ðHgeocities.com/joseavellar/segunda_pagina.htmlgeocities.com/joseavellar/segunda_pagina.htmldelayedxoÔJÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÈ0 ’³·OKtext/html`ªõ0k³·ÿÿÿÿb‰.HMon, 23 Jun 2003 18:00:59 GMTMozilla/4.5 (compatible; HTTrack 3.0x; Windows 98)en, *oÔJ³· Avellar Toledo

A DESCOBERTA DA TERRA
Avellar Toledo

 

PARTE2
VERDADE: só nas pequenas questões;
IDEOLOGIAS: oceanos de preconceitos;
A inevitável GLOBALIZAÇÃO;
Forçando o dedo o pus ESGUICHA;
MÁFIAS de fazer inveja;
ESTADO: o pior dos males necessários;
MAIS FUNCIONÁRIOS, mais corrupção.

*

Dentro da mata, a 500m do acampamento, eu e o pastor Banes, assentados numa árvore caída, falávamos de generalidades, quando, de repente, ele passou a culpar a filha Vic de haver deitado comigo só para contrariá-lo, prejudicando nossa amizade, fazendo o jogo dos hierarcas da UCC que, enciumados, me acusavam de traição. "A iniciativa foi dela, eu sei, mas você fraquejou!", disse-me num tom queixoso.

Fez silêncio um bom tempo, deixando-me constrangido. Só me refiz quando voltou a falar, como se nada tivesse acontecido. Necessitava desabafar e eu, ainda limitado pelo escasso vocabulário, ficava satisfeito só de ouvi-lo.

Os tambores chamaram para a ceia, mas, livre de horários, ele prosseguiu. Voltamos para casa às 22h, atraídos pelo barulho feito pelo cãozinho "Big" contra uma onça pintada que rondava o galinheiro.

*

William Banes Barra, pastor Banes (na religião), Dr. Barra (na política), nasceu em San Miguel del Forte, capital de Taraga em 1920, filho de Antônio da Anunciação Barra, português e Joan Fitsgerald Banes, irlandesa, vivendo no país há cinco anos.

Colônia espanhola até 1840, Taraga tornou-se, depois de independente, uma República Federativa, hoje, com 10 milhões de habitantes, ocupando 125 mil km2 entre o Equador e o trópico de Câncer. Formado por três ilhas maiores e centenas de ilhotas, o arquipélago fica na banda oriental do Caribe, com seu extremo ocidental em Punta Prego, 300 milhas a leste de Barbados.

Apesar das promessas da terra, o velho Barra, sonhando enriquecer depressa, emigrou para a Califórnia, abrindo uma peixaria nos arredores de Los Angeles. O filho, desde cedo era motivo de preocupações. Dinheiro só não bastava. Queria consertar o mundo, virar paladino de uma nobre causa.

Mal iniciou a luta, caiu no canto da sereia moscovita, naquele tempo, mavioso. "Quem tem poder político tem o principal; o resto vem atrás!", ele ouvia dizer, despreocupado de saber quem dizia, Lenin, Stalin, Hitler. (Aproximasse de seu modo de ver as coisas, estava certo.)

Queria um governo disposto, não de palavras, mas de fato, a acabar com as injustiças; governo composto de pessoas diferentes dos oligarcas de hoje, inimigos de quaisquer mudanças; defensores da violência institucionalizada, porque, só ela é capaz de assegurar o domínio de uns poucos sobre a maioria.

Era muito jovem para saber que do outro lado do mundo, o paraíso descrito pela irresponsabilidade de conhecidos intelectuais, não passava de um purgatório sem fim, garantido pela brutalidade policial, a serviço também de poucos.

*

Gostava de viajar, mas não tinha dinheiro. Marxista sem muita convicção, imaginou conciliar a sede de justiça com o gosto da aventura, indo à guerra na Espanha. Derrotado nos campos de batalha, decidiu ficar em Paris, fascinado pela fraterna acolhida aos intelectuais de esquerda entre os quais timidamente se incluía.

Invejava o sucesso mundano de artistas como Hemingway, Picaço e outros, cortejados pelos ricos e pelos pobres. Sonhava estar um dia entre eles; ser rico e além disso, herói do povo.

Mas, logo que também entre os intelectuais, o prestígio não decorre só do mérito; é preciso muita política, muito oportunismo para subir. Espírito prático, decidiu fundar uma Igreja que devesse obediência a ele e a mais ninguém, embora a decisão o fizesse passar a vida toda como peixe fora d’água.
Tentava ser feliz como chefe religioso, mas, sempre que se descuidava das conveniências, exibia sua face de inconformado com os desacertos do mundo, agindo como qualquer descompromissado.
"O intelectual - dizia - não pode se prender às ideologias, laicas ou não, todas elas, oceanos de preconceitos. Seu destino será sempre o de extrair das circunstâncias, a realidade despojada de adereços. Garimpeiro da verdade cabe-lhe pegar a idéia e tomando-a por modelo, movimentá-la até iluminar o estrito campo da realidade unívoca, destacando-o da nebulosidade do todo."

*

Lamentava aproveitar a crendice popular para dizer de longe, sem medo de contraditas, o que não ousava dizer cara a cara a seus enlevados ouvintes. Sabia que a verdade esmorece diante da distância imposta pela disparidade de forças. (A fala enganosa de um rei vale mais que a sinceridade de todos os súditos.)
Qualquer que seja ela, a verdade só prevalece nas disputas entre poucas pessoas, quando pode ser questionada diretamente de igual para igual. Nos grandes acontecimentos, ela fica de fora. Nos conflitos envolvendo milhares, representados pelas grandes instituições, ela cede às conveniências dos chefes.
“Nas guerras, a verdade é a vítima principal e a mentira, o melhor soldado.”, dizia Banes. "Por que – indagava ele – nos assassinatos de milhões, ninguém se acha culpado? Por que os responsáveis por eles, dos dois lados, em vez de dizerem o que sabem, calam ou ficam a gemer sua hipocrisia?!". Desde que a natureza humana exige, para qualquer coisa, uma explicação, por mais simplista que seja, aceita-se, com algum fundamento, que o vencedor, seja ele quem for, é o dono da verdade.

Apesar disto, embora a mentira fosse tão velha quanto o mundo, Banes duvidava pudesse ela continuar expandindo tão aceleradamente quanto hoje. Dominava-o um pensamento recorrente: "o exagero busca o impossível e mesta sua busca sem fim, acaba restabelecendo a normalidade." Não fora assim, a vida social se tornaria impraticável.
A rigor, a mentira não existe, existe uma cópia da verdade que se confunde com ela e é utilizada como se fosse ela, enquanto suas vítimas não aprendam a distinguir entre a cópia e o original. A mentira dos grupos organizados (mentira grupal, institucionalizada), exercida como prática diária pelos agentes do Estado, das igrejas, ou de quaisquer entidades representativas de homens, mantém, mesmo que aos trancos e barrancos, a ordem social, pelo menos enquanto o poder que está por trás dela e que faz as leis, disponha de força bruta pronta a entrar, oficialmente, em ação, contra eventuais contestadores.

A mentira nunca foi tão generalizada e unilateral como em nossos dias, quando homens poderosos, difundem o que querem, indiferentes às consequências de sua malícia, apoiados na certeza de que nunca poderão ser, na mesma proporção, desmentidos, porque, graças à sua vocação monopolista, facilitada pela venalidade de altos funcionários públicos encarregados das concessões, eles dispõem, quase com exclusividade, de instrumentos como a tevê, o rádio, o cinema. Mentem e não podem ser desmentidos, porque milhões de ouvintes, por falta de meios, estão condenados a escutar sem poder contestar. (Banes - um visionário - já naquele tempo, sorria esperançoso, sonhando com a Internet!)

*
 
 

Intolerante, como todo chefe religioso, o pastor menosprezava os bens materiais, embora os consumisse como todos os outros. Em momentos de exaltação, deplorava o lado consumista do capitalismo (o lado supérfluo), culpando-o pelo mal que existe hoje. Mais calmo, lamentava:
"Fazer o que, se está pra nascer quem, nos dias de hoje, limite sua ganância, nem que seja para evitar a morte do outro. Rendendo alguma coisa, o resto que se dane!" Fortalecidos pelo endeuzamento do ilícito, heróis às avessas, mas, heróis, cresce a audácia dos criminosos, enquanto esmorece a combatividade do homem de bem, abandonado pelo poder público, humilhado, sem esperanças.
Caiu a rejeição do crime pelas familias, atraídas pelas grandes somas extorquidas em assaltos e sequestros, dinheiro que une delinquentes, suas famílias e autoridades através da imoralidade.

Otimista nos piores momentos, acostumado a extrair do mal o que ele possa render de bom, o pastor achava, que, mesmo o consumismo delirante dos nossos dias, poderia ironicamente, produzir resultados positivos, concorrendo para a conscientização do homem comum, pois, ele, que, diante das elites foi sempre um zero à esquerda, é agora valorizado como consumidor, o que não deixa de ser alguma coisa. Outrora a mentira era menos generalizada porque não havia tanta necessidade de mentir, as coisas se resolviam na ameaça de violência ou na violência efetiva.

Agora, em vez de pancada, o homem comum, porque necessitam dele como cliente, tem que ser enganado, pouco importa que a mentira, tida como aceitável no comércio e na política, acabe contaminando tudo o mais, destruindo referências morais, gerando a loucura do dia a dia, diante da qual, assassinato, corrupção ou os dois juntos, assumiram o caráter de prática normal, exercitada pelos grandes contra pequenos, e até por um exército de pequenos inescrupulosos que se vinga, indiscriminadamente, contra quem lhe pareça mais fraco do que ela. Como consumidor o homem comum não pode ser esquecido e, das entrelinhas de tudo o que é obrigado a ver, ouvir e ler, ele tira algum proveito.

*

Banes tinha sido muitas vezes acusado de traição. Preferia ignorar tais acusações, pois a palavra "traição" sempre lhe pareceu suspeita, desde que nunca se aplica aos vencedores. Na prática, só é traidor quem ficou por baixo. No mais, a vida segue em frente.

Achava que sem ação não existe solução para nenhum problema. Pensava assim na Espanha e assim pensa até hoje.

Orgulhava-se, meio constrangido, de haver conservado, no íntimo, certos resquícios de seu antigo revolucionarismo do "quanto pior melhor", pois acreditava que a democratização da mentira, da corrupção, do vício em geral era ao mesmo tempo uma grande ameaça e uma esperança.

Antes achava que a solução estava na eliminação física do malfeitor, mas como não se apegava dogmaticamente a idéias ou posições, com o tempo, passou a acreditar que qualquer ação deve estar acompanhada de um freio moral e que a operosidade nunca poderia ser sinônimo de assassinato.

Começou a ver outros meios de combater a inoperância, aproveitando as fraquezas do consumismo, para denunciá-lo, criando junto às suas milhões de vítimas, uma consciência capaz de fazê-las distinguir entre a verdade e essa caótica exploração de tudo o que é simpático ao homem comum, inclusive, o nome de Deus.

Para ele, imperdoável era a inoperância palavrosa, praticada pela maioria das igrejas que, rejeitando oralmente a perseguição ecumênica do lucro, jamais a condenam expressamente, preferindo silenciar, convencidas de suas vantagens e de sua impotência nos tempos atuais.

*

Afeito às coisas da alma, como religioso tinha ojeriza às novidades. TV, cinema, gravadores, celulares, coisas, na maioria dos casos, ainda experimentais, lhe causavam alergia. Mas, como gostasse de provocar o próximo, incitando-o a se manifestar contra suas idéias, dispunha-se a aplaudir até o que intimamente detestava. Estava sempre proclamando os méritos da máquina. Vislumbrava em toda essa parafernália da tecnologia, filmes, fotografias, celulares, gravadores, em tudo isso, instrumentos úteis para surpreender os homens em suas maliciosas confabulações dos gabinetes, em suas brigas de quadrilha, que aproveitadas pelo interesse empresarial da comunicação de massa em promover escândalos, abriria os olhos do homem comum.

Não viveu o suficiente para comprovar o acerto de suas antecipações.

Através de leituras, tornou-se um entusiasta da Internet, no seu tempo, pouco mais que uma promessa. Acreditava nela como instrumento eficaz de aproximação entre os homens, graças à sua dispersividade, ao seu policentrismo, à sua peculiar interatividade, responsáveis por sua natural resistência contra as inevitáveis tentativas de transformá-la num monopólio tão pernicioso quanto todos os outros que limitam a comunicação entre os homens. Ousava dizer que dentro de pouco tempo o progresso social das nações iria ser medido pela pujança de suas Internets. Estava cansado de saber que o fruto das boas intenções, na prática, sofre distorsões. A Internet estava condenada a essa triste sina. Seria sabotada pelos tiranos; seria manipulada até a exaustão pelos predadores da pornografia, da prostituição, dos jogos e da violência anárquica, mas se consolava na esperança de que os 10% que lhe restassem para as atividades lícitas levariam a humanidade a uma escalada cultural sem predentes.

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Jamais conseguira superar o lado nostálgico de sua participação na guerra civil espanhola. Fora elogiado, mais de uma vez, até por altos chefes, sempre parcimoniosos em prestar homenagens, a não ser a seus superiores. Dera provas de coragem em batalhas memoráveis. Tinha, porém, um secreto temor, o de assumir responsabilidades que lhe exigissem dureza com os companheiros, principalmente, subalternos.

Exímio datilógrafo, depois de alguns meses na linha de frente, foi convocado para serviços burocráticos no comando de sua brigada. Sentiu-se contemplado pela sorte por duas razões. Primeiro, porque já não tinha subordinados para vigiar. Segundo porque, a proximidade dos chefes, lhe rendeu um conhecimento sobre o caráter deles, que iria lhe ajudar por toda a vida.

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Aprendeu - por exemplo - que na política feita de sangue, a precedência cabe aos duros, os quais, para se defenderem do remédio que indicam aos outros, só cuidam de acumular forças. Jamais percebeu nos chefes, qualquer sincero interesse pela justiça, usada apenas como pretexto. Todavia pôde sentir em cada um deles, a mesma ambição de poder que é a marca dos dominadores, desde os primitivos chefes de tribo até os revolucionários de hoje. Cuidavam de suas carreiras com empenho e brutalidade tais que não dava para distinguir uns dos outros.

"Não podemos fraquejar!", diziam todos, justificando-se, mais uma vez, com o argumento da força. Depois de muito conviver com Ladislaw Bloka, comunista de origem polaca, teve certeza de que ele não hesitaria em sacrificar o melhor amigo para subir na vida. Recordava, envergonhado, que ele próprio, William Banes Barra, abandonara a mãe à beira da morte em Los Angeles, para ir à Espanha incrementar sua carreira de revolucionário, a serviço da humanidade.

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"Nada de alimentar culpas", disse-lhe um veterano de muitas guerras. Somos todos inocentes e culpados. A questão está mais na força do que na culpa. Se te achas forte segue em frente que as portas se abrem. Se fraquejas, confessando a dívida, como não aceitar a conta?!"

Ficava desolado ao ouvir Katov, lendário comandante do Exército Vermelho, machucá-lo por dentro, ao falar dos primeiros tempos da revolução de outubro, embora sem condená-la: "Os chamados idealistas, foram preteridos. Será sempre assim, porque, se antes, eles são úteis para apressar a vitória, depois, para gozar o poder, atrapalham, embora o apreciem também. Perdidos entre o ideal e o desfrute, não conseguem alcançar aqueles que ao objetivo comum, se dão por inteiro, sejam eles os construtores da obra, ou os oportunistas que a ela se juntam, esses, mais eficientes, porque longe de lamentarem as distorções, sabem como se aproveitarem delas, tornando-se mestres dos que eram limpos por falta de opções."

*

A matança na Espanha abriu-lhes os olhos. Ninguém lutava pela verdade. Usavam palavras ocas para propagar suas idealizações, porque só por meio delas é possível fazer que muitos se sacrifiquem em benefício de poucos. Com o tempo, a ambição de poder levou-o a compreender o lado cruel da política. A vida entre os ideólogos lhe ensinara a ser um homem prático. Faria o jogo de outros, se isto lhe rendesse alguma vantagem pessoal. Lutaria por qualquer ideal, mas, de olhos abertos. Nada melhor que uma ideologia para subir na vida. Errara, servindo à mais tenebrosa delas, porém, doravante iria acertar, porque todo ideal é bom, desde que saibamos aproveitar. "Para o diabo e sua côrte, o inferno é o céu.", disse-lhe um anarquista catalão.

*

Ao deixar a Espanha, ingressando na França pelo sul, Banes, de consciência pesada, fez a si mesmo duas perguntas: "1) Apesar das frustrações morais teria ficado no partido, fossem boas as perspectivas de ascensão? 2) Razão ou emoção, o que mais influiu para sua filiação?" À primeira respondeu com um não, sem convicção. Respondeu à segunda atribuindo peso maior à emoção, lembrando que o discurso nazista, exaltando a supremacia racial dos arianos e o dos comunistas instituindo a igualdade entre todos os homens, por decreto, nele se fundiam numa única emoção que o afastava de uma consciente decisão, eis que a alma apaixonada vibrava com os dois lados.

Percebeu mais tarde que não fora levado pelas idéias, mas pela exaltação dos sentidos, através dos signos fortes, da exploração de seu entusiasmo juvenil, da arte engajada, paixão de sua vida. Foram esses nutrientes de quaisquer extremismos que lhe seduziram a mente necessitada de um semideus a quem pudesse entregar a alma irresignada que não conseguia se defender da rotina da vida, senão por uma intolerância que só o tempo iria arrefecer.

No fundo, queria destacar-se do rebanho, se necessário, usando qualquer dos dois extremismos em evidência. Realizaria o sonho inconfessado daqueles que dizendo-se igualitaristas, buscam a supremacia pessoal como qualquer denodado individualista.

Por toda parte pululavam os messias, intolerantes, sanguinários, iguais a tantos outros de um passado milenar, semideuses em cujas fogueiras agora atiçadas pelos ideólogos, iriam se imolar milhões de jovens.

Antes que o temporal desabasse, ele tomou um cargueiro filipino que de Marselha rumava para Nova Iorque.

*
 
 
 
 

De novo na América, rico, mas, só de experiência, temia alguma coisa errada em sua vida, o orgulho exagerado, ou, talvez, uma incapacidade radical para conviver com um mundo cheio de falsidades.

Antes queria lutar de igual para igual, agora, premido pelo tempo, decidira vencer a qualquer custo. Depois de um trabalho inglório nas ruas, viu que se teimasse em comerciar, chegaria ao fim da vida como um burguês qualquer, senhor de uns poucos dólares e nenhuma grandeza espiritual.

Decidido a por o céu a seu serviço, o respeito que dedicava ao Deus, ciência do mundo, o inibia. O conflito entre os negócios e o sonho de grandeza gerou uma crise para a qual só viu saída, indo matar japoneses no Pacífico.

Mas, na volta continuava tão agoniado quanto antes, só que desta vez, sem a perspectiva de novas guerras que o compensassem dos fracassos.

Era preciso retornar à Califórnia, de onde, ainda imberbe, fugindo ao dogmatismo dos pais, havia saído para realizar o sonho da justiça proletária, embalado pelo coro dos ímpios. Orgulho esquecido, dispunha-se a por um Deus a seu serviço, o Deus da UNIVERSAL CHRISTIAN CHURCH (UCC), cuja pedra fundamental ele, qual São Pedro redivivo, estava decidindo onde lançar, em Los Angeles ou San Miguel del Forte, sua terra natal.

*

Surpreendeu-se com o crescimento da recém-fundada igreja depois da campanha contra o amoralismo de Hollywood. Adquiriu a Rádio "Bel Air" de Los Angeles que, rebatizada com o nome de "Rádio Véritas", tornou-se um poderoso veículo de propaganda a serviço exclusivo da UCC. Ouvir seu programa "Em nome de Deus", falado em espanhol, virou obrigação para milhões de hispano-americanos labutando nas plantações do sul. Os "acampamentos" (núcleos básicos) logo se estendiam do sul dos EE.UU. ao norte da América do Sul. Da fortuna que mensalmente recolhia, ficava com 5%, ainda assim, uma quantia fabulosa.

Acreditava no sucesso como um chamamento de Deus para que se dedicasse à causa da maioria, como paga da inteligência com que fora regiamente contemplado.

*

Não prometia curas, das quais cuidariam os médicos. No entanto, silenciava sobre relatos, em tudo iguais aos de outras igrejas, espalhados por seus auxiliares, dando conta do atendimento por Deus, de pedidos feitos por ele, pastor Banes, em favor dos crentes. Em vez de curar, dedicava-se a prevenir doenças, combatendo a pobreza, que, aliada à desinformação, causa boa parte delas. Contava com a força produzida pela união, mesmo circunstancial, dos necessitados.

A ajuda aos pobres e doentes, que favorece o corpo, mas avilta o espírito, nunca lhe pareceu desinteressada; muitos fazem dela um lenitivo da alma, uma irrisória compensação pelo ganho abusivo do dia a dia. Ademais, ela se tornou um instrumento de promoção pessoal. (Ninguém se preocupa com pobres e doentes; concedem-lhes paliativos para mantê-los na dependência.)

*

Banes sonhava usar a UCC para mobilizar milhões de adeptos em favor de um mundo melhor, esquecido de que as instituições, todas elas, se desvirtuam. Era capaz de viajar a noite inteira, levando um grupo de crentes para ajudar um companheiro em apuros. Esforçava-se por instruir os pedintes, dando-lhes condições de se libertarem da caridade subordinadora.

Preocupado em construir escolas, queixava-se dos quistos burocráticos da igreja que absorviam metade das rendas. Mas, considerou prudente ouvir um de seus fiéis "apóstolos", defendendo os interesses da ala jovem do clero, desgostosa com a ênfase dada à educação profissional dos crentes. "Irmão! - disse ele - Nós que vivemos da glória de haver fundado esse reino, nunca dispensamos o ouro, imagine quem está começando agora. Os tempos mudaram. Os novos jamais alcançarão o nosso prestígio. Então, por que haveriam de sofrer pela UCC, mera sigla para a maioria deles?! Os valores não são os mesmos para reis e súditos. Não há glória sem dor, mas a glória vai para os grandes - para os outros ficam as dores! Assim, por que esperar que respondam todos com o mesmo sim?! Ninguém batalha só por amor a seja lá o que for. Movimentos messiânicos, revoluções salvadoras, todos esses belos impulsos, embora nasçam limpos, cedo se mancham, porque surgem dos sonhos, mas têm de se acomodar aos percalços da vida. Seus idealizadores, para se manterem por cima, acabam trocando as alvas túnicas pela camisa dos homens práticos, que não sendo fundadores de reinos, deles são o sustentáculo. E tudo volta ao que era!"

A insistente defesa da "abertura" reivindicada pelo clero jovem refreou seu entusiasmo. "Seja o que Deus quiser!", murmurava ele, entregando os pontos.

*
 
 

Surgiu a acusação de estupro em Los Angeles, seguida de um escândalo tramado por gente sua. Veio a prisão e a fuga que o levou para longe da América, perto de mim. Acreditando numa provação; deslumbrado com o sucesso, que no seu caso, estaria sempre acompanhado de sofrimentos, ele esquecera que a felonia dos agenciadores de Deus não é menor do que a dos políticos radicais, porque ambos, tendo-se por combatentes de uma causa de antemão justificada, descem aos piores crimes sem se acharem culpados.

Jurava não ter pressionado aquela mulher de 17 anos, com aparência de 30, dona das iniciativas, desde o suspeito encontro inicial até o limiar da cópula.

Pegou dois anos de cadeia, mas diante de uma "sentença arranjada", considerou indignos de acatamento juizes predispostos contra pessoas que não aceitam imitar outros que, vivendo à beira do ilícito, por cautela, estão sempre a cortejá-los.

Escaparia da Justiça como fazem os grandes, pela porta principal, mas certo pudor lhe recomendava evitar artimanhas que lhe poupariam o corpo, sem livrá-lo das flagelações da alma. (O mesmo pudor recomendava que em vez de recorrer da sentença, fugisse.)

Entre a prisão atual e as outras, por razões políticas, havia diferenças enormes. Nos tempos de sua paixão revolucionária, acreditando-se instrumento de uma ordem divina dos salvadores do mundo, ainda quando se retorcia de dores, encarava os algozes de frente, mostrando-lhes que se muito podiam contra o corpo indefeso, eram nada diante de um espírito resistente.

*

Quando recordava esse tempo, ele se negava a exagerar a maldade do inimigo, por entender que fora da verdade não há salvação. Negava-se igualmente a mentir em favor da causa, porque não podia conceber boa causa feita de mentiras, ainda que bem intencionadas. (Sentia-se estranhamente acumpliciado com seus algozes contra si mesmo.)

Silenciava sobre as torturas, porque as considerava degradantes para vítimas e carrascos, para a humanidade inteira. Sabia que eram implicitamente autorizadas contra o inimigo. Sabia igualmente que toda maldade cometida contra o outro, principalmente, quando suspeito de inimizade, no fundo, nos agrada. Ouvia a sociedade a se desculpar, dando de ombros: "Que fazer se todos silenciam, quando o inimigo é que é a vítima?!"

*

O corpo não tinha motivos de queixa, mas a alma vivia um transe doloroso. Andava tão acabrunhado, que certa noite, ao ver a bela mexicana que lhe haviam trazido, só não a recusou porque acreditava no amor físico como um revigorante poderoso. (Na depressão, só o sexo lhe trazia animação.)

Embora o encontro não lhe tivesse rendido o prazer delirante de outrora, foi como um tônico para o espírito combalido. Quando na despedida beijou na fronte a jovem mercenária, estava sumamente agradecido, embora, só ele soubesse por quê.

Tinha de fugir, mesmo às custas de suborno. Evitava comparações com aqueles para os quais a corrupção é um ganha-pão, enquanto para ele, não era mais que um ponto cinza na página branca de uma vida incomum; um desafio irrecusável para quem tem missão a cumprir.

Os clarins da Providência impeliam-no para o sul e ele se alegrava no cumprimento dos desígnios de Deus, quaisquer que fossem os obstáculos.

Em sua existência de altos e baixos, às frias noites da alma sucediam manhãs de luminosa euforia. Esperançoso, ele se perguntava: "Sem o velho sonho de remissão dos homens o que seria de mim?"

Em Los Angeles escutara o clamor dos aflitos incitando-o a reunir os seus (a mulher, a filha e alguns sequazes) para conduzi-los à Terra Prometida, muito longe da cidade pecaminosa que habitavam.

"Como ajudar esses incrédulos?", indagava ele, contemplando miríades de lâmpadas clareando os céus da megalópolis cheia de vícios. "Ao homem providencial Deus ordena cuidar de todos!", respondia.

Pensava numa terra distante, onde, livre das pressões do vício organizado, fosse ele a única instituição.

*
 
 

Ficava triste com o desencontro entre o que me dizia Banes em casa e o que afirmava em público. "Se uso a mesma linguagem, nenhum dos lados entende.", ele se defendia. Comigo, não era dogmático. Falava-me de uma necessidade - essencial à busca da verdade - que nos alternava em contradições: quando eu defendia ele atacava e vice-versa. Tergiversava competentemente e com frequência me surpreendia, passando, na argumentação, de um extremo ao outro, sem se perturbar.

"A verdade - dizia ele - quando não vem dos sentidos, pode evoluir do sim ao não, conforme a interpretação que é do interesse de cada um."

Acusado de explorar o nome de Deus, dizia que é preciso distinguir a boa fé das más intenções. "É difícil, porque distinguir implica em julgar e, com o julgamento, o risco de que a objetividade sucumba ao poder maior da subjetividade.", afirmava. "Explorar o nome de Deus não é pior do que negá-lo para atrair os que perderam a fé! Qual a diferença entre lucrar com o nome de Deus, da Pátria ou do Povo?"

*

Houve tempo na Amazônia em que, ameaçado pela indisciplina dos garimpeiros, teve de recorrer ao método simplista de resolver os conflitos, eliminando radicalmente suas causas. "Diante da impossibilidade de solução de um conflito que se arrasta, é preciso desaparecer com o problema, sumindo com seu principal causador - o homem.", dizia. Aceitava que as disputas consideradas insolúveis, tivessem como alternativa próxima a eliminação física do outro. Seguia os mesmos atalhos que desviaram do bom caminho, tanta gente bem intencionada. Fazia da ameaça uma garantia da ordem. "Muitos só se comportam sob ameaças; para salvá-los é preciso ameaçá-los.", afirmava.

Isolado naquelas verdejantes paragens, o poder turvando-lhe a vista, Banes mantinha nas sombras o que era negativo em seu reino. Parecia feliz em seu mundo. Eu desconfiava: "Tudo bem enquanto, para cobranças, não surja ninguém.", pensava.

*

Na militância comunista aprendera a neutralizar a fedentina revolucionária com a frase: "Os fins justificam os meios." A consciência se acalmava então, como se acalma hoje, quando diante das cobranças ele proclama: "Para a glória de Deus tudo é bom!" Um dia confessou-me: "Jonas! Quantos absurdos cometi nos garimpos, tentando converter ao bem os malfeitores, tentando impor trabalho aos parasitas, apoiado numa falácia nascida para legitimar a violência. O fim não justifica os meios; os meios é que o preparam. A ilicitude dos meios compromete a legitimidade dos fins. Água que segue limpa, chega limpa a seu destino."

Na juventude deixava-se fascinar pelo dinamismo do mal sempre ganhando do bem, obra de Deus. "Que habilidades tem o demo; como sabe manipular pretextos, enquanto Deus fica à margem, altivo e silente.", afirmava.

"Fazer o bem não importa a quem", lhe dizia a mãe na Califórnia. Menino ainda, ele emendava: "Fazer o bem, sabendo a quem". Logo endureceu: "Impor o bem sem perguntar a quem."

O êxito ignora as críticas, afasta a autocrítica. Senhor daquele chão imbuído de ouro, ele era o dono do mundo, picado pela mosca azul. Queria fazer do bem uma imposição social, obrigação de todos, sem exceção. "A sociedade constitui entidade indivisa para cujo progresso todos têm que trabalhar.", dizia.

"O que fez você por ela?", perguntava a quem se queixasse, geralmente, os aproveitadores. "Não há convivência possível entre a parte sadia do mundo e seu lado enfermiço, porque o homem busca a prevalência do bem como diretriz eterna." Queria recuperar a escória, mas tinha pela frente a legião dos que vivem de defendê-la para se promoverem.

*

"Impor o bem sem perguntar a quem", repetia o pastor Banes, a caminho da Assistência Social em Bogotá, cujo diretor, seduzido pelos dólares intermediados por Izaias Peredo (guarda-livros recrutado nas calçadas de San Diego), tornou-se um solícito fornecedor de mão de obra. No auge da mineração os três garimpos empregavam mil indigentes entre homens e mulheres.

O pastor admitia a ocorrência de mortes, mas se defendia: "Se tivessem morrido nas ruas, culpariam a sociedade, quer dizer, não culpariam ninguém, pois culpar a sociedade significa inocentar todos."

Mas, sob o sucesso aparente, havia insatisfação latente. Se o homem não tem escolha, resigna-se, mas diante de alternativas, mesmo duvidosas, vai atrás. O mal está na ambição que é quase a mesma em todos, enquanto a aptidão não é. Deixando de lado a hipocrisia, o que todos querem são as melhores posições e não só as boas. Se um milagre trouxesse a igualdade para todos, outro teria que haver para mantê-la, porque, seguindo suas naturais inclinações, uns se adiantariam aos demais e da igualdade obtida, não restaria nada.

Primeiro vem o apelo à igualdade com os de cima, que alto se proclama; vem depois, dissimulada, a vertigem das alturas. Às vezes, ressentido, ele desabafava: "Neste mundo que todos querem consertar é preciso imitar aqueles que sacrificam milhões, fazendo crer que eles é que são os sacrificados."

*

Favorecido pelo sucesso, Banes simplificava o mundo. Culpava Zola, ex-bandoleiro, agora mandachuva local, pela insatisfação que ameaçava sua obra. Dependente da mineração para lavar o dinheiro ganho com o tráfico de coca, o antigo assaltante de estradas contava apossar-se das minas pela força, com a ajuda de parte dos garimpeiros, diante dos quais pousava de benfeitor.

Prometia o que não tinha, porém, a muitos bastava a ilusão. Acusado por Zola de usar o nome de Deus para explorar os garimpeiros, o pastor se defendia: "A fome exige cuidados imediatos, mesmo que tenhamos sobre a caridade, idéias próprias. Para cá vieram alcoólatras, mendigos, depressivos, todos subnutridos. Eram muitos. Não havia tempo para escrúpulos. Tinha de fazer alguma coisa. Era preciso invocar entidades cuja grandeza imponha temor, pois, de igual para igual, quem nos ouviria? Deus releve minha falta, mas não seria meu pobre nome que iria atrair os milhões de dólares com que dei de comer a toda essa gente."

Ignorava que suas pregações nada significavam para aquelas almas rudes que se deixavam levar apenas pelo seu poder material, embora como seres inteligentes, procurassem encobrir tal submissão com o manto da subordinação espiritual. Seguiam-no por falta de opções, como seguiriam Stalin, Hitler e tantos outros. Mas surgira alternativa: Zola, vendendo felicidades.

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No final de uma chuvosa manhã, o rufar dos tambores anunciou a hora do almoço, mas Juana, sempre pontual, continuava ausente. Tinha sido aprisionada por capangas do traficante, agora político importante, quando retornava em segredo para Vista Hermosa onde queria viver longe do mundo, mesmo sem mim.

O ex-bandoleiro sabia que, tendo sido anistiado em Taraga, o pastor pretendia voltar à política, hoje mais importante para ele que a Igreja. Sabia também que ele se afeiçoara mais àquela "indiazinha", do que à própria filha, Vic. Para Zola importava ter o campo livre. O sequestro visava apressar as coisas e conseguiu. Atendido o interesse de todos, Juana foi libertada e uma semana depois viajamos para Taraga, terra da qual eu muito ouvia falar.

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Ao descer em San Miguel, Banes ficou triste. Poucas pessoas à sua espera; gente das empresas e da Igreja. Vic, a filha que vivia na cidade, chegou ao aeroporto quando ele já se encaminhava para o automóvel. Desviou o olhar para evitá-lo. Não perguntou por ele, quase não falou com a mãe, ignorou Juana e, comigo, limitou-se aos cumprimentos. "Tudo bem?", perguntou sem me dar tempo para responder.

À vista de seu desinteresse, temi pelo nosso casamento, marcado para o primeiro sábado de maio. Só me tranquilizei depois de ouvir que entre civilizados, é melhor não valorizar picuinhas como o desdém, os elogios, os mexericos. Eles se desfazem diante das menores conveniências. Temia, porém, não me adaptar a esse jogo.

Em dois dias, graças ao prestígio de Banes (Dr. Barra como o chamavam em Taraga) tiramos todos os documentos. Em Vista Hermosa, Juana ao ver o rosto refletido nas águas da lagoa, achava um mistério. Agora ficava encantada, olhando para ele no Cartão de Identidade. Logo entrou num curso de alfabetização, aprendeu datilografia e seis meses depois capengava num escritório de advogados, ganhando pouco, mas satisfeita com sua independência.

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Para o pastor Banes eu era incapaz de ganhar a vida sozinho. Conhecendo meu desinteresse pelas coisas da Igreja e querendo ter-me por perto, ele, envolvido com a política, planejava atribuir-me responsabilidades. Estava preocupado com a desonestidade de seus empregados. Mesmo conhecendo minha inabilidade para a vida prática, achava que a simples presença nas empresas, como seu representante, de alguém desinteressado de safadezas iria desestimular muita patifaria.

Passou a intrometer-se em minha vida, criticando meu apego à coerência; minha preocupação com a lógica. "A vida exige mais que essas coisas", dizia. "Não tema ser contraditório; desse pecado é difícil escapar, a menos que nos conservemos calados e omissos.", explicava. Às vezes era incisivo: "Decida-te homem! Mais importante que escolher entre o bem e o mal é se definir! Imite os advogados! A própria sociedade consente que defendam até quem eles sabem ser o culpado!"

Criticava meu horror a qualquer erro; minha excessiva preocupação com a lisura. Perguntava e respondia: "Que haverá de perfeito? Nem as estrelas! Toda hora, uma delas se desmancha nos céus! A perfeição tem de existir como ideal, cobiçada, mas distante, para que prossigamos em sua busca."

Um dia, desgostoso com suas críticas, incentivado por Juana, avisei que iria trabalhar fora. Ficou decepcionado, chegando à irritação. Depois, como era de seu feitio, voltou atrás, convencendo-me a ficar, em troca de um bom salário, nada de críticas e pouco trabalho. Queria fazer de mim um espantalho contra a venalidade de seus funcionários. (Talvez, quisesse ter-me como ouvinte de tempo integral.)

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Desde menino o Dr. Barra sonhava chefiar um Estado. Queria ser presidente dos EE.UU., de Taraga, ou de uma ilha qualquer no Pacífico. Dar vida à mais poderosa das instituições, ter o privilégio de falar em nome de uma comunidade nacional consagrada pela ordem universal, parecia-lhe o máximo a que se pode aspirar na vida.

Entendia que sua participação na guerra civil espanhola, a fundação de uma igreja, tudo o que fizera até então, não tinha outro propósito que o de levá-lo ao ápice do poder político. Mas, temia entrar na briga de foice que é a política, feita quase sempre por inescrupulosos. Queria a Presidência, mas gelava ante a lembrança de pequenos escândalos envolvendo-o. "A mídia espalha calúnias que, mesmo desmentidas, deixam respingos. Hoje, a má fé é que remove montanhas.", queixava-se.

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Embora afirmasse ter cometido, no máximo, erros ideológicos, tinha muitos receios. De nada adiantava saber que a seu lado, velhas raposas enlameadas até o pescoço, viviam de atribuir aos adversários crimes dos quais eram praticantes habituais. Temia que revivessem as acusações de estupro em Los Angeles; que voltassem a duvidar de seu amor por Taraga - a terra natal.

Preocupava-se com essas acusações, não porque fosse culpado, mas porque dos indícios existentes nelas, a má fé tiraria aparências de verdade. Da condenação por estupro falava pouco, porque não tendo recorrido da sentença, aceitara a culpa. Defendendo-se da outra acusação, dizia com orgulho, que Taraga não era apenas a terra natal, era, principalmente, sua pátria de eleição, escolhida, depois de muita comparação.

Conhecendo povos permanentemente ameaçados pela natureza ou divididos pelo ódio entre irmãos, ele, em suas prédicas, nunca deixava de pedir aos seus, que honrassem o privilégio de habitar uma terra afortunada como poucas. "A quantos países - perguntava - Deus concedeu a mesma língua, a mesma fé, nenhum pretexto para as lutas fratricidas?!"

Não invejava nem os EE.UU., ameaçados por conflitos raciais; jungidos ao peso de suas responsabilidades pela ordem mundial. Sentia gratidão pela América, mas não foi por ela que arriscou a vida. Lutou no Pacífico para esquecer as mágoas. ("Depois de Taraga - dizia ele - de todas as terras do mundo, só o Brasil.")

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O Dr. Barra temia que seu rude linguajar o incompatibilizasse com o homem comum, hoje, tão paparicado pela demagogia. Não era de seu feitio ficar lisogeando os milhões de desesperançados de uma vida melhor, em épocas de eleições. Gostaria de lhes fazer promessas específicas, melhorias efetivas, embora conhecendo as dificuldades. Tinha vivido e errado muito, para saber que não se conserta o mundo de um dia para o outro, mesmo que pudéssemos fuzilar o último dos malvados.

Tinha boas lembranças de companheiros da guerra na Espanha, que depois se distinguiram como profissionais competentes em vários setores. Se fosse eleito, haveria de convocá-los para retomar, agora sem armas, a luta em prol daqueles, pelos quais, em teoria, arriscaram a vida nos campos da Catalunha, luta que se lhe causara decepções, dera-lhe também as alegrias de haver batalhado por uma boa causa.

As tentativas de reaproximação com os amigos da juventude, muitos dos quais, não via há dezenas de anos, revelaram-se difíceis. Lembrava-se de um deles, o Dr. Tales que em 39 foi para os EE.UU., doutorou-se em economia, voltando a Taraga cheio de prestígio para assumir o ministério das Finanças no governo do recém-empossado Presidente Nuno Gonzalez, também ex-combatente antifranquista.

Uma semana depois da posse, o Dr. Barra foi convocado pelo ex-companheiro e atual ministro, para trocar idéias sobre o combate à carestia, peça principal da campanha presidencial de Gonzalez.

Tales, um comerciante nato, que nos campos de batalha, era conhecido por negociar bugigangas com os soldados, tinha, ironicamente, ódio à burguesia. Aceitava que o chamassem de nobre, de proletário, bandido, de qualquer coisa, mas que não o chamassem de burguês!

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A conversa deixou péssima impressão. O ministro passou o tempo todo constrangido, tentando justificar sua participação num governo burguês, como se isto implicasse em traiçào a uma revolução da qual poucos se lembravam. "É isto meu caro Barra, por que não ajudar o proletariado, enfraquecendo a burguesia, locupletando-nos à sua custa?", dizia ele, meio cínico, meio sem graça. Durante a conversa, insinuando refletir a opinião de terceiros, se deu ao luxo de criticar Banes (Dr. Barra) por ter escolhido como ganha-pão o ofício de pastor, comparando-o, indiretamente, a essa legião de anônimos pregadores, que, tendo nas mãos, bíblias transformadas em caça-níqueis, percorrem a periferia atrás dos incautos.

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Ambicionando a Presidência, o Dr. Barra pensava nos companheiros da epopéia da Espanha como pessoas já realizadas, capazes, talvez, de aproveitar o resto de suas vidas, retomando os ideais da juventude. Porém aquele encontro e outros mantidos com diferentes companheiros, esfriaram-no. Viviam todos, apegados a seus cargos e negócios, invejando, secretamente, a burguesia, praguejando contra ela, saudosos de seu passado idealismo, cheios de culpa por havê-lo, na prática, renegado, sem se darem conta de que tal passado fora, antes de tudo, um pretexto, o instrumento de liberação da energia juvenil que naquele tempo transbordava de seus corpos, energia hoje esgotada.

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Alheio desde muito tempo à dicotomia esquerda-direita, o Dr. Barra, agora metido na Política, condenava o raciocínio pendular de todo radicalismo - tem que ser assim ou o contrário. Criticava as lideranças que movidas pelo insucesso do socialismo na falecida URSS, passaram a agir como se já não existissem alternativas, considerando-se liberados para qualquer abuso. "A falência do centralismo econômico que desde cedo se previa, não é razão - dizia ele - para que nos entreguemos a esse consumismo febril que, trocando a espada pela fala enganosa, revive os tempos bárbaros, utilizando-se do amoralismo da mídia contra os inocentes, principalmente, mulheres e crianças, sacrificando populações inteiras."

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Para ele, o planejamento administrativo, o centralismo econômico, a máxima globalização tornaram-se inevitáveis, porque resultam de nossa predatória ganância individual, que faz o mundo extremamente complexo.
Não há razões para espanto. Há muito tempo é assim. O Estado, convivendo pacificamente com as grandes corporações internacionais, mostra que a concorrência limita-se ao varejo, porque, no atacado, nos setores básicos da economia, o que existe é um conluio entre o Governo e as grandes empresas; um jogo de cartas marcadas, do qual ninguém fala nada. (Em meio a um corporativismo triunfante, seria difícil imaginar - por exemplo - a indústria do petróleo aceitando concorrer mesmo com pequenos produtores independentes.)

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Estranhava que o mundo não fosse ainda capaz de tirar as conclusões da falência do socialismo à moda russa, cujos sinais, já nos anos sessenta, eram reveladores. Certa vez tendo lhe comunicado que iria à URSS para conhecê-la melhor, ele me disse: "Jonas! Se o conhecimento viesse apenas dos sentidos, o mundo estaria na Idade da Pedra. É preciso ver além do horizonte. Se o poder político que tudo sustenta está em mãos de uns poucos que se negam a dividi-lo, para que viajar, só para constatar, o que daqui podemos ver: que a vida lá só é boa para os donos do poder. Hão de guiá-lo por toda parte, só mostrando o que é positivo. Ora, coisas boas existem em qualquer lugar. Importante é saber o que sobra da comparação entre o bom e o ruim e isto você, impedido de ver o ruim, jamais saberá."

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Discordava do pessimismo de alguns companheiros, para os quais a falência do chamado socialismo científico, justificava a volta ao capitalismo selvagem. Achava que, nossas economias são capitalistas só nominalmente. "Não vamos qualificar de livre economia, este simulacro de capitalismo de tendência corporativista.", dizia ele. "A História tem ritmo próprio, determinado mais pelo inconsciente da maioria, do que pela ambição dos apressados. O que faliu foi aquele socialismo que pretendeu dar um passo maior que as pernas.", acrescentava.

Livre das tutelas intelectuais, o Dr. Barra achava que a complexidade do mundo, o desejo de igualdade com os de cima, espicaçando o inconformismo dos milhões que vivem por baixo, tornará inevitável o advento de uma sociedade mais aberta, mais inclinada a dividir o poder político, em suma, um aperfeiçoamento desse corporativismo que fantasiado de capitalismo domina o mundo.

Não acreditando na supressão de etapas no caminho do progresso, entendia que o socialismo radical, como punição por seu açodamento, estava condenado a uma volta ainda que parcial à economia de mercado, mesmo que fosse apenas para acompanhar o estranho capitalismo dos nossos dias em seu avanço tecnológico, sob pena de arriscar a própria segurança.

O progresso passa pela industrialização, da qual se descuidaram as incipientes economias periféricas, sob pressão dos grandes dos dois lados, bem afinados entre si na exploração dos pequenos.

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"A complexidade do mundo atual; a fragilidade da trama social ameaçada por altíssimas pressões, impõem a prevalência do social sobre o particular.", dizia. Algum sistema terá de combinar as vantagens de um socialismo que no geral fracassou, com os avanços de um capitalismo que não esgotou suas possibilidades, mesmo nos países ricos. Quem forçou o passo terá de recuar; quem se atrasou precisa correr.", afirmava o Dr. Barra.

"Entraremos com o pé direito no terceiro milênio, se pudermos recusar a farsa do povo no poder levado pelas armas; se pudermos ver na liberdade ilimitada exigida pelos radicais fora do poder ou no ganho sem limites defendido pelos maiorais da economia, a semente da anarquia, caminho da liberdade zero.", prognosticava o Dr. Barra, entre a esperança e o medo.

"Logo chegará o dia - prognosticava ele, mudando de tom - em que as multidões educadas pelas entrelinhas da comunicação de massa exigirão governos que não sejam reflexos dos interesses dos manipuladores da economia, da política ou das duas ao mesmo tempo.", acrescentava ele, triste porque receava morrer antes.

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"Quando age conscientemente, o homem puxa para si, nunca para os outros", afirmava. Em qualquer instituição, seus dirigentes, os que estão por dentro, sendo em razão de suas posições, mais bem informados, são também eles, os maiores beneficiários e seriam despejados na vala comum, se não tivessem aprendido a bem cuidar dos próprios interesses."

Admitia uma só manifestação individualista em harmonia com a sociedade - aquela em que a pessoa sabe estar descuidando de interesses imediatos, para corrigir erros passado e prevenir erros futuros em prol do fortalecimento da comunidade e do indivíduo como seu integrante.
São escolhas difíceis - dizia ele - promovidas por tão poucos que não alteram o clima de imediatismo generalizado.
São paradoxais quando feitas por políticos que, praticando uma razão incipiente, em vez de raciocinarem como guardiães dos bens públicos, raciocinam como se o que é de todos, fosse principalmente deles. (As distorções sedimentadas pelo hábito, adquirem vida, consagrando a idéia da imoralidade aceitável.)

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"É preciso vigiar as instituições para percebermos quão facilmente elas se desviam de seus objetivos iniciais", dizia o Dr. Barra. A sujeira que numa época de excepcional permissividade, se divulga com tamanho escândalo e suspeitos objetivos, não é mais que o ABC do vício organizado. (Em qualquer instituição é só forçar o dedo que o pus esguicha!)"

Mas, embora tenham invertido seus fins e se transformado no principal instrumento de dominação dos fracos pelos fortes, o Dr. Barra achava que num mundo desarticulado como ainda é o nosso, as instituições são um mal necessário, pois ou são elas ou é o caos, incompatível com a vida em sociedade, sem a qual não existe razão. "O que não pode faltar é vigilância contra os dirigentes. Nada de tolerância com eles! Se, diante de nossas suspeitas, reagem com ares de ofendidos é preciso redobrar os cuidados!", advertia.

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O ex-militante comunista acreditava que o fim da chamada ditadura do proletariado na antiga URSS viria encerrar o ciclo da violência política que dominou o século XX, crença da qual eu desconfiava, pois, os bolchevistas não foram os criadores do terror como instrumento da luta pelo poder. Ele sempre existiu, dos primeiros tempos aos nossos dias, só que hoje enobrecido pelas ideologias.

Além disso, a intolerância estará sempre disposta a recrutar quem não seja capaz de lutar desarmado, de igual para igual. Depois das decepções produzidas pelo fracasso do comunismo na Rússia, os mais sensíveis se livraram das correntes, enquanto os dogmáticos entraram a cultivar ressentimentos, inconformados com a perda de suas armaduras ideológicas e de seus interesses materiais. Henrique Malta, um veterano comunista que se enfurecia quando lhe falavam do "ouro de Moscou", como instrumento de corrupção, um dia teve de engolir calado, quando alguém que ele acusava de "vendido aos americanos" lhe indagou: "O companheiro conhece o mundo, um dia está em Paris, no outro em Moscou. Passou meses em Nova Iorque, com que dinheiro, se nunca foi rico, nem trabalhou?! Morar, comer à custa de governos, viajar de graça pelo mundo, não é interesse material?")

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O Dr. Barra ansiava por um Estado protegido contra o gigantismo que transforma as instituições em inimigas da cidadania; um Estado capaz de frustrar a vocação exclusivista de políticos e empresários.

Odiava a linguagem grandiloquente, global e vazia, que, dirigida a todos e a ninguém, serve para manter o que interessa aos donos do poder. "Não há porta-voz de instituição laica ou não, que possa dizer a verdade simples que ilumina o dia a dia do homem, pois, seu discurso não é senão o eco de vozes nascidas de quem não pode falar, vozes intencionalmente ajustadas para arrebanhar os desamparados.", dizia ele, esquecido de que era um agenciador de Deus, chefe de uma igreja importante, com pretensões a dirigir a mais poderosa instituição nacional - o Estado taraguenho.

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O Dr. Barra preferia acompanhar o dinamismo do mundo, a manter-se atrelado às fixações ideológicas, responsáveis pela estagnação mental até de pessoas inteligentes. "As dissensões são inerentes a um mundo que, exigindo permanente movimentação, para isto conseguir, obriga as partes, a assumirem posições de confronto.", dizia ele, defendendo-se de ex-companheiros, indignados com sua disposição de frequentar Deus e o Diabo, para melhor distinguir o joio do trigo.

Passou a duvidar da esquerda ao perceber que ela, em vez de se preocupar com os problemas locais, para cuja solução, poderia mobilizar a gente do povo, se ligava nos problemas de além-mar. Solução para os problemas nacionais só com o poder nas mãos. Até lá preferia agitar em vez de consertar, porque isso a mantinha em evidência, sem pagar o preço da responsabilidade. Cuidava de sonhos, esquecendo o dia a dia. Tão perdida ficou, que se perde até para agitar.

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Lamentava a hostilidade que antigos companheiros devotavam a seu realismo, feito de amargas vivências, pois tinha certeza de que poucos haviam trabalhado tanto quanto ele para a realização de sonhos, que ao final se consolidam como sonhos na cabeça de quem se contenta em sonhar, mas que, manipulados pela ambição de poder, se transformam em pesadelos para aqueles que neles viam um incentivo à construção de uma vida com alguma poesia.

Estava convencido de que os ambiciosos, principalmente, os bem situados, se apegam a sonhos irrealizáveis apenas para se promoverem, com a vantagem de serem perdoados pelo descaso diante de questões locais que prejudicam todo mundo e para a solução das quais muito poderiam fazer.

Estava alarmado com a difusão do vício. "O pequeno se vende por um nada, e se prende a outro maior, que também se vende e, por igual, se prende, fazendo que a pegajosa espiral siga em frente."

Não se conformava com a inércia de homens poderosos diante da disseminação da violência, propiciadora de sequestros que também a eles ameaçam. Não entendia esse comportamento alienado, até cúmplice, a não ser por suas ligações com o emaranhado de rabos presos em que se transformou a sociedade. "Na certa, tendo dívidas a pagar, para se livrarem das cobranças, preferem silenciar."

Receava que tais pessoas, habituadas a frequentar igrejas e a prestigiar autoridades, nunca tivessem pensado na justiça divina, nem mesmo num julgamento promovido pelos próprios filhos - herdeiros de seu mau exemplo; de seu vergonhoso legado.

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Candidato à Presidência de um país tido como santuário do crime, o Dr. Barra achava difícil eliminar a corrupção. "Teria meu lugar no céu se conseguisse inverter a relação atual - fazer da virtude a regra; do vício a exceção. Daria tudo para transformar essa doença endêmica dos nossos dias, numa enfermidade declinante, mobilizando contra ela, sua maior vítima, a maioria silenciosa.", dizia.

"É preciso que o pequeno, mais que o grande se comprometa com a moralização da sociedade, pois ela interessa principalmente a ele que não possui outros meios para se livrar das injustiças."

A impunidade dos grandes não era, a seu ver, razão para que os pequenos fossem poupados, até porque ninguém os poupa. Pegos em falta, só escapam quando a bagunça é muita ou tem gente grande embolada com eles.

"As máfias estão por toda parte, agindo com uma desenvoltura de fazer inveja à mais famosa delas - a italiana.", comentou ele comigo, junto à tevê, que em meia hora, como se fosse coisa natural, mencionara três organizações que, acumpliciadas com autoridades, dominavam setores essenciais da vida nacional.

"Jonas, isso acontece! Você é que vê o mundo como se fosse um ‘ET’", brincava.

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Depois da morte de Helen, a esposa de muitos anos, o Dr. Barra soube o quanto lhe devia. Graças a ela, suas relações com Vic tinham evoluído para uma aceitação das diferenças, depois que a mãe, com muita paciência, ensinara à filha que não se pode violar impunemente as regras sociais, mesmo condenando-as.

Pai e filha não se entendiam. As recomendações do pai eram ignoradas pela filha, às vezes, por simples capricho. "Um caráter é igual a uma árvore, as folhas vão e vem, as raízes, não! A essência fica, mudam as circunstâncias.", dizia ele, desolado.

Helen sonhava casar a filha com alguém que se fizesse respeitar sem violência; alguém capaz de lhe curar as feridas abertas pelo machismo da sociedade de então, contra o qual ela combatia em vão.

Procurava interessá-la numa parceria amorosa aceita pela sociedade. Sugeria que esquecesse os privilégios do macho para valorizar a participação da fêmea no essencial processo da reprodução, quando, depois de breve fulguração, ele é relegado ao esquecimento, deixando que ela cuide sozinha da semente de uma vida nova.

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Até então Vic recusava entregar o corpo para a realização da maternidade. Agora, influenciada pela mãe, dispunha-se a conceder a seu eleito, filhos impregnados de uma segunda vida - a vida espiritual - para a qual concorrem homem e mulher, que, através de profícua relação, por igual, se realizam. Os preconceitos impediam-na de ver a luz, mas, ajudada pela mãe, atentando para sua humana condição, concluiu que não devia procriar como uma fêmea qualquer. Seguiria as regras da reprodução entre racionais, disposta a parir filhos que não fossem apenas filhotes.

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Tomando a si mesma como referência privilegiada, ela, embora admitindo certa indisposição para a vida sexual, achava que a diferença entre o que ouvia das amigas e o que sentia, era tão pequena e tão comum, que melhor seria pensar no prazer de todas elas como algo bem mais discreto que nos homens. Nelas, o máximo de gozo - o que poderia ser o orgasmo - viria de uma doce entrega, em meio a um bem estar difuso, diferente do tumultuado prazer dos machos.

Ressentida embora, acreditava agora, que o prazer maior da mulher estava em conceder ao homem amado, a plenitude do gozo, pois, só assim ela gozaria também, ao menos espiritualmente. Que o amor físico se disfarça por razões de auto-afirmação, ela bem sabia. Sua primeira noite tinha sido penosa para ela e para ele. Estranhava que o parceiro se gabasse tanto, ele que por pouco não desistiu de tudo.

Embora sem conseguir que a filha me quisesse com entusiasmo, Helen conseguiu que ela me acolhesse desarmada. Por comodismo, insistimos numa relação insípida, até que, nascendo Saulo, muito diferente de mim, a desconfiança fez que o frio ficasse gelado. (Continuamos juntos para não prejudicá-la na política.)

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À vista das restrições impostas aos exilados para participarem das eleições, Vic, à frente de operárias e algumas damas ilustres, fundou a Concentração das Mulheres Trabalhadoras (CMT), sob sua liderança incontestável. Era uma sociedade civil proibida de fazer política, que jamais acatou tal proibição. Sua enérgica pregação, longe de aborrecer as senhoras da sociedade, suscitava nelas grande entusiasmo, porque não cuidava só de peculiaridades físicas da sexualidade feminina; cuidava também de questões pendentes entre homem dominador e mulher dominada.

Acreditava que tais preocupações sensibilizariam as senhoras do povo e as da elite também, pois, quanto ao sexo, eram todas discriminadas. Esperava que as mulheres bem situadas pudessem dar boa ajuda à causa, ao menos, enquanto não se sentissem ameaçadas em seus privilégios de classe.

Necessitavam como todo o mundo, de uma existência pública, tanto mais consistente, quanto mais conhecida fosse. Ficavam deslumbradas com as discussões sobre temas até então obscuros como técnicas para melhorar o desempenho sexual, perversões, orgasmo, assuntos sobre os quais tinham mais dúvidas do que certezas. Mas preocupavam-se também com as imposições machistas do dia a dia, desagradáveis para todas elas.

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A oposição dos maridos conservadores causava-lhes mais excitação, levando muitas a exagerar. Chegavam a acusar de reacionárias, algumas companheiras apenas porque não gostavam de falar de sua vida íntima em público. Uma das acusadas virou fera quando lhe indagaram de sua posição favorita no coito. Apesar dessas inconveniências, para a maioria, aqueles eram tempos gloriosos.

O rude linguajar das assembléias fascinava as ilustres damas acostumadas a um enfadonho jogo de palavras. Vic se mostrava às vezes brutal. "Como fazer a guerra, servindo-se de quem não é capaz de degolar um frango?", ela perguntou certa noite para espanto do mulherio que lotava o auditório. "Essas coisas têm que ser feitas, inclusive, por nós. É bom se acostumar!"

Às vezes eu estranhava sua franqueza, se bem que, seguindo-a dia a dia, fosse levado a crer que sua fala continha exageros inconscientes, destinados a encobrir vestígios de uma "fragilidade feminina", ao gosto dos homens, mas que ela detestava.

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Meses depois do surgimento da CMT, o Dr. Barra fundou a União do Povo Cristão (UPC), entidade assistencialista que logo iria se transformar em partido político, de olho nas eleições. Os interesses têm suas razões; a conveniência encontra seus argumentos. A possibilidade de uma parceria na política aproximou pai e filha. Vic - justiça seja feita - sempre defendeu o pai de acusações inconsistentes, como a do estupro em Los Angeles. Duvidava que tivesse agido com violência. "Deve ter feito aquela pressão que a mulher exige como justificativa inconsciente para ceder.", dizia.

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Depois das eleições parlamentares, a Presidência passou a ser para o Dr. Barra, coisa certa, mas o otimismo, aliado à pose de santarrão, trouxe-lhe decepção. Recusando o apoio dos fisiológicos (a maioria); imaginando vencer apenas com o povo, ele ignorou o aviso de seu vice, O Dr. Pousadas, cujo partido - o PST - alcançara a segunda votação: "Pés no chão meu caro Barra! O povo só pode votar naquele que for indicado por nós. Você ainda não foi! Tem muita gente sua descontente. Cuidado!"

À última hora, a UPC, assustada com o moralismo de seu presidente, temendo uma limpeza, ou, pelo menos, alguns transtornos, empreendeu desconcertante virada, indicando para candidato presidencial o inexpressivo senador Juan Carrijo, militar reformado, continuando Pousadas como vice.

Barra teve de moderar seus ímpetos, esquecer a corrupção, para, de novo, tendo, pela terceira vez, como vice, o mesmo Pousadas, chegar à Presidência.

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Bons tempos aqueles!

17 horas! Tenho de ir!", disse Branca, levantando-se da cama para buscar as filhas, agora frequentando um bom colégio.

"Lembra da primeira vez?!", perguntou. "Você era bobinho... eu queria tanto!", murmurou com tal malícia no olhar que me atraquei com ela. "Não! Duas vezes chega!", brincou, livrando-se de mim.

Quando a conheci, o marido tinha falecido três anos antes, deixando-a com duas meninas para criar, uma pensão modesta, o sobrado onde morava e uma bela casa, cujo aluguel, a inflação reduzia a quase nada.

Mesmo sem o carro, vendido há poucos dias, estava decidida a morar na periferia, pois continuar onde estava, num bairro elegante, onerado por impostos altíssimos, tornara-se impossível. Mas havia poucas ofertas e os aluguéis eram, no início do contrato, tão altos que ela estava desesperada quando atendi a seu anúncio.

Isolado no alto de uma colina, dispondo de um rico pomar nos fundos e de um belo jardim na frente, o sobradinho fascinava quem aprecia fazer amor nas tardes quentes, de janelas abertas, acariciado pelo brisa do mar; era ideal para quem gosta de ler e escrever tranquilamente, prazeres inconciliáveis com a balbúrdia que virou minha casa, transformada por Vic num escritório eleitoral de alta rotatividade.

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Branca tinha 30 anos, era alta, pele rosada, olhos negros e cabelos também negros, descendo até os ombros. Quando me exibia o quarto iluminado pelo sol poente, embora nunca a tivesse visto antes, tive certeza de que o encontro haveria de me render as alegrias que eu tanto buscava.

Indiferentes à paisagem, meus olhos iam da cama para ela que, do balcão, olhava o mar distante. (De perfil, os seios firmes eram um convite!)

Assustou-se com o sino do colégio. Convidou-me para buscar as filhas, depois faríamos um lanche. "O senhor foi gentil!", disse ao apresentar-me às meninas, Ana e Paula, de seis e quatro anos. Na volta parecíamos uma família feliz.

Depois do lanche eu lhe disse que era casado com Vic, filha do pastor Banes que, no meu entender, acabaria Presidente da República.

--- O Dr. Barra? - perguntou. --- Ele mesmo! Preciso chamá-lo pelo nome que tem aqui. Ainda o chamo de Banes, pastor Banes.

*

Enquanto conversávamos as meninas dormiram no sofá. Ao assentar no mesmo lugar depois de levá-las para a cama, ela me pareceu nervosa, talvez assustada pela presença de alguém ligado a pessoas importantes. Falar de aluguel virou pretexto para esticar a conversa. Ofereci garantias, o negócio podia ser fechado na hora. "Tenho medo dessas mudanças!", disse. "Receio não me acostumar nos subúrbios!", acrescentou, preocupada. "Pago três meses adiantados! Muda quando quiser!", propus com naturalidade, chamando-a de você.

"Não!", respondeu. "Vamos fazer de outro modo! O senhor fica no andar de cima, onde existe sala, dois quartos e uma cozinha. Nos fundos, há uma escada que lhe garante acesso independente. Eu e as meninas ficamos em baixo. Metade da casa, metade do aluguel. O senhor concorda?"

"Não me chame de senhor!", brinquei.

Reagiu positivamente: "Logo me acostumo, o senhor verá!"

--- Modificações aumentam os gastos - eu disse.

--- Do meu jeito fico à vontade - observou - querendo dizer: "Não insista!"

--- Está bem! Amanhã à tarde no seu advogado.

--- Preferia que fosse aqui! Confio no senhor, em você!

A lua ia alta no céu, caminhando preguiçosa entre as estrelas. A brisa do mar agitava a folhagem, espalhando o perfume de uma "Dama da noite".

--- O ônibus pega as meninas às 12horas. Estarei à tua espera!

--- Às treze, sem falta!

*
 
 
 

Um ano depois de assumir a Presidência da República, o Dr. Barra estava desolado. Por que o pessimismo? Antes da posse já se achava pressionado por grandes e pequenos, a lhe exigirem compensações. Num só dia atendeu tantas entidades empenhadas em ajudar a pobreza que não conseguia se livrar da idéia de que a caridade feita às custas de terceiros, principalmente, às custas do Estado, virou um bom negócio. Ao contrário de outras igrejas, a UCC preferia o socorro mútuo entre os crentes à esmola. Talvez por isso estranhasse tanto o empenho de alguns em cultivar a filantropia.

Empossado na Presidência, constatava horrorizado que os benfeitores profissionais solicitavam ajuda para os pobres sem se preocuparem com o fim da pobreza, deixando transparecer por suas atitudes, o interesse, às vezes, inconsciente, de que nada mudasse, mantida a classe dos distribuidores de benesses ("Quem parte e reparte leva a melhor parte!") e a de seus supostos beneficiários, condenados à mendicância para sempre.

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Achava que muitos, por interesses materiais, por compaixão ou outras íntimas razões, se apegam tanto ao lado triste da vida, que se tornam emocionalmente ligados a ele, empenhados na sua preservação. Estranhava que em meio a tanto interesse verbal pelos menores abandonados, não surgisse uma única palavra de condenação ao comportamento de quem os gerou para que outros os criassem.

Os apelos à solidariedade, repetidos "da boca pra fora" pelos beneficiários de sua publicidade, pareciam-lhe irresponsáveis, porque nem de longe resolveriam o problema dos meninos de rua, eis que a vida não se deixa levar por tais chamamentos. Dominada hoje pelo amoralismo e pelo sexo irresponsável, ela não tem como impedir a multiplicação dos órfãos de pais vivos, a exigir gastos cada vez maiores, para alegria dos que fazem da miséria alheia, a base de sua fétida escalada para o sucesso.

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O Dr. Barra deixara de conversar com seus auxiliares sobre questões administrativas, depois de observar que eles estranhavam, não a existência dos problemas, mas que alguém se preocupasse tanto com eles.

A corrupção era seu maior desafio. "A lei, a confiança que facilita a convivência; o ideal do belo que ilumina a face do homem, tudo se amesquinha diante da venalidade.", dizia. Como administrador achava difícil planejar, pois desconfiava das estatísticas, deturpadas pela corrupção que, embora oficialmente não exista, distorce os dados da produção e de tudo o mais, fazendo com que, onde prevaleça o "Caixa 2", o que oficialmente se registra fique longe da verdade.

Tentou envolver seus auxiliares numa guerra contra o vício, mas, embora dizendo-se honestos, dava para perceber que a bandalheira corria solta entre eles.

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Num domingo, já de madrugada, eu o seguia pelos corredores do Palácio, quando, de repente, ele sumiu. Fui encontrá-lo onde menos esperava, na capela, diante da imagem dos santos que abominava. Dizia sempre: "A realidade não tem sentido, importante é a idéia, pois é por meio dela que nós nos orientamos na vida."

Ajoelhado como um bom católico diante de San Miguel, parecia um devoto fervoroso. Sonhando repartir com o povo, os frutos de suas boas intenções, talvez quisesse fazer do protetor de Taraga, o guia dos seus passos. A ele importava a idéia de que o santo o ajudaria. Quando se levantou estava aliviado.

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Embora soubesse da natural inclinação do homem para o vício, a intimidade com os maiorais da Administração Pública, resultou numa decepção, que lhe mostrou quão ingênuo tinha sido até então. Sabia, de longe. Mas, agora, com o mau cheiro a exalar de todos os lados, tinha a impressão de que passara a vida alienado, incapaz de perceber a má fé que no serviço público orienta desde a entrega de um simples documento até a escolha de um fornecedor.

O funcionalismo só se interessava pelo dinheiro, de salário ou de suborno. Roubava-se do primeiro ao último andar. Milhões eram gastos com obras desnecessárias que a próxima Administração abandonava sem responsabilizar ninguém. No máximo tiravam de circulação o predador oficial, deixando a certeza de que logo estaria ele arruinando o país a partir de outro cargo.

Contra qualquer ameaça de punição, o funcionalismo inviabiliza o processo, valendo-se da facilidade de forjar ou destruir provas, segundo suas conveniências, contando, quase sempre, com a cumplicidade dos chefes. Achava que a corrupção seria menor se não fosse encorajada pela estabilidade no cargo que, de garantia da independência funcional, transformou-se no esteio da impunidade.

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Contra os protestos das lideranças que florescem na defesa de privilégios para determinados segmentos da sociedade, ele dizia: "Se é bom ser funcionário público, por que não permitir que todos o sejam, através de um rodízio que revigore as instituições, mediante concursos públicos sem exceção! Haveria por certo inconvenientes, mas as vantagens seriam muito maiores.", dizia.

Estava escandalizado com a rotina do serviço público, os de dentro exaurindo os cofres, os de fora pagando a conta. Acreditava agora que o Estado contivesse, em sua essência, desde os tempos iniciais, um componente sombrio, sempre inclinado ao abuso e que fatalmente se transforma no instrumento ideal do enriquecimento ilícito de seus manipuladores - funcionários públicos e seus cúmplices do lado de fora.

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À vista da tendência geral para se apossar do que pertence a todos, o Dr. Barra achava que os bens administrados pelo Estado, na verdade, administrados pelos indivíduos que agem em nome dele, só deixarão de ser desviados impunemente, quando cessar, entre outras coisas, a possibilidade de manipulação das provas, que transformou numa rotina, a salvação de pessoas sabidamente culpadas, que dificilmente vão a julgamento, ainda assim, para serem inocentadas por "insuficiência de provas".

"O Estado devia fazer voto de pobreza.", dizia o presidente, argumentando que quanto mais dinheiro exista nos cofres públicos, mais roubo haverá, pois, a tentação de se apropriar do que só tem dono em teoria é muito grande.

"Com toda essa estrutura montada para facilitar o desvio, o dinheiro que entra, sai inevitavelmente por vias escusas.", explicava.

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Violência e corrupção se uniam para converter sua vida de político num inferno. Mesmo desconfiado de que não conseguiria extinguir o vício por meios pacíficos, o Dr. Barra resistia à tentação da violência.
"O uso da força implicaria na troca dos beneficiários da violência atual pelos paladinos da violência revolucionária, que logo haveria de se institucionalizar também, porque nenhuma violência provém da ânsia de justiça, nem se deixa guiar por ela; vem da inveja, da sede de vingança, movida pela paixão.", explicava ele.
"A força não acaba com os privilégios, ela é a mãe de todos eles; sem ela não há como instituí-los e conservá-los; sem a proteção da força eles não sobrevivem."
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O Dr. Barra desconfiava que ao lado de outras classes que desapareceram com o tempo, existe uma que só deixará de existir, se o próprio Estado desaparecer. É o funcionalismo público, integrado por pessoas levadas às repartições por apadrinhamento ou por esforço próprio,umas e outras, buscando privilégios, todas, concorrendo, ativa ou passivamente, para fazer da corrupção uma fatalidade, uma recompensa para quem detenha o poder, sob as garantias do elementar direito da força. São ganhos desleais, ilícitos, feios, auferidos com tal naturalidade e condescendência das vítimas, que os mais gananciosos dentre os corruptos, partem para as retaliações quando são contrariados. Quando - por exemplo - "quebram um galho e ficam a ver navios".

Entra ano, sai ano e as repartições seguem na sua debochada rotina, movimentada por gente que não tem outro propósito que o de enriquecer a qualquer custo; por uma grande maioria inclinada a dançar conforme a dança, todos, de um jeito ou de outro, sabotando o trabalho das "honrosas exceções" condenadas à inoperância.

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Apoiado num velho tique dialético, o Dr. Barra, outrora, marxista displicente, acreditava mais numa limpeza causada pela ganância dos corruptos que na virulência das campanhas verbais pela moralidade, empreendidas por invejosos que ainda não chegaram lá, dispostos a punirem aqui e ali, pequenos abusos, desde que preservada a galinha dos ovos de ouro. Achava que a insensibilidade de funcionários públicos, praticamente vitalícios, munidos de poderes acima de suas responsabilidades, acabaria gerando tais absurdos que o público teria de reagir, cortando-lhes o excesso de poder, obrigando-os a responder por seus atos, como respondem os particulares.

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Acreditava ser possível desmontar o sistema de privilégios que leva o Estado a negar diariamente suas finalidades, desde que a maioria se disponha a exigir de seus representantes, do menor ao maior, responsabilidade efetiva em vez de cair na sua lábia, concedendo-lhes novas garantias. O funcionário público age como se não devesse explicações, mesmo quando, por incompetência ou má fé, arruina um empreendimento promissor. (Garantido pela estabilidade, livre de responsabilidades, ele vira intocável para sempre.) at/170603

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Sendo inevitável a existência de um poder institucionalizado (o Estado), para cumprir tarefas indelegáveis como a de fazer justiça, o Dr. Barra o queria forte o suficiente para se defender dos grupos interessados em distorcer-lhe a finalidade, mas limitado a uma real dependência do cidadão comum - daquele que deveria ser objeto de seus maiores cuidados.
"Como realizar tal proeza?", ele perguntava e respondia: "O Estado assume a feição que lhe imprimem seus servidores. Indispensável na essência, pode sofrer modificações na forma. (Será sempre o reflexo das relações de seu funcionalismo com a sociedade e vice-versa.)
Como instituição configura um mal necessário e sendo a maior das instituições, constitui o pior dos males necessários, sempre inclinado a superar o próprio gigantismo. Por isto, em vez de incentivos à expansão, precisa de controles que o mantenham nos limites de suas atribuições intransferíveis, mas controles externos, sem troca-troca de conveniências."
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Num sábado à tarde o Presidente visitou-me em casa, acompanhado de Honório, seu motorista de muitos anos. "Jonas, as coisas vão mal!", queixou-se logo que lhe abri a porta. O Legislativo resiste às tentativas de ajustar as leis às exigências do mundo atual! E o que faz o Judiciário? Une-se ao Legislativo contra o que supõe ser uma ameaça à Constituição, como se numa época de gritante expansão do vício, como a nossa, quando todos se julgam com direito aos abusos, fosse possível conviver com cem mil regulamentos que se atropelam; como se pudéssemos impor ordem nesta complexa vida atual por meio de leis feitas em tempos de absoluta prevalência da força bruta; leis que não tinham outro propósito que o de preservar os privilégios da minoria que as fez.

Exigem que me submeta à lentidão da Justiça e do serviço público em geral. Ora, a lentidão no cumprimento das leis, tem muito de intencional. Constitui pena invisível que, sem integrar o rol das punições, é a mais cruel, porque frusta aquele que de boa fé recorre ao Estado. Acusam-me de ameaçar a autonomia dos três poderes - uma falsidade - embora eu rejeite isto que é, na verdade, uma tripartição de conveniências que favorece as elites, presentes em todos os poderes, enquanto sacrifica os milhões de órfãos de todos eles."

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O Presidente perguntou-me: "Você concorda?" Resmunguei alguma oisa. "O que acha?", insistiu. Falei apenas para não ficar calado. Argumentei que a hostilidade contra qualquer esforço para melhorar a vida de todos, mostra que se fosse possível acabar com as injustiças, mesmo pela violência (tida por infalível), de nada adiantaria, pois ainda que matássemos todos os culpados, o mal renasceria, porque resulta de um instinto natural, fortalecido pelo atraso cultural que impede o homem de respeitar o outro homem, levando cada um a se concentrar nos próprios interesses, sejam eles interesses materiais (de fácil identificação) ou espirituais (dificilmente identificados). Interesses se afirmam uns contra os outros e desta afirmação surgem os problemas para cuja solução exige-se, antes de tudo, ação, que a maioria, por natureza, comodista, entrega à responsabilidade da minoria de ativistas, tendo de pagar o preço.", eu afirmei.

"Confuso e pretensioso", deve ter pensado, a ver por sua cara.

"Vamos ao que interessa!", disse, entregando-me uma procuração para retirar do North Caribbean Bank de Nova Iorque, uam grande quantia em dólares e distribuí-la. "Sabe como eu dividiria o bolo. Faça-o por mim!" (Sentia o hálito da morte.)

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Na opinião do Dr. Barra, a inflação, corroendo o valor da moeda, um bem do qual todos dependem, corrói também os valores morais. Estimulado por ele, decidi informar-me sobre essa praga, tida por instrumento consentido de exploração dos que têm ganhos controlados pelos que estão livres de controles; uma recompensa para os que trocaram o trabuco pela caneta.

Ia a todos os debates na Capital e adjacências. Observei que os entendidos falavam evasivamente das causas e dos remédios, quase sempre repetições, até que perdido o charme, inventavam neologismos capazes de suscitar brilho no puro vazio. A maioria culpava os salários pela corrida inflacionária, silenciando sobre outras causas, aumentando minha curiosidade.

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Indagava dos expositores mais receptivos, qual a influência da corrupção - por exemplo - na estabilidade da moeda. Sabia que o custo dos produtos vendidos ao Estado era escandalosamente superfaturados, contrariando a verdade dos preços numa época em que a participação oficial na economia é avassaladora. Sabia também que os frutos da grande corrupção iam para o Exterior. Que repercussão teriam essas práticas na estabilidade da moeda? Que ameaças trariam para ela, a compra de dólares para estocagem? Os impostos são incluídos nos custos, embora menos de um terço deles sejam recolhidos, situação que também distorce a verdade dos preços. Qual a influência disso tudo na saúde da moeda?

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Provoquei risos ao sugerir que não havendo acordo sobre as causas da inflação, que, pelo menos, anulassem seus efeitos, promovendo indexação simultânea, a taxas iguais para todos. "Já existe a correção monetária", gritou alguém. Só que os índices não são os mesmos para todos em todas as situações e isso faz dos reajustes diferenciados, mais um meio desleal de enriquecimento.

Existe um aviltamento crescente que retira da moeda sua validade universal, transformando-a num bem de valor desigual: vale mais para especular do que para comprar, negando sua finalidade original.

A dinâmica do processo exige apenas que se evite a hiperinflação para não secar a fonte. Só quando o aviltamento já rendeu o que podia e o feitiço ameaça o feiticeiro é que seus beneficiários (especuladores profissionais, gente do Governo ou com acesso a ele) surgem com o amargo remédio para que outros o tomem.

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Certa noite interrompi a fala de um conhecido sindicalista que se transformou num político de projeção nacional, graças à habilidade em se promover à custa de greves.

Queria fazer algumas perguntas. Comecei com um rodeio: "A recuperação do valor da moeda é feita para os assalariados depois de seguidas perdas mensais, sem direito a compensações pelo que foi perdido. Para as empresas, a recuperação ocorre com frequência e liberdade tais que vale como antecipação. Por que essa discriminação? Por que não exigir, como parcial compensação, o pagamento dos atrasados? Por que nas campanhas salariais tal reivindicação nem chega a ser posta?

Achava difícil acabar de uma vez por todas com a inflação, eis que os representantes de suas maiores vítimas - os assalariados - lutam hesitantemente, temendo que sem ela, percam seu melhor instrumento de promoção pessoal. "Haverá algo melhor que uma campanha salarial para transformar um sindicalista numa estrela da política? Benefício não é só dinheiro não? Prestígio acaba rendendo mais!"

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Não houve resposta. Foi impossível continuar com as perguntas, embora tivesse embutida em minha peroração inicial, muita coisa a ser esclarecida. O homem não quis saber de explicações. Virou uma fera. "O senhor já nos brindou com uma infame provocação! O senhor foi longe demais!", disse o ex-operário, rude, mas charmoso, agora transtornado.

Dois brutamontes sentaram a meu lado, silenciosos, ameaçadores. Muitos acreditavam que eu fosse mesmo um provocador. Fiquei assustado, acima de tudo, preocupado com a habitual transformação dos debates em sessão de elogios pelos bajuladores de sempre e de críticas aparentemente agressivas, porém, no fundo, inócuas, por parte de uma barulhenta minoria, que, ainda longe do poder, condena os frutos sem tocar na árvore, para que depois, já de posse do pomar, continue recolhendo a safra de sempre. (A polêmica virou meio de promoção pessoal.)

Achei que minhas boas intenções estavam dando em nada e, arrefecido o interesse pela moeda, em vez de perder tempo ouvindo quem fala para ocultar as intenções, voltei ao leito acolhedor de Branca - a mulher amada.

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Para o Dr. Barra, a lei da oferta e da procura que não funciona, mas que poderia funcionar, acabou desfigurada pela globalização da economia promovida pelas multinacionais. Oferta e procura nunca deixarão de influir nos custos, mas entre uma e outra, existe tal manipulação que não se pode atribuir-lhes preponderância na formação dos preços, principalmente, no atacado.

A verdadeira lei da economia é a lei do ganho maior, diretriz só limitada pelas disponibilidades da outra parte. O apetite do vendedor só vê limites nos bolsos vazios do comprador. O objetivo da empresa não é incentivar a concorrência; é afastá-la como inimiga do lucro, sem o qual não existe empresa. (Deixar a outra parte sem alternativa é o ideal do vendedor.)

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O Presidente citava produtos conhecidos por sua qualidade, cujas fábricas tinham sido fechadas, antes de tudo, para diminuir a concorrência. Sabia dessas coisas todas, mas só agora, responsável pela ordem econômica, sentia-se desafiado por autênticos predadores travestidos de apóstolos da livre iniciativa.

O mal - dizia ele - é que o núcleo dominante da sociedade, constituído pela cúpula do funcionalismo civil e militar, em conluio com as lideranças econômicas, ou seja, o Estado real, age como se fosse toda a comunidade, só se preocupando com os demais, em tempos de crise, para mobilizá-los a seu favor, quando já não consegue preservar seus privilégios apenas pela força bruta.

Argumentando com oferta e procura, essa poderosa minoria frustra qualquer tentativa de intervenção estatal que favoreça o equilíbrio entre produtores e consumidores, necessário à paz social. Omite-se, no entanto, prazerosamente, quando o Estado, invocando o interesse público, ajuda seus afilhados com tal irresponsabilidade que só a corrupção pode explicar.

O Dr. Barra minimizava a importância da oferta e procura na variação dos preços num tempo em que o Estado tira de suas dificuldades, verdadeiras ou não, os grandes da "iniciativa particular", usando o dinheiro de todos, permitindo-lhes reduzir a oferta para forçar a alta, sem se preocupar com a boa convivência entre produção e consumo. "Como falar de livre concorrência, numa economia que se desfaz dos excessos, atirando-os ao lixo, sem baixar os preços, contando com a ajuda oficial?" perguntava.

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O Presidente estava preocupado com a anarquia dos preços, principalmente, com seus reflexos no bolso dos assalariados. Eu, que nunca tive problemas de dinheiro, apesar disto, também me preocupava. Ficava alarmado com a frieza dos responsáveis pela tranquilidade social diante da batalha desigual entre preços e salários, agravada pela emulação entre os próprios comerciantes. Cada um partia do último preço do concorrente. Se o primeiro aumentava um centavo, o segundo saia com dois, o terceiro com três e assim por diante, num contexto em que, sofrendo, uns mais, outros menos, todos mutuamente se flagelavam. Apesar das vantagens da concorrência, elas são quase sempre anuladas pela fixação de um preço único pelos vendedores. É que a tendência altista domina sempre. Eliminado o fator determinante de uma temporária elevação dos preços - por exemplo - uma escassês sazonal, eles nunca voltam aos níveis anteriores.

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Nos arquivos da Assembléia Nacional encontrei um projeto alentador. Exigia fossem inscritos nas embalagens, por meios indeléveis, o custo de fábrica e a data da fabricação. Para os compradores, o desconhecimento do processo de formação dos preços, enfraquece a resistência, dando forças ao vendedor para abusar. Podendo comparar, o consumidor teria mais confiança, lutaria melhor. "Precisa de fiscal para controlar preços que estão à vista de todos?", perguntava. "Liberdade para explorar o próximo? Não contem comigo!", advertia o Presidente.

Inconformado com a derrota imposta ao projeto reapresentado à Assembléia Nacional por iniciativa sua; decepcionado com a escassa repercussão do combate à carestia, o Dr. Barra pediu-me alternativas. Sugeri fossem divulgados pelo rádio, todos os dias, o preço de fábrica dos vinte produtos mais consumidos, de modo a que o comprador pudesse ter idéia do ganho mercantil.

Três rádios iniciaram a divulgação, mas quando vieram a público, inexplicáveis diferenças entre preços de fabricação e preços de venda, além de substanciais divergências entre as próprios empresários, os consumidores começaram a protestar e os comerciantes esfriaram. A prática lhes mostrou porque os beneficiários do erro em qualquer setor, tanto se empenham pelo sigilo seja onde for, e eles mais uma vez, apelaram, como todos os lutadores desleais, para o silêncio e a confusão, que tanto facilitam a sorte dos inescrupulosos. Todos os horários das rádios foram comprados e o Presidente ficou desmoralizado.

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Necessitado de ação, o Dr. Barra investiu confusamente contra crimes comuns que em outros tempos tinham sofrido grande rejeição, mas que agora, de tão frequentes, já não escandalizavam ninguém. Cuidaria primeiro de criminosos que tivessem adquirido fama, zombando da Justiça - gente cuja impunidade fosse um mau exemplo. Os demais seriam apanhados por sorteio, pondo a roleta a serviço da lei.

Para ele, a questão estava no desinteresse em moralizar. Do contrário, todos compreenderiam que a desordem atual tem muito de intencional; que, se fosse para valer, a luta contra o crime assumiria feição impessoal, centralizada na informatização, aberta à colaboração de todos, para evitar que os monopolistas do combate ao crime - as "autoridades" - livres de mecanismos inibidores, cedam à tentação.

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"Esse não quer resolver coisa alguma!", exclamava o Presidente ao ouvir autoridades insistindo em culpar os baixos salários, a insuficiência de pessoal e material pela inoperância do Estado. "Tem material apodrecendo nos depósitos; há funcionários demais no serviço público, só que mal distribuídos, às vezes ganhando salários altíssimos.", dizia. "Faltam, isto sim, mecanismos que evitem o desperdício e meios que obriguem o funcionário a trabalhar, sem o que, a penúria de material continuará sendo um incentivo às aquisições fraudulentas e os baixos salários, um pretexto para a negligência.", afirmava.

Achava importante pagar bem ao funcionário, desde que, em troca, houvesse eficiência e responsabilidade. "O funcionário - dizia ele - tem de ser bem recompensado, mas não para vadiar ou roubar. Não importa quanto ganhe, pouco ou muito, tem que ser vigiado por mecanismos impessoais, porque se depender do homem, criatura, por natureza, inclinada aos abusos, continuaremos perdidos.

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Se persistirmos no desgoverno atual, o dinheiro a mais pago ao funcionalismo o desviará para outras atividades ou para o lazer. As deficiências de que se queixam, servem, muitas vezes, para justificar omissões mal-intencionadas ou conduta criminosa. O funcionário público tem que produzir benefícios para a coletividade. Mais do que qualquer outro empregado, ele deve lealdade ao cidadão que representa, dai porque nele, a desonestidade é indesculpável. Para merecer seus vencimentos tem ele de priorizar o trabalho honesto, esquecendo o objeto misterioso que hoje está em primeiro lugar.", dizia. "O trabalho convertido em atividade criminosa, merece coisa diferente de aumentos e garantias.", acrescentava.

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Num de seus encontros com funcionários graduados, o novo chefe da Nação solicitou ao diretor da Receita Nacional a relação dos 100 maiores devedores. "Aumento de impostos, não! Todos têm que pagar", disse. "Precisamos recolher aos cofres públicos milhões de dólares dos quais, os "sócios" do governo planejam se apropriar, através da prescrição", afirmou.
"A sonegação corre solta. Esqueçamos, por enquanto, os assalariados - contribuintes inevitáveis - para nos preocuparmos com aqueles que se apropriam até do imposto obrigatoriamente descontado de terceiros na fonte.", acrescentou."Não são poucos, nem pequenos!"
O funcionário observou que um trabalho dessa envergadura exigia muito dinheiro e funcionários.
"Não creio seja esta a razão. Veja! Num tempo mínimo, as loterias identificam os ganhadores entre milhões de apostas. A Receita poderia fazer o mesmo. Fazem uns dois anos, alguns jornais publicaram uma relação com os nomes dos 150 maiores sonegadores, só que deu em nada ", disse.
"Vossa Excelência há de convir que faltam fiscais; a Imprensa diz isso todos os dias.", insistiu o outro.
"A Imprensa - ponderou o Presidente - repassa o que ouve de nós, sem críticas. Não basta aumentar o número de funcionários para acabar com a sonegação. Poucos querem acabar com ela. A maioria sai em busca de informações que propiciem a extorsão.
Combater a ilegalidade - meu caro - virou indústria rendosa, numa terra onde sobram leis inócuas, contraditórias ou feitas para não serem cumpridas; para servirem de ameaça contra eventuais adversários. Só nos resta confiar na criatividade, pois, admitir mais funcionários para trabalhar - tendo esta podridão como exemplo - significa aumentar o número de sócios da corrupção."

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Sabia que as elites, protegidas por toda sorte de corporativismos, não queriam mudanças, embora falassem muito nelas. Defendiam seus privilégios com tal empenho, numa época de grandes ressentimentos populares, que ele não se espantaria com um banho de sangue, promovido por um povo tido como pacífico, pois as matanças não resultam de uma busca deliberada; nascem do desespero, de que se aproveitam os mal-intencionados.

Acreditava firmemente que a força, longe de solucionar, gera problemas, mas algo o incomodava agora. "Se ela não é solução, que fazer quando a questão permanece aberta e tudo o mais falhou? Contra o imobilismo que a natureza humana rejeita, a tentação da violência é muito grande!", dizia ele com os cabelos arrepiados.

Num fim de tarde, falando de Nova Iorque para lhe prestar contas, ele me implorou: "Venha logo, quero vê-lo!" (Definhava em silêncio para me poupar.)

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Ficou rico, de uma forma, tida, no começo, como duvidosa. Moralista, sem muito alarde, encheu os cofres da UCC, explorando, no fundo, o nome de Deus. Depois, tendo acumulado mais dinheiro do que imaginara, tornou-se pessoalmente honesto, embora já não se preocupasse com a conduta daqueles que agora dirigiam a Igreja.

A acusação de estupro em Los Angeles, forjada por gente sua, mostrava-lhe o que poderia acontecer se insistisse na limpeza radical, numa época de corrupção generalizada. Esperava que deixando os dirigentes da UCC à vontade, eles, para compensá-lo, manteriam alguma coisa do espírito de justiça que o caracterizava. Por isto se conformava com o papel de "Rainha da Inglaterra" a que o relegaram, depois de descobrirem que estava mais interessado na política que na Igreja.

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Apesar dos ressentimentos, recebera como lição, a vergonhosa troca de candidaturas, quando, anos atrás, pela primeira vez, líder inconteste do partido, tentara ser o candidato à Presidência. Por culpa de seu moralismo defasado, ele, que se recusava ao beija-mão dos corruptos, deitou pensando na posse e acordou, fora do páreo.

Foi derrotado pelo excesso de confiança. Candidato natural do partido, posando de insubstituível, descuidou-se. Enquanto os espertos agiam, ele esperava em casa. De madrugada, seu nome foi trocado pelo do insosso gen. Carrijo. Os companheiros temiam que a limpeza prometida por ele, não fosse apenas uma febre eleitoral.

*

Vivia na simplicidade, passando a imagem de quem jamais se entregaria à corrupção, arrogante, exibicionista, sempre envaidecida de seus malcheirosos privilégios.

Da Presidência - ele prometera - não sairia de cabeça baixa, a menos que provassem estar errado o que sobre esta praga de todos os tempos lhe ensinaram os pais, mestres, as autoridades nas falas oficiais, até os corruptos caídos em desgraça.

Antes que a doença o tirasse da Presidência, gostaria de se despedir do povo (em favor do qual quase nada pôde fazer), com uma demonstração de fé na razão; com um repúdio à violência, expondo-se à fúria dos bárbaros, porém, no exercício do cargo.

*

Não pudera fazer de Taraga a terra dos justos. Talvez lhe abrisse uma perspectiva de civilização, morrendo com dignidade. "Para me compensar do fracasso na luta contra a corrupção, resta-me o consolo de ter mostrado, para combatê-la, a direção; de jamais tê-la incentivado; de haver exibido sua face enganosa; sua deslealdade essencial; de haver, na proporção de minhas forças, desmistificado sua cultura que, alimentada por interesses poderosos, tem sua maior força no silêncio cúmplice de muitos que bem poderiam dar-lhe um basta.", dizia ele, antecipando a mágoa com que seguiria para o túmulo.

Pressenti o que estava para acontecer, quando reuniu as últimas forças para condenar pela tevê a campanha do empresariado contra seu combate à carestia. "Estão brincando com fogo! Tivesse Cristo multiplicado os pães com a mesma ganância com que vocês multiplicam o dinheiro, o mundo estaria alimentado até hoje!", advertiu ele, exibindo sinais de extremo cansaço, mal conseguindo falar.

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Pg. Inicial

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A seguir





Fortalecidos pelo endeusamento do ilícito,
heróis às avessas,
os criminosos aumentam sua audácia,
desnorteando o homem de bem,
abandonado, inibido pela impotência.
(A DESCOBERTA DA TERRA***Parte2)






at/210603