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O HOMEM,UM ANIMAL PROMISSOR
Avellar Toledo
PARTE1
PARTE2
PARTE3
PARTE4
PARTE5

 

Edição atualizada de
O HOMEM, UM ANIMAL PROMISSOR (2a.)
Registro 23.116 no Escritório de Direitos Autorais
da Fundação Biblioteca Nacional - Ministério da Cultura


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"Nenhuma outra existe
que se compare à Escola da Vida,
cujas portas se abrem para todos, sempre,
e em cujos bancos, mestres e aprendizes
no anonimato se revezam."


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PARTE1

CAP.1 - ENTRE o povo e a cultura;
CAP.2 - DEUS, a serviço das facções;
CAP.3 - AQUELE que veio do homem;
CAP.4  - LONGE de Deus e do Diabo.
 

*


 
CAP.1
BABEL ENTRE
O POVO
E A CULTURA

*

Durante os preparativos do projeto "Terra 13", com base em telegravações, eu aprendera a falar inglês, russo e alemão, aprendizado que, se de um lado, garantiu-me a sobrevivência no começo de minha vida neste planeta, de outro, causou-me forte decepção, pois, ali mesmo, à beira do Saara, onde iniciei minha aventura na Terra, soube, pelo rádio, que afora esses idiomas, dezenas de outros existem, dos quais se servem muito mais pessoas do que a totalidade dos que falam os três que aprendi e fico a pensar o que teria sido de mim, se em vez de cair a poucas milhas de ingleses e alemães que combatiam ali, tivesse caído nas montanhas do Tibet.

Decepção igual, foi a de saber que sob a face do sol existem ainda criaturas inteligentes que na reprodução gráfica de sua linguagem oral, desprezam o sistema fonético que todos nós, há muito tempo usamos.

Para mim, a questão assumiu importância capital, pois, era essencial que nos primeiros tempos, para evitar suspeitas, eu aprendesse sobre o dia a dia da Terra, mais pela escrita, do que pela comunicação verbal entre as pessoas.

Falando, meu inglês era bom, mas, para ler e escrever, que dificuldade! Foi então que senti pela primeira vez, quanto de incoerência existe entre os homens, pois que, se é difícil falar seus dez mais conhecidos idiomas, ler e escrever corretamente um só deles, parece impossível. (Um único fonema, produz, às vezes, dois ou mais sons.)

*

Talvez porque, recém-chegado a este planeta, fosse obrigado a ver as coisas de um ângulo diferente, a causa principal desses absurdos, saltou-me aos olhos, antes que soubesse grafar as cem palavras mais comuns da língua inglesa que falar eu já sabia.

Porque estão demasiado envolvidos, os homens não percebem. Babel é peça importante desta difusa luta pelo poder, da qual ninguém escapa, nem eu que pretendia ficar de fora.

Frente a seus enormes problemas, principalmente, porque se acreditam nascidos para as grandes causas somente, quase todos tratam como ninharias, questões iguais a esta, de racionalizar a grafia, sem ao menos suspeitarem de que, estreitamente associadas, as grandes e pequenas coisas, umas preparam as outras e que, para o triunfo da razão, há que triunfar também o ideal de Zamenhof.

*

A língua traz nas entranhas a marca das contradições humanas. Quem ousaria negar sua importância para o relacionamento entre as pessoas. No entanto, Babel existe. São tantos e tão diferentes os idiomas que homem algum consegue ser entendido pela totalidade dos seus. Nem os diplomatas falam uma língua comum e para se entenderem, convocam intérpretes. A comunicação, mesmo entre nacionais, é dificultada por obstáculos que todos fingem ignorar.
Numa contradição própria de sua natureza, os homens possuem, ao mesmo tempo, necessidade de se comunicarem e preocupação de se fecharem. Cada grupo cria seu linguajar: médicos, policiais, ladrões, se comunicam em quase dialetos que os protejam dos não iniciados. Resultado desta tendência a criar dificuldades para se valorizar é que os médicos - por exemplo - mesmo os de boa letra, nas receitas, tornam-se ilegíveis, quando deveriam ser absolutamente claros.

Porque vivem em estado de perene beligerância, os homens não descuidam de nada que possa ajudá-los na luta de uns contra os outros. Por isto se deixam dividir até pelo que nasceu para uni-los: a língua. Bem comum que deveria ser o principal elo cultural entre eles, dela fizeram um instrumento raramente utilizado pela maioria inculta. A palavra, que deveria fluir espontaneamente, presa a uma teia de incoerências, solta-se hesitante, inibindo a comunicação entre as pessoas, principalmente em público.

Para tal coisa existe explicação. Babel é peça importante do mecanismo de dominação do homem pelo homem; campo de batalha desta guerra que não admite zonas de paz. Usar do puro arbítrio para embaraçar a língua; complicar, conscientemente ou não, seu natural aprendizado, significa, nada mais nada menos, dificultar o acesso de todos à cultura, para tranquilidade daqueles que, por uma razão ou outra, já dispõem desta enorme vantagem.

*

Embora com as mãos livres para agir, as outrora chamadas ditaduras do proletariado, surpreendentemente, para alguns e, sintomaticamente, para outros, tanto quanto o resto do mundo, descuidaram desta questão primordial de racionalizar a língua, demonstrando assim que o interesse delas em abrir a todos a cultura, nunca foi maior do que em outras plagas.

O povo - o poder difuso de milhões de pessoas - faz viver e morrer os idiomas. Foi o homemm comum que vulgarizou o latim, que o modificou e sepultou e que dele fez nascer flores que ainda hoje vicejam. O povo cria, mas não rege sua criação. Quem pouco faz é que desfruta.

A minoria que não conseguiu preservar intacta a árvore latina, mantém seus galhos insepultos, para com etimologias e outros pretextos, dificultar o acesso de todos à obra comum, em benefício tão só dos manipuladores da cultura.

*

As palavras vergam sob o peso de letras mortas. Homem - dizem - tem h porque vem do latim com h. Mas, quantas palavras existem que possuíam h e o perderam durante a longa jornada até nossos dias. Por que xá (da Pérsia) é com x e chá (de canela) é com ch. Para evitar confusão entre gente (o xá da Pérsia) e bebida (xá de canela), dizem-me. Então, oralmente não haveria como evitar a mistura de um xá com o outro, e, no entanto, falando ninguém se confunde. Quero a palavra cabala. Está no c, eu procurava no q. Címbalo está no c, mas símbolo está no s. E para saber o que se escreve com g ou com j, com s ou com z! Cada regra está cheia de exceções.

Conforta saber que cinquenta anos atrás, era pior. Basta ler os jornais da época! Farmácia se escrevia com ph; agora é com f e ninguém perdeu nada, indicando que o caminho do progresso é este.

Sons absolutamente iguais são diferentemente gravados. O dicionário é caprichoso. Peço-lhe socorro porque estou às escuras. Ele, porém, impõe condições. Ajudar-me-á se eu lhe der a grafia certa de uma palavra que nunca vi.

A tevê informa que os sírios estão prontos para a guerra. Nunca ouvi falar dos sírios e fracasso da primeira vez. Os círios (velas) da letra c não fazem guerras. Busco outros c(s)írios no fim do dicionário e só então acerto. O bom senso ajuda pouco. É preciso considerar caso por caso. Um velho professor se queixa. Depois de uma vida inteira de estudos, vivo inseguro. "Quem não vive?" - pergunto eu.

*

Existe alhures um pássaro que o mundo ignora e eu não esqueço. Quis ser doutor, mesmo na Terra. Fiz o vestibular, já de si, uma incoerência. Os conhecimentos adquiridos na juventude garantiram-me, em tudo boas notas. Só faltava o exame de língua pátria. Estudei muito, porém, a incoerência da grafia me exasperava. Aproximei-me da banca. Ponto sorteado: "acentuação."

Olhando-me por trás das lentes o examinador pergunta: "A palavra "todo" tem acento?"

--- Não!

--- E "toda"?

--- Também não!

--- Por que?

--- Por coerência.

--- Errado!

--- Toda tem acento circunflexo no "o" para evitar confusão com "toda" - um pássaro da Índia.

Não me contive.

--- Professor, como confundir, se entre nós, quase ninguém sabe da existência desse pássaro?!

--- Pois eu sei!

--- Por causa do acento, não do pássaro!

--- Pode ser, porém, mesmo que seja só por isso, o senhor tem que saber.

O encontro tornou-se desagradável.

--- Por que - perguntei - entre as duas palavras sobrecarregar com o acento diferenciador, justamente a que todos usam, a toda hora, em vez de acentuar "toda" (o pássaro) que 99,99% dos nossos jamais terá ocasião de usar. É mesmo para complicar não é?

--- Alguém quis assim e assim ter de ser.

--- Saia! Para o próximo ano aprenda pelo menos humildade!

*

Tempos depois o professor parou-me na rua para dizer numa quase desculpa: "Viu. Toda (o pássaro) não tem mais acento!" e eu quase esquecido do pássaro e do mestre, acrescentei: "Que bom, não é?!"

Estranha criatura, o homem! Com tanta coisa para fazer, eles tão atrasados e um cérebro desses a ruminar ninharias anos e anos, sem ao menos suspeitar de que ou vive de criar dificuldades e, consequentemente, desvantagens para os outros ou teme enfrentar a mentira sacramentada.

A gramática existe para ordenar a língua. Para defendê-la das distorções e eliminar vícios provenientes do individualismo, antes que o uso os consagre.

Na Terra porém é diferente. Em meio a eternas quizilas, os gramáticos se perdem. Sem rumo, nada podem fazer senão cortejar exceções, transigir com simples caprichos (Bahia com h) ou contemplar impotentes os obstáculos que afastam o povo de sua criação, em benefício de uns poucos privilegiados. (É que o povo faz a língua, mas não faz a gramática.)

*

Uma língua racionalmente ordenada, passível de ser bem falada e bem escrita, seria tida na Terra como utopia. Tratando-se de vida em sociedade, os homens se comportam como primitivos. Desconfiam de tudo o que seja elaborado, de tudo que resulte de uma busca intencional. Desconfiam com razão. Dominados por uma animosidade latente, estão ainda de tal modo inseguros, uns diante dos outros, que precisarão de muito tempo para triunfarem sobre as exigências da natureza, sempre inconformada com a racionalidade, sempre disposta a reconduzi-los à simples animalidade.

O que nos parece inaceitável, goza entre os homens de boa aceitação ou pelo menos de tolerância. Existem ainda analfabetos na Terra! Mesmo nos centros adiantados são milhões os que não conseguem grafar nem o bê-a-bá de sua própria língua e milhões de outros para os quais há mistério num simples tópico de jornal. Ao homem não falta inteligência. Sobra-lhe porém disposição para enredar o próximo.

*

A língua que deveria ser a via expressa do pensamento de todos - por culpa da insensibilidade geral - tornou-se para a grande maioria nada mais que uma passagem furtiva, usada porque não há outra, capaz de atender apenas às prosaicas solicitações da linguagem coloquial. Raros são os que falam em público com desenvoltura e muitos os que se vexam de escrever para fora do círculo de seus íntimos. O pensamento insinua-se por um labirinto de armadilhas e sinais conflitantes. As idéias, mal servidas pela viciada estrutura da língua, perdem substância no difícil processo de sua exteriorização.

A insegurança inibe quase todos, fazendo da oratória um desafio que incentiva os levianos, enquanto afugenta muitos que teriam algo de proveitoso a dizer. A crença de que além do seu, não existem outros mundos habitados, aos olhos dos homens justifica qualquer absurdo.

Certos de que não há instância mais alta que a sua, escondem sua impotência com argumentos irrecorríveis: "mal que não tem remédio, remediado está." Porém, cedo ou tarde, o homem terá que decair de seu orgulho para perceber evidências que só ele não percebe. Verá que a língua é a chave da cultura; que não há progresso sem comunicações; nem comunicação eficiente sem uma língua acessível a todos.

Perceberá aquilo que só não percebeu ainda porque, para os bem situados, seja onde for, melhor que fique tudo como está.

*

Existe quem se ufane das dificuldades e considere excepcionais alguns letrados que, depois de uma vida inteira de estudos, sabem menos do que deveriam saber aos quinze anos, se, de propósito, não houvessem tudo complicado para que poucos pudessem saber.

Atentai para a lógica do mundo infantil! As crianças aprendem a falar naturalmente e falariam certo se os adultos não lhes roubassem a espontaneidade, impingindo-lhes incoerências como coisas certas. Nem os filólogos sabem tudo. O que os salva e nos perde é que o erro nosso cometido por eles, erige-se em respeitável opinião e faz escola. Nas questões controvertidas, decidem apoiados na autoridade, tal qual fazemos com as crianças.

Para os que se consomem no dia a dia, falta tempo para aprender o que cedo aprenderiam se a Razão não estivesse ainda na primeira infância; se os homens já tivessem deixado para trás a Idade da Força, à qual estão ainda presos, apesar de seu desenvolvimento tecnológico, lamentavelmente orientado para matar.

A língua, que é para a maioria, instrumento de comunicação; para alguns é meio de vida. Uns perdem tempo; outros fazem investimentos. (Por toda parte o homem do povo é um estrangeiro, falando com dificuldade a língua nativa.)

Numa época em que, pela complexidade do mundo, o estritamente necessário já é demais para nossa mente a cada dia mais atravancada, uma razão maior induz os homens a inundá-la de regras inassimiláveis: é a desesperada luta pelo poder que os incita a colocar no caminho do próximo toda sorte de obstáculos.

*

Rejeitando os riscos da concorrência honesta, caem todos no vale tudo, do qual ninguém escapa. Quanto tempo gasto no aprendizado da própria língua! Quanto sacrifício para continuar falando e escrevendo mal como fazem! Se pudessem enxergar além de seus horizontes, veriam que em outras plagas, a língua se fez simples, sem deixar de ser bela; saberiam que é mais cômodo falar certo que errado e que onde o erro é humanamente evitável, errar é indesculpável, tornando-se vergonhoso para quem, nessas condições, se afaste dos demais.

Como os adultos falam certo, as crianças aprenderiam certo, imitando-os. Não teriam de desaprender mais tarde o que haviam instintivamente aprendido. Poupariam tempo, deixando para conhecer, na época oportuna, o segredo de seu espontâneo aprendizado.

Os homens conhecem o sentido do progresso, mas é de costas que para ele caminham. Continuarão por muito tempo enrolados em sua própria teia. O que lhes fecha os olhos é mais que ignorância. Não fora assim, como explicar a omissão de quantos bem poderiam impor ordem nesse caos que, paradoxalmente, a seus próprios beneficiários acaba sacrificando. (Quem for capaz de escrever certo sem dicionário por perto que atire a primeira pedra!)

*

Pior que essa balbúrdia é, diante dela, a indiferença de homens inteligentes que, acostumados a ela, já não lhe percebem os males. Fecham os olhos para a crescente evasão escolar produzida por este espantalho. Esquecem que o intercâmbio escrito deixou de ser privilégio de letrados, para se transformar numa exigência do dia a dia. Esquecem igualmente que o mundo só teria a ganhar, racionalizando a grafia, em vez de gastar tempo e dinheiro para preservar incongruências em benefício de uns poucos, pois, o homem comum, mesmo diplomado, continuará escrevendo mal, enquanto não lhe derem uma escrita racional. A explicação para a recusa de uma reforma como esta, necessária e exequível, está na apatia ou na hostilidade dos privilegiados, cuja insegurança impede mínimas mudanças, por medo de que trocando uma pedra a casa toda vá ao chão. Este receio explica - por exemplo - porque as grandes revoluçõess sociais dos últimos cem anos, embora reconhecendo a necessidade de racionalizar a grafia, descuidaram desta profunda, mas pacífica reforma. É que por toda parte, o povo na ignorância e consequentemente na dependência é uma tranquilidade.

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CAP.2
DEUS A
SERVIÇO
DAS FACÇÕES

*

De início, usando o nome de um inglês morto em combate, deixei-me arrastar pela guerra e me envolvi tanto com ela, que só mais tarde, quando cessou o que muitos consideravam uma periódica e inevitável matança é que pude perceber quão arraigada é ainda a violência entre os homens. A paz chegara enfim, para milhões de criaturas, menos para mim, pois como poderia rever a pequenina aldeia engalanada para me receber; como poderia abraçar os meus, se entre a Inglaterra e o inglês que era eu, não havia mais que uma grande mentira?! A guerra foi uma escola. Entre outras coisas me ensinou que se é difícil para alguém, principalmente, quando homem de bem, assumir falsa identidade, a dificuldade está mais nele que se denuncia, do que na capacidade de o descobrirem, isto porque, é de tal modo vulnerável na Terra, o sistema de identificação, que, por toda parte, milhares de criminosos vivem tranquilos, munidos de documentos falsos como se fossem verdadeiros.

*

Minha aventura de fugitivo bem sucedido, comparada com a de outras mais arrojadas, vale muito, mas vale principalmente para mim, porque me permite falar da experiência de alguém, pouco acima do comum, que usando mais habilidade que dinheiro, em menos de dez anos conseguiu passar por inglês, russo, alemão e coisas mais; foi cristão duas vezes: da primeira, anglicano, depois, católico; foi judeu, muçulmano; negou Deus, foi ateu (da boca pra fora), até que finalmente, cansado de fingir e de fugir, assumindo sua crença num Deus impessoal, por dentro se fez homem do mundo, embora, fosse, oficialmente, cidadão americano. Antes que pudesse identificar a violência como fonte de todos os males, mais do que ela própria, me escandalizava a desenvoltura com que os homens põem Deus a seu serviço na guerra de uns contra os outros.

*

De olhos abertos e ouvidos atentos, ficava triste, quando, no fragor das batalhas ou nos intervalos entre elas, escutava as preces com que os recrutas, talvez com sinceridade, rogavam ao Todo Poderoso que lhes salvassem a vida, exatamente quando se preparavam para tirá-la dos inimigos, filhos do mesmo Deus, que, de certo, com igual sinceridade, a Ele faziam igual pedido. Escandalizava-me o silêncio cúmplice dos grandes deste mundo que, instigados por toda sorte de interesses, consentiam na violação diuturna do mandamento número um: "Não matarás!"

*

Tinha horror desses pastores de almas que no seu orgulho inexcedível insistiam em me indicar o justo caminho, indicação desnecessária para quem acredita num Deus onipresente. Cheguei às raias da intolerância, recusando quantos livros sagrados me ofertavam, pois que, se de um lado, a eles me prendo pela poesia que exala de seu texto envelhecido, de outro, fujo deles, não por eles, mas pela crendice fanática que apoiada neles, como se deles emanasse a palavra de Deus, é capaz de cometer contra a liberdade do outro, abusos tão graves quanto aqueles de que são também capazes, os fanáticos do ateísmo que em seu furor iconoclasta, não são menos cruéis do que os zelotes da Santa Inquisição.

*

Na Europa, tendo como grande preocupação, safar-me da Terra, vagueava pelas ruas de Berlim sem um tostão, quando à noite, sob a neve que em flocos descia, entre etílicas imprecações, me atiraram numa ambulância e, qual vagabundo, num albergue me enfiaram.

Tiritando de frio, antes que desmaiasse, voltou-me à cabeça com insistência perturbadora, uma idéia que agora se transformara numa dolorosa fixação. Neste planeta tido pelos nossos como lugar de expiação, eu, de fato, aqui estava, expiando meus pecados.

Dentro de mim, quase quarenta graus de febre. Lá fora, cinco abaixo de zero. Na cama, sob o peso das cobertas, os membros enregelados, nem sei como, de um salto, pus-me à janela. A cabeça rodava. As idéias, soltas no tempo, iam e vinham, num caos infernal. A barba que sempre tive curta, num instante, desceu-me ao ventre. Debaixo do céu não vi nada. Vi porém que dentro de mim os planetas giravam em louca ciranda, deixando-me desnorteado quanto ao tempo e lugar onde estava - na Terra, em Mitilan, sabe Deus onde mais. Vi barcos primitivos manejados por remotos ancestrais, só que os homens, recobertos de peles, em vez de remarem na água, remavam nos ares, entre barulhentos aviões.

*

Confundindo os elementos, já não me lembrava se a embarcação que me trouxe para cá, veio das nuvens ou da profundeza das águas. Talvez delirasse na cama ou quem sabe, na janela de fato estivesse. Só que para além das vidraças embaçadas, eu, por mais que procurasse, não via nada, até que removendo a fumaça, as idéias, mais que o vidro, se fizeram claras, surpreendentemente ordenadas, só que em vez de se fixarem no contexto atual, regrediram aos tempos imemoriais. Berlim, transplantada para a orla do mar, como por encanto, desfez-se num cenário de priscas eras.

No porto havia um barco à espera. Na areia, sob tendas primitivas, cem casais, gente adulta somente (e eu, varão desacompanhado que entre eles me pusera), nós os desterrados, aguardávamos se cumprisse a tantas vezes repetida história de como o homem foi expulso do Éden:

"... no princípio, a ambição gerou discórdias entre os humanos, perturbando a paz do mundo. Contemplados com o dom singular da inteligência, tornaram-se de extremo orgulho, ousando erguer os olhos para alturas inacessíveis, sonhando com a glória divina.

Filho dileto da Criação, ao homem fora dada a inteligência para aprimorar a natureza, livrando-se da brutalidade da vida animal. Desviou-se, porém, de sua missão e deixando-se levar pelos instintos, exacerbou o inato egoísmo; aviltou a inteligência, utilizando-a como simples esperteza. Seu furor predatório subverteu o equilíbrio do mundo, empobrecendo a fauna e a flora, ameaçando as futuras gerações com a herança de um mísero planeta.

Não contentes em tripudiar sobre os animais e as coisas, os homens voltaram-se uns contra os outros, culpando-se mutuamente pelas dores do mundo.

Os mais ambiciosos falavam em nome de Deus, cresciam em poder, às custas de, aos ingênuos prometer, a vida eterna como fim de todos os sofrimentos.

*

Quando, num péssimo exemplo, alguns entraram a se comportarem como entes superiores, os deuses se alarmaram. Tendo os mais afoitos ousado reivindicar a imortalidade, houve tumulto geral.

Os deuses atraiçoados juraram vingança. Reunidos em assembléia, proferiram ameaças terríveis. Por fim, decidiram que o traidor fosse banido para os confins do mundo, de onde nunca mais pudesse voltar.

Dai em diante, a Terra e o que nela houvesse, se apartaria do reino de Deus. Dela cuidaria Babudeus - o Deusdiabo. (Senhor de todo o mal entre os antigos mits.)

*

Assim foi! No sétimo dia depois da Assembléia, a nau dos exilados iniciou sua longa viagem. Levava cem casais dos vários planetas habitados, escolhidos entre os homens e mulheres mais conhecidos por sua ambição de poder.

Antes que do barco se soltassem as amarras, um feixe de luz brilhou nas trevas e a voz de Deus, cheia de mágoa, ecoou pelos quatro cantos do mundo:

"Homem! Eterno pretendente a Deus, sem esperanças.

Para que te mantivesses à distância, eu te impus a dúvida como signo da aliança entre nós. A fim de que percebas a tua apropriada dimensão, eu te inseri na carne, como prova de minha infalibilidade e símbolo de tua impotência, a única regra sem exceção, a morte, exceção das exceções.

Visando fazer-te duvidar do próprio mérito, fiz que a sorte esteja presente em todos os teus empreendimentos; impus limites à tua inteligência, dispondo de tal modo os fatos e as coisas que eles escaparão às tuas pobres generalizações e tu não sejas mais que um simples criador de regras cheias de exceções.

Nada sairá de ti que não esteja em meus cálculos, pois que, ao teu poder de criação, impus, como limites invioláveis, o princípio e o fim de todas as coisas.

Apesar disto, fazes tantas revelações sobre Mim que às vezes me pergunto: "Será ele o iluminado?"

*

Perdera a noção de tempo e lugar. Acreditava estar no interior do albergue quando, de súbito, me vi no chão de um coreto numa praça de Berlim Oeste, semi-inconsciente, enregelado.

De lá me arrastaram para um camburão da Polícia, conduzido por dois homens, correndo a 100 p/h, como se deles dependesse a vida de alguém às portas da morte. Entravam na contramão, faziam curvas arriscadas, assustando os pedestres.

Incentivado pelo auxiliar que se divertia xingando as pessoas, o motorista gargalhava ao vê-las à frente do carro, apavoradas, sem saber para onde ir. Eu que fora apanhado semi-inconsciente, ajudado pela correria, recuperei a lucidez.

A lona sobre a qual me colocaram balançava de um lado para outro e eu temia cair ao chão. Não se apressavam por ninguém, tanto que no meio do caminho, pararam num boteco e lá continuaram a bebericar.

Voltaram ao camburão meia hora mais tarde, retomando a correria. Depois de ultrapassarem os portões do albergue, retiraram-me da ambulância e me conduziam através do estreito corredor que leva à "Enfermaria de Observação", quando um dos homens pisou numa pedra solta, escorregou, desequilibrou-se e caiu de joelhos, fazendo que a improvisada padiola fosse ao chão, deixando-me no meio da lama gelada.

Que alívio quando, depois de um banho quente, por ordens da Irmã Petra, que ali mandava e desmandava, me puseram na cama sob os cobertores.

Mesmo aquecido pelo ambiente, voltei à quase inconsciência de antes. E era como se nunca tivesse vivido longe daquela sala acolhedora; como se toda a correria pela cidade resultasse de uma perturbação mental.

Porém, fosse qual fosse a verdade, em pouco tempo estava de novo à janela, acompanhando o embarque dos desterrados, ouvindo o mesmo Deus com sua fala cheia de mágoa contra os homens:

"Haverá na Terra pão e vinho para todos e, no entanto, muitos sofrerão fome e sede, porque tu não és de repartir; açambarcar mais e mais é a tua vocação.

Pelo supérfluo te perderás, pois, impossível de medição, não há como saciá-lo e, ainda que muito, é de tua natureza exigir mais e mais.

Lutarás por ele com fúria infinitamente maior do que lutas pelo necessário, porque pelo necessário lutam todos os animais, enquanto, na batalha pelo supérfluo é que tu revelas a tua condição de homem.

Os instintos exigem o necessário; a vaidade com o supérfluo se regala. Haverá na Terra coisas que satisfaçam os instintos, porém, nada haverá que sacie a vaidade do homem. (Ainda que no teu celeiro haja trigo para a cidade inteira, tu te sentirás diminuído pelo grão a mais que há no celeiro do vizinho.)

A vida inteira continuarás acumulando, apenas para te manteres no privilegiado lugar, nem que para isto tenhas de roubar e matar.

No princípio farás essas coisas feias pela necessidade de acompanhar os outros; depois te moverá a vaidade e ainda que tenhas alcançado infinitamente mais do que o bastante, tu não serias homem se olhasses para trás e te contivesses; se ao menos fosses capaz de ignorar o desafio que há na fortuna maior do teu semelhante."

*

A movimentação à minha volta e o excesso de zelo da irmã Petra, me incomodavam. Adiantando-se às enfermeiras, a irmã colocava-me termômetros sob as axilas, media minha pulsação e quando a deixavam só, encostava o rosto em minha testa, na certa, para certificar-se de que a febre baixara. Às vezes, com a respiração ofegante, ela, por baixo de minha camisola, deslizava as mãos reticentes até regiões proibidas, aproveitando-se de minha quase inconsciência. Longe de me agradar, seu desvelo me preocupava, levando-me a suspeitar de pérfidas intenções. Aproveitando-se da ascendência material, logo ela iria ferir minha dignidade intelectual, tentando evangelizar-me.

Feliz ao vê-la pelas costas, temia, que logo estivesse de volta, cumulando-me de favores. Mesmo longe de seus cuidados, o sono profundo pelo qual ansiava era impossível. Livre de uma presença incômoda, mal fechava os olhos, estava diante de outra. Aquele Deus enfadonho, surgia de um instante para outro, com sua cantilena:

"Como te atreves a explicar o que era infinitamente antes de ti e continuará a ser infinitamente depois de ti?

O nome de Deus deveria te queimar a língua para que tu aprendesses a honrá-lo em silêncio.

Criastes um Deus à tua imagem! Um Deus, entre deuses rivais, gerado pela temeridade dos mortais; Deus serviçal que te favorece enquanto sacrifica teu igual, não porque tu o mereças, só porque o outro não ousou também por um Deus a pelejar por ele."

*

De súbito, um maltrapilho de maus modos, barba e cabelos compridos, aproximou-se de mim, cheio de raiva, aos berros. Encarou-me com olhos acusadores. Achei que era outro louco apanhado nas ruas, um asilado a mais naquela casa de doidos.

Porém, pouco a pouco, sua voz, trovejante ou branda, ia se confundindo com a daquele mesmo Deus que não me deixava em paz:

"Tu me perguntas, cheio de fel:

'Senhor! Por que deixar que se engrandeçam, explorando o que resta de Deus no coração dos crentes, justamente aqueles que por não vos temerem se atrevem a vos interpretar?

'Por que Senhor, não acabais com o Deus das facções, vós que sois o Deus de todos homens?

"Respondo que o orgulho mais uma vez te perde. Queres um Deus a cuidar só de ti, como se além de ti nada mais houvera. Eu, porém, não sou apenas o Deus dos homens; sou o Deus de tudo e de todos e, sobre a relatividade dos teus conceitos, ergo-me a tais alturas, que aos meus ouvidos não chegam os teus queixumes.

Digo-te que o destino da humanidade inteira preocupa-me tanto quanto a ti deve preocupar a sorte da microscópica bactéria que sob teus pés geme ignorada. (Eu sou o Deus do homem, e do vírus também!)

Não há hierarquia entre Deus e os homens, nem homem que esteja mais próximo de Deus do que outro.

Se tu soubesses o que vale um Deus para as feridas da alma, compreenderias que o mais puro dos homens não vem a mim sem interesses. (Ninguém usa o nome de Deus por nada! Todos têm o que pedir: a fome pede pão, pede amor a solidão.)"

*

Estava sonolento, com dificuldade para entender as coisas, quando a irmã Petra se aproximou da cama, postando-se entre os dois vultos, aos quais dizia palavras desconexas a meu respeito. Estivesse ela sozinha, eu não teria aberto os olhos, mas a presença de três ilustres criaturas falando de mim, deixou-me preocupado. Estranhei que as vozes fossem iguais e, mais uma vez, se confundissem com a daquele Deus, autor de sermões que eu já sabia de cor. "É este aqui", disse o vulto da direita (Quase com certeza, Deus) para o da esquerda, um barbudo de olhos vermelhos, chifres na cabeça (O Diabo, seguramente.), apontando para mim.

"Está mais para baixo, do que para cima", falou a irmã Petra, indicando o inferno. "Mas, haverei de salvá-lo!", prometeu, com ares de intenso fervor.

Enquanto ela e o Diabo se afastavam, Deus, ajoelhado à beira da cama, prosseguia:

"Não é a fé que te move. O que te move é o proveito que se tira do nome de Deus. Continuarás pelos séculos afora, servindo-te de Mim contra teu rival, porque nada te assusta mais do que a concorrência leal com teu irmão, o combate limpo sem um Deus a te favorecer.

Quando compreenderás que a Deus tanto se dá que o neguem ou que o afirmem? Quando compreenderás que tua arrogância ao te dirigires à divindade, nada mais é que arremetida inócua do teu delírio de grandeza?"

*

A voz cessou. Àquela altura, tanto fazia estar à janela ou não. A luz refluiu para o firmamento. A nave, impelida pelo sopro de Babudeus, fendeu as águas, rumo ao desconhecido. Decorreram anos, antes que tocasse a região despovoada que os mapas da antiguidade indicavam como o temível planeta Terra (o inferno) e nunca mais se falou de seus ocupantes.

Milênios e milênios se passaram. Navegantes audazes que se aproximavam do planeta, retrocediam, afugentados pela natureza hostil.

O maligno poder de Babudeus fez que o sol distribuísse com tal desigualdade, luz e calor, que certos homens, pelo excesso, tiveram a pele enegrecida, enquanto em outros, a escassez, tornou-a branca como carne de peixe.

Para castigo de todos, alguns dispõem de férteis planícies, abundância de água, temperaturas amenas, enquanto outros têm de se contentar com um ou outro oásis, quase nada de água, em meio às areias do deserto, onde o trabalho é penoso e a colheita pequena demais. Rios caudalosos percorrem extensas planícies ladeadas por montanhas altíssimas, recheadas de abismos, dos quais a vida pende por um fio.

O sopro glacial do Deusdiabo cobriu de gelo as extremidades do globo e sua gargalhada histérica revolve até hoje as entranhas do solo e o seio das águas, causando horríveis cataclismos. Talvez quisesse Ele com essas desigualdades extremas, suscitar a inveja e o ódio entre irmãos, deitando sobre o solo adredemente preparado, as sementes da discórdia.

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CAP.3
AQUELE QUE
VEIO
DO HOMEM
*

De avental branco, transpondo a porta, pude ver pelas costas, o enfermeiro que saia. Minha barba longa não existia.

A janela dava para o pátio interno; nem vidros tinha. E como poderia ter permanecido de pé, se no braço esquerdo imobilizado, a agulha, varando a pele é que de soro me nutria? O braço direito doía, cheio de picadas recentes, tentativas de pegar a veia. (Foi a dor que me acordou.)

Febre alta, fluxo sanguíneo irregular, os vasos que irrigam o cérebro pareciam estancados. Perdia os sentidos, para em seguida recobrá-los. Temia fechar os olhos e não abri-los nunca mais; possibilidade horrorosa, porque, talvez por orgulho, sempre acreditei que morrer entre os homens, ter meu corpo sem vida exposto à insensibilidade deles, seria a pior das humilhações.

No desespero orei em silêncio como fazem os homens, ainda que se digam ateus. Tentando manter a lucidez, cravei as unhas na carne e só então percebi alarmado que as unhas eram garras afiadas. Pêlos enormes, negros como piche, cobriam-me todo o corpo.

Sob os lençóis, meio metro de cauda enrolada não me deixava movimentar as pernas. O pesadelo prosseguia. Só que a história mudava. O tom era outro e isto me acalmou. Antes eu tremia só de ouvir a voz tonitruante daquele Deus prolixo, ressentido por mínimas coisas, a nos ameaçar como se fosse um truculento mortal.

O que ouvíamos agora nem era voz; eram guinchos, porém, guinchos disciplinados, tão nítidos que por eles nos entendíamos, tal e qual os homens se entendem pelas palavras.

Já não havia uma única choupana sobre a Terra. Nenhum vestígio de homens! A noite descera de mansinho! Com a temperatura abaixo de zero, dinossauros urrando lá fora, nós os macacos, acocorados à volta do fogo, ouvíamos um ilustre símio, velho de 500 anos, tendo ainda muito de gente, contar, entre ressentido e conformado, a história do homem e da gênese dos macacos:

"... os homens, tão logo chegados à Terra, esqueceram-se do castigo, voltando aos erros do passado.

Dominados por um egoísmo exacerbado, logo se fizeram tão inimigos uns dos outros, que raramente saiam das cavernas, onde, agachados, passavam a maior parte do tempo, fugindo à morte pelas mãos do semelhante.

Destruir o próximo tornou-se a preocupação dominante.

Como essa atividade exige mais força que inteligência, o homem desenvolveu os músculos e definhou o cérebro.

Tendo se desviado da nobre missão de modelar a natureza, deixou-se modelar por ela, inexoravelmente.

Resvalando célere pela via da degenerescência, o homem expandiu o tórax e alongou os braços, pondo-se a caminhar de quatro pelo interior das cavernas.

Desde que para destruir, não era preciso transmitir idéias, a voz degenerou em guinchos selvagens e o cérebro que o ócio paralisou de vez, não conseguia obter do nobilíssimo animal de outrora, senão as risíveis micagens de agora...."

*

Abri os olhos sem sobressaltos e num instante me transportei dos primórdios (ou do fim) da aventura do homem sobre a Terra, aos dias conturbados de agora. Nenhuma dor me despertara. Estava lúcido. Sem atropelos, recordava trechos inteiros de livros sagrados da Terra e de outros planetas que, fundidos a quarenta graus de febre, produziram o pesadelo da noite anterior.

De meu planeta recordo a história de navegantes audazes que milênios após o desterro, estiveram na Terra à procura dos homens - seus ancestrais - e tendo-a percorrido de ponta a ponta, o que de mais familiar encontraram, pulando de galho em galho, foi uma criatura insólita, nunca vista em outros planetas e de cuja face caricata, sobressaem olhos desconfiados de remotas ligações.

A essa criatura quase inteligente, animal, porém, muito próxima de nós, deram o nome de macaco. (Aquele que veio do homem.)

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CAP.4
A SALVAÇÃO
LONGE DE DEUS
E DO DIABO

*

O albergue no qual me alojaram vivia de uma sociedade religiosa que, praticando a filantropia, jamais descuidava de conquistar as almas. Zelavam pelo corpo, embora as coisas do espírito estivessem em primeiro lugar.

Estava bem de saúde. Caminhava seguro, ganhara dez quilos. A cor voltara; toda minha aparência era de gente saudável. Mentalmente eu me achava uma criatura normal, se bem que em momentos de depressão, fosse tomado de funda melancolia, a que geralmente sucedia, inusitada agitação, quando as idéias, envolvidas por um torvelinho, funcionavam em caleidoscópica sucessão.

À vista de um instrumental característico, conclui que a sala onde antes sozinho me encontrava, era a enfermaria de emergência. Melhorei em poucos dias. Passei por quartos ocupados por gente estranha. Fiz exames demorados; submeti-me à argúcia dos médicos, até que fui levado a uma sala espaçosa, confortável, onde me intrigava o comportamento dos que lá se encontravam: puseram-me na sala dos alienados, grupo dos inofensivos, isto é, duas vezes humilhado!

Estar ali significava para mim uma ofensa e embora o louco raramente se tenha como tal, eu, que me considerava um cérebro normal, fiquei revoltado. Jamais aceitei a loucura porque, vitimados por ela, perdemos o controle sobre aquilo que nos é mais valioso - a inteligência - que superiormente nos distingue dos outros animais.

Para um homem saudável é demasiado cruel saber que o têm por louco, justamente num planeta onde cérebros que nunca sairiam incólumes de uma vistoria mental, são com frequência guindados a posições de mando, de onde, com uma insensatez que salta aos olhos, podem incendiar o mundo, como aconteceu há pouco tempo e acontece ainda.

*

Comparando as humilhações impostas ao homem neste século promissor com outras que até hoje nos envergonham (embora perpetradas em tempos de ignorância), somos levados a crer que o totalitarismo de esquerda, com sua aura de romântico propulsor do progresso social, tanto quanto o da direita, com sua extremada defesa do "statu quo", em matéria de tortura corporal e aviltamento espiritual, superaram tudo o que antes se fizera, ao eliminarem física e intelectualmente milhares de criaturas, apenas porque, agindo com um mínimo de autenticidade, no rebanho totalitário, elas teriam que ser classificadas como ovelhas negras. Em meio a um terrorismo, por vezes, inimaginável, mesclado de idéias e chicotadas, muitos, além de despojados daquilo que é de todos; daquilo que nenhum mortal a outro pode dar ou tirar - Deus e a Pátria, ainda tiveram questionada sua higidez mental, tendo sido trancafiados em clínicas psiquiátricas.

*

Piorei visivelmente. Passei a temer por minha saúde mental. Louco e além disso, inofensivo! Logo esses trogloditas empertigados haveriam de saber do que eu era capaz. Tornei-me irritadiço, agressivo, iconoclasta, a tal ponto que a assistente social que me orientava, dando-se por vencida, entregou-me aos cuidados de sua chefe, mulher assexuada, religiosa fanática, tipo comum na Terra, que, tratando a recuperação do pecador recalcitrante como questão de honra, acaba perpetrando grandes injustiças, ao ignorar as angústias do homem resignado (porque já o tem por conquistado), para se dedicar ao grande pecador, porque ele espicaça-lhe a vontade de triunfo e lhe engrandece a vitória.

Mulher medianamente astuta, ela descobriu bem cedo meu desprezo pelos epígonos que na sua empáfia não conseguem mais que papaguear as grandes verdades dos mestres, aplicando-as a torto e a direito, quaisquer que sejam as circunstâncias.

Eu me rebelava contra a vã pretensão de psiquiatras medíocres que de mim tentavam extrair os segredos de uma infância da qual sequer poderiam suspeitar.

*

Da primeira vez falamos de amenidades, embora eu lhe percebesse as intenções. Num outro dia ela veio a mim à vista de todos, com ar triunfal, agindo como se a dificuldade em me dobrar estivesse mais na inexperiência de sua auxiliar do que na minha capacidade de resistir.

Era a mesma irmã Petra, insuportável em seu empenho de me salvar, eu que não me considerava perdido. Fingia dominar a situação, mas estava insegura. Cessaram os rodeios. Foi direta ao assunto. Calcando sob o livro sagrado, toda a moderna psiquiatria, disse-me em tom professoral que a mente é domínio de Deus e que a causa real de meu desequilíbrio mental estava no ateísmo, como se eu, apenas por não tomar partido entre tantos deuses terrenos, fosse um ateu.

Do que me disse conclui que a sanidade mental para ela dependia de adesão a um Deus que teria de ser o seu. De dentro de mim surgiu uma necessidade irresistível de vingança contra quem, imputando-me uma doença infamante, bem vistas as coisas, era mais louca do que eu.

Teve início um jogo de pingue-pongue; uma porfia desigual entre o gato e eu, pobre rato, que nem me esquivar podia.

A disputa alegrava-me pela oportunidade de uma ainda que mesquinha vingança, exasperando-a, com o passar dos dias, principalmente, porque - sentia eu - significava, para ela, o prenúncio de uma de suas raras derrotas.

*

Assumiu o papel de gato. Me encurralando, ora me agredia, ora me fazia de criança. Insistia na imputação de loucura, até que certo dia, batendo ríspida na mesa, chamou-me de imbecil, cabeça dura.

Arrependida, mudou de tática. Esqueceu a doutrina. Cumulava-me de favores, enchendo-me de guloseimas, como se, pelo estômago, quisesse me dobrar. No entanto, eu a sentia fraquejar. Já não me falava à vista de todos, como se temesse pelo prestígio de evangelizadora.

Mas prosseguia. Eu me aproveitava de sua necessidade de vencer para perseverar em minha vingança. Fiz-me de criança. Um dia, erguendo os braços, mostrei-lhe uma inscrição - segredo meu - que ela, por conta própria, jamais iria perceber.

Era um número inserido sob a axila esquerda de todo zênio, quando atinge a maioridade. Invulnerável, só pode ser visto através de lentes especiais. Consta de todos os documentos do indivíduo, constituindo-se no fundamento da identificação no planeta Z.

*

O desfecho se aproximava. Já não conseguíamos ocultar a hostilidade recíproca. Às suas prédicas, ditadas num tom autoritário, eu respondia com autêntica miscelânea de textos sagrados daqui e de outros planetas que ela, mentindo acintosamente, dizia conhecer. Passou uma semana sem me ver.

A seguir convocou-me à diretoria e mais do que nunca a senti confusa. Iniciou a preleção enaltecendo a inteligência como dádiva de Deus, para logo depois, apontando-me ríspida o dedo dizer: "Tu que és extraordinariamente dotado, deverias dobrar-te aos pés do Criador, eternamente agradecido."

*

Num primeiro instante, movido pela vaidade, reagi positivamente. Então ela se ergueu de sua autoritária poltrona e acreditando tivesse encontrado o justo caminho, de mãos cruzadas sobre o peito, olhos semicerrados, pôs-se falar, andando de um ao outro lado da sala, sem ao menos olhar para este pecador, imobilizado no sofá.

Frente aos homens, jamais consegui desfazer-me deste orgulho de criatura superior. Mesmo vivendo de cabeça baixa entre eles, espezinhado, quase sempre preterido pelos inescrupulosos ou bem nascidos, eu por dentro jamais me senti inferior ao mais poderoso dentre eles, pois, se vantagem possuíam sobre mim, era a de nunca terem feito uma autocrítica.

*

A inteligência é mesmo uma dádiva de Deus. Tal verdade, porém, nos lábios de quem a dizia, pareceu-me intolerável heresia. Perdi a cabeça e quando a perdemos, só da violência nos lembramos. Ao identificar naquela mulher da Terra, a inimiga pertinaz de tudo o que eu considero o santuário do homem - sua liberdade de pensar – contra ela me ergui qual um louco.

A campainha estava sobre a mesa. De um salto, pelas costas, acerquei-me da presunçosa que se aproximava do extremo da sala. Gritei-lhe com toda força: "Estúpida! A inteligência é coisa do diabo!"

Fez meia volta e derreou-se no sofá, cheia de espanto, como se eu fosse o demônio em pessoa. Então, de pé, rente a ela, uma espátula de aço na mão, enfiei-lhe, ouvidos a dentro, num tom que ia do melífluo à extrema exaltação, todo um capítulo da história dos luios, integrantes de uma seita religiosa da antiga Mitilan que via na inteligência um castigo de Deus, por inspiração do Diabo, para desunir os homens, frustrando sua ambição de poder.

Dizem os luios que os deuses, temerosos da incontinência dos homens, quiseram castigá-los. Pensavam de dia, pensavam de noite - os dias passavam, passavam as noites. Falavam os deuses reunidos, porém, falavam em vão. Tinham um problema e tardava a solução. Por fim convocaram o Diabo porque, de castigos, o Diabo entende mais.

"Concedei inteligência aos homens" - propôs o demo, de pronto.

*

Foi vaiado de uma vaia sem igual. À vista do espanto geral, justificando-se diante dos deuses, o Diabo assim falou:

"Minha proposta é boa! Deixai-me completá-la! Sejam os homens quase tão iluminados quanto os deuses, porém, efêmeros como todos os mortais. Insisto: concedei-lhes inteligência, porém, concedei-a, desigualmente, pois, só com isso terão eles fartos motivos de queixa.

Além do mais, dar a todos eles o mesmo quinhão, seria como nada lhes dar, pois que é pela diferença que uns se têm na conta de melhores do que os outros.

Concedei pouca inteligência a quase todos e muita a pouquíssimos deles contemplados ao acaso, não para felicidade destes, mas para a perdição geral. (A inteligência será para eles uma dádiva. No entanto, ela os fará sofrer como nunca poderiam imaginar.)

*

Saibam Vossas Divindades que sofre mais aquele que sabe que sofre, porque em sua memória, doem as dores das gerações que já sofreram e em sua imaginação doem as dores das gerações que hão de sofrer. Em seus sonhos dói a dor que já doeu e a dor que um dia há de doer.

Feixe de dores, nele doem as próprias dores e as dores do mundo. Animal inteligente, assim será o homem: espinhos por todo o corpo. Onde esteja haverá um aguilhão e de tanto ser, às cegas, ferreteado, há de ter por culpado até mesmo aquele que se culpa tem é a de não ter também o seu ferrão.

Senhores Deuses:

Eu imagino os homens sufocados, num labirinto, sem esperanças; de olhos vendados, mutuamente se golpeando, raivosos, rangendo os dentes, como se estivessem no inferno (ou na própria Terra), a dar e receber chicotadas pelos séculos afora, porque a inteligência ensina também a vingar e de vingança em vingança, sem que o saiba, o homem vai penetrando o círculo vicioso do sofrimento, de onde jamais escapará."

*

Entusiasmados, os deuses aprovaram a proposta, nos termos em que foi posta, concedendo a inteligência aos homens, para que eles, com as próprias mãos, construíssem o inferno. De volta a seus pagos, o Diabo (que vê longe), agora sorrindo contrafeito, via mais longe ainda:

"a inteligência poderia salvar os homens, se eles, esquecendo Deus e o Diabo, essas potências tutelares, se deixassem iluminar pela razão para dentro de si mesmos buscarem a terra da promissão"

*

Eu falava ainda, quando seu corpo até então rígido, qual massa informe, amontoou-se no sofá. Ela desmaiara! Pus a espátula sobre a mesa, toquei a campainha e, esgueirando-me pelos corredores, alcancei a sala dos alienados, onde, na cama, sob os cobertores, adormeci em paz.

No outro dia ela não veio. Deram-me pela manhã sopa quente e roupa nova. Dois guardas truculentos empurraram-me até o portão da rua e apontando a cidade que se estendia diante de mim, disseram: "Vai cuidar da vida, vagabundo orgulhoso!"

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A seguir

 





Os homens possuem,
ao mesmo tempo,
necessidade de se comunicarem
e preocupação de se fecharem. (UM ANIMAL PROMISSOR***CAP.1)



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