ðHgeocities.com/joseavellar/sexta_pagina.htmlgeocities.com/joseavellar/sexta_pagina.htmldelayedxoÔJÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÿÈ0 ’”XOKtext/html`ªõ0k”Xÿÿÿÿb‰.HTue, 24 Jun 2003 00:59:27 GMT!Mozilla/4.5 (compatible; HTTrack 3.0x; Windows 98)en, *oÔJ”X Avellar Toledo Avellar Toledo

A DESCOBERTA DA TERRA
Avellar Toledo


PARTE6
DESARTICULAÇÃO, o problema número um**;
O CIÚME DAS AUTORIDADES, incentivando o crime**;
ANISTIA e PRESCRIÇÃO, garantia de impunidade**;
A MÍDIA, deturpando... **;
A FORÇA a serviço dos ativistas**.

CRIME DESORGANIZADO:
diante dele, resignação ou impotência?**

*




O general Carranzas bendizia todos os dias o temporal que, paralisando a vida política taraguenha, adiou sua queda. Mas não falava de outro aguaceiro, mais recente, que, indiretamente, o tirou da Presidência.

Logo que as chuvas cessaram, o ministro da Defesa, general Morelos, o primeiro na linha de sucessão, sobrevoando o mar à procura do iate "Fortuna", de onde, supostamente governava o ditador, não viu nada. Ao anoitecer, ele comunicava à nação, ter assumido a Presidência, "por morte de seu ocupante", provocando violenta reação do "falecido", que exigia, pela tevê, sua recondução ao cargo, pois, como todos podiam ver, ele não estava morto.

Afirmava ter governado o país nos últimos tempos, a partir de seu gabinete no quartel do II Regimento de Carros de Combate (RCC). Sua presença no iate fora divulgada para confundir terroristas que planejavam matá-lo. "O Morelos sabia onde me encontrar.", disse. "Apressou-se de má fé! Foi traição!"

*

Diante da fraca repercussão de sua fala, Carranzas apelou aos companheiros de caserna, embora achasse difícil tirá-los de suas comodidades num país nada pacífico, mas, desacostumado às guerras no Exterior e às grandes matanças entre irmãos.

Queria mostrar-lhes que só conseguiriam recuperar o prestígio da farda se ousassem desfazer pelas armas a traição de Morelos, agora apoiado por predadores de todos os tipos, indiferentes às consequências de sua insensatez, preocupados só com o poder obtido no jogo sujo, na exploração de milhões de simplórios artificialmente embriagados por um consumismo delirante. Sabia que mesmo entre militares profissionais, poucos vão à guerra pelo gosto de brigar. A maioria luta porque lutar é sua profissão ou porque teme as consequências da recusa. Mas, sabia também que se não lhes deixasse alternativas, teriam de lutar e, neste caso, estariam com ele - o mais capacitado a incluí-los no rol dos vencedores.

*

Pela manhã, vestindo trajes de campanha, Carranzas falava aos homens do II RCC, não para renovar apelos, mas para incitá-los à luta por Deus, pela Pátria, pela Família, ameaçadas. "Estamos - dizia ele - tão corrompidos pela comunicação de massa, que nos calamos diante de aberrações que sobrevivem porque, praticadas por minorias, não ameaçam, de imediato, o todo, embora sua repetitiva apresentação como condutas aceitáveis, influencie a maioria, desarticulando a sociedade, gerando as loucuras do dia a dia.
Quem poderia aceitar como normal, a inocuidade do homossexualismo, a masculinização das mulheres, a promiscuidade exibida como ideal de vida, distorções incentivadas pelos que só conseguem aparecer à custa do inusitado, ainda que malcheiroso. Quem ousará negar a responsabilidade da comunicação de massa pela orgia de sangue que banaliza o assassinato, transformando-o numa rotina, diante da qual parecemos conformados ou impotentes?"
A mídia - prosseguiu o general - fala muito no crime organizado, porém, moralmente tão nocivo quanto esse crime, que existe desde que o mundo é mundo e continua a existir; tão pernicioso quanto ele (ao alcance apenas dos grandes) é o crime desorganizado dos nossos dias, ao alcance de qualquer um que não queira trabalhar. É crime onipresente que pipoca aqui, ali, de dia, de noite, que ameaça principalmente aqueles milhões que produzem, aos quais, a ciumeira oficial priva de armas até para se defenderem. Esse crime desorganizado que, deixou de ser obra de coitadinhos, em razão de sua desatinada expansão, transformou-se num poderoso inibidor da pequena empresa, nossa maior provedora de empregos."

"Estávamos adiantados no combate à inversão de valores que transforma o Estado, com sua inoperância, num incentivo à criminalidade, não importa que o estímulo resulte de interesses escusos ao nível individual, ou da preocupação de certas corporações em preservar o monopólio punitivo de seus associados. Tais pessoas, embora conscientes de sua impotência, mas, sabendo que punir resulta em vantagens, deste monopólio não abrem mão, com isso renegando o compromisso de lealdade ao cidadão que alegam defender.Intransigentes na defesa de suas prerrogativas, mas desmoralizadas pela impotência causada em boa parte pela corrupção, tais "autoridades" acabam perdendo a confiança do homem de bem, sem inspirar temor aos foras-da-lei.
Não tivessem os delinquentes, como ajuda, a pronta reação de autoridades que só se movimentam por ciúme, para impedir que o particular, não podendo acreditar nelas, por conta própria se defenda; não fossem os delinquentes testemunhas do desprezo com que é tratado o cidadão comum que vai às repartições para reclamar seus direitos ou até mesmo para atender à lei; não contasse a delinquência com tais incentivos, a criminalidade seria bem menor.", esbravejava o general.

*

"Na guerra desigual entre as milícias do crime e as populações desamparadas - afirmava Carranzas - as primeiras (que da lei só querem as vantagens), dispõem de armas tão eficientes quanto as que possuem as Forças Armadas, enquanto as segundas, de mãos atadas, ficam na insegurança, entregues à venalidade endêmica e despreparo notório de quem, tendo por obrigação combater a delinquência, sobre ela deixou de ter a mínima ascendência.
Na selvageria em que se transformou a vida moderna, os foras-da-lei dispõem da iniciativa, do elemento surpresa, são os lobos a nos espreitarem; enquanto o rebanho - esses milhões que se entregam à inoperância do Estado - vivem a vida acuados. E quando surge algum esboço de defesa, não são eles os defendidos; são pastores ressentidos que, incapazes de defendê-los, se vingam do sistema, tomando as dores dos lobos.

*

Agora somos nós que trememos diante do que deveria ser nossa força - o poder público - enquanto os mal-intencionados dispõem de mais uma arma com que nos ameaçar - a incúria do Estado. "Cumpram nossa vontade agora ou esperem pela Justiça, até não se sabe quando, nem o quê!" - dizem os delinquentes, certos de sua impunidade. Diante deste ‘salve-se quem puder’, o que faz o traidor?", perguntava Carranzas, esquecido de que o governo Morelos, pelo menos, de início, tem compromissos com a lei; precisa agir com paciência, ao passo que ele em seus tempos de ditadura, ainda presentes na cabeça de todos, desconhecia quaisquer limitações. No entanto, a bagunça era a mesma, só que, feita sob silêncio total, sustentada pelo terror oficial; era sofrer e calar.

*
 
 

Juana recuperava as forças. A infeção hospitalar regredia e ela caminhava pelos corredores da nave-mãe com desenvoltura. Porém, emocionalmente continuava instável. Recusava acreditar que fora socorrida por médicos alienígenas, ainda cuidando dela na enfermaria de uma espaçonave submersa a poucas milhas das Bermudas. Temia estar numa outra prisão, onde torturadores travestidos de médicos aguardavam sua melhora física para voltarem com novas exigências de colaboração.

Subia e descia escadas, acabando diante de portas e janelas a lhe recordarem paisagens conhecidas. O corpo se movimentava livremente, porém, a alma parecia enclausurada como nunca.

Pela tevê ela viu o II RCC, tendo à frente o general Carranzas, marchando contra a sede do Governo. Soube que Branca estaria em San Miguel para a missa de sétimo dia pela alma de Ventura e pela sua também. Ambos tinham sido dados como desaparecidos pelas autoridades. Assassinados pela Polícia, diziam os companheiros de luta que insistiam na celebração mesmo correndo o risco de que estivéssemos vivos.

Estaria mesmo morta? - Juana se perguntava. O outro mundo a que frequentemente se referia Marlow, seria o mundo após a morte? Talvez tivesse cruzado a última fronteira e do lado de lá fosse normal tudo continuar como antes. Talvez, embora invisível, permanecesse entre os que habitam o lado de cá! Por que não?!

Viu com alegria, que o comandante do II RCC, contrariando Carranzas, ordenou o retorno da tropa, depois de constatar que os acessos ao Palácio Presidencial estavam defendidos por montanhas de sucata; pelas metralhadoras instaladas nos terraços dos edifícios; pelos helicópteros que espreitavam do céu.

Mas, o retrocesso não lhe acalmou os nervos. À vista de sua agitação, os médicos decidiram consultar-me.

Conhecendo-a bem, opinei que só ficaria satisfeita, lutando. Estará em condições de retornar à guerrilha?", perguntei. "Se é tão importante para ela, melhor que se vá!", disseram.

*
 
 

Sobrevoando o monte Pessino, pela primeira vez na condição de morta-viva, Juana ficou triste ao deparar com as clareiras abertas pelo fogo inimigo. Lamentou a derrubada de árvores cujo tronco a tinham defendido das balas muitas vezes.

Com a micronave em terra firme, enquanto Marlow saia à procura de remanescentes da guerrilha, eu e ela podíamos, depois de muito tempo, falar a sós, dizer coisas que nunca foram ditas, por culpa dos dois, tímidos e orgulhosos.

Embora fisicamente bem, ela sofria com a indefinição de sua vida, depois da quase morte na ilha dos Sapos e da estranha passagem pela insuspeitada nave-mãe.

Minha familiaridade com Marlow, nosso encontro a três, dentro de um mesmo veículo espacial para lá de avançado, causava-lhe visível constrangimento que ela só conseguia tolerar, porque, desde cedo aprendera a disfarçar os sentimentos quando o mundo lhe parecia confuso.

*

As últimas ocorrências, tão significativas, predispunham-na para a aceitação de uma vida mais amena. Lamentava, porém, que a persistência, entre nós, de condutas ditadas pela animalidade latente, a deixasse exposta à prática da violência, pois, ainda não conseguia oferecer a outra face a quem lhe desse um bofetão.

Parecia ansiosa para me dizer alguma coisa, mas hesitava.

"Pai! Por que ele é assim, tão distante? Será que não gosta de mim?", queixou-se, mal o outro saiu.

Tínhamos tanto a falar e não sabíamos por onde começar. Nos últimos tempos, nossos encontros, além de raros, acabavam comigo, o pai, querendo orientá-la e ela, apoiada num prestígio que eu jamais conseguiria igualar, limitando-se a me ouvir, nem sempre de boa vontade.

*

Juana adorava o lado prodigioso de Marlow, mas evitava comentários, certa de que, sendo ele honesto em tudo o mais, deveria ter motivos para silenciar. Por trás de seus mistérios, ela imaginava coisas fantásticas, tão inexplicáveis quanto Deus que explicado se apequena. Vivia intrigada com a estranha personalidade dele, envolta por sombras que a um só tempo, a fascinavam e atemorizavam.

Recebia como simplório esforço de civilizados, tentando enganar gente primitiva, seu tardio empenho em convencê-la de que além de jornalista, era também agente do SISOVNI (Serviço de Investigações Sobre OVNIs), que lhe fornecia instrumentos de altíssima tecnologia, como o L2Tv ou helicópteros muito parecidos com os veículos espaciais criados pela nossa ficção científica. Tais maravilhas faziam dele um ente poderoso, que ela, brincando, chamava de "El bruxo", sempre desconfiada, sempre temerosa de que ele um dia, viesse a utilizar a superioridade material para lhe impor uma dominação à qual os fortes se acham com direito.

*

Conversando com Samanta Solis que vagueava triste pelas matas, Marlow soube que não havia mais guerrilheiras no monte Pessino. Afora umas poucas inconformadas, vivendo como bichos, as outras aceitaram a anistia decretada pelo novo governo.

Juana, tida por morta, era usada pelos políticos para atrair as multidões. O próprio Carranzas conclamava os seus a imitá-la.

A crescente aceitação de seu nome ajudou Vic a obter de Morelos, a integração das mulheres às Forças Armadas. O decreto da anistia saiu com um adendo criando o "Batalhão Juana de Deus", constituído de ex-integrantes do "Batalhão das Rosas".

Juana estava tão emocionada com a volta à montanha, que não deu pela chegada de Marlow.

--- O que foi? - Ele me perguntou.

--- Nos livramos de alguns espinhos, respondi.

--- E as meninas - Juana quis saber.

--- Foram embora! - disse Marlow.

--- Estava na hora - ela completou, tristemente.

*

Mulher de 35 anos, Juana rejuvenescera dez em poucas horas. Ansiava pelo amor de Marlow, exibindo nos olhos o brilho de uma paixão renovada, doravante, sua razão de viver.

Na sala de tevê da nave-mãe, as notícias eram boas. O general Carranzas estava de volta ao II RCC, sem a empáfia de antes. Mas, havia tristezas também. A insistência com que os meios de comunicação se referiam a ela como inapelavelmente morta, dava-lhe a impressão de que muitos a queriam longe deste mundo.

O sombrio interior da nave-mãe, sem portas e janelas pelas quais pudesse volver às paisagens da infância; a luz baça das estrelas que sobressaiam de um teto azul pálido; tudo a fazia pensar num mundo diferente do chão caloroso onde vivera sua infância inocente. Temia sofrer ainda as consequências de sua passagem pela maldita ilha dos Sapos.

Talvez habitasse mesmo o reino da morte, embora, o sangue permanecesse quente em suas veias, e, alheio aos equívocos entre os quais flutuava, seu corpo, impregnado de amor, ansiava pela mais generosa das relações - a mais vital.

*
 
 

Quando o núcleo de forças, constituído por uma ativa minoria, impõe seus rumos aos demais e vai bem, a maioria segue atrás na esperança de ficar com as sobras ou preservar o que tem.

Depois do temporal, o país conheceu o "Governo Carranzas - Força Total", ditadura draconiana que transformou o Judiciário e o Legislativo, já de si desmoralizados, em sacos de pancada. Parlamentares e juizes, como integrantes do principal núcleo de poder, embora não tivessem diminuídas suas vantagens materiais, sofreram limitações funcionais, perderam autoridade, ficando ressentidos, de orgulho ferido.

Agora, com o tirano fora do poder, a hora da vingança chegara. A Corte Suprema anulou os Atos Institucionais da ditadura e, como sinal dos novos tempos, mandou investigar as denúncias de mortes sob tortura na ilha dos Prazeres, indiciando o próprio Carranzas (agora sem imunidades), com base em documentos fornecidos pelo coronel Ventura antes de fugir do país; provas robustas de que o então chefe do Governo estava pessoalmente envolvido em vários casos.

*

Marlow e Juana deixaram a sala de tevê da nave-mãe enlevados. A reconciliação parecia depender de um arremate final a que não poderia faltar a união dos corpos. Passaram um bom tempo conversando na biblioteca e quando lá pela meia-noite os vi tomando rumos diferentes, entendi que havia pendências.

Teria Juana desistido de viajar com ele para um outro mundo, no qual talvez se sentisse uma estranha?! A vida aqui é uma loucura, porém, chega uma hora que a loucura tem seus atrativos.

Eu mesmo, inclinado a transformar em alegrias, sofrimentos sobre os quais triunfei, com frequência me deixo levar pela nostalgia da barbárie, receando trocar a Terra por outros mundos tão certinhos que me fariam morrer de tédio. Se comigo é assim, imagino como será com Juana, senhora de um passado rico de aventuras.

Os preparativos para a viagem estavam concluídos, mas faltava - segundo Marlow - uma dúvida a ser esclarecida em terra firme, longe da nave-mãe. Foi a recusa de uma explicação para tal atitude que esfriou a alegria dos dois.

*

De manhã voamos para San Miguel onde havia muito que fazer. O casal ficou no hotel, enquanto eu ia ao banco retirar o dinheiro deixado por Saulo. Uma hora depois fui procurado por Marlow, ansioso para revelar seu último segredo, do qual já desconfiava, à vista de suas indiscrições, quase com certeza, propositais.
"Perdão Jonas!", disse ele. Nunca chegastes a ser um herói de Xad; és um fugitivo, condenado por indisciplina. Sabes que nossos códigos recusam a prescrição - tida como negligência na administração da justiça, na maioria das vezes, negligência intencional; também recusam a anistia - um convite a que se erre confiando nela.
Passados cinquenta anos és ainda um condenado e tens de pagar, porque não existe entre nós, herói com dívidas pendentes; porque não compensamos crimes com ações benfazejas; acima de tudo, porque não aceitamos a impunidade.
*
É justo que me perguntem por que guardei silêncio até agora! Talvez por que no começo eu me sentisse fascinado pela vida na Terra, um paraíso para a minoria de eleitos, mesmo sabendo que uma virada na sorte, pode baixá-la ao inferno da maioria.

Antes que me cansasse da rotina da violência, boa apenas para quem possui forças para exercitá-la, cheguei a deplorar o tédio que é a vida em Xad, na Idade da Razão, sem confrontos, sem riscos, uma vida em que - Juana que me desculpe - até para trepar é preciso recolher as garras e ser gentil.

Jonas, eu te invejava! Ainda assim, eras para mim um fugitivo! Porém, já no primeiro encontro com tua filha, mulher dura, doce e meiga, eu me encantei. O louco amor dos humanos tomou conta de mim e eu que por meio dela te encontrei, entre conquistá-la e trair os meus, me perdi. Continuei a teu lado, mas já não eras a minha caça; eras o pai da mulher amada, junto à qual, eu, dominado por humanos impulsos, queria viver para sempre. Minha sorte está em tuas mãos! Não voltarei a Xad sem Juana, sem o seu amor, ainda que passe por traidor. Eis a razão dessas tardias explicações longe da nave-mãe."

*

Ouvindo Marlow se desculpar pelo mal que teria me causado, tive ímpetos de lhe agradecer e só me calei porque não sou de dar o braço a torcer. A condenação foi justa. Sabia da severidade com que punimos a indisciplina e mesmo assim, de caso pensado, desobedeci as regras. Depois de cometida a falta, fui dominado pelo temor de que voltando a Xad, como profissional indisciplinado, eu jamais teria vez nos programas espaciais, frustrando meus sonhos de conhecer outros mundos mais. Ainda assim, só não regressei porque, se, naquele tempo, chegar até aqui era difícil, voltar era impossível. (Os xadas, viviam os primórdios da navegação espacial.)

Achei que poderia contribuir para aumentar nosso conhecimento sobre a Terra e que, em recompensa, fosse perdoado. Porém, não deu certo, eis que de fuga em fuga, esqueci o passado. De Xad nem o nome eu me lembrava. Mesmo depois do isolamento na Amazônia, tendo recobrado parcialmente a memória e começado a pensar como os humanos (para os quais, só na Terra existe vida), continuei ignorante de tudo que me acontecera antes da chegada a este planeta. Impossibilitado de comparar minha vida aqui com outras, das quais não me lembrava, tive de me privar das comparações, sem as quais nenhum conhecimento é possível. Sobre a Terra quase nada poderia ensinar.

*
 
 

"Isto sim é que é vida!", exclamei eufórico, meio século atrás, diante da fúria de japoneses e americanos lutando pela minúscula illha de Sompa, no Pacífico Sul, convertida em campo de prisioneiros. Mas, isso foi antes que a PSA-1 despencasse das alturas, varada pelas balas que chegavam dos dois lados.

Só então percebi que a insegurança - tida como inimiga do tédio - de perto, assusta, porque nos põe diante da morte, recebida por quase todos como imposição - nunca, opção. (Foi preciso um grande susto para entender o que significa estar vivo.)

A recepção hostil com a qual, de longe, eu teria exultado, tendo sido real, decepcionou-me. Prisioneiro dos japoneses, vi de perto tanta violência que ela se tornaria enfadonha. Por fim chegaram os americanos com seu discurso diferente para justificar conduta igual.

*

No princípio de minha vida na Terra, observando a abundância de conflitos entre os humanos, pensava: "Falta de problemas não haverá. Terei uma vida inteira com que me ocupar!" Mas, logo me cansei da violência, este chover no molhado, feito para preservar privilégios que os mais fortes sonham eternizar.

Na infância, a Terra me fascinava pela beleza física, pela selvageria de seus filhos. Atraía-me como local de aventuras, só isto.

Tendo conhecido a diferença entre barbárie e civilização, mal havia chegado e já pensava na volta, mesmo antevendo o tédio das sociedades avançadas, contra o qual, teria de lutar.

Na expectativa de um breve retorno, passei a ver com boa vontade a Idade da Razão, cuja exagerada preocupação com erros e acertos, muito me aborrecia. Continuaria a ser vigilante contra o erro, em quaisquer de suas formas, porém, nunca tomando-o como algo absoluto, mas, sim, como vacilante referência, lembrando que o velho ditado "errar é humano" só vale quando se erra sem a intenção de errar. Que esse ditado deixe de servir, como tem servido até aqui, como a primeira das justificativas principalmente para o erro dos grandes! Insisto: contra o erro é preciso cautela porque toda caminhada sofre desvios se não tem como objetivo, a busca da perfeição. Por isto, me fiz mais tolerante com erros alheios e meus, embora preocupado em acertar. (Só Deus conhece o justo caminho; quem se ache perdido, faria bem, exercitando equilíbrio e boa fé.)

*
 
 

Observando a Terra de longe fica difícil entender, como aqui, entre tantos desafios, alguém se aborreça. Ignorava que a grande maioria não têm vida própria. Demorei a descobrir quão aborrecida é a existência de milhões de criaturas que só podem atuar, obedecendo outros, em benefício desses outros, concorrendo, inclusive, para a íntima realização desses outros.

A sociedade está organizada de tal forma que poucos se orgulham de sua luta do dia a dia. Ao paraíso desses privilegiados não se chega pelo mérito, assim entendido o esforço pessoal dos mais inteligentes, em favor da maioria de desfavorecidos, objetivo maior de todo racional - como compensação pelo que recebeu a mais não se sabe de quem; não se sabe de onde.

A inteligência não vem por acaso. Quem a possui em grau mais elevado, só pela sorte de a ter recebido a mais, é devedor pelo que recebeu e tem de pagar, compensando os menos favorecidos, concorrendo para o equilíbrio do mundo. (Ignorar a dívida é cuspir no rosto de Deus.)

*

Depois que passei a duvidar das intenções de Marlow, acreditando que ele planejava levar-me de volta, minha vida aqui, já desagradável, ficou pior. Impressionado com a violência, preso em casa por medo de sair, meu dia a dia tornou-se penoso. Passava as horas vendo a tevê, mas logo me cansava de tanta embromação.

Não me conformava com a propaganda de nove entre dez produtos, por entender que a má fé que a dirige, tão ostensiva é, que desmoraliza a si mesma, distorcendo tudo o mais, frustrando a confiança que é preciso ter na palavra, indispensável ao entendimento entre as pessoas.
Daquele que elogia tudo que lhe ponham à frente, é justo esperar que elogie o bom e o ruim. Quem, sabendo o que faz, ganha a vida com mentirinhas "inocentes", acaba enrolando Deus e o Diabo. (Das róseas falácias do comércio, custeadas por milhões de dólares, com propósitos mercantis, chega-se às grandes mentiras de graves consequências.)

*
A possibilidade de volver a um mundo do qual havia desertado, mas que à vista da situação atual, se tornara aceitável, causou-me tal ansiedade que eu, desconfiado de que a volta dependia de Marlow, passei a assediá-lo tanto que ele se aborrecia. Tratava-me às vezes com frieza. Dia desses, em uma de nossas trocas de opiniões, magoou-me com sua deselegância, ao comentar minha afirmação de que "Deus, a alma, o espírito, são criações do homem para facilitar a dominação de uns pelos outros."

Faltou pouco para me dizer que sobre tais assuntos eu me calasse.

"Suas opiniões - meu caro - não passam de truísmos, cuja enunciação soa como repetição.", comentou displicentemente.

Ferido em meu amor próprio, indaguei-lhe: "O que faria você para melhorar a Terra? Respondeu de cara feia: "Não é comigo!", mas, arrependido, afirmou:
"Por culpa dos que dominam pela violência institucionalizada (e só por meio dela é possível dominar), os humanos, depois de milênios, continuam desarticulados e, por isso, dependentes da força bruta, elemento natural hostil a toda ordem que não seja a sua.
Diria que a desarticulação é seu problema número um. Por enquanto carecem todos eles de objetivos comuns definidos. Só se articulam negativamente, para dominarem uns aos outros; para matarem - nas guerras, por exemplo - instigados pela minoria que manda. É preciso - prosseguiu - que a maioria aprenda a se articular em favor de seus objetivos. O conhecimento, ele só, não traz imediata solução, mas ilumina o caminho, indicando a direção!"

*

Escandalizado com a passividade com que os homens escutam aqueles que, por conta própria, se fazem porta-vozes do Criador, estranhava nunca ter ouvido de nenhum deles, a dúvida que deveria estar na cabeça de todos: "Se diante da infinita sabedoria de Deus, a diferença entre o mais sábio dos homens e o mais ignorante deles, deixa de existir; se todos são iguais aos olhos de Deus, que direito tem um homem de interpretar para o outro, a vontade Dele, se não há na Terra, quem possa - para tal interpretação - conferir mais competência a um que ao outro?! Erguendo-me como intérprete de Deus, não estaria me adiantando a Ele; não estaria confessando que não O temo, porque se, de verdade, O temesse, jamais me proporia a explicar, por meio de uma filosofia construída por nós, o mistério de um Todo, do qual somos apenas ínfimas partículas?! Só um orgulho extremo ou uma exagerada ambição de poder faz com que um homem se ponha acima de todos os outros homens, para interpretar a vontade de um Deus que jamais poderá ser interpretado; para falar em nome de Alguém, por natureza inacessível!"

Pedi a opinião de Marlow. Saiu de lado: "Coisas inatingíveis por si mesmas, exigem respeito. O homem, qualquer homem, que jamais poderá explicar tal mistério, quando tenta fazê-lo, outro propósito não tem, que o de enganar."

*
 

Continuo fiel à sabedoria das ruas, adquirida em meus verdes anos, sabedoria recheada de máximas populares, de muitas das quais, ainda me lembro, como se as ouvisse pela primeira vez. Deixo-me guiar por seus ensinamentos. Repito-os com frequência, como se estivessem grafados num livro de ouro. Sempre volto a eles, acrescentando coisas, mesmo que sejam, disparates. Prestes a tocar a Terra, receava dificuldades de adaptação, e, como não podia contar com as escolas, punha fé no aprendizado das ruas.

Voava entre o Amazonas e o Prata, quando, atraído pela beleza do lugar que imagino tenha sido Rio das Praias, quis ver de perto, quem sabe tocar, aqueles corpos cheios de vida, estendidos na areia, entregues ao sol ou agitando-se no mar.

Extasiado diante de tantas maravilhas, não sabia o que dizer!

"Quando não sabemos o que dizer, é melhor não dizer nada!" alguém murmurava dentro de mim. Lembrava-me de uma velha observação, nada pertinente naquela ocasião: "Contra os interesses nada prevalece.", como se, a meu lado, alguém, ainda no interior da micronave, a tivesse pronunciado em alta voz; como se outro alguém, também a meu lado, acrescentasse: "A vida exige que ajustemos o mundo aos nossos interesses, nunca aos interesses dos outros, que, por sinal, possuem a mesma inclinação.". Parecia ouvir ainda uma terceira pessoa, também a meu lado, falando de erros e acertos: "Ninguém se acredita errado. Quando, numa disputa, alguém cede, não o faz porque se acha errado; sente-se inferiorizado e prepara a desforra. É preciso insistir sempre que ninguém acredita no próprio erro, eis que, para as mais absurdas pretensões, o ego tem explicações ou não faz questão de tê-las."

"A Idade da Razão vem da disciplina voluntária!". A frase martelava meus ouvidos. "E o que tem a ver erros, disciplina, interesses, com mulheres e praias, com a beleza dessas paragens?", eu me perguntava. "Sei que a disciplina é importante!", eu insistia. "Mas, a rebeldia é criativa!", acrescentava, cansado deste jogo.

*
 
 
 

Meio século depois, em San Miguel, cenário de belas recordações, já desconfiado de que seria recambiado, enquanto Marlow falava de minha indisciplina, eu e Juana imaginávamos um meio de apressar a entrega dos dólares deixados pelo pastor Banes, incumbência que ele, dias antes de falecer, verbalmente me confiara. A missão estava praticamente cumprida. Faltava a parte de Branca, por sorte, passando uma temporada na casa do Dr. Rosano.

Não sabia o que fazer com a quantia deixada para a campanha de alfabetização de adultos, que o pastor, sem vislumbrar o que estava para acontecer, colocou-me nas mãos. "Vic devia cuidar disto! Pena que seja tão ingrata!", ele me disse, quando seu fim estava próximo.

Conhecendo-o bem, achei que se estivesse vivo, apesar das mágoas, não podendo contar comigo, escolheria a filha para realizar seu desejo e me senti autorizado a cumprir sua vontade real, pulsando entre as picuinhas de família.

À tarde, ao entregar a Branca seu quinhão, lhe revelei fatos, mostrando que só abandonei Taraga depois de infrutíferos esforços para localizá-la; que só tivera conhecimento de sua prisão quando ela já estava livre em Nova Iorque.

Com esse encontro auspicioso, conclui a missão da qual me incumbira o pastor Banes e fiquei em paz com a mulher amada. (Estava aliviado!)

*
 
 
 
 

Quando, encerrada a visita sentimental ao monte Pessino, Marlow acoplava a micronave em seu nicho na PSW.0 - a nave-mãe - Juana lembrou que era o "Dia da Pátria", comemorado com festejos que, iniciados às zero horas com o repicar dos sinos, terminam 24h depois, com o hino nacional difundido pelas rádios e tevês.

Minha filha queria se aproximar do "Batalhão Juana de Deus", o antigo "Batalhão das Rosas" para, mesmo de longe, rever as companheiras.

A tevê-N, depois de anunciar o itinerário do desfile, comentou declarações de Vic, queixando-se da má vontade do atual ocupante da Presidência em atacar o quartel do II RCC, no qual, de novo se refugiara Carranzas com propósitos sediciosos. Muitos achavam que Morelos, receando ser abandonado pela oposição, estivesse cortejando o antecessor, considerado fora do páreo, mas que na hora da batalha contra a "Pátria sem donos", tida por inevitável, poderia desequilibrar as forças a seu favor.

*

Encerrado o desfile, com a praça da Independência lotada, começaram os discursos. Surgiram críticas contra o atual presidente, acusado de jogo dúbio com seu antecessor. Vic ia fundo, denunciando sua política continuista, daí porque, ele já não falava das promessas de levar Carranzas a julgamento pela morte de Juana e Ventura.

"Em poucos dias nossas esperanças desabaram!" - queixou-se a ex-ministra do Interior. Numa época de saudável preocupação com os direitos do homem, dezenas dos nossos foram assassinados, enquanto o chefe dos assassinos continua impune. Meu filho, adolescente ainda, um exemplo para a juventude atual, foi jogado para a morte, do alto de um prédio, num dia de manifestações contra a mesma confraria que só mudou o modo de agir, trocando ação, por omissão.

Um homem como Ventura foi despachado para a morte na ilha dos Sapos, porque o tirano jamais deixaria de considerar traidor um dos seus que tivesse trocado a corrupção por uma vida limpa."

*

Juana ouvia com atenção o discurso de Vic: "Companheiros, homens e mulheres! Todas as injustiças vindas de épocas em que só os homens podiam falar, estão sendo desfeitas por mulheres iguais a Juana de Deus Inatto - a legendária "Comandante Zada" - de cuja disposição para a luta, nasceu o "Batalhão das Rosas", hoje, "Batalhão Juana de Deus", prova de coragem, símbolo da presença feminina em um setor até agora reservado aos homens.

Dizem que está desaparecida, mentira, foi assassinada, apesar de todos os eufemismos usados para encobrir o crime. Taraguenhos não estaremos, por comodismo, nos acumpliciando com os assassinos? Aquele que prometia punir os culpados, hoje fecha os olhos à atividade sediciosa do maior de todos, contando com a ajuda que dele possa receber no futuro."

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No terraço do edifício da Presidência a movimentação de helicópteros levando e trazendo autoridades era grande.

"A nação passa por delicado momento de sua vida institucional - continuou Vic - pois aquele que, recostado na cadeira presidencial, nos ouve, sucede por caminhos tortuosos a alguém que nunca passou de impostor."

Morelos surgiu no balcão. Em menos de um minuto, o auto-proclamado chefe da Nação, condenou o que chamava de críticas apressadas e, com sua má dicção, leu um documento ameaçando renunciar. Não fez alusão à inexistência de um sucessor designado, como se a perspectiva de um país desgovernado fosse irrelevante. Afugentado pelas vaias, abandonou o balcão tão rapidamente quanto havia entrado.

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Retomando seu discurso, Vic afirmou: "Esta ameaça demonstra que de seu autor, nada se pode esperar, pois, diante das críticas, em vez de se defender, tenta chantagear. Esqueçamos esta contrafação de homem e indiquemos com urgência alguém apto a dirigir um governo capaz de, no mínimo prazo possível, nos dar, ainda que atropelando esta discutível autonomia de poderes, uma legislação que venha produzir legítimas representações. Atentemos para isso: "Nossos males decorrem da má qualidade das representações, destinadas, desde suas origens a serem más. Os bem intencionados, em número insignificante, nascem da sorte e são logo marginalizados pela maioria de aproveitadores. O povo está condenado a escolher o joio em vez do trigo, porque assim exige o corporativismo daqueles que falsamente o representam.", prosseguiu.

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"Acredito - continuou - que o general Máximo Iriarte possa realizar essa tarefa indispensável à moralização do país, ele que, ao longo dos anos, mesmo diante de nossa apatia, nunca deixou de repetir: "É preciso purificar as fontes de onde surgem as representações, do contrário, nossos representantes continuarão produzindo leis à sua imagem, viciadas desde o início. É preciso que abandonem a doentia preocupação com a própria segurança, através de práticas que levam inexoravelmente à impunidade! Se o homem comum vive ameaçado por todos os lados, mal podendo contar com um arremedo de leis, por que outros - os de cima - tendo por si as instituições, correndo riscos muito menores; por que esses, para o cumprimento de seus deveres, exigem garantias tais que, depois de concedidas, justas ou injustas, ninguém será capaz de tirá-las. Por que reivindicam tanta segurança para o exercício de atribuições pacíficas, enquanto outros são empurrados para as guerras, sem que possamos garantir suas vidas realmente ameaçadas?!"

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A melhor arma do representante não deveria ser a fidelidade aos compromissos da representação? Esta incessante busca de garantias para o representante não significaria que ele se transformou em servidor de si mesmo, temeroso da vingança de seus supostos representados? Tal inversão não indicaria - perguntou Vic, repetindo Iriarte - a insatisfação dos representados com seu representante, a ponto de que ele em vez de colocar suas armas a serviço deles, sentindo-se ameaçado por eles, só se preocupa em acumular novos meios de se defender deles?

Sem livrar a fonte das representações, da sujeira que de lá se expande para tudo o mais, a defesa da moralidade continuará sendo exibição de ignorância, leviandade, ou má fé!", Vic, outra vez, repetia Iriarte.

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De dentro da micronave, observando Juana, ensimesmada, a contemplar do alto, San Miguel, palco de muitas de suas façanhas, podia imaginar o que faria ela nas próximas horas. Esqueceria o nome, a fama, a morte anunciada, para lutar, anonimamente, mas lutar.

Depois de um choque entre Polícia e manifestantes na rua do Gasômetro, vários helicópteros passaram a sobrevoar o centro velho da cidade, iniciando o que nos pareceu uma "guerra de nervos", mas que logo se revelaria trabalho de despistamento.

Enquanto cinco deles tentavam pousar nas imediações, um realmente pousou num terraço a poucos metros de nós, desembarcando vinte fuzileiros navais que se reuniram em torno de metralhadoras apontadas contra a multidão.

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Marlow, preocupado com Juana, perdida em devaneios, consultou a nave-mãe que prorrogou o prazo da volta e, para surpresa nossa, exigiu que recolhêssemos provas de eventuais derramamentos de sangue, destinadas a ilustrar um relatório sobre a violência na Terra.

Uma velha preocupação, rara entre os que se dedicam à luta pelo poder, gerava mal entendidos entre Juana e os mais íntimos. Ela tudo fazia para nos afastar do perigo. Custei para descobrir as razões. No meu caso entendia ser injusto que eu, inimigo da violência, descrente de sua eficácia, a seguisse por dever de pai. No caso de Marlow, queria evitar conflitos entre ele e seus chefes, sobre os quais ela, até bem pouco tempo, não sabia nada.

Como se tivesse acordado de um sono, tendo decidido o que fazer, ela informou a Marlow que estava pronta para viajar com ele, fosse para onde fosse, mas gostaria de sobrevoar o centro da cidade por razões sentimentais, na verdade, para localizar zonas de perigo. Queria também despedir-se dos amigos e parentes sepultados no monte Pessino.

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A baixa altura a micronave sobrevoou a sede do Governo, o porto, a praça da Aldeia em frente ao quartel do II RCC, os terraços convertidos em ninhos de metralhadoras e grandes depósitos de munições, adquirindo uma clara visão dos riscos. (O helicóptero da Presidência, mantinha-se no heliporto, pronto para a fuga.)

Cinco RA-66, voando à nossa frente, desembarcaram no pátio do III RCC, vinte homens cada um e farto material bélico.

A perspectiva de um massacre na praça da Aldeia tornara-se previsível e Juana, tendo feito a escolha, queria o apoio do companheiro, sem envolvê-lo diretamente em sua luta. (Parecia ansiosa para guerrear sozinha.)

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Depois de concluir pela ausência de tropas do governo no monte Pessino, Marlow aterrissou numa clareira junto ao túmulo de Jonas II, em cujas imediações havia indícios de violação.

A Justiça manifestara-se pela exumação de Ventura, feita sigilosamente. Não havia motivos para segredos, mas, diante dos interesses, políticos ou não, quem é capaz de saber o que vai pela cabeça das autoridades?

Logo que Juana saiu atrás de ferramentas para escavar, um RA-66, fortemente armado, baixou na mesma clareira. Seus ocupantes, gente da Aviação Militar, pareciam desconfiados de alguma anormalidade. Um segundo helicóptero, bem menor, tipo RA-29, desarmado, desceu em seguida. Dele saíram dois civis de avental branco e dois de macacão azul, carregando pás. Em minutos, escavaram a sepultura, confirmando o desaparecimento dos corpos. As tripulações confabulavam junto de seus aparelhos, muito próximas de nós, à espera de alguma coisa.

A preocupação com a demora de Juana, cessou quando a vimos, da beira da mata, como um tigre, saltar contra o piloto do RA-29, apertando-lhe por trás o pescoço com tanta força que ele desmaiou, derreando-se no chão. Tendo na mão direita uma pistola "Bugres-35" ela ameaçava a cabeça do outro piloto tão convincentemente que só lhe restou obedecer.

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O capitão Rigoberto Flores (Rigo), mesmo inconformado, subiu as escadas, ajeitou-se diante do painel e, obedecendo ordens, acionou os motores de seu RA-66, decolando de qualquer jeito. Juana levava às costas uma sacola com 30k de explosivos que deixou no chão do aparelho ao alcance das mãos.

Só percebemos o sequestro quando, ela, com uma granada, explodiu o helicóptero menor.

Apesar de sua extraordinária capacidade de liderança, poucos acreditavam pudesse Juana chegar a alguma alta posição de mando. Esquecia, quase sempre, o jogo da Política para manter a dignidade.

Depois das humilhações na ilha dos Sapos, o ódio contra a ditadura virou ódio pessoal a Carranzas, estivesse ele no poder ou tentando reconquistá-lo.

Havia entre os dois, mais do que simples questão política; havia hostilidade pessoal alimentada por temperamentos irredutíveis, que só a morte de um deles, encerraria. Ela jurava - dando armas a seus inimigos - que jamais trocaria seu projeto de vingança, por qualquer conveniência, nem mesmo da revolução.

Faria com que o acerto de contas inevitável, funcionasse também como atrativo no caminho de algo maior, socialmente, aceitável. Tampouco esqueceria os torturadores, pois, mesmo quando a viagem a Xad se mostrava como luminosa aventura, a idéia de deixá-los impunes parecia-lhe insuportável.

Temia que muitos tivessem escapado, favorecidos pela inexperiência dos nossos e mais do que nunca gostaria de levar à prática o princípio da "violência dirigida", aplicada gradativamente contra os responsáveis pelos crimes, na proporção da culpa. Receava que, mesmo entre revolucionários, os comodistas, temendo o caos, terminassem aceitando a violência convencional, a matança generalizada, envolvendo grandes e pequenos, culpados e inocentes, caminho certo para a ditadura.

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O RA-66, sob suas ordens, rumou para a ilha dos Sapos onde o inimigo deveria estar em guarda. Sabíamos de sua firme disposição e decidimos protegê-la. 50m3 de "Gastop" (gás paralizante) tinham sido espalhados sobre a pequena extensão de terra pela "Esquadrilha Especial de Emergência", cujas unidades, mantinham-se alertas, desde que a possibilidade de uma vingança sinalizada pelos últimos acontecimentos, começou a delinear-se. (O gás fora regulado para tontear em quinze segundos, cessando os efeitos duas horas depois.)

Acompanhando Juana de muito perto, sugerimos que descesse na ilha do França, onde, no interior de um farol, estavam à sua disposição armas leves, mas, poderosas. Ela, porém, reagiu reticentemente, tomando outro rumo. Só descansaria depois de punir seus algozes, valendo-se dos próprios métodos.

"O que fazer com Juana?", nós nos perguntávamos, sem vislumbrar resposta. Ela, como descendente de xadas estava sob nossa proteção, mas, por isto mesmo, sujeita ao rigor com que entre nós se pune a indisciplina. Consultamos as Bermudas, embora receando que de longe fosse cômodo optar pela punição. Porém, os de cima pareciam tão confusos quanto nós. Sugeriram que a deixássemos à vontade, sem descuidarmos de sua proteção.

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O RA-66 pilotado por Rigo, contornou a ilha dos Sapos, ignorou a ilha do França, atravessou a baía, e, de luzes apagadas, sobrevoou o Palácio Presidencial de La Trilha, prosseguindo na direção do quartel do II RCC, tendo-nos em seu rastro. Finalmente, voltou à ilha dos Sapos, imobilizando-se 200m acima do único prédio que escapou à fúria dos nossos.

Preocupado, Marlow colocou o casal sob a mira de sua "Uni-L" (Lanterna capaz de iluminar sem se mostrar.)

Era uma noite de céu azul salpicado de estrelas. Podíamos ver os dois como se estivessem a nosso lado. O L2Tv difundia suas vozes e só então compreendi o sofrimento de Marlow. Falavam como bons amigos, tocados pela esperança.

De repente, virando-se para trás, Juana apanhou uma bomba, apertou-a contra o peito por alguns segundos, soltando-a sobre o alvo, enquanto o piloto arrancava com força. "Tem mais!", disse para o companheiro que lhe garantia: "De longe é melhor!"

Houve um estrondo e um incêndio. A operação repetiu-se três vezes. Estava eufórica, porém, só o mistério que envolvia aquele funesto pedaço de terra, evitou que ficasse decepcionada. Não havia o que vingar. A "Sala dos Machões" fora destruída durante a incursão feita para resgatá-la da enfermaria. O que escapou das bombas tinha sofrido abalos, ficando no abandono. Se lhe tivessem exibido o fruto de seu ódio, teria sofrido, pois já não havia naquele sítio outrora povoado por carrascos, um único torturador.

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Enquanto ela se deliciava com a vingança, ignorando seus pífios resultados, nós nos adiantamos no rumo da ilha do França, para recolher as armas e munições rejeitadas. Estávamos para decolar, quando seu helicóptero pousou a 100m da micronave. Ela e o capitão carregavam à cintura, cada um, uma pistola. Tomaram a direção do farol, quem sabe, para recolher o material antes rejeitado. Retornando de mãos vazias, estavam tão presos a seus assuntos, que não deram pela súbita aparição de três bombardeiros leves XL-3 que, voando baixo, destruíram o helicóptero, deixando-os isolados naquela minúscula ilha raramente visitada.

Certos de que, por enquanto, nada tinham para fazer, Juana e Rigo puseram-se a caminhar, observados por nós que podíamos ver, à luz da lua, seus rostos iluminados, a fala coloquial, vez ou outra, um esbarrãozinho, seguido de cúmplices olhares. Naquele ambiente propício, ele era ansiedade e volúpia, enquanto ela guardava distância, não porque lhe fosse indiferente, mas por receio de magoar o ex-companheiro, entregando-se a outro, apressadamente.

Esperava que Marlow não tivesse o amor como simples relação de posse, na qual o homem, acostumado à idéia de superioridade, fosse incapaz de ver na mulher uma criatura com direitos iguais aos dele.

No íntimo tinha queixas dele, mas, queixas das quais ele não tinha culpa e contra as quais nada podia fazer, eram coisas da vida.

Sofria com a presença de alguém que, sem o querer, assumia a posição de quem tudo pode, enquanto a ela só restava admirar, sem entender, a tecnologia do super-homem que a rebaixava aos tempos do arco e da flecha.

Ficara decepcionada ao saber que tudo o que florescia entre eles vinha das segundas intenções, pois, o que ele queria mesmo era por as mãos em mim, seu pai.

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Abandonando a posição de cócoras, ela ergueu-se do chão para sentar à direita do capitão que, fadigado e sonolento, logo iria adormecer, sonhando talvez com os sucessos do dia. Vendo-o aninhar-se entre suas pernas, com a nuca apoiada em seu ventre, ela, depois de desapertar os cintos, seu e dele, acariciou-lhe os cabelos aparados ao estilo dos quartéis.

Certa de que a observávamos, deixou a 100m de onde estava, um bilhete para o ex-amado sem lhe fechar as portas:

"Fred! Venho de outros tempos; sou mulher primitiva que o amor pôs em teus braços de iluminado. Tua ascendência fere meu orgulho. Melhor a igualdade com os meus!" Para mim ela escreveu: "Pai! A viagem ao planeta Xad perdeu os encantos. Amo esse chão rude, mas caloroso. Melhor viver aqui! Nunca esquecerei dos tempos em que o mundo era meu e teu, em Vista Hermosa, sem ninguém entre nós!"

*

Juana permanecia fiel a seus valores, dois dos quais, eram inegociáveis. Preferia perdê-los por inteiro a tê-los sob limites. Haveria de conservar até o fim o orgulho, pois ele é que lhe dava ânimo para lutar. Jamais aceitaria pagar resgate por sua vida, porque não queria transformá-la em objeto de chantagens.

A crença numa tarefa a cumprir dava-lhe esperanças de que logo encontrariam um meio de deixar a ilha, vencendo aquele pequeno incômodo. Enquanto isto, viveriam do que pudessem extrair do solo árido. Disto falou ao companheiro posto em alerta pela aproximação de três RA-66.

Recuaram para uma caverna próxima, de onde acompanharam o desembarque de cinquenta homens da Aviação Militar, distribuídos pelos três aparelhos, cada um comandado por um coronel, todos liderados pelo brigadeiro Adelmo Buzza, um dissidente histórico.

Pareciam governistas e eu teria atirado contra eles, se Marlow, mais atento, não tivesse observado que entre eles havia coronéis, tenentes, até sargentos que se tratavam com uma camaradagem rara entre militares tradicionais. "Jonas! Esse tratamento é novidade! Estão unidos por uma idéia. São da ‘Pátria sem donos’!"

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Buzza e seus oficiais reuniram-se bem próximos de nós. Procuravam alguém. Ele e um coronel que gesticulava muito, tomaram o rumo da caverna, seguidos de dois outros coronéis que se mantinham à distância. O resto da tropa espalhou-se pela ilha.

Junto à gruta, o brigadeiro gritou um nome e em seguida o capitão Rigoberto surgiu à porta, puxando pelas mãos uma dama. Enquanto ela, um pouco afastada, era acolhida como simples guerrilheira, nada diferente de outras, ele recebia honras de herói, parecendo que todas as vitórias daquele dia eram dele.

Tínhamos informações de que era membro ativo da "Pátria sem donos" com uma folha de serviços invejável. O entusiasmo dos companheiros fez dele, na prática, o comandante do grupo, embora sua patente fosse inferior à de muitos outros ali.

Constrangido pelos méritos que não lhe eram devidos, o capitão decidiu revelar o que de fato acontecera durante aquela jornada, conduzida pela "Comandante Júlia", cujo sucesso iria colocar Taraga nas telas do mundo por vários dias.

Pouco inclinada às exibições, ela só falou de seus feitos, porque, se não falasse, o companheiro falaria. Detestava a troca de nomes. Era, porém, o resultado de uma farsa obrigatória, pois ninguém acreditaria que ela - Juana de Deus Inatto, a "Comandante Zada" - fora transportada inconsciente da ilha dos Sapos para uma espaçonave a poucas milhas das Bermudas, em cuja enfermaria, médicos "ETs" lhe salvaram a vida. "Loucura!" diriam todos, embora tivesse acontecido exatamente assim. Sem poder revelar a verdade inacreditável, ela decidiu fantasiar a vida.

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Eis a sua história: agonizava na ilha dos Sapos, quando, de repente, caiu uma tempestade tão violenta que as águas inundaram o quarto, cobrindo sua cama, deixando-a só com a cabeça de fora.

Um Fuzileiro Naval, mestiço forte, que a vigiava por ordens superiores, carregou-a nos ombros até as terras altas. Quando a chuva cessou, ela, sem entender o que à sua volta acontecia, foi levada para um barco, do qual o militar a tirou, depois de remar horas e horas. Deixou-a numa praia deserta do monte Pessino, aos cuidados de pescadores que, tratando-a com remédios caseiros, ergueram-na em poucos dias.

Era difícil avançar por encostas íngremes, entre cipós, sem referências pelas quais se orientar. Já estava enjoada de caça miúda, folhas e frutas, quando chegou aos sítios conhecidos de outrora, onde, num abandonado depósito, conhecido de poucos, conseguiu um rádio de pilha, do qual necessitava mais que de comida. Graças a ele podia acompanhar o que se passava no mundo e reconstituir o que sucedera em sua ausência.

Lembrou-se do discurso de Vic e do que dizia o general Iriarte sobre a má qualidade das representações. Ali, no meio da mata, mal podendo manter-se de pé, ela a si mesma prometeu que só voltaria à vida comum, depois que o país se armasse de uma legislação capaz de impedir que os pseudo representantes do povo, os donos de cargos públicos e seus cúmplices do lado de fora, continuassem a fazer da confiança que é preciso depositar neles, um meio fácil de aumentar seu abusivo poder, voltado contra a maioria de indefesos.

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Pensava no que fazer quando deparou com o capitão Rigoberto preparando o pouso numa clareira. "A idéia do sequestro veio na hora!" - disse ela, desculpando-se com Rigo, diante do qual se achava constrangida por haver iniciado com ele, uma relação tumultuada, que logo se tornaria afetiva.

A vocação de líder prevalecia sobre aqueles homens que haviam passado anos e anos nas escolas aprendendo a liderar. Ela se impunha tão naturalmente a eles, que todos pareciam ansiosos por suas ordens.

Tinha consciência de seu inato poder. Já o experimentara na batalha pela posse do Dr. Pousadas, ameaçada pelos militares e que só aconteceu graças à combatividade dos estudantes liderados por ela. Exercitara-o, mais tarde, quando levou as colegas da Universidade à luta contra a ditadura, formando o "Batalhão das Rosas".

Era uma líder potencial e apesar da origem humilde, acreditava-se destinada a uma importante missão. Convencera-se de que uma liderança potencial se efetiva sempre que homens em estado de dispersão sintam necessidade de quem lhes dê forças para realizar com outros, coisas acima de sua capacidade individual.

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Acompanhávamos o relato dos acontecimentos daquele dia, feito por Juana aos oficiais da "Pátria sem donos", junto à entrada da caverna, certos de que ela partiria logo para ações de envergadura, pois não era de ficar parada. A seu lado quase nada podíamos fazer. Eram suas as iniciativas e como tivéssemos recebido ordens para seguí-la passo a passo, ficávamos amarrados às suas decisões. Às vezes tentávamos discipliná-la, mas não íamos além das intenções.

Marlow se impacientava: "Desculpa Jonas! Tua filha perdeu o juízo! Que se dane, ela e o capitãozinho!"

Apesar de nossa superioridade material, acabávamos cedendo, numa confirmação de que os individualistas ganham sempre, porque enquanto seus concorrentes perdem tempo, buscando conciliar, eles vão em frente.

As ondas do mar atingiam a entrada da caverna, molhando os que lá estavam. A convite de Rigo, os recém-chegados dirigiram-se a uma ampla sala, onde, assentados em torno de uma grande mesa retangular, à luz de lampiões, passaram a tratar do bombardeio do Arsenal da Marinha, projeto com o qual Juana concordava só porque, o importante, era precipitar a ação.

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Enquanto discutiam, uma formação aérea integrada por unidades das três armas alcançou a ilha, surpreendendo os homens do brigadeiro Buzza, espalhados pelos quatro cantos. Era composta de dez helicópteros (cinco RA-66 e cinco RA-29) e três bombardeiros leves XL-3 que se mantinham no ar, sobrevoando a ilha prontos para qualquer emergência. Levados para junto de seus aparelhos, os integrantes da "Pátria sem donos", tiveram suas armas atiradas ao mar. (Um esboço de resistência foi debelado a tiros, deixando vinte feridos e três mortos.)

Logo os RA-66 desembarcavam dezenas de oficiais superiores da Marinha de Guerra, liderados pelo truculento almirante Lincoln de Tarso, chefe da Aviação Naval, inimigo radical da "Pátria sem donos", odiando raivosamente o Capitão Rigoberto contra quem viera cumprir ordem de prisão por indisciplina. Metade da tropa cercou os homens do brigadeiro Buzza, enquanto a outra metade rumava para a caverna, sob as ordens do almirante que, munido de um megafone, exigia a rendição de Rigo, do contrário explodiria a gruta.

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"Jonas! Por que nos prendermos ao que Juana quer ou não quer?!", desabafou Marlow, receoso de que Rigo, influenciado por ela, resistisse, causando a morte de todos. Antes que pudesse manifestar-me, ele, sorrindo com malícia, mirou o rosto do almirante Tarso, alvejando-o com uma carga de "Jet Pale", um raio capaz de reduzir por meia hora, ao mínimo, os movimentos externos visíveis do corpo, inclusive, dos olhos. Lá ficou o almirante, imobilizado, pálido como cadáver. (Tramento igual tiveram os demais.) at/

Estranhando o silêncio, surgiram à entrada da gruta, Juana, o capitão Rigo, o almirante Buzza e os coronéis da "Pátria sem donos", intrigados com toda aquela gente atacada de doentia palidez, totalmente imóvel.

"Ah! ah! Eu sabia!!", murmurou Juana, que, numa ação rápida, desarmou o almirante, ordenando aos companheiros que fizessem o mesmo com os demais. Foram trancafiados na caverna, cuja saída ela bloqueou com enormes pedras.

"Acabo fazendo o que ela quer!", queixou-se Marlow.

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Prestigiada como líder do grupo, Juana ordenou a perseguição aos 3 bombardeiros XL-3 que prosseguiam no ar por ordens do almirante Tarso. Eles, porém, aderiram à sua liderança.

Comandando um bom número de aparelhos, tripulados por homens experientes, Juana se julgou capacitada a tirar a crise taraguenha de seu ponto morto, levando a incipiente revolta popular a espraiar-se num movimento de massas, cuja liderança o general Iriarte teria que assumir.

Porém, mal haviam deixado a ilha, surgiram outros três XL-3, seguidos de cinco CH-01, caças velocíssimos, contra os quais pouco poderia fazer o recém-formado grupo, com seu armamento convencional.

Marlow sentiu-se vingado diante da ex-amada. Se não tivesse desorientado os atacantes com os raios "Ultra-S", de sua micronave, a "Força Aérea" de Juana teria virado sucata. Não sobrou nada dos aparelhos inimigos. Espatifaram-se de encontro à montanha ou seguiram em frente, caindo ao esgotar o combustível.

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Dos contatos entre o brigadeiro Buzza e o comando da I Zona Aérea, dominada pela "Pátria sem donos", resultou a ordem para que a frota se concentrasse no terminal de Taramela, para uma inspeção antes do ataque ao II RCC que se tornara prioritário, depois que Juana convencera os coronéis a desistirem do bombardeio contra o Arsenal da Marinha.

Quando, antes do pouso, ela soube que ficaria duas horas em terra, preparando-se para o combate, mesmo não entendendo de aviação, nem da rotina militar, achou que era demais. Desconfiou que sabotavam sua liderança, porque, além de não possuir cursos de comando, era mulher. Estranhou que o brigadeiro tivesse ido falar com os altos oficiais sem lhe dar satisfação, ele que até então, se esmerava no papel de subordinado. A falta de explicações, provocou entre os dois, acirrada discussão.

Dotada de rara capacidade para descobrir o que as palavras pretendem esconder, Juana se convenceu de que o objetivo real da reunião dos oficiais superiores da CAT-M, em sua maioria, filiados à "Pátria sem Donos", mas, presos, no dia a dia, à hierarquia tradicional, era livrar-se de gente igual a Rigo, um capitão liderando coronéis e ela, uma simples mulher, impondo-se a brigadeiros.

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A frota sob seu comando rumava para o II RCC, quando o brigadeiro Buzza ordenou o retorno ao CAT-M, para novas instruções. Considerando-se desautorizada, ela, de novo, exigiu explicações. O oficial, porém, voltou à velha cantilena de que ordens são dadas para cumprir, insistindo na volta, contrariando a "hierarquia do mérito" defendida pela "Pátria sem donos", à qual todos ali pertenciam. Prestigiando, sem constrangimento, a velha tradição, frisando bem que era ele o comandante, Buzza recolheu-se a um improvisado gabinete, fechando a porta.

Juana examinava aqueles homens, oficialmente corajosos, agora trêmulos diante dela. Sabia que o medo produz no cérebro ameaças inexistentes e que, tentando fugir aos riscos normais, suas vítimas se precipitam, gerando males que um pouco de coragem evitaria.

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Receava que lhe retirassem as armas para levá-la indefesa a uma prisão qualquer, pois era uma simples mulher, lutando contra instituições poderosas. Estava decepcionada com a frivolidade de homens como o brigadeiro Buzza, tido como bom caráter, liderança exemplar, mas que, em relação a ela, passara em poucas horas, de um servilismo degradante ao jogo sujo dos incompetentes.

Observava o piloto discretamente; encarava com desprezo os coronéis assentados à sua frente, enquanto seguia a movimentação do brigadeiro na "Sala de Comando".

Vendo-o assomar à porta para convocar um dos coronéis, achou que havia chegado a hora. Quando o auxiliar ficou frente a frente com o chefe, que, de dentro lhe abria a porta, ela se jogou contra os dois, atirando-os ao chão, um sobre o outro, privando-os das armas.

Ao deixar a sala, foi recebida pelo segundo coronel, de revolver engatilhado. Mas, o homem tremia tanto que ela o deixou de lado, indo antes ao piloto, tirando-lhe a pistola do coldre, pois não queria brigas com ele. Decidida a encerrar a questão, enfrentou, de novo, o trêmulo oficial, tomando-lhe a arma, sem a menor reação. O terceiro coronel nem se levantou. (Havia gente demais no chão.)

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Rigoberto não se conformava com a derrota de tantos homens por uma única mulher, embora tivesse, ele próprio, recebido provas de sua força excepcional e de sua determinação, usadas para sequestrá-lo. Não querendo deslustrar sua imagem de lutador, preferia valorizar a de Juana, embora continuasse a ver naqueles incapazes, mediocridades dignas da planície onde seguramente estariam, não houvessem os favores institucionais os transformado em guerreiros diplomados, que só pela autoridade, nem sempre legítima, se impõem.

Senhora, outra vez, do comando, Juana ordenou o retorno da frota à base. "Nós continuaremos!", disse ao piloto. Não sabia como se desfazer dos quatro inúteis, deixados no chão, de mãos atadas às costas. Pensou mantê-los exatamente como estavam para que todos pudessem constatar o resultado da bazófia contra quem não se deixa intimidar.

De longe percebeu soldados embalados vindos em sua direção e, para evitar choques desnecessários, ordenou ao piloto que seguisse para a ilha do França onde os empurraria escada abaixo como sacos de batatas.

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Atordoado pela rapidez dos acontecimentos, Rigo estava sem ação, quando ela o tirou de sua indecisão. "Preciso de um piloto", disse, devolvendo-lhe a arma. Os olhos dele se iluminaram. Achava que homem e mulher, o que fizessem juntos, teria de ser legitimado pelo amor, a começar pelo amor físico. Mas, para ela, o momento tinha outro significado. Havia chegado a hora da grande vingança. O amor podia esperar. Rigo entendeu que as ligações afetivas estavam contidas, porém, mantinha as esperanças. Era feliz, porque mesmo sendo um aventureiro, jamais vivera tão intensamente.

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A relutância do general Iriarte em atacar o II RCC, preocupava as pessoas acostumadas às incertezas da política. Muitos receavam que o ex-ditador, homem de reconhecida habilidade no trato com os militares, estivesse marcando pontos ao criticar a política de contentar gregos e troianos empreendida pelo governo Morelos, política da qual ele próprio fora um mestre e que resultava em benefícios para as minorias reivindicantes, como só elas podem ser e pesados encargos para as maiorias, as quais, por culpa de sua natural passividade, estão sempre condenadas a pagar a conta, através de novos impostos.

A participação das mulheres nas Forças Armadas; a concessão do nome de "Juana de Deus Inatto" ao antigo "Batalhão das Rosas" que ainda recentemente desafiava o militarismo tradicional no monte Pessino, causavam mal estar nos quartéis, beneficiando-o. Muitos que se alegraram com a sua derrubada, agora criticavam a fraqueza do novo governo e, de cima do muro, pendiam mais para sua bandeira verde do que para o vermelho promíscuo do pavilhão de Morelos.

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Iriarte explicava sua negativa de usar a força antes de esgotar todas as possibilidades: "A solução de força não atende aos que produzem, patrões ou empregados. Atende às minorias de ativistas. Através da violência elas é que mandam, sejam quais forem os sistemas, direita, esquerda, tanto faz. É da natureza do homem que assim seja, pois as maiorias constituem o corpo social, desarticulado, sempre à espera de condução pelo cérebro (a minoria), muito mais ágil."

Usaria a força, em último caso, apenas para evitar a passividade; para não se tornar refém dos violentos. Ainda assim achava perigoso tal recurso, pois, existe sempre o risco de acontecer com esse "em último caso" o que acontece, frequentemente, com as pessoas violentas munidas de autoridade que, por seus abusos, transformaram a "legítima defesa" numa exibição de covardia moral e física, matando a esmo para evitar aquele mínimo de risco inerente a certas profissões.

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Recusava as insinuações de que era demasiado cauteloso no agir, cautela que muitos interpretavam como fraqueza. Respondendo aos maledicentes, ele dizia: "A impaciência não deve estar presente na vida de um soldado. Não serei impaciente, nem irresponsável, muito menos, fraco. Enquanto vivermos a Idade da Força, o derramamento de sangue, apesar de repulsivo, continuará sendo uma possibilidade do dia a dia de um militar. É a sina do soldado. Porém, o homem, civil ou militar, não seria a criatura inteligente que é, se continuasse insensível à diretriz do mundo, que desde o início, lenta, mas, firmemente, aponta para o fim da violência. A Idade da Força caminha para seu esgotamento, embora, a passos tão curtos, que seria temerário dar-lhe um basta do dia para a noite. Orgulho-me de minha oposição a qualquer banho de sangue, mas, se, realmente, não houver alternativa, recorrerei a ele, como concessão ao animal ainda presente em nós. Na hora certa, estarei à prova, serenamente!"

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Graças à poderosa "Uni-L" de Marlow, podia observar Juana sobrevoando uma fila de navios aguardando ordens para atracar no porto sempre congestionado.

Enquanto Rigo se excitava na antevisão de uma batalha memorável, ela se perdia nas sombras de sua existência. De uma hora para outra o mundo lhe pareceu absurdo e ela se perguntava qual a razão de sua luta? Já não se lembrava da mãe tão cedo falecida. Desde que se fez adulta, deixei de ser para ela aquele pai sempre presente, pronto a lhe dar forças. Tornei-me um enigma. Sua linhagem, inscrita na Cédula de Identidade, era falsa. Os avós saíram da cabeça do pastor Banes. Perdera, talvez por sua culpa, o único irmão e o único filho. Não conhecera um só tio, um só primo. Marlow tinha sido um sol em sua vida, um sol agora ausente, também por culpa sua. Lamentava o orgulho que se pusera entre eles; estava arrependida de ter, para contrariá-lo, fraquejado diante de um jovem capitão, mais que tudo aventureiro.

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Os intermitentes disparos vindos dos altos do Palácio de La Trilha despertaram-na. Mergulhada em seu passado infeliz, deixara que o piloto, atraído pelos riscos, se aproximasse demais.

O armamento existente no helicóptero dava para uma boa briga. O companheiro, esquivando-se das balas, contornou o edifício à altura do segundo andar - onde ficava o gabinete da Presidência - atirando janelas a dentro, várias bombas incendiárias, aterrorizando os guardas, finalmente afugentados pelas chamas.

A seguir o helicóptero esquadrinhou a praça, inteiramente lotada, identificando uma área livre onde deixou cair armas e munições logo recolhidas pelos mais exaltados, ansiosos para invadir a sede do Governo.

Quando sobrevoava o quartel do II RCC, soube que o Palácio da Presidência, tinha sido ocupado, depois de débil resistência. Morelos estava desaparecido.

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O general Iriarte entrou no ar para conclamar os "individualistas" a se juntarem a ele na luta contra a impostura. Para Juana que via no individualismo uma tendência positiva como instrumento de defesa da liberdade pessoal e negativa só quando favoreça a exploração do homem pelo homem; para Juana que assim pensava, Iriarte fora apressado ao condená-la. O ataque à Presidência nada tinha de individualista.

Acostumada a extrair do dia a dia, a indicação do que iria acontecer, ela concluíra que a indefinição do comandante rebelde; o falatório inútil da esquerda, tudo isso estava preocupando os moderados. Por culpa da burocracia que dificultava o acesso à entidade militar em formação, pomposamente intitulada de "Comando Supremo da Revolução", ela se viu obrigada a precipitar, por conta própria, os acontecimentos, embora parte dessa precipitação resultasse do ódio a esse mundo tão bem representado por Vitor Carranzas, cuja destruição pessoal, como paga de uma vingança a si mesma prometida, se apresentava qual lenitivo para a alma sofrida.

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De dentro da micronave, sobrevoando a cidade de San Miguel falei com Vic. "Que falta faz a Juana!", ela exclamou pesarosa. "Um fósforo nesse barril de pólvora, não precisava mais nada!", acrescentou, enigmática, ignorando que Iriarte - o homem de sua confiança - tentava comunicar-lhe que suas tropas já estavam nas ruas; sem saber que Juana, com um nome qualquer, depois de causar enormes danos à sede do Governo, sobrevoava o quartel do II RCC para um acerto de contas pessoal, no qual haveria de imprimir a marca do social.

Dizia-se frustrada com a violência, mas, contra Carranzas voltaria a ser tão brutal como nunca fora, imaginando castigos dos quais por antecipação se arrependia. Chegava a lamentar que ele já não estivesse no poder, pois derrubar Morelos não lhe parecia tão reconfortante quanto derrubar o responsável direto por tudo o que sofreu na ilha dos Sapos.

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Ignorando os apelos de Iriarte, Juana observava atentamente as defesas do II RCC, onde o ex-ditador, tentando virar os ventos a seu favor, também fazia apelos. Dirigia-se aos companheiros de farda, conclamando-os a reconduzi-lo ao poder como garantia da ordem pública para cuja manutenção, eles sim, os militares, é que vertiam sangue, embora a maioria das pessoas não fosse capaz de lhes conceder a aura de heróis da Pátria, por temor da minoria, que mesmo fora do poder, consegue aterrorizar os ignorantes, os fracos e os ricos de consciência pesada, arrogando-se a condição de dona da pátria, capaz de decretar quem é herói ou traidor.

"É preciso que nos sigam com suas armas, porque o caos trazido pelo inimigo já incendiou a sede do Governo e prossegue na sua faina de destruição, vertendo fogo pela boca de aparelhos roubados à Nação.", proclamava o eterno candidato a ditador.

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Decepcionado com a recepção, Carranzas, abandonava o palanque, sob vaias, quando o helicóptero de Juana passou ventando sobre os manifestantes, assustando as pessoas. Dava a impressão de que iria chocar-se contra o prédio de três andares que abriga o regimento, mas, depois de brusca manobra, subiu uns 50m, para em seguida, sobrevoar o telhado da frente para os fundos, deixando cair uma carga de dinamite que atravessou o forro, indo explodir na Sala do Comando, no último andar, causando um estrondo ouvido a quilômetros de distância e um incêndio cujas chamas destruíram o anexo para onde se dirigiu o ex-ditador depois de sua mal sucedida fala aos companheiros.

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Divisão entre oficiais, soldados à espera de ordens que não vinham, eis, o retrato de um exército tido como fiel ao déspota.

Caminhões transportando civis armados, aproximaram-se do quartel.

Da carroceria de um deles, valendo-se de poderoso alto-falante, um jovem barbudo conclamava os soldados a entregarem as armas, quando no topo da escadaria que leva da rua à entrada principal, surgiu Carranzas em pessoa, metralhadora à mão, trêmulo, uniforme chamuscado, o rosto coberto de queimaduras. Transtornado ordenou à tropa que desfizesse a concentração e ele próprio disparou contra os manifestantes, fazendo mortos e feridos.

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Da janela do helicóptero, também de metralhadora à vista, Juana atingiu o ditador, impelida por um ódio arrasador, como se naquele farrapo de homem, estivessem concentrados os males do mundo. As balas atravessaram-lhe o tórax produzindo furos de onde o sangue escorria, avermelhando o uniforme já enegrecido pela fumaça. Pondo-se de cócoras, ele, num último esforço, disparou contra o helicóptero ferindo Juana em um dos seios e o piloto com duas balas na cabeça.

Cessado o tiroteio, enquanto o ódio popular transformava Carranzas numa sangrenta pasta de carne, Rigoberto, tendo retirado Juana da zona de perigo, quis homenageá-la, pousando no monte Pessino, na mesma clareira onde se conheceram.

Porém, quase inconsciente, elevou-se muito acima da montanha, desmaiando mal havia tomado o rumo do mar. O helicóptero sobrevoou as árvores mais altas e já do outro lado, foi baixando, baixando até mergulhar nas águas profundas, a duas milhas da praia do Peixe.

Chegara ao fim um tempo de angústias e promessas.

Pescadores que presenciaram a queda, relatavam assombrados que mal o aparelho acabara de submergir, um corpo de mulher, libertando-se das ferragens, emergiu das águas como se algo invisível o puxasse para cima, tornando-se, ele próprio, invisível.

*

Cuidávamos de salvar Juana, atingida por uma bala que lhe traspassou o seio direito indo sair nas costas. Tendo reagido bem ao socorro médico, a seu pedido, voltamos à Capital para recolher as notícias que ela tanto esperava.

O sol dissipara a névoa que de manhã esconde o morro dos Frades, só deixando ver, toda iluminada, a gigantesca estátua de San Miguel, padroeiro da cidade, cujo olhar severo, voltado para o mar, desnorteava os piratas atraídos pela farra do ouro nos tempos coloniais.

Lá em baixo, milhares de operários, de cabeça erguida, retornavam às fábricas, atendendo ao apelo de Vic - outra vez ministra do Interior - para que voltassem às suas lides, numa demonstração de que a política dava lugar à necessidade de produzir.

*

Minha filha era ausência chorada nas comemorações da vitória para a qual concorrera com esforço inexcedível, mas não foi esquecida. Enquanto a retirávamos do mar, as multidões recordavam-lhe o nome glorioso entre manifestações de apreço popular que só criaturas iguais a ela podem inspirar.

Longe da vetusta San Miguel del Forte, abaixo da superfície do mar, Juana - a morta-viva - mais uma vez escapara da morte, buscando a vida. Ficou triste quando soube que o homem a quem dedicara um breve amor de circunstância, jamais poderia tê-la junto de si, lá onde vivia a vida eterna.

Gostava de ouvir Marlow dizer: "O amor não vem de geração expontânea! Sejamos nós os construtores do amor!"

Aprendera a lição! Lembraria sempre daquele com quem realizara sua mais bela aventura na Terra; daquele que talvez sonhe com ela nas profundezas do mar. Porém, com o estranho Marlow é que apreciaria reatar o grande amor de sua vida, ainda que tivesse de viajar com ele para muito longe.

***6


 
 

FIM






Pg. Inicial





"Esse crime desorganizado,
que, na sua desatinada expansão,
pipoca por aí, tornou-se
o iinimigo número um
das médias e pequenas empresas,
nossas maiores provedoras de empregos"

(A DESCOBERTA DA TERRA ***Parte6)




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