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A DESCOBERTA DA TERRAAvellar Toledo
PARTE5
A VELHACARIA,
cortando os galhos, sem ferir o tronco;
O IDEALISMO, gerando suspeitas;
NOS DOIS SEXOS, igual competência para matar;
PARA O POLÍTICO, bom é o que ele faz;
O ESTADO, mesmo fraco,
impõe-se aos particulares.*
Voltar a San Miguel del Forte, era penoso para mim. As insinuações de que eu fugira do País, abandonando à própria sorte, Branca e suas filhas, me envergonhavam. Embora inocentes, elas estiveram encarceradas durante semanas, sofrendo horrores, só porque não podiam revelar segredos meus dos quais nada sabiam.Sentia-me culpado pela desorientação de Saulo, criado pelo avô, porque se achava, com razão, marginalizado por mim e pela mãe. Vendo-o agora em perigo, mudei de idéia, retornando a Taraga para ajudá-lo, numa tardia compensação pelo isolamento a que havia sido relegado.
*
Ao desembarcar no aeroporto de Taramela, conversando com os jornalistas de plantão, soube que o governo Carranzas ia mal, apesar da estudada euforia oficial. O País vivia de boatos passados de boca a boca, porque a imprensa estava controlada. A "Operação Barbada" (um ensaio de ofensiva geral contra a guerrilha), mal havia começado e já perdera o ímpeto. Os generais brigavam pelos cargos, dando mostras de que o ditador não era daqueles cuja ascendência sobre os pretendentes à sucessão, fosse tão notória que refreasse as ambições. As disputas à volta do chefe, encorajavam a oposição.
*
Do aeroporto fui direto ao apartamento de Saulo para falar com Marlow que chegara minutos antes, vindo do monte Pessino. Estava preocupado com a família: Saulo, desaparecido, Juana e seu bebê em perigo.
Queria tirar Jonas II da zona de guerra, porém, a mãe se opunha. "Que fique em perigo, mas perto de mim!", ela dizia, aos gritos, expulsando-o de seus aposentos. Pela primeira vez, se despediram sem esquentar o leito, arriscando a prosperidade do amor. (Temi que o romance estivesse no fim.)
"Adoro a vida, mas não saberia viver de cabeça baixa!", dizia Juana para justificar sua teimosia, embora soubesse que o garoto, filho dele também, estava ameaçado.
Originário de uma civilização já vivendo a Idade da Razão, Marlow se acusava de não agir como tal. Envolvido por uma paixão bem mais calorosa do que o tranquilo amor de seu mundo, ele se curvava diante de Juana que tudo decidia sem ouví-lo. Como pai responsável, tentou muitas vezes fazê-la conciliar; abandonar a guerrilha, mas encontrava o orgulho como barreira intransponível. "Se alguém tem de ceder são eles!", ela dizia, encerrando a conversa.
*
"A Revolução é o centro de tudo. Nada de sombras à sua volta. Deus, Pátria, Família, nenhuma força deve toldar o sol que a ilumina". Marlow ouvia tais coisas, ditas por ela, num tom que lhe parecia mais de obrigação que devoção. Ainda assim, se perguntava: "E eu, o que sou em tudo isto, um estorvo?".
Começava a observá-la com outros olhos. Tinham sobre a violência política, posições antagônicas, porém, dominado pelo amor, ficava calado, deixando a impressão de que aceitava qualquer matança, desde que justificada por nobres ideais, como se pudesse haver nobres ideais legitimando o derramamento de sangue.
Sentia vergonha ao lembrar de suas origens, num mundo, onde o homicídio, tratado como incontinência emocional, tornara-se aviltante, pecha que muito contribuiu para sepultar a cultura da violência em Xad, feita outrora de louvações aos heróis sanguinolentos, ainda hoje, fonte de inspiração para muitos na Terra.
*
Mas, fosse pela paixão ou pela firmeza do caráter, era difícil esquecê-la. Admirava sua coragem, seu desprendimento, sua sinceridade, até algumas de suas fraquezas. "Quem abraça uma causa, não fala o que quer, nem faz o que que; perde a identidade", Juana murmurava, queixosa, quando - por exemplo - pretendendo preservar sua autoridade, punia alguém por uma falta que ela mesma poderia cometer se não detivesse a responsabilidade de comandar.
Houve um dia em que se mostrou particularmente deprimida por haver castigado com extremo rigor uma companheira que durante assalto a um banco, descuidara da vigilância para telefonar à mãe, alarmada com as notícias de que a Polícia estava a caminho para liquidar todas elas.
".... Matar, morrer, não importa; quero vingança, contra todos, o mundo não vale nada. Viva a guerra! Adoro quando fica tão brutal que as máscaras despencam. Fujo do poder, porque exige que seja quem não sou para que pensem que sou. Se a guerra acaba, para onde vou?"
Marlow via nessa fala desconexa um indício de que Juana passava por íntimos conflitos. Se não soubesse de sua repulsa pelo álcool diria que estava embriagada. Contra todas as aparências, ela sonhava com uma vida feliz, pai, mãe, filhos, unidos por uma camaradagem que nenhum poder do mundo poderia lhe assegurar.
Não invejava certos arcanjos do mal, para os quais a vida não é mais que poder, poder e poder - um poder ao qual todos eles se rendem, mas que às vezes, falha: o poder de um Stalin - por exemplo - um semideus que, ainda assim, não pode salvar o filho, prisioneiro de Hitler.
Tais eram os sonhos de uma selvagezinha inocente, arrancada de uma vida simples em Vista Hermoza para a solidão entre civilizados, situação que a tornava próxima de Marlow, também um ressentido, egresso de mundos superiores, que, incapaz de igualar os homens na violência, se considerava um decaído, receoso de mais degradação, pois aprendera "que é mais fácil descer à barbárie do que ascender à civilização." (As atrocidades de nazistas e comunistas, contra milhões de criaturas, em pleno século XX, disto o convenciam.)
Quando conheceu Juana estava tão indignado, que se pudesse teria afogado a humanidade inteira num mar de sangue, não como solução para seus problemas, mas como o inferno, cujas labaredas haveriam de se transformar na chama da purificação. No entanto, para sobreviver, teve de compactuar, pelo silêncio, com a brutalidade da vida cá embaixo. Deixou que a tentação da violência se juntasse à tentação do amor, acabando prisioneiro das duas. (Era preciso reagir!)
*
As notícias da guerra no monte Pessino, favoreciam os rebeldes. Juana estava eufórica. A brisa do mar lhe trazia mostras de carinho vindas de toda a terra taraguenha e ela se envaidecia. Orgulho e paixão endureceram-lhe o exposto coração e de volta aos caminhos da violência, ela esqueceu os amores de sua vida, disposta a pagar pela recaída.
Fred Marlow, ex-amante e ex-amado, cansara de ouví-la dizer: "Adoro a vida, mas não saberia viver de cabeça baixa." Ele, que, diferentemente dela, mais pensava do que agia, acabava cedendo. De fato, para os homens, vivendo em plena Idade da Força, nada é mais indigno que a derrota. Juana lhe parecia coerente, aceitando a paz desde que não viesse como imposição.
Enquanto ela preferia morrer a se humilhar, envolvendo nesta preferência o filho recém-nascido, ele insistia para que abandonasse a guerra. O menino era seu instrumento de pressão. Amava Juana, queria tê-la a seu lado, mas, um orgulho quase igual ao dela, barrava-lhe os passos.
*
Vic chegou aflita ao apartamento de Saulo com um pedido de Juana, para que lhe salvassem o filho, ameaçado por uma febre invencível. Pela primeira vez depois de muito tempo eu estava diante de minha ex-mulher.
Havíamos encerrado os cumprimentos, quando Marlow entrou transtornado, dirigindo-se a Vic: "Você falou com Juana, como foi?"
Ela não teve tempo para responder. Ele saiu como um louco, pedindo-lhe que me contasse tudo. Em poucos minutos estava no monte Pessino, junto à caverna onde fica o QG da guerrilha.
--- É você?! A Vic mal saiu e já está aqui?! - admirou-se Juana.
--- E o médico?
--- Melhor levar o bebê até ele, ponderou Marlow.
--- Não, não...! Tenho medo, disse ela, mais calma. Concordava que numa clínica, a recuperação seria mais rápida, porém queria tê-lo sob as asas. Temia que os inimigos se servissem da criança para chantageá-la.
*
Marlow tinha motivos para tirar o filho da zona de guerra. Seus chefes o acusavam de promiscuidade, condenando a frequência com que visitava os incivilizados. Por estas e outras razões preferia ver o menino numa clínica onde pudesse visitá-lo sem chamar a atenção.
Seu livre trânsito por uma região vigiada dia e noite, intrigava as guerrilheiras que mesmo simpatizando com ele, não o isentavam de suspeitas. Ninguém ali ouvira falar do SISOVNI, por ele mencionado para justificar o uso de equipamentos ultra-sofisticados. Muitos suspeitavam de que, se existisse mesmo, aquele órgão estaria a serviço da espionagem de russos ou americanos.
Juana só liberou o filho, depois que o Dr. Rosano, dono de uma afamada clínica infantil da Capital, aceitou interná-lo sem os registros.
*
Enquanto esperávamos por Marlow, Vic nos contou que Branca vivia em Nova Iorque com o militar que a resgatara da prisão em San Miguel. Disse ter recebido dele, dias atrás, uma carta prometendo voltar ao país para lutar contra Carranzas. Pela primeira vez fazia um relato de tudo o que o havia levado a abandonar o cargo, libertar Branca e as filhas e fugir com elas para a America. Pedia segredo, embora não fosse difícil identificá-lo.
Era um coronel da Infantaria do Exército que tempos atrás derrotara com um mínimo de violência, o maior dos grupos remanescentes da UPT (Unidade Popular de Taraga), levando-o a uma rendição sem traumas, fazendo com que dali por diante o ódio do Governo se concentrasse no "Batalhão das Rosas", o único grupo a prosseguir na luta armada. Por sua coragem e honestidade, Carranzas, seu colega de turma na Academia Militar, via nele o homem ideal para "domesticar" a corrupção.
*
Depois de alguma relutância, o coronel aceitou o cargo de diretor da Corregedoria Geral do Serviço Público (COGESP), criada para escoar o lamaçal que servira de pretexto para o último golpe. Meses depois da posse, Inácio Ventura (este era seu nome) saia-se bem, fechando os olhos para as pequenas marotagens, mas, sem levar vantagens, preocupando os mal-intencionados.
Sentindo-se antipatizado e acreditando que o moralista exaltado move-se pela inveja mais do que pela vontade de moralizar, relaxou a postura, passando a aceitar, embora constrangido, pequenos agrados. Cedo percebeu que pretendiam acorrentá-lo, pois a corrupção não tem amigos, acolhe apenas quem a favoreça.
*
Desde o início considerou questão pessoal remover a sujeira acumulada no próprio órgão responsável pela limpeza - a COGESP - que se tornara incapaz de cumprir seus fins, paralisada pela ativa participação nas bandalheiras.Sabotado em sua atuação funcional, passou a ter problemas em casa. A ética familiar sucumbiu às tentações do poder. A esposa sonhava com uma vida de luxo, pouco atrativa para ele, mas que fascinava também as duas filhas menores.
Deu de beber, sempre a perguntar: "Para que ser diferente, se posso ter o que todos querem, dinheiro, muito e fácil?"
Viviam ainda juntos, quando a mulher se engraçou com um patifezinho todo enfeitado. Era demais! Estava em jogo a honra pessoal, em defesa da qual certos homens fazem loucuras.
A honestidade se revelava penosa. Em vez de recompensas, incompreensões. Sentia-se desafiado pelo espírito de corpo, pela solidariedade do sangue, velhos tabus a barrar o caminho de quem pretenda melhorar o mundo, ainda que nos mínimos compartimentos.
*
Antigos companheiros, incapazes de promover a corrupção, mas que se beneficiavam dela, agora evitavam-no, constrangidos diante de sua fidelidade a princípios a que eles renunciaram por fraqueza. Incapazes de nadar contra a corrente, só lhes restava seguir a onda.
Sofria com a raiva dos que se achavam prejudicados em seus negócios escusos porque ele voltara à vida limpa de outrora.
Estava revoltado com o desvio de finalidades da COGESP - criada para combater os ilícitos em geral, mas que dominada por uma autêntica máfia, se limitava a prender pequenos corruptos ou pessoas endinheiradas, sem força política, acusando-as de inimigas do sistema apenas para extorquí-las.
Via nos ressentimentos causados pela corrupção endêmica dos nossos dias, uma fraqueza a ser explorada pelos ideólogos do partido único, avidos de poder exclusivo. (A porta estava aberta!)
Sentia-se derrotado pelo vício, agora menos visível, embora, mais atrevido, porque já não precisava temer os militares, inibidos pela participação nas mutretas.
Durante sua curta gestão, apanhara um ou outro pé-de-chinelo, mas o grande safado, protegido pelo imbatível escalão superior da Administração, continuava impune, quando muito, trocando de posições, para tranquilidade dos velhacos que, dizendo-se inimigos do crime, cuidam de cortar os galhos, deixando intacto o troncoSentia-se frustrado porque, sem possuir grandes ambições, sonhava melhorar o dia a dia dos homens, através de uma contribuição pessoal, por pequena que fosse .
Estava decidido a deixar o alto cargo - informava a carta enviada a Vic - quando, entre as denúncias, foi atraído pelo relato de maus tratos num campo de prisioneiros ironicamente batizado com o nome de "Conjunto Residencial da Ilha dos Prazeres", do qual nunca ouvira falar. Ficava numa ilhota de igual nome, a 50 milhas da Capital, visitado apenas e raramente pelas barcaças da Marinha ou pelos helicópteros da Polícia. Eram três blocos de sóbria construção escondidos entre clareiras rodeadas por densa vegetação.
Cada bloco de vinte unidades possuía três centros de distribuição. No primeiro, a "Gerência de Introdução", eram feitos os interrogatórios de "apresentação". O comportamento inadequado levava ao segundo, a "Casa do Malho", de onde o infeliz saia "em estado de graça", depois de ceder à chantagem ou "mudo para sempre", tal a brutalidade dos inquisidores. No terceiro, o "Salão de Beleza", a vítima, tendo cumprido as exigências, era preparada para deixar a casa.
*
Ventura se enfureceu ao saber, através de carta anônima, que entre os prisioneiros estava Branca (amiga de infância) e duas filhas menores. Veio-lhe à cabeça uma noite no Clube da Polícia, quando, já liberado pelo álcool, o inspetor Santa Rita iniciou uma conversa exploratória, pretendendo envolvê-lo em seus crimes.
Falava da necessidade de endurecer com três mulheres, mãe e duas filhas, conhecedoras do paradeiro de milhões de dólares do Estado, desviados pelo amante, homem de confiança do Dr. Barra ao tempo de sua Presidência.
Ele, Santa Rita - o maioral da Ilha dos Prazeres dizia-se frustrado em suas tentativas de recuperar o dinheiro, pela resistência das três mulheres que se valiam de "circunstâncias especiais" para criar problemas.
O diretor da COGESP achava que a denúncia, mesmo anônima, tinha que ser esclarecida. Sentia-se mal ouvindo falar de três mulheres, quando se tratava, na verdade, de mãe e duas filhas, crianças de seis e quatro anos. Lembrou-se das investigações sobre a fortuna do Dr. Barra, determinadas pelo governo Pousadas, ao fim das quais, o mesmo policial, na condição de chefe dos investigadores, apresentou um relatório em que dava ênfase à "enorme quantia em dólares depositada pelo pastor Banes, depois, presidente Barra, em bancos só conhecidos do genro, o Sr. Jonas de Deus Inatto." Estava explicado o confinamento das três "apadrinhadas" como ele as chamava. Em vez de pressionar o genro, homem conhecido, marido de uma figura exponencial da política, melhor apertar sua desprotegida amante.
*
Branca e as filhas tinham sido abordadas num trecho deserto da Estrada Municipal, no início da noite, quando retornavam à casa. Por sorte, os sequestradores se convenceram de que tinham sido identificados como homens do inspetor Santa Rita por um ex-policial, agora motorista da Corte Suprema, que presenciara toda a cena quando passava pelo local levando seu presidente, o ministro Arruda, para jantar com o filho, vizinho e amigo das três. Embora o magistrado tivesse preferido o silêncio, sua passagem foi registrada e isso talvez explique a relativa brandura com que foram tratadas.
*
Quando decidiu ajudar a irmã guerrilheira, Saulo não pensava em melhorar o mundo. Apesar da pouca idade, desconfiava de qualquer idealismo. Sabia que o egoísmo integra a natureza de todo animal, como garantia de sobrevivência. Antes de cuidar de outros, o indivíduo já vai longe na arte de cuidar de si. A única solidariedade ocorre entre pais e filhos, se bem que neste caso o interesse seja ditado pela natureza, visando à perpetuação da espécie.
Sabia também que a luta pelo poder leva as pessoas a disfarçarem seus reais objetivos, induzindo-as a embelezá-los, cobrindo de rosa a cor natural.*
Saulo assistia pela tevê o capítulo final de um documentário sobre a II Grande Guerra, quando, de repente, o filme foi substituído por uma reportagem, durante a qual, cinco militares à paisana confessavam a autoria do atentado que derrubou o Boeing da Presidência, matando o ministro da Defesa, general Luna Infante, homem de grande prestígio entre militares e civis, que os políticos sonhavam envolver numa campanha em favor de eleições livres, acenando-lhe com a candidatura presidencial.
Ficou perplexo ao reconhecer naqueles rostos assustados, os soldados que patrulhavam a cabeceira das pistas no momento em que ele, do meio da mata, disparava contra o avião. Não deviam ter ouvido os tiros, abafados pelo ronco dos motores. Provavelmente nem perceberam a fumaça que saia dos restos do avião, do outro lado da mata. Jovens ainda, pareciam absorvidos pelos assuntos do dia a dia.
*
Lembrou-se de que, após o atentado, enquanto aguardava a hora da fuga, viu surgir ao longe, um jipe da Aviação Militar, aproximando-se rapidamente. Seu motorista (o major Pires à paisana) só parou quando teve os pneus perfurados a tiros pelos guardas. Dizia-se perseguido por terroristas escalados para matá-lo.
Dava explicações aos militares, quando uma ambulância brecou junto ao grupo. Dela saltaram quatro homens de avental branco, um dos quais, intitulando-se "Coronel Mazza", Chefe da Comissão de Investigações, era o militar que naquele dia, na cabeceira das pistas dava as ordens e agora, pela tevê, relatava o caso.
Acusado de autor material da morte de Luna Infante, o major Pires enfiou-se por baixo do arame farpado, tentando escapar pela mata, mas foi baleado nas pernas. "Vão me matar! Socorro!", gritava ele caído ao chão, perdendo sangue.
O chefe dos guardas, um jovem tenente, sentiu-se desafiado pela arrogância dos estranhos que, sem lhe exibir um único documento, ignoraram sua autoridade de chefe do policiamento no local. "O que é isso?", quis saber ele.
"Pergunta ao chefe!", respondeu Mazza, displicentemente, irritando-o ainda mais.
O incidente acabou em pancadaria, com os guardas algemados e o tenente atirado ao chão da ambulância, como um delinquente qualquer.
*
Vendo pela tevê pessoas acusadas de um crime que era seu, Saulo, não por amor ao próximo, mas por justiça, esqueceu suas restrições ao idealismo, decidido a desmascarar a farsa, felizmente, mal elaborada.
No dia do atentado, deixara que as coisas se acalmassem na cabeceira das pistas, para iniciar a fuga. Depois de avançar 500m mata a dentro, abandonou no interior de uma gruta o saco plástico, dentro do qual, transportara a arma do crime, tendo o cuidado de cobri-lo com uma grossa camada de folhas secas. Após empurrar a bicicleta por mais de 1km, vencendo penosamente os cipós, alcançou o campo de futebol do outro lado da mata, em cujas imediações, o Boeing ardia em chamas.
Contemplou o resultado de sua temerária empreitada com serenidade, estranhando que não houvessem noticiado ainda a morte de Carranzas por obra sua. (Ignorava a troca de passageiros.)
Abandonou o local sem pressa, dirigindo-se para uma vila próxima, onde, segundo lhe disseram, encontraria pescadores dispostos a levá-lo até Juana, quaisquer que fossem os riscos. Mas ninguém aceitou desafiar a raiva dos militares que cercavam todo o monte Pessino.
Às 22h, já sabendo da morte do general Infante, estava de volta ao hotel onde passara sua primeira noite de homem emancipado pela vida, na terra que o viu nascer. Queria ficar só, amargando a frustração de ter matado o homem errado.
*
Na tevê o coronel Mazza descrevia os acusados como integrantes da "Pátria sem donos", a organização clandestina de militares que se aproximara do "Batalhão das Rosas" por entender que sua atuação era importante para preservar a chama da "luta armada", igual aconteceu na China com a "Grande Marcha", liderada por Mao.
O principal acusado, o major Pires, respondia pela inspeção dos aviões antes do embarque das autoridades. O Boeing fora liberado por ele sem restrições. Agora na tevê repetia o que, longe das câmeras, já havia declarado a seus inquisidores. Recebera dinheiro da oposição para explodir o avião com o chefe do Governo a bordo. Soube da troca de passageiros tarde demais. Todavia, pela quantia prometida, matar Carranzas ou Infante, dava no mesmo.
*
Várias emissoras do Caribe retransmitiram uma entrevista de Juana à rádio ABC de Bogotá, informando que oficiais da "Pátria sem donos", antecipando-se aos peritos do Governo, haviam retirado dos escombros do avião, uma bomba programada para explodir meia hora depois da decolagem, em alto mar. Estava intacta e continha, de fato, impressões digitais do major Pires. A organização iniciara uma investigação paralela que, apesar das dificuldades, já havia encontrado evidências de que o avião não caíra por obra de nenhuma bomba, para surpresa geral, fora derrubado por disparos feitos do solo.
Os autores intelectuais não imaginaram que logo teriam de dar explicações sem estarem, para isso, preparados. Não contavam que a bomba fosse chegar às mãos de estranhos que a retiraram intacta do meio das bagagens atiradas longe por uma explosão, provavelmente, do tanque de combustível.
Para Carranzas que, em cima da hora e sem boas razões, havia determinado a Luna Infante que viajasse em seu lugar, era urgente encontrar um culpado.
Quem introduziu a bomba? O major Pires! A mando de quem? Da oposição! Isso ele, bem trabalhado, haveria de confessar. Da pressa em acusar resultou que muitos conheceram os culpados antes de saberem do crime.
*
Pires bebericava no bar do aeroporto, quando soube da troca de passageiros e da morte do mais importante deles. Estranhou que entre as quinze vítimas fatais, apenas três fossem acompanhantes usuais do gen. Infante. Muitos desistiram da viagem, à última hora. (Quem sabia da disputa entre o ditador e seu ministro, não estranhou o acidente.)
O major logo desconfiou que seria responsabilizado, fosse porque inspecionara o avião sem descobrir a bomba, fosse porque ele mesmo a colocara a bordo. (Ignorava que a tivessem encontrado intacta.)
Quem mais suspeito do que ele?! Bebia muito, perdia demais no jogo, já não tinha a quem pedir empréstimos. Imaginou o pior quando, do interior de seu jipe com o motor ligado, viu o coronel Mazza olhando-o de dentro de uma ambulância. Alarmou-se. Uma senhora idosa manobrava à sua frente. Investiu contra ela que, apavorada, deixou o carro morrer, bloqueando a ambulância.
O major tinha os dias contados, independentemente do que viesse acontecer após o atentado. A maior parte dos Us$100.000 prometidos a ele, como executor, já estava em outras mãos. Sua vida não valia nada. Foi salvo pelo incidente com os militares na cabeceira das pistas, que aumentando o número daqueles cujo desaparecimento poderia trazer problemas, acabou poupando a vida de todos.
*
Enquanto pela Imprensa, governo e oposição trocavam acusações, Saulo aumentava sua indignação contra homens iguais ao coronel Mazza, imaginando, o que não fariam se tivessem pela frente simples trabalhadores, eles que não retrocederam mesmo diante de militares bem altamente situados! (Ainda não podia entender do que é capaz um homem comprometido com o poder.)
O cérebro, desafiado pela farsa na tevê, iniciou o processo que o levaria à ação direta, indiferente às conveniências e perigos. Ligou para a "Continental -Free", propondo-se a desfazer a versão oficial, mas não lhe deram crédito.
A auto-confiança estava de volta, alimentada pela crença de que, por linhas tortas, acabaria contribuindo tanto quanto os demais para derrubar a ditadura.
Temia que Juana tivesse aprendido com os políticos a só valorizar o que surgisse da própria cabeça. Receava que ela tivesse aderido a esta regra de ferro que tanto dificulta a boa administração do mundo, embora isto não lhe ameaçasse os planos.
Amadurecera dez anos em alguns dias, ficando em condições de encarar Juana com isenção. Acreditava agora que a amava tanto, não só porque ela merecia, mas porque o avô Banes o havia contaminado com sua devoção por ela. (Magoou-se quando a irmã, levianamente, classificara o atentado de prejudicial à causa.)
*
Aceitava que as mulheres interpretassem a luta contra a ditadura como um esforço predominantemente feminino que, por justiça, deveria chegar ao fim por um golpe espetacular desferido por elas. Acreditava na auto-valorização como tendência natural entre concorrentes. Estava convencido de que só não há concorrentes quando inexistem diferenças. Homens e mulheres, porque são diferentes, são concorrentes.
Concordava com Juana quando afirmava que o mundo só chegará ao ideal de justiça pelo qual se luta, quando as mulheres (metade dos racionais), puderem participar de igual para igual da vida social, inclusive, das guerras, nas quais foram sempre envolvidas como vítimas indefesas.
Concordava ainda com Juana quando ela dizia que a epopéia do monte Pessino era mais que o símbolo da luta contra a ditadura; era a evidência de que as mulheres - as maiores vítimas da violência - desde que abandonem seu arraigado sentimento de inferioridade, podem, manejando armas, serem tão competentes para matar quanto os homens. Torcia para que na guerra contra a ditadura, na qual se empenhavam homens e mulheres, o golpe decisivo surgisse delas, pois isto lhes daria um prestígio do qual os homens já não precisam.
*
Só não aceitava que a necessidade de auto-afirmação fosse atendida através de procedimentos semelhantes àqueles utilizados pelos homens. Não gostava de ficar culpando isto ou aquilo pelo fracasso ou sucesso de um acontecimento. Para ele, a morte de Luna Infante era lamentável porque Carranzas é que devia morrer, mas, não acreditava que atingindo o alvo errado, tenha favorecido a ditadura.
Ela se beneficiava da passividade da oposição, da lengalenga, da ciumeira entre seus adversários. Achava que a morte do Ministro da Defesa, sabidamente desejada pelo ditador, qualquer que tenha sido a fórmula para efetivá-la, veio desgastá-lo mais do que a oposição imaginava.
Estava disposto a extrair de seu aparente fiasco, tudo o que pudesse apressar o fim da tirania, mesmo ao risco de contrariar parentes e amigos. Ligou de novo para a "Continental -Free", fazendo-se ouvir, depois de revelar que era Saulo Banes Barra Inatto, filho de Vic, neto do falecido presidente Barra, acrescentando que havia ocultado o nome, porque preferia deixar a família de fora. A agência, temendo a concorrência, divulgou, de imediato, um texto bem mais corajoso do que ele esperava, insinuando que o Boeing tinha sido derrubado pelas balas de um fuzil LA-2, checo, disparadas de dentro da mata por um jovem de boa família.
*
Saulo queria falar com Marlow no apartamento da rua general Osiris, mas foi atendido por mim, seu pai, ladeado por Vic, pois o jornalista estava nas ruas à sua procura. Começamos bem, mas a ansiedade da mãe, interrompendo seguidamente a conversa, levou-o a desligar. Antes eu lhe manifestara a suspeita de que fosse o "jovem de boa família" que a Imprensa buscava com desusado interesse. "Acreditem, sou eu mesmo!", disse.
Ao encerrar a breve conversa, ele informou que estava a caminho do restaurante "Santilo", na mesma rua, para jantar. Marlow que chegou logo depois, correu para avisá-lo de que havia gente procurando-o para matar.
Por trás da frieza com que ouvia palavras como paz, amor, justiça, desgastadas em seu conteúdo pelo excesso de uso, Saulo continuava apegado aos valores morais, mantendo forte interesse pela preservação da honra pessoal que agora mesmo, transparecia das queixas contra os que tentavam convencê-lo a se desmentir em público ou fugir, deixando que outros pagassem por um crime que era seu. "Jamais voltaria atrás só para salvar a pele!", afirmava.
*
Para desgraça de Carranzas, o brigadeiro reformado Macário Pasqua que residia em Miami, relatou à imprensa de lá, seu último encontro com o major Pires, um velho conhecido, que adorava conversar com autoridades, antes do embarque. Falaram muito no dia do atentado, só que desta vez, o major parecia nervoso, preocupado em se ocultar. Ele, que estava sendo oficialmente acusado de receber dinheiro da oposição para matar Carranzas, admitiu indiretamente a transação, só que o brigadeiro, apoiado em suas indiscrições, concluiu que o dinheiro vinha, de fato, do Governo, só que destinado a matar gente da oposição.
Em meio às despedidas, o major informou que estava em condições de lhe pagar os restantes US$5.000 de uma velha dívida, pois iria receber naquela manhã, de um amigo comum, US$10.000 dos US$100.000 prometidos por um trabalho especial. Da conversa o brigadeiro reteve a impressão de que o "amigo comum" era um colega de turma do major, que se transformara num eficiente lobista a serviço da Associação dos Empreiteiros. Depois de romper com o ministro Luna Infante devido a interesses contrariados, ele passou a tratar pessoalmente com o ditador, virando seu homem de confiança, pau pra toda obra.
*
Tendo Saulo insinuado que assumiria oficialmente a responsabilidade pelo atentado, qualquer referência ao crime tornou-se desgastante para ambos os lados. Cresciam os indícios de que o ditador quisera mesmo se livrar do ministro da Defesa, desconfiado de que ele, incentivado pela oposição, estivesse conspirando para assumir a Presidência por meio de uma quartelada em preparação.
A morte do conspirador não aconteceu como todos queriam, porque alguém se intrometeu. Vic a principal liderança da oposição civil, sabia agora quem era o intrometido, daí porque melhor seria, por algum tempo, ficar calada.
Às 23,30h fui informado por Marlow que meu filho estava outra vez desaparecido.
*
De manhã mais uma notícia triste. O Dr. Rosano comunicou-me a morte de Jonas II. A criança havia piorado, falecendo antes que pudessem avisar a família. Pedia que o retirássemos com urgência, pois, oficialmente, ele não passara por sua clínica.
Graças à insistência de Juana, o menino foi levado para o monte Pessino onde descansaria em paz.
Durante o enterro, eu e minha filha trocamos algumas palavras, depois de um longo afastamento. Uma conversa entre ela e Vic após o sepultamento, me entristeceu. Afora as indefectíveis lamúrias pela morte de um parente próximo, o que realmente as preocupava, era a confissão de Saulo à Imprensa que, mesmo resumida, invalidava a versão oficial.
Temiam que ele a repetisse de forma espetacular, destacando-se na luta contra a ditadura, pois ninguém duvidava de sua coragem. Estavam igualmente preocupadas com o coronel Ventura que ameaçava oficializar as denúncias de torturas na "Ilha dos Prazeres"
"Se todos querem acabar com a ditadura, por que o ciúme?", eu me perguntava. Lembrei-me do que está na boca do povo: "Para o político, bom é o que ele faz, nada mais!"*
Ao chegar em casa Vic soube que a oposição moderada, receando o individualismo de pessoas como Saulo e Ventura, aceitava unir-se a alguns remanescentes da oposição clandestina para impor uma greve geral de 24h a ser concluída com uma concentração diante do palácio da Presidência. (Membros à paisana da "Pátria sem donos" e da UPT-FA garantiriam a segurança dos manifestantes.)
Muitos repetiam uma observação feita por Carranzas, ao saber que Ventura se transformara num grande inimigo: "Revolucionários, ideólogos não me assustam. Tenho medo é desses bobalhões honestos!". Estava preocupado.
O ex-diretor da COGESP se transformara numa grande ameaça para o Governo e, também, para certas lideranças da oposição que sabiam de sua resistência às manipulações. Temiam que ele, muito prestigiado, ascendesse, pela pressão das bases, à chefia de um segmento armado em fase de organização.
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Carranzas aprendera que a coragem, arma importante na batalha pela vida, suscita admiração. Sabia que a audácia, principalmente, quando inesperada, paralisa o inimigo, facilitando a vida de quem precisa virar o jogo.
Não fazia fé no sucesso da manifestação convocada para aquela tarde em frente ao Palácio. Mas, ouvindo o clamor da multidão que lotava a praça, ele se tocou, voltando ao mesmo expediente que já o salvara em outras ocasiões.
Do balcão no primeiro andar, encarou os manifestantes, um bom tempo, na esperança de que cessados os gritos de "Assassino! Assassino!", pudesse iniciar seu discurso de aliciamento.
Porém, aquela não era uma reunião de pessoas expostas a tais golpes. Pressionando a maioria silenciosa, ali estavam agitadores experientes, dispostos a mantê-la sob controle, todos eles, políticos por vocação, sempre querendo mais, sempre insatisfeitos com sua atual posição; homens impregnados de inconfessada inveja, sequiosos de poder - sentimentos fortes, capazes de alimentar vinditas coletivas em nome da Justiça. Instigada pelos guias, a multidão voltou aos insultos. Arrependido de sua vã temeridade, o ditador, depois de gestos obscenos como resposta às vaias, retirou-se, enquanto sua guarda disparava contra os manifestantes, fazendo mortos e feridos.
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Do terraço de um prédio aos fundos, ergueu-se um balão amarelado, exibindo inscrições com letras de mais de um metro, feitas de tinta preta forte: "Carranzas mente! Eu derrubei o avião! Tenho provas! Saulo, neto do presidente Barra."
Alguns soldados viram de onde saiu o balão e foram atrás. "Rápido!", disse Marlow, arrastando-me para o terraço, onde, estacionada a um canto, invisível, pronta para qualquer emergência, ele deixara a micronave. Em poucos segundos estávamos juntos ao enorme charuto voador que, ajudado pela suavidade dos ventos, sobrevoava a praça, lentamente, quase parando, sem ninguém em seu interior.
Retornamos ao terraço já vazio. Para saber o que acontecera a meu filho, descemos ao solo. O zelador, algemado na portaria, informou que o balão fora construído por Saulo em dois dias. Estava preocupado porque depois da subida dos guardas ao terraço, houve tumulto, seguido de um grito pavoroso e da fuga dos soldados.
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Pensávamos no que fazer, quando a portaria foi invadida por civis armados que escoltavam os guardas fujões, agora algemados, visivelmente apavorados. Os civis diziam pertencer a um grupo de proteção aos manifestantes. Vigiavam o prédio quando viram os soldados abandonando-o às pressas, causando suspeitas. Detidos, primeiro disseram que o rapaz havia pulado para a morte, depois, passaram a culpar uns aos outros. Por último responsabilizaram o chefe, um sargento bigodudo, mestiço de índio com branco, que insistia na versão de suicídio.
Saulo jazia no chão do pátio interno, com o rosto emborcado numa poça de sangue, ainda vivo. Decidimos levá-lo ao Dr. Rosano, mas o homem que se dizia chefe da milícia da oposição demorou tanto a aceitar que o caso fosse de extrema urgência que ao chegar à clínica, ele já estava morto.
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À noitinha, ignorando a censura, a tevê-N informou que o "Batalhão das Rosas", ajudado por unidades rebeladas da Infantaria Naval, havia ocupado o CAT-M (Complexo Aeroportuário de Taramela - Setor Militar), assumindo o controle do tráfego aéreo na Capital. Logo as rádios anunciavam que o ditador, abalado com a perda de uma de suas principais bases de sustentação, seguira de helicóptero para o iate "Fortuna", agora navegando em águas internacionais.
Na praça da Independência os oradores radicalizavam, enquanto a multidão antecipava a euforia que se segue à queda de uma tirania, antes que os novos mandantes restabeleçam a disciplina. Boatos chegavam dos quartéis, de onde, antes não saiam nem denúncias fundamentadas. (Os generais brigavam pela sucessão.)
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A grandiosidade do cortejo fúnebre de Saulo, reunindo a maioria das embarcações inscritas na Capitania dos Portos, assumiu caráter de veemente repúdio à ditadura. Às 17h, enquanto o corpo era sepultado no monte Pessino, havia ainda centenas de barcos ziguezagueando pela baía, na esperança de um adeus àquele que se convertera em figura emblemática da juventude atual, tão confusa quanto ele, capaz de generosidade igual à sua.
Vítima da insensibilidade dos adultos, inclusive dos pais (eu e Vic), ele que, mesmo entre delinquentes, conservara seu apego aos valores eternos, encontrou forças para, na hora da verdade, entregar a vida, preservando a honra.
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Situado numa região de vendavais, o arquipélago de Taraga não sofria com eles. O vento amenizando o clima tórrido, era recebido com alívio. Os rios bem comportados, nunca ameaçavam as populações ribeirinhas. Porém, depois do enterro de Saulo, Deus mostrou que não era taraguenho tanto quanto diziam.
O sol ausentou-se de vez. A noite sobreveio rápida e do céu escuro, cortado por riscos de fogo, as águas desceram furiosas. O rio das Onças, incapaz de escoar a montanha de detritos trazida pelos esgotos, em poucos minutos, transformou o centro velho de San Miguel num lago de águas poluídas, onde boiavam animais e coisas.
Centenas de casebres desfeitos em barro, rolavam pelas encostas dos morros, enquanto os incêndios consumiam fábricas e residências. A rede elétrica sofreu grandes danos, deixando na escuridão toda a área central e a zona portuária.
Por toda parte, árvores referenciais da cidade jaziam no solo, arrancadas pelas raízes. Carros eram arrastados pelas correntezas, alguns com os motoristas dentro.
Ao cair da noite, milhares de pessoas continuavam ilhadas nas partes baixas, esperando as águas escoarem. A tempestade atravessou a noite, impedindo o recolhimento dos mortos, cerca de 300, nas primeiras 24 horas, só na Capital. O aguaceiro durou três dias e quando cessou, a cidade estava coberta de lixo, com os urubus devorando os corpos em decomposição.
Nem eu, das alturas onde morava, escapei da fedentina. A vida política, ameaçada por uma crise que se aproximava do clímax, ficou paralisada.
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Os meios de comunicação funcionavam precariamente. Os telefones emudeceram. O ditador, alentado por místicos impulsos, se declarou intérprete da "Máxima Potência", para a qual a corrupção atingira tal aceitação que só uma grande desgraça como punição, poderia detê-la. Virou guardião do bem contra o mal, tendo o céu como proteção.
Mas, sem esperar pela ajuda de Deus, Carranzas trabalhava como se uma força capaz de empurrar o mundo, o ajudasse. Lutava para reconquistar posições, utilizando-se das falhas de comunicação entre os inimigos, aumentando-as até, prevalecendo-se de que o Estado por mais frágil que seja, quando quer, impõe-se aos particulares. (Ameaçado pelo caos, o indivíduo se entrega a qualquer simulacro de governo que ainda exista.)
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Era preocupante sua cruzada contra o mal, por ele tão abrangentemente definido, que as artes e a ciência ficaram ameaçadas, dependentes agora de alguém que não admitia ser contrariado.
Os telefones continuariam mudos, porque, para os responsáveis pelos reparos, gente do governo, todos eles possuidores de meios alternativos de comunicação, quanto mais isolado ficasse o inimigo, melhor.Nos círculos oposicionistas, ninguém sabia de ninguém, por culpa do vendaval; por culpa maior do ditador que se aproveitava da desgraça pública para iniciar a "grande limpeza". O que houve com Vic ou com o Dr. Pousada era mistério. Ignorávamos a sorte dos oficiais da "Pátria sem donos". Entre os amigos, só Marlow continuava em liberdade, protegido pela alta qualidade dos equipamentos postos à sua disposição pelo SISOVNI, sobre os quais pouco sabíamos.
Foi só no segundo dia de chuvas, que ele, pelo L2Tv, me passou a relação daqueles com os quais não conseguira falar. Muitos tinham sido presos depois do sepultamento de Saulo, inclusive, Juana, arrastada para a ilha dos Sapos, um centro de torturas de triste fama. Prometeu-me que a libertaria logo, logo, "mesmo que estivesse em mãos de loucos", pois, neste caso jogaria "loucura contra loucura".
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Os taraguenhos ficaram horrorizados com o ditador nos dias em que o país esqueceu a política, para se defender das águas. Os urubus ainda bicavam os cadáveres nas ruas e os chefes da oposição estavam encarcerados ou mortos. Carranzas se mostrava à altura desses carrascos de milhões, cuja longevidade no poder vem mais de sua falta de escrúpulos que de sua competência de estadista. (Muitos temiam que, outra vez, o dinamismo do mal vencesse a inoperância do bem.)
Isolado em casa pelas chuvas, bastava um aceno de melhora para que eu saísse à procura de luz natural e, principalmente, de informações. Mas a cidade vivia o clima próprio das ditaduras, quando só se sabe o que o ditador quer.
Foi noticiado que o octogenário Antônio Pasca, presidente da CONTRAI (Confederação dos Trabalhadores na Agro-Indústria), sindicalista muito conhecido, estava em prisão domiciliar, porque isto sugeria condescendência com a velhice, enquanto muitos de seus companheiros, quase tão velhos quanto ele, se consumiam em horrorosas masmorras, verdadeiros atalhos para a morte. Noticiaram o fuzilamento de uma dezena de saqueadores apanhados em flagrante, porque punições drásticas assim impressionam o homem do povo, favorecendo a imagem do "Governo Carranzas - Força Total", gestor da "Nova Taraga", nascida para higienizar um país onde, por culpa da democratização do vício, quem não rouba, inveja os ladrões, achando-se desobrigado de trabalhar.
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A luzinha vermelha aproximando-se rapidamente, era mesmo da PSW.1.1, a micronave de Marlow. Logo ele estaria em casa, minorando minha ansiedade. Mas quando começou a falar, fiquei triste, pois, embora nos últimas dias me afirmasse que nada mais tinha para esconder, de muita coisa eu não sabia.
Ele, minha filha, enfim, todos, a pretexto de poupar-me de perigos, reduziam-me à inatividade. Só depois do desaparecimento de Saulo é que a necessidade de localizá-lo obrigou Marlow a me admitir como improvisado co-piloto em sua micronave, se bem que isso não alterasse as coisas. Estava longe da aviação e, digamos, para a minha visão atual de leigo, aquele fantástico objeto voador, pouco se distinguia de um dos nossos helicópteros. Gostaria de expor-me aos mesmos riscos que eles, mas insistiam em me poupar, deixando-me à margem do que havia de mais interessante em suas vidas.
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Depois do sepultamento de Saulo, observei que Juana, Vic e três oficiais da "Pátria sem donos", nas despedidas à beira do túmulo, me evitavam e só agora soube dos motivos: seguiriam dali para uma reunião com oposicionistas confiáveis, convocada para decidir, longe da oposição bem comportada, uma ação de peso contra o ditador, visando impedir que readquirisse o fôlego. Ele, porém, estava atento. A temível PP (Polícia Política) os aguardava no ponto de encontro. Quando Juana e os outros chegaram, o coronel Ventura, que se antecipara aos demais, sangrava pelo nariz, atirado a um canto, algemado. Pego de surpresa não teve tempo de reagir. Foram todos eles, entre insultos e agressões, arrastados escadas abaixo até o pátio interno. Perdendo sangue, os rostos deformados por socos e pontapés, homens e mulheres, sem discriminação, nem consideração, viveram horrores no interior de duas camionetas que deixaram o local sem disfarces, aparatosamente, como se o propósito fosse mesmo intimidar.
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Em 15 minutos estavam no QG da I Região, de onde seriam encaminhados para interrogatório em diferentes unidades. Vic e os três oficiais da "Pátria sem donos" ficaram no QG. Juana, alvo de um ódio especial, foi, de mãos atadas às costas, atirada ao chão de uma barcaça da Marinha, seguindo para a ilha dos Sapos, local de fuga impossível, onde mourejava uma população dedicada ao ofício de maltratar o próximo. (Ventura teve o mesmo fim.)
Enquanto a embarcação se debatia em meio às águas revoltas, Juana, quase inconsciente, buscava encontrar defesas contra o esmorecimento. O dinamismo da política lhe ensinara a triunfar sobre as adversidades. Graças ao espírito forte, ela se mantivera firme depois de perder o filho e o irmão, perdas pelas quais se achava indiretamente culpada.
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Temia estar ameaçada como nunca estivera. Com a água empoçada, a lhe cobrir o corpo, deixando livre apenas o rosto, ela, tiritando de frio, retomava uma idéia que a molestava nos momentos de perigo. Desejava que se alguma coisa tivesse de lhe acontecer, que viesse de repente, embora não tão de repente que a impedisse de abraçar aqueles que apreciaria rever na eternidade.
Perdida entre a névoa que recobria o mar naquela noite tormentosa, a impossibilidade de nos conceder nem mesmo um triste adeus, foi o que mais a magoou.
Logo que a tempestade amainou, Marlow, que estava nas Bermudas, veio rápido para San Miguel onde se entregou a uma busca frenética de Juana, temendo por sua vida. Disseram-lhe que os mais visados iam para a ilha dos Sapos, mas examinando-a de ponta a ponta, da primeira vez, nada encontrou. Finalmente deu com ela numa situação humilhante para quem tenha um mínimo de dignidade. Sofria em mãos de criaturas abjetas, cuja degradação moral transparecia na face. A impossibilidade de ajudá-la pelos próprios meios, causou-lhe impotência tão grande que logo se transformou em ódio, fazendo que esquecesse o orgulho de civilizado para agir como um terráqueo qualquer.
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Surpreendentemente, Marlow convidou-me para juntos sobrevoarmos a ilha-prisão de Juana. Enojado ele me passou o L2Tv, em cuja tela de 3x4cm, ela surgia inteiramente despida, de joelhos dobrados sobre uma extensa mesa, cada coxa amarrada por grossas cordas a grandes argolas, uma de cada lado, presas ao chão. Os seios achatavam-se contra o mármore frio, sobre o sangue que escorria da boca e do nariz duramente golpeados e das costas vergastadas por um brutamontes vestido apenas de sunga, exibindo uma careca oleosa. Tinha suas intimidades expostas à curiosidade malsã daquele depravado, com tal nitidez, que, sem vê-la nua desde Vista Hermosa, me surpreendi com as marcas dos ferimentos à bala nas costas e nádegas, recebidos durante a troca de tiros por ocasião do sequestro de Vic.
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À sua volta, como se cuidassem de um doente, transitavam médicos e enfermeiros acostumados a tais horrores. Estava ali também, Samanta Solis, travesti politicamente apaixonado por ela, que, depois de seguidamente torturado, para que sofresse ainda mais com o sofrimento dela, fora incumbido de retirar a sujeira que em pouco tempo tornava o ambiente insuportável, tal a quantidade de sangue, urina e fezes que a dor suscitava naquele organismo combalido que preferia sucumbir a colaborar.
Enquanto assistíamos àquela indignidade, o corpo de Juana deu sinais de fraqueza e ela teve de ser levada para a enfermaria. "Vamos tirá-la, senão morre!", disse Marlow, para surpresa minha, porque nunca me associava a seus empreendimentos. Tratava-me como alguém de memória descontínua em quem era arriscado confiar.
A perspectiva de ação me fez bem. Em segundos estávamos sobrevoando a ilha, estudando um meio de libertá-la antes que o pior acontecesse. Poderíamos fazê-lo por nossa conta, mas, estava tão mal, que preferimos recorrer à nave-mãe. Fomos informados de que o resgate seria feito por uma equipe médica, enquanto nós deveríamos nos juntar a uma expedição punitiva ordenada pelas autoridades de Xad.
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Do céu azul desceu uma forte tempestade, circunscrita àquela ilhota de má fama e à região onde navegava o iate "Fortuna" que, segundo voz corrente, se transformara em gabinete de trabalho do ditador.
O mar transbordou em poucos minutos, submergindo a parte baixa da ilha. O vento soprava a mais de 100km, atirando à distância, sobre as pedras, tudo o que havia na superfície do mar.
Cessado o temporal, uma nuvem branca de "Gastop" (gás paralisante não inflamável), produzida por um dos equipamentos de Marlow, envolveu, a uma altura de 3m, a região alta onde estavam abrigados os torturadores que, a seguir, inconscientes, foram encaminhados a um tribunal itinerante, instalado nas dependências da nave-mãe que os julgaria conforme o princípio de que a soberania dos povos jamais poderá servir de escudo para a delinquência; de que não pode haver santuários do crime.
Na "Sala dos machões", lugar das piores torturas, encontramos Samanta Solis contemplando, entre extasiado e triste, o que restou das grossas paredes derrubadas pelos raios "Tracta" da expedição vingadora. Chorava a morte do cel. Ventura, vítima de golpes que lhe danificaram órgãos vitais. Insistiu tanto para sepultar o companheiro no monte Pessino, junto de Saulo e Jonas II que tivemos de ceder.
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Tratando-se dos homens, criaturas ainda incapazes de acreditar no controle dos fenômenos da natureza por seres inteligentes, essas punições, como inibidoras do crime, são discutíveis, porque, atingindo culpados e inocentes, acabam sendo explicadas pelos que se dizem porta-vozes de Deus, segundo seus interesses, como demonstrações da ira divina.
Depois da revolta suscitada pelas indignidades contra Juana, algo teria de ser feito. Era preciso impedir que os Carranzas da vida continuassem a fazer escola. Além do mais, ela era uma descendente dos nossos, embora ainda não soubesse.
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De repente, a tevê-N saiu do ar. O céu continuou azul, porém, a umas dez milhas de onde estávamos, o dia virou noite; as águas desceram torrencialmente, como se viessem de nuvens a poucos metros de altura. Os relâmpagos iluminavam o mar onde nada mais havia na superfície. Em menos de cinco minutos o "Fortuna" tinha sido arrastado para os abismos. Mas, o temporal artificialmente produzido para castigar Carranzas - o grande culpado - fracassara. Ele não estava a bordo. A arrogância dos nossos, quando lutam contra incivilizados, impediu-os de investigar o que muitos suspeitavam: a mudança do gabinete presidenccial para o iate "Fortuna" era mais uma farsa do ditador.
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"Via na corrupção endêmica,
o ponto fraco a ser explorado
pelos ideólogos do partido único,
ávidos de poder exclusivo." (A DESCOBERTA DA TERRA***Parte5)
at/210603