse mundo, é ainda o que é.

Desde que o número dos ativistas é sempre inferior ao dos acomodados e desde que reformar o mundo significa ajustá-lo às nossas conveniências, qualquer reforma que se proponha a beneficiar mais que o círculo dos ativistas que a fizeram, encontra dentro de si mesma, da parte deles, resistência tanto maior quanto maior for o número dos eventuais beneficiários. Por isso, para impedir as cobranças, o discurso reformista é feito de fala altissonante, escorregadia, da qual, por mais prensada que seja, não se tira nada. (Falam, sem nada dizer.)

*

Tão enganadora é a vida que as mais generosas reformas acabam inviabilizadas, ironicamente, pelas maiorias em cujo nome foram feitas. Incapazes de distinguir entre as falsas e as verdadeiras intenções, as multidões, decepcionadas com os novos rumos, para tocar a vida, voltam ao jogo de antes, contentando-se com as grandiloquências de sempre, que, sem nada ensinar, dão aos excluídos, a ilusão de que são também partícipes; dão aos aflitos, uma razão para viver. Nas arenas da vida todos querem ter ao menos pão e circo. (Ninguém aceita ficar de fora.)

*

Quantas vezes, sentindo-me inútil, quis esquecer de mim para servir aos homens. Porém, cuidar do mundo com sinceridade, incomoda e incomoda justamente aqueles que odeiam ser incomodados - os inimigos de quaisquer mudanças - porque, para eles, viver na injustiça é viver no céu, os outros que se danem.

Nada havia feito, em associação com outros, a favor da humanidade, mas queria fazer. Porém, diante da brutalidade que está por toda parte, acovardado, voltava à segurança de minha inatividade, embora odiando as injustiças. Perco tanto tempo pensando em repará-las que só não passo fome porque a sorte me ajuda.

Combatê-las, constitui para mim um compromisso íntimo, objeto de cobranças feitas por Alguém tão acima dos homens, que tremo todo, só de pensar em esquecê-lo. Fiel a este pacto firmado com não sei quem, nem sei quando, achei que difundindo minhas experiências através da palavra escrita, eu lhe seria fiel sem violentar meu jeito de ser.

*

Temia que Marlow desaparecesse tão inesperadamente quanto apareceu. Gostava de ouvi-lo falar. Sua firmeza, sua objetividade, tiravam-me da região dos sonhos e me punham de pés no chão. Um dia, atraído por suas referências a um mundo quase perfeito, perguntei-lhe se na Idade da Razão existiam problemas. "Precisam existir como desafio, porque do esforço para solucioná-los decorre toda essa movimentação que se confunde com a própria vida.", respondeu.
Mas se é necessário que existam problemas para que o mundo siga em frente, para que me preocupar com eles? Pesquisas, observações, relato de experiências, terá sido tudo isso trabalho vão? Adiantaria imaginar soluções, se os problemas continuarão a surgir das entranhas do homem? Essa fatalidade me leva a acreditar que são mais felizes os que irresponsavelmente criam problemas do que os ajuizados que tanto sofrem para solucioná-los. Talvez a necessidade de que existam problemas, explique a secreta admiração que devotamos aos contestadores de toda sorte, eis que, gerando problemas, eles ficam em sintonia com os homens. Despreocupados de aprovação alheia, eles atendem a uma íntima necessidade do mundo - a existência de problemas - que se dependesse de nós, os acomodados, nunca seria atendida.

*

Marlow para me testar perguntou: "Jonas, sobre os problemas apontados no teu livro, o que te parece melhor, que sejam resolvidos antes ou depois da publicação?" Em vez de uma resposta franca, desviei-me para a falsa modéstia, afirmando duvidar que o livro fosse publicado, tal o desinteresse por assuntos sérios, principalmente, quando são tratados por pessoas desprovidas de títulos.

Mas, admiti que embora prejudicasse outros, a persistência dos problemas seria vantajosa para mim, desde que eu soubesse utilizá-la para promover o livro.

Perguntas iguais àquela, conduziam-me a inquirições dolorosas, das quais, saia machucado. Descobri que mais do que solucionar problemas, o que sempre quis com empenho digno de louvores, foi, servir-me deles como tema de agitação, transformando-os em instrumento de promoção pessoal, como fazem todos os outros.

Ficava horrorizado diante da percepção agora nítida, de algo que a vida de repórter já me havia confusamente ensinado. O homem, para satisfazer seus interesses, não hesita em criar problemas; também não hesita em tirar vantagens da solução de problemas que ele próprio criou. Procedem assim, tanto aqueles que fazem da ofensa ao próximo seu ganha-pão, quanto outros que, sob variadas alegações, desde que haja vantagens, embora constrangidos, trilham os mesmos caminhos.

Quantas vezes, eu, tido por homem exemplar, preocupado com o fechamento do jornal, para garantir a manchete do dia, aceitava passar, contra pessoas indefesas, acusações, cuja veracidade não tivera tempo de comprovar.

Lembrava-me das batidas policiais, quando, nós repórteres, na maioria das vezes, inconscientemente, torcíamos por mortes que nos dessem a primeira página.

"Um homem capaz de lamentar a falta de problemas, só porque da existência deles depende sua auto-realização; um homem capaz de produzi-los e lucrar com a solução deles, não pode condenar ninguém, porque é igual a todos os outros, que primeiro cuidam de si, indiferentes aos sofrimentos que aos demais possam causar.", eu me alfinetava.

*

A insidiosa pergunta de Marlow repercutiu em minha vida. Nunca mais faria o que fiz com Linda Bruner, garota de 15 anos, filha de Howard Bruner, expoente do tráfico de drogas na Califórnia, que, enriquecido pelo dinheiro sujo, virou cavalheiro respeitável, fabricante de minas terrestres, utilizadas nas guerras do mundo inteiro. Depois de desgraçar adolescentes na América, ele agora mutilava crianças na África e alhures.

Entrevistei Linda Bruner num festival de "Rock" na Cidade do México, onde brilhava às custas do dinheiro do pai. Era impossível extrair alguma coisa de sua cabecinha loura. Não estava lá para cantar, nem pra transar ou drogar. Pensava nos meninos da América e do mundo, que o pai, o maior dos patrocinadores do festival, queria salvar. Cuidava pessoalmente da bilheteria, ligada na fraternidade humana , mas atenta na venda de ingressos, parte da qual iria "salvar" milhares de meninos de rua das grandes cidades, Linda Bruner, parecia convencida de que depois daquele tumultuado evento, não haveria mais tráfico de drogas, fome ou desalento entre a infância abandonada.

Não entendeu quando insinuei que o "papi" que ela tanto elogiava, estivesse aliviando as feridas da consciência. Não entendeu e não gostou. Ficou de cara ruim. Seu assessor de Imprensa encerrou o encontro, prometendo queixar-se da grosseria à minha agência.

*

Continuo evitando indigentes morais como Howard Bruner, mas não repetiria a deselegância feita à sua filha porque, sou agora, suficientemente humilde para compreender que o distanciamento físico ou social nos leva a cometer crueldades que não cometeríamos se estivéssemos cara a cara com as vítimas. Linda Bruner, herdeira única, um dia, quem sabe, investida de seus poderes, continuará a fazer apelos à fraternidade humana. Mas, como reis e papas, como todos os grandes do mundo, em público falará de paz e amor, conquanto, em seu gabinete, protegida pela distância, ache melhor ignorar coisas horríveis contra aqueles que a servem no dia a dia, praticadas pelos que, cumprindo ordens suas, expressas ou não, trabalham para a prosperidade do império.

*

A opinião de Marlow sobre a existência de problemas mesmo na Idade da Razão me fez lembrar do pastor Banes, para o qual, o progresso (quanto a problemas e soluções), não viria com a extinção deles, mas com a racionalização delas. "Não creio num mundo perfeito. Contento-me com uma vida menos cruel. Qualquer solução, contentando um, desagrada o outro, gerando novo problema com igual desenlace...", dizia. "A vida - prosseguia ele - tanto nas pequenas, quanto nas grandes empreitadas, segue uma diretriz fatal, segundo a qual, mais fácil é prejudicar do que ajudar. (Para matar o mais insigne dos homens, basta uma paulada; para salvar uma vida, por simples que seja, é preciso muito empenho!)

*

Falar de certos assuntos com Marlow era para mim o que é para muitos, o futebol, manhãs de praia, noites de alegre dançar. Fascinava-me sua prosa instrutiva, embora frustrante, porque me fazia duvidar das idéias como alavancas do progresso. Ensinava-me que as mais verdadeiras dentre elas, pela inerente sobriedade, acabam ofuscadas pelas falsas, cuja espalhafatosa divulgação confunde os homens, impedindo que eles, pelo conhecimento da realidade, sigam o justo caminho.

Nascidas de dolorosas flagelações da alma, as boas idéias hibernam à espera do futuro, eis que, para a apressada conquista do espírito, mais que as indicações da lógica, vale a paixão de um zelote, mesmo que apoiado nas sobras da Idade da Pedra.

*

Continuo, embora sem entusiasmo, disposto a melhorar o mundo, mesmo depois do que me disse Marlow: "O mundo é o que é; nunca foi errado, por que teria de ser consertado?" Considerando a humanidade como um todo, não há erro nem acerto. A questão surge entre os indivíduos, da posição de cada um deles frente aos interesses. Certo é o que nos favorece; errado é o que nos prejudica. O que é o certo para uns, para outros é um erro. Querem todos resultados favoráveis, daí porque a vítima de um erro (quem perde) não se conforma, exigindo sua reforma, movimentando a vida, gerando novos erros. Os problemas não acabam, porque se acabássemos com eles, acabaríamos com a vida. (Cada um faz seu papel no teatro do mundo, lutando, todos, segundo os interesses de cada um, pelos acertos - o bem - recusando os erros - o mal.)

*

Em sua luta por melhores posições, os homens se valem, inicialmente, de uma desigual distribuição da inteligência pela qual responde a natureza, aprofundando-a, se possível.

Para aumentar a inicial desigualdade, os mais dotados tudo fazem para impedir que os menos aquinhoados consigam desenvolver a pouca inteligência que receberam, resultando disto, que dos negócios do mundo, os pastores (a minoria de bem dotados) detenham tal controle, que à maioria, tratada superiormente como rebanho, só resta obedecer, ainda que tal obediência resulte no sofrimento de milhões, cuja ignorância os impede de ver, por trás de tanto padecimento, a dança dos interesses. Graças a esse mecanismo de administração do mundo, os homens tornam estáveis, relatividades como o bem e o mal, o certo e o errado.

Fazer que o outro se considere errado, é prática dos espertos para afugentar o concorrente. Se alguém fica parado porque se acha errado, melhor para o outro, que, indiferente a erros e acertos, vai em frente. O orgulho nos impede de aceitar o bem e o mal como relatividades, porque isso tornaria a vida menos estável, comprometendo nosso patrimônio cultural baseado nesse jogo de contrários.

O bem e o mal, o erro e o acerto, trocam de lado a cada hora, segundo os interesses e as circunstâncias. (Confessamos nossos erros por fraqueza ou por astúcia, para suscitar compaixão.)

As vantagens legítimas se abrem a todos. As mais cobiçadas vem do erro que não é senão a deslealdade na luta. Fugimos da concorrência leal como o diabo foge da cruz. A igualdade pretendida é a igualdade com os de cima que, obtida, exige novas ascensões. Embora desejadas por todos, as melhores vantagens, porque resultam de erros, a lei não as protege; têm que ser adquiridas pela fraude ou pela força.

*
 
 
 

Dormitava no sofá em Rio das Praias, quando Marlow chamou-me de muito longe. Falava da boa saúde de Juana e da entusiástica adesão de Vic à causa que antes combatia. Ela só não estava na linha de frente, porque Juana preferia vê-la defendendo a guerrilha entre os políticos.

"Vic pode ser libertada logo, logo. Não te surpreendas!", disse.

--- Viu as notícias? - perguntou, nervoso.

--- Que notícias?

--- O assalto final começou!

--- Não vi nada! Onde está você?

Enrolou, enrolou e não falou. Ele, que em pouco tempo assumira para mim importância quase igual à do pastor Banes, agora me preocupava por exagerar na defesa de sua privacidade, enquanto violava a minha sem a menor cerimônia.

Desgostava-me, ao esconder verdades, inclusive, sobre meus filhos. Só me revelava coisas importantes quando calculava que eu estava prestes a descobri-las.

*

Graças a um descuido de Juana, conseguiu o endereço de Saulo em Los Angeles e foi atrás. Não o encontrou na casa de sonhos onde supostamente vivia. Morava num cubículo junto à Rodoviária, satisfeito por haver trocado as mordomias propiciadas pelo "Apóstolo" P. - o atual chefão da UCC - pelo desafio das ruas.

Sem o carinho do avô Banes e de "Mãe Ditinha" - as únicas pessoas a que se afeiçoara na vida - ele se entregou às drogas que lhe excitavam os nervos, sem lhe contentar a alma necessitada de aprovação social da qual os traficantes zombavam.

Não acreditava no chamado homem de bem! Era, para ele, alguém que faz o bem por incapacidade de fazer o mal, porque o mal envolve perigo, suscita reações imprevisíveis.

Exultava com a liberdade dos foras-da-lei. Eram os donos do mundo. Deus, Pátria, Família, nada a lhes dificultar a vida livre. Em pouco tempo experimentara emoções com as quais o homem comum nem sonhar podia. A vida lhe ensinara que, na prática, um malfeitor vale mais que um respeitável cidadão. Ele era a prova disto. Vivia bem como poucos, sem cursar escola, sem bajular patrão para manter o emprego. Não tendo nada de seu, estava livre das cobranças feitas ao homem previdente. Sentia-se feliz por haver contornado o pior entrave à boa vida - a lei.

Só que tudo tem seu reverso; o principal inimigo não era a Polícia; com ela acabava se ajeitando; inimigo mesmo era o outro delinquente.

Mas, não se queixava. Com tão pouca idade, já era alguém na vida; bem mais do que diziam os documentos identificando-o como Jorge Rivera Ortiz, mexicano, gerente em Los Angeles de uma agência de viagens com sede na capital asteca. (Tinha orgulho de ser um contestador, gente temida e admirada até pelos inimigos.)
*
Marlow estava preocupado. Receava que o amigo, um adolescente ainda, não fosse tão feliz quanto dizia. Nele, a atração pela violência declinava, sob pressão da alma sequiosa de justiça. Orgulhava-se do caminho percorrido, mas, sonhava com muito mais do que poderia render o crime comum, mesmo organizado.
Sentia-se atraído pela boina do "Che"! Seria comandante de guerrilhas, embora temeroso de que, na prática, continuaria a ser o mesmo matador de sempre, apenas enobrecido pela falácia dos fins que justificam os meios.
Não se importava com as vestes manchadas pelo sangue, mesmo dos inocentes, na esperança de que um dia a natureza contestadora do homem fizesse dele um herói, engrandecido pela aprovação social com que tanto sonhava.
Tinha jurado diante dos espíritos imortais do avô Banes e de "Mãe Ditinha" que jamais poria sua violência a serviço de subalternos interesses. Caíra em tentação, mas nunca é tarde! Do céu de onde velavam por ele seus entes queridos, veio a luz que lhe abriu os olhos para a estupidez da violência, que em vez de justiceira, é a fonte das injustiças; sem ela ninguém consegue injustiçar ninguém.

*

Mas, se é assim, como aceitar a violência política, que só se distingue da outra, porque, dirigida por gente importante, invocando nobilíssimas causas, arruina coletividades inteiras?! Aprendera entre simples delinquentes que as grandes matanças, como tudo que é grande, por si mesmas se justificam.

A dúvida que o perturbava, arrefecia ante a banalização do crime promovida pela comunicação de massa, principalmente, pela tevê e pelo cinema. A violência ficou tão comum que deixou de ser questão a que se possa dizer sim ou não. Recusá-la parecia-lhe, em momentos de exaltação, covardia.

Estava decidido. Daria à sua violência, finalidade elevada. Seria um paladino da justiça, por mais romântico que lhe parecesse, por menos que gostasse do romantismo. A vida é feita de sonhos, também. O que lhe jorrava das entranhas sobrepujava todas as considerações adversas. Depositaria sua força nas mãos de Juana, empenhada em purificar o mundo a partir do sangue derramado no monte Pessino.

*
 
 
 

Viver perigosamente é bom enquanto não vira rotina. O rigor disciplinar dos mafiosos logo se revelara. Saulo, tentando evitar o jugo da sociedade tradicional, caíra prisioneiro da organização criminal. Um rosto confiável, força descomunal lhe granjearam simpatias entre os grandes da organização. Para essa gente, ousadia e esperteza é que definem um caráter. Consideram frouxo quem recusa a violência, embora cientes de que ela é que sustenta qualquer atividade ilegal, por mais inocente que pareça. Progredia rápido. Em poucos meses deixara para trás gente que militava no crime quando ele era ainda um bebê. Tinha isto em conta, mas estava cansado.

*

A organização lutava na Cidade do México contra rivais prontos a alijá-la de uma de suas mais rendosas posições e ele, Jorge Rivera Ortiz, fazia a ligação entre Los Angeles e a capital mexicana.

Num princípio de tarde, sua vida mudou. O confronto era iminente. Os dois lados se preparavam para testar armas de última geração. Havia o temor de que o inimigo localizasse a cúpula da organização recém-chegada à capital para comandar a batalha. A troca de endereço tornara-se imperiosa.

Meio dia, ninguém na antiga sede! Só ele, à espera de condução para o novo esconderijo. A idéia de lutar ao lado de Juana, que agitava sua mente, adquiriu consistência, ignorando cautelas, impondo-se de vez.

Não se rebelara contra o mundo para submeter-se ao mandonismo característico de toda delinquência. O telefonema cifrado avisando que iriam apanhá-lo, chegou às 13h, quando a parte do plano que dependia do telefone estava pronta.

Saiu, deixando na portaria um bilhete enganador.

*

O coração batia forte enquanto o funcionário da imigração mexicana examinava uma a uma as folhas do segundo passaporte adquirido em seis meses, agora em nome de Paulo Vieira Sanches Neto, maior, taraguenho, empresário de turismo, filho de Altina Vieira Sanches e pai desconhecido, documento usado para alugar um cofre no South Californian Bank da capital asteca, onde depositara 900 mil dólares - sobra do dinheiro deixado pelo avô, pesando em sua bagagem.

Antes viajava acompanhado. Agora, desprotegido, tinha medo. Todos pareciam suspeitar dele. Sorriu quando o funcionário devolveu o passaporte desejando-lhe: "Boa viagem!"

Temia passar pelo aeroporto de Taramela com aquele dinheirão. Sabia que em Taraga, a pretexto de combater a burocracia, o tráfico de moedas ou drogas, no atacado, tinha sido, na verdade, facilitado. Mas para quem não participava do esquema, era ruim, pois a repressão contra os pequenos aumentara, porque algum serviço tinha de aparecer.

*

Teve sorte! Logo estava dentro de um taxi, a caminho do centro velho de sua quase desconhecida San Miguel del Forte, onde se hospedou num hotel discreto, mas confortável. Era noite e ele preferiu jantar no restaurante local e dormir.

De manhã, deixou num dos cofres do Banco Provincial de Marona, quase todo o dinheiro, 850 mil dólares. Com 50 mil nos bolsos, de repente, como lhe acontecia muito, alugou o apartamento 201 da rua general Osiris, 222, com telefone, móveis, terraço e uma bela vista para o mar.

Deitou às 23h, de janelas abertas, a vinte andares do solo.

*

A Rádio ABC de Bogotá difundia um boletim sobre a movimentação das tropas no monte Pessino. Embora o Governo falasse de manobras iniciadas pela madrugada, a rádio informava que o inimigo, certo de que Juana chegava ao fim da gravidez, intensificou a guerra psicológica, ameaçando-a dia e noite com o anúncio do assalto final a coincidir com os incômodos do parto.

Privadas de seu carisma, as companheiras estariam vulneráveis. A versão repetida por várias emissoras do Caribe, podia ser correta, mas os cálculos do Governo estavam errados. A gravidês, iniciada há nove meses, fora concluída aos sete, normalmente, sem nenhuma surpresa, ao menos, para os nossos. O inimigo esperava para os próximos dias, algo acontecido dois meses antes. (Foi com naturalidade que ouvi Marlow confidenciar-me, tempos atrás: "Teu neto nascerá de parto normal, sete meses, sem tirar nem por!"

*

Houve muita alegria quando, depois do nascimento de Jonas II, a mãe falou aos companheiros reunidos, a maioria, mulheres:

"Ao iniciarmos essa luta, estávamos tão impressionadas com a expansão do vício, que não concebíamos outro instrumento além da violência a serviço de uma causa, para vencer o crime institucionalizado, que, apesar de tolerado e, muitas vezes, incentivado pelo aparato legal e cultural, conta mesmo é com as armas para se defender.

Tudo estava contaminado. Se a realidade era essa, outra coisa não teríamos a fazer, senão empunhar contra as baionetas do mal, os fuzis da esperança. Acreditávamos ingenuamente que após o triunfo pelas armas, teríamos à altura dos nossos ideais. Não sabíamos, que o mesmo fuzil que se revela incapaz de salvar os poderosos de antes, indiferente a justiças e injustiças, durante o processo de substituição do velho pelo novo, produz a nova classe dos poderosos de hoje, com seu renovado apetite.

*

Não vejam desalento em nossa fala, embora já não possamos contar com um futuro tão promissor quanto imaginávamos.

As tentativas de nos desonrar, atingem, na verdade, aqueles que meses atrás integravam conosco a 'esquerda armada' e que hoje não conseguem justificar sua duvidosa rendição. Deixam perceber que a disciplina "militar" invocada para impedir os desvios, não vale para os chefes, que se prevalecem da mesma politicalha que condenamos nos políticos 'civis', baseada na extrema ambição de poder.

--- Foi o afã dos ex-companheiros em queimar etapas na busca de cargos que, estabelecendo uma ponte indecorosa entre governo e oposição, nos condenou ao isolamento, no qual lamentavelmente teremos de persistir, porque não faremos concessões, nem nos intimidaremos por ameaças de 'justiçamento'. Não fomos condenados ao isolamento por desvios, mas, pela fidelidade aos compromissos. Irônico, porém, revelador, é que nossos aliados de ontem se juntem aos velhos inimigos, sonhando com a liquidação definitiva do 'Batalhão das Rosas', cuja perseverança na luta mexe com o que lhes resta de decoro.

*

--- Zombamos desta vitória anunciada. O inimigo tem razões para nos temer. Não fora isso, por que demorar tanto tempo para nos impor uma derrota tida como certa?! Por que se desonrar ainda mais, explorando as dificuldades naturais de uma de nós que supunham imobilizada, à beira do parto?!

--- A união que nos garantiu o sucesso, viveu sempre da lealdade e é esta lealdade que nos leva a confessar agora, depois de tantos perigos (que se transformaram em rotina), que a paz tem seus atrativos, fazendo que muitos se cansem da guerra. Mas, haja cautela! O inimigo só se detém diante da força. A luta prosseguirá até que mudem de idéia aqueles para os quais ser homem é ser violento! Que seja uma paz honrosa, aquela que, hesitantes, eles de novo insinuam.

--- Não reagiremos desproporcionalmente enquanto estiverem brincando de nos intimidar. Mas respeitem nossas linhas, porque ignorá-las será muito perigoso!"

*
 
 
 

Amanhecia em Los Angeles quando Saulo telefonou para a redação da "Continental -Free Press", perguntando por Marlow. O jornalista não pertencia aos quadros da agência, embora tivesse ali muitos amigos e os visitasse com frequência. Deixou seu número em San Miguel, alegando urgência de um contato.

--- Vejam só! O "Apóstolo" P. atrás de você e eu sem saber que estava aqui! O que pretende em San Miguel? - perguntou Marlow.

--- Quero ver Juana!

--- Não dá Saulo! Poucos conseguem chegar até ela!

--- Você consegue! Se quiser, claro! - continuou - deixando transparecer mágoas inesperadas. --- Você me esconde coisas do pai e nada revela de mim para ele. Nunca fala de você e Juana...

Marlow ficou preocupado. Seus encontros tinham sido sempre cordiais, mas agora Saulo estava ressentido. Tentou se justificar, mas era difícil...

* at/180603

O relógio marcava 19h, quando o telefone tocou. Era Marlow com quem já havia falado no meio da tarde.

"Preciso vê-lo com urgência!", disse, impositivamente.

--- O que deseja Marlow?

--- Vou te dizer, frente a frente!

--- Mas, onde está você? - Indaguei-lhe num tom de quem achava impossível falar no fim da tarde com uma pessoa a milhares de milhas e no princípio da noite sentar à mesa com ela.

--- Estou em Rio das Praias, Jonas! O Saulo chegou a San Miguel de surpresa, com nome falso e muito dinheiro. Insiste em lutar na guerrilha.

--- Um momento Fred! Eu tinha um compromisso! Deixa pra lá! Aonde vamos?

--- Podemos ir ao Tip ou ao Clube dos Correspondentes.

*

Quando cheguei ao Tip, Billy João, o gerente, anotava o pedido de Marlow: suco de abacaxi para os dois, "Camarão à francesa" para ele, "Peixe à brasileira" para mim.

O movimento cidade-bairros estava no auge. O gerente afastou-se, tomei a iniciativa:

--- Antes de mim, você conheceu meus filhos. Por que não me falou deles? Nunca te escondi nada! E de você, nem o telefone eu sei...

--- Perdão Jonas! Hoje mesmo, Saulo se aborreceu comigo porque não podia levá-lo até Juana. Prontifiquei-me a escondê-lo do "Apóstolo" P., embora contrariado, porque detesto mentir.

Sobre o ingresso na guerrilha fiquei de consultar você. Pensa que eu iria te falar pelo telefone, porque prometi uma resposta antes das 24h. Se lhe dissesse a verdade, desacompanhada de explicações que ainda não posso dar, diria que sou louco.

--- Precisa estar em San Miguel à meia noite?!

--- Não te preocupes, tenho tempo!

--- Viaja num foguete?

--- Mais ou menos!

*

Olhou para o relógio de pulso, formato retangular, com oito pinos, cravados dois a dois nos quatro lados. Depois de me indicar um bloco de pedras a 100m do mar, apertou um dos pinos. "Lá está meu foguete!", disse, indicando uma luzinha vermelha, piscando na obscuridade daquele princípio de noite. "Vou trazê-lo para cá!", prometeu. Deu um clique noutro pino e a luz veio em nossa direção, parando a poucos metros, tornando-se invisível, depois que ele apertou um terceiro pino. Quando, de novo, clicou no primeiro dos botões, a luzinha acendeu junto ao mar. "Auto-defesa, Jonas! A micronave reage à aproximação de qualquer coisa. Aqueles dois quase esbarraram nela, fazendo com que se defendesse.", explicou, referindo-se a dois empregados da casa que, ignorantes de tudo, se aproximaram demais do engenho. "Poderia ter alçado vôo ou mergulhado nas águas, pois é anfíbia.", acrescentou.

Um invólucro feito de material invisível, só percebido pelo toque, deixava-se remover a um simples clique no botão. A micronave se transformava num helicóptero de porte médio, igual a tantos outros que, anônimos, voam por aí.

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"Trabalho para o Serviço de Investigações Sobre Objetos Voadores Não Identificados (SISOVNI), criado em 1945 para investigar sequestros de cientistas ligados à navegação espacial e fabricação de armas nucleares.", disse-me. O Órgão nasceu de uma preocupação tão grande com a existência de "ETs" prestes a invadirem a Terra que acabou unindo vencedores e vencidos da última Grande Guerra, num dispendioso programa de contra-espionagem espacial. Desconfiávamos dos "ETs" e eles desconfiavam de nós, receosos de que, por ignorância ou leviandade, acabássemos transformando os espaços interplanetários num depósito de lixo atômico.

O assédio à Terra aumentou depois do bombardeio de Hiroshima e só arrefeceu nos anos cinquenta, quando se chegou à conclusão de que os homens, passionais como são, se destruiriam antes que pudessem destruir outros planetas.

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Em meio à guerra da Coréia - segundo me contou Marlow - Choi Asi - um xada ("ET" nascido no vizinho planeta Xad), que se dizia o terceiro racional a descer na Terra, foi capturado pelos russos em Sebastopol no Mar Negro.

Tentava responder aos inquisidores numa língua obscura, mas depois de longa sessão de torturas, falou inglês, aumentando as suspeitas de que trabalhava para os ianques.

Tendo sobrevivido aos maus tratos sem nada revelar, os russos concluíram que era louco. Dizia ter vindo à Terra para localizar alguém que em 1944 enviara curta mensagem a Xad comunicando estar escondido numa caverna da ilha de Sompa, no Pacífico, em cujas imediações sua micronave fora abatida pelo fogo cruzado de americanos e japoneses que disputavam a região. Seu nome ficou ligado para sempre àquela pequenina ilha, assim chamada até hoje.

O "Homem de Sompa" tinha que ser recambiado para cumprir a pena, qualquer que fosse o tempo decorrido. Foi condenado por indisciplina grave, porque, contrariando as instruções, desceu na Terra, atraído por uma bela mulher que, desconfiada de suas intenções, o recebera a tiros, ferindo-o num dos braços. A aventura fez dele um dos mais conhecidos astronautas em Xad e na vizinhança.

Asi fora incumbido de investigar também a morte de outro xada que o precedera na tentativa de localizar o "Homem de Sompa" e que teria sido devorado por canibais da ilha de Mama-Luba na Indonésia.

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Choi - segundo Marlow - pretendia iniciar as buscas pelo norte da Amazônia, de onde foram captados os últimos sinais do "Homem de Sompa". Uma falha no sistema de navegação o levou para o mar Negro, região fora de seus planos. Os russos só comunicaram sua captura ao SISOVNI depois que ele, diante da ameaça de novas torturas, reagiu com a advertência de que se o matassem, a Criméia seria devastada pelos seus. Para provar suas ligações com outros planetas e dar peso às ameaças, revelou detalhes da última incursão de OVNIs sobre o mar Negro que ele, isolado em sua cela, jamais poderia conhecer.

Temendo que alguém muito poderoso tomasse as dores daquele ser tão parecido conosco, mas, tão estranho à nossa realidade social, os russos entregaram-no aos americanos, como um presente de grego.

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A agência do SISOVNI em Nova Iorque foi bem mais cordial com ele. Acreditando que fosse mesmo um doente, deram-lhe tratamento benévolo, embora nada convencional. Exigiram que informasse por escrito as razões de sua presença na Terra. Insistiram que explicasse - por exemplo - porque depois de tanto tempo, se dispunha a esquadrinhar o mundo à procura do autor de um crime seguramente invalidado pela prescrição.

Marlow mostrou-me o que Choi Asi escreveu, despreocupado de coerência, indiferente a que o entendessem ou não:

"Entre nós, crimes e punições não podem ser publicamente associados a alguém, antes que a culpa seja provada. Sobrevindo a prova, a coisa muda. Jonas, como vocês o chamam, tornou-se famoso entre nós - mas, não é porque a indisciplina tenha dado fama a alguém, ou tenha sido praticada por gente famosa - que deva ser esquecida. Ao contrário, tratando-se de pessoas conhecidas, o mau exemplo, repercutindo na proporção da fama, influencia muito mais pessoas, exigindo punição à altura da popularidade.

Deploramos que displicência e venalidade se unam ao decurso do tempo, para, comodamente, sem qualquer risco, propiciar a impunidade. Tida como fruto da irresponsabilidade na aplicação da lei, a prescrição é, por nós, rejeitada. Não dá para esquecer que, frustrando a punição dos culpados, ela concorre para que pessoas inclinadas ao crime, tomem coragem para efetivar suas tendências.
Sei que é motivo de zombaria condená-la numa terra em que principalmente para os grandes, a impunidade virou instituição que ata, uns aos outros, criminosos e agentes da lei; que favorece os delinquentes atuais, enquanto dá esperanças aos futuros delinquentes, transformando a sociedade num emaranhado de rabos presos."

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Choi, embora preocupado com a proliferação das armas nucleares, tinha como prioridade localizar o conterrâneo que no tempo da guerra da Coréia, devia estar em boa forma. Na América, tendo revelado conhecimentos específicos, mandaram-no pesquisar minerais estratégicos na Amazônia, região do alto rio Negro, onde veio a falecer de malária perto de onde vivia, incógnito, aquele que procurava.

Uma das conclusões do ex-prisioneiro dos russos, com base na longa sobrevivência do "Homem de Sompa", foi a de que um xada poderia viver aqui tão bem quanto um esquimó na Califórnia, negando a teoria da impossibilidade da vida na Terra, difundida em muitos planetas. Aceitava, pelas mesmas razões, que terráqueos pudessem sobreviver no planeta Xad.

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A caçada ao "Homem de Sompa" - segundo Marlow - nunca foi interrompida e muitos anos depois que a PSA-1 fosse derrubada sobre o Pacífico, ele se envolveu com ela. "O primeiro xada a pisar na Terra foi mesmo Jonal Simpro, em 1944. Era este o teu nome em Xad, não era?", perguntou-me cara a cara. "Bom disfarce, o teu! - Jonas, Jonal, Jonas Simpson, Jonal Simpro, nomes parecidos, mas, diferentes, bons para fazer confusão.

Suas revelações, embora importantes, não produziram em mim, o mesmo impacto do material que ele próprio havia me encaminhado uma semana antes, talvez porque nos últimos dias eu vivesse momentos de raro cepticismo, pouco se me dando que fosse xada ou marciano. (Achava toda aquela história demasiado fantasiosa.)

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Billy João subiu as escadas numa carreira só. "Tempo quente em Taraga", disse ele. O Governo propôs uma trégua à guerrilha, desde que libertassem a ministra do Interior, Sra. Vic. Foi libertada, apresentou-se ao gen. Carranzas, mas, renunciou ao cargo para lutar ao lado de Juana. A ofensiva contra os guerrilheiros foi intensificada. Aumentaram os bombardeios ao monte Pessino; a agitação está por toda parte."

Influenciado pelas notícias, Marlow alterou os planos. Tentou falar com Saulo em San Miguel. Ele havia saído.

"Estou atrasado!", disse-me. Preciso levar a micronave para um lugar discreto. Se desapareço em seu interior aqui, à vista de todos, pensarão que sou mágico e você ficará em apuros.

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No dia seguinte, tomava o café da manhã, quando ele me chamou de San Miguel. Começou falando do comportamento de Vic, preocupada com a família, interessada no filho, odiando um governo do qual acabava de sair. Ficou escandalizada ao ouvir do próprio Carranzas, que a promessa de trégua tinha sido um ardil. "Contra o banditismo político, que não aceita as regras, o Estado precisa abandonar os escrúpulos", dizia ele. A ex-ministra repudiava tal procedimento por entender que o sucesso a qualquer preço, mesmo que no momento pareça retumbante, a longo prazo se revela desastroso. (Achava que a ética tem que ser cultuada sempre, para o bem de gregos e troianos.)

"Notícias de Saulo?", perguntei, logo que pude.

--- Nada, Jonas! Passei a noite no telefone e nada!

--- O que está havendo, Marlow? Aqui, nem uma palavra sobre Taraga! A "Operação Barbada", esfriou?

--- Não, não! Alguma coisa vai acontecer. O que estão dizendo os generais sobre o monte Pessino é arrogância para disfarçar ignorância. Sabem pouco do que acontece por lá. As moças não estão blefando.

Mesmo nas Forças Armadas muitos começam a abrir os olhos. A ofensiva mal começou e já divide os militares. (Nenhum segredo permanece com uma única pessoa; logo vai a outra, a uma terceira, até que se espalha!)

*

Saulo temia um massacre no monte Pessino, tendo por alvo principal Juana, cuja capacidade de arregimentar pessoas só findaria com a morte. Receava pela vida de Jonas II, ameaçado pela insensatez dos adultos. Tinha horror a palavras como solidariedade, fraternidade, mas deixava-se guiar pelos sentimentos que as inspiram. A irmã lutava contra uma das piores ditaduras das muitas que infelicitaram o País e ele precisava ajudá-la, embora não lhe agradasse a idéia de se juntar a um bando de mulheres, interessadas em exibir valentia frente aos homens.

Assumiria a causa de todos os taraguenhos, porem, a seu modo. Incapaz de vencer a tentação da violência, alegrava-se com a decisão de usá-la em benefício de coisas bem mais úteis do que o crime organizado que o decepcionara.

Sabia que arrefecendo o interesse, os músculos se afrouxam, o cérebro se acomoda. Mas, deste mal não iria padecer. Acabava de encontrar um interesse legítimo - derrubar a ditadura, agora prioridade de sua vida.

*

Dos 50 mil dólares que reservara para uma volta ao mundo, depois que Taraga estivesse em paz, sobraram 20 mil, o resto tinha sido gasto numa onda consumista que o assustou, porque parecia estar vivendo seus últimos dias; porque tinha sido, até então, por natureza, comedido.

Comprara coisas nas quais nunca havia pensado, sapatos finos, roupas caríssimas, acima de tudo, esbanjara numa única noite uma fortuna com mulheres fáceis, escandalizando os fregueses dos mais sofisticados pontos do comércio sexual.

Enquanto pensava no que fazer, retirou do banco 100 mil dólares, sem os quais nada iria acontecer. Estava de olho num fuzil checo - o LA2 - dobrável, acondicionado num estojo de fácil disfarce, ajustado à finalidade que, de um estalo, se definira.

*

Recém-chegado à cidade de San Miguel, Saulo ouviu pelo rádio que o gen. Carranzas estaria no dia seguinte em Punta Prego, na costa Oeste, para instalar o III Congresso dos Produtores Rurais. Buscava apoio, alentado pela discórdia entre os adversários.

No começo da tarde, olhando de sua janela, viu que o Boeing da Presidência movimentava-se para o portão de embarque das autoridades. Às 15h, com o fuzil disfarçado entre roupas, binóculo, analgésicos e canivetes, estava a caminho do aeroporto. Na av. Beira-Mar viu soldados puxando cães farejadores, que lhe causavam especial aversão. Assustou-se mas logo se refez.

A avenida corria entre as matas do Parque Municipal e o Aeroporto. Depois do prédio da Administração, vinha o salão de embarque, atrás do qual um tapete vermelho se estendia até a escada de acesso ao Boeing.

Mil metros adiante a avenida chegava ao fim. Do lado de cima ficava a cabeceira das pistas; do outro, protegida por uma cerca eivada de falhas, prosseguia a mata, em cujo interior, preocupado em não ser visto, ele se instalou entre as árvores, decidido a matar Carranzas, fossem quais fossem as consequências.

*
 
 

Na ensolarada manhã de Rio das Praias, antes de descer à rua para apanhar um taxi, cheio de saudades antecipadas, contemplei o azul do mar, talvez, pela última vez. À janela chegavam, produzidas pelo calor, leves emanações de vapor, vindas do asfalto derretendo ao sol. Dos morros desciam os filhos do povo, quase nus. Podia vê-los na praça, misturando-se aos bem humorados de todas as raças.

Gostaria de seguí-los em sua alegria, mas não posso. Eu, que jamais guardei o leito, a não ser para amar e dormir; com mais dólares nos bancos do que poderia gastar; sou talvez o único rosto sombrio entre esses lutadores do dia a dia, a se esbaldarem na folia.

Longe de imitá-los no dispêndio de energia positiva, em vez de suar na sombra, ao calor dos trópicos, estava desolado ante a perspectiva de ficar longe de uma terra tão calorosa. Parecia um esquimó em pleno Ártico, enregelado, a ver, sem entender, turistas quase lapões, em batuques animados, quais filhos da terra, agradecidos ao chão que lhes queimava os pés.

A viagem, decidida em poucas horas, não me permitiu abraçar os mais chegados: Alex, Vilaça, o Dr. Sintra. Que se consolem com o bilhete que lhes deixei prometendo um breve regresso.

*
 

Do alto contemplo, quem sabe, pela última vez, a inominada praia, desértica até hoje, plena de recordações. Embora acostumado a voar, só fico em paz quando piso o chão. Não sou de falar, prefiro descansar, de olhos fechados.

O cavaleiro do lado, olhando-me de soslaio, queria prosa, porém, eu, sonolento, entristecido, ficava calado.

--- O amigo é de San Miguel? Que acha do atentado contra o ministro da Defesa?

--- Não estou sabendo? – respondi secamente.

--- Os jornais só falam disso!, informou ele, dominado por visível ansiedade, falando sem parar.

Lembrava-me de Rio das Praias, seu povo sofrido, mas caloroso, e tinha saudades.

--- Desculpa!, disse o vizinho. Desculpa!

Achei que ficara magoado com minha indiferença e, para ser polido, acrescentei: "Desculpas peço eu...!"

Meu companheiro de viagem falava para disfarçar o medo de voar, indiferente a que o escutassem ou não.

*

Era um nicaraguense de classe alta que aos 15 anos abandonou a família para se juntar aos sandinistas. Tornou-se herói, depois de uma participação relevante.

Tinha-se por idealista. As multinacionais eram para ele umas sanguessugas. Vivia em função dos EE.UU., exultando com suas derrotas, sofrendo com suas vitórias.

Sitiado na periferia de Manágua, sem alimentos, pôde ver a que baixeza desce o homem quando bate a fome e a desesperança. Prevalece o "salve-se quem puder" ditado pela animalidade emergente. Mata-se por um naco de carne.

Observando a criatura abjeta em que, no desconforto, se transformam até os heróis, teve remorsos de sua mocidade, quando, apressado, vendendo saúde, tinha a violência como panacéia, graças a seu efeito imediato, diferente do irritante lenga-lenga dos políticos.

Usando-a todos os dias, descobriu que ela é igual à morte. Acaba com os problemas porque acaba com a vida. Será inevitável enquanto persistir o desequilíbrio de poder que a transforma na principal arma dos fortes.

Contaminado pelo entusiasmo com que a juventude abastada se entrega à violência de sabor idealista, ele, como tantos outros endinheirados, iria fazer dela, o instrumento ideal de sua auto-afirmação.

Mas, a vitória não trouxe as esperadas alegrias. Seu discreto entusiasmo diante do militarismo que acompanha tudo que nasce das armas, cedo pôs em risco sua condição de herói. A peculiar desconfiança dos totalitarismos, logo iria envolvê-lo em suspeitas. Ameaçado, fugiu para recomeçar a vida na América, a terra que tanto odiara.

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Pg. Inicial

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A seguir






Para modificar a relação de forças
através das idéias, é preciso
decifrar as intenções alheias.
(A DESCOBERTA DA TERRA***Parte4)



at/210603