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A DESCOBERTA DA TERRA Avellar Toledo
PARTE3
CORRUPÇÃO: lei não escrita de aplicação efetiva;
Nossa mente, QUASE IGUAL à de uma lesma;
MESMAS FAÇANHAS, mesmas artimanhas;
TRAIDOR, só não é quem a tudo diz amém;
Razão, CRIAÇÃO DO HOMEM em sociedade.*
Antes de anunciar a morte do Presidente, o ministro da Defesa, gen. Viegas, isolou os edifícios do Congresso e da Presidência, sinalizando um golpe em andamento. O vice, Dr. Pousadas, temendo pela posse, reagiu freneticamente. Contava com o apoio de Vic, que só se dispôs a ajudá-lo em troca do ministério do Interior, até então, privativo dos militares.Logo ela mobilizava a CMT (Concentração das Mulheres Trabalhadoras), criada para combater a discriminação sexual, mas que, uma semana depois, já atuava como partido político. Mesmo detestando minha filha, que se tornara uma liderança estudantil respeitada, Vic convidou-a para uma aliança contra o golpe. Fiel à crença de que sem violência nada acontece, Juana e seus estudantes marcharam contra o edifício do Congresso, deixando nas ruas, marcas de um vandalismo consciente. Enquanto isso, milhares de operárias e senhoras da sociedade, lideradas por Vic, cercavam a Presidência, confinando a guarda palaciana entre forças hostis. Houve nervosismo quando, de uma só vez, apagaram-se as luzes do centro velho da cidade. Um lampejo aqui, outro ali, em minutos a praça do Congresso estava iluminada por tochas, lanternas, velas de todos os tipos. Logo todas as lâmpadas se acenderam e das ruas e dos prédios só se ouvia o clamor: "Pousadas ao poder! Tem que ser! Tem que ser!"
*
Vic assistiu à cerimônia de posse em casa, pela tevê, ressentida com aquele "comunistinha endinheirado" que sob pressão dos militares recusou falar com ela até pelo telefone.
Estava na cama do casal e só agora sentia a falta de um corpo junto ao seu.
O Dr. Pousadas surgiu na tela, enquadrado por cinco ministros fardados, entre eles, o do Interior, Vítor Carranzas, caçula dos generais taraguenhos.
Olhava com desprezo para o rival quando se perguntou: "Por que odiá-lo se cada um faz o próprio jogo?! Contra as mulheres são todos iguais, aqui, na China, em toda parte!" Sentiu-se encorajada. Acariciou os travesseiros, quem sabe, pensando em mim, que no quarto ao lado revivia em sonhos minhas tardes com Branca.
Contemplou a cama feita para dois, estendendo-se lânguida sobre ela. Desnudou-se, abraçou um dos travesseiros, tendo o outro entre as coxas, roçando o limiar do ventre. Seus olhos brilharam ao recordar nossos raros encontros dignos de lembranças. Banhou-se em água fria, na certa, para afugentar pensamentos indesejados.
Às seis horas estava de pé, pronta para a luta.
*
A violência dos partidários de Carranzas, agindo como únicos donos do poder, não deixava à oposição outro caminho que o da luta armada.
A guerrilha atuava no País há muito tempo, mas dividida entre facções hostis, orientadas de fora, ela nunca preocupara os militares.
Agora havia mudanças. Desde o início do governo Pousadas, segmentos expressivos da sociedade se dispunham a pegar em armas, preocupados com a passividade do Presidente que, prevenido contra seu ministro do Interior - um homem sabidamente ambicioso - não queria enxergar o perigo, argumentando que a oficialidade jovem garantiria a Constituição. Mas, veio o golpe e contra ele, a reação armada.
*
Pousadas estava num camburão, a caminho da prisão, quando onze mulheres encapuzadas, empunhando metralhadoras "Usat", invadiram os estúdios da tevê-N, vestidas de uniforme verde-petróleo e braçadeiras com as letras BR ("Batalhão das Rosas") em azul forte sobre campo amarelo.
Mal a chefe do grupo, Juana, a "Comandante Zada", em nome da recém-fundada UPT-FA (Unidade Popular de Taraga - Forças Armadas), iniciou a leitura de um manifesto, a Polícia chegou.
Enquanto cinco mulheres desciam à rua para conter os soldados, ela, de improviso, prosseguiu: "Saibam os autores deste golpe, que a violência não nos impedirá de denunciar sua contribuição para o caos que lhes serviu de pretexto para o retorno. Quem fez essa monstruosa dívida externa, tão mal aproveitada e ainda ousa culpar pelo descalabro de hoje, aqueles que gemem sob seu peso?
"Quem forrou o chão das onças com milhões de dólares cavados entre agiotas internacionais à custa de comissões imorais? Quem privilegiou as rodovias em prejuízo do transporte sobre as águas e os trilhos? Quem fez mais pela socialização inepta do que todos os "socialistas" juntos, enchendo o país de novas estatais? Que falem os que depois deles pretenderam modernizar o Estado e foram impedidos pela herança de casuísmos transformados em leis, direitos (mal) adquiridos, vantagens que eles, apesar de seus imensos poderes, não extirparam, por falta de coragem para acabar com privilégios dos quais alegremente participavam, só que protegidos pelo silêncio; garantidos pela brutalidade inerente às ditaduras. Taraguenhos! A vida sem dignidade não é vida! Nosso povo rejeita a desonra!"
Encerrado o discurso, o grupo, ameaçado por disparos vindos de todos os lados, fugiu pelos fundos, deixando como sinal de sua passagem, sangue rebelde espalhado pelo chão e nas paredes a inscrição: "Viva a UPT! Viva o "Batalhão das Rosas!"
*
Pela rua que vai do Presídio de Mulheres à praia, Juana corria em disparada, seguida de um moço que de longe a chamava pelo nome. Na primeira curva, três guardas compunham uma barreira de difícil travessia. Golpeando-os com violência, ela os deixou no chão atordoados. Só se ergueram depois de alguns segundos, quando ela já se embrenhara na espessa mata que recobre a margem urbana da baía.
Ao atingir a pedra de onde nadaria até o "Liberdade para todos", o pequeno barco flutuava entre dezenas de outros, diferentes só no destino, pois enquanto os demais navegavam pela sina de navegar, ele transportava para o porto da esperança, aquela que 300 jovens aguardavam para construírem uma vida digna de se viver.
*
Fortemente atraído por ela, seu jovem admirador tentou alcançá-la a nado, em vão. Ficou de longe, agradecido por seus acenos, vendo-a desaparecer no interior do barco. Era bonita, inteligente, mas, inexperiente. Nem a necessidade de proclamar a toda hora, sua inabalável certeza na "salvação pelo sangue" seria capaz de fazê-la desconfiar então, de tudo o que demasiado se proclama.
Pela última vez ela ouve o grito: "Juana, me espera!" Jamais esqueceria aquele moço que lhe infundira um sentimento forte, diferente de tudo que sentira antes pelos homens.
Prestes a fugir, em meio ao quebra-quebra que lhe deu a liberdade, ouviu que o chamavam de Marlow, um nome assim, jornalista americano. Viu quando ele, de propósito, numa saleta da prisão onde ela cumpria pena, jogou todo seu peso contra o único guarda que restara de pé, deixando-o no chão, atordoado.
Lembrava-se dele com frequência incômoda, pois a construção de um mundo aberto à felicidade geral era agora sua razão de viver.
Mal desembarcou e já pensava nele, preocupada. Temia estar desdenhando compromissos irrenunciáveis. Sorriu ante a lembrança de seu olhar ingênuo, cujo brilho talvez não visse nunca mais, porém que num instante devassara-lhe a alma desconfiada e (do que o amor é capaz!) lhe aplacara a sede de vingança. Chegara a sonhar com a volta a San Miguel de onde seguiriam para a terra ideal - o país em que a alegria de uns não viesse do sofrimento de outros.
*
Todos os dias, eu, de frente para o mar, olhava pesaroso o monte Pessino, em cujas matas minha filha, de armas na mão, lutava para nos impor suas reformas sociais, muitas das quais, inspiradas em idéias minhas ou do pastor Banes que eu fazia chegar a ela. Sofria, porque nunca imaginei um filho, muito menos, uma filha, tendo a violência como rotina de vida.
"Que fazer?" "Nada!", respondia, pois, além das dificuldades para ajudar quem se esconde, ela, depois da fuga, enviou-me um bilhete que até hoje me entristece: "Pai, a temperatura não é quente como eu queria, mas vai subir! O senhor, que embora limpo, aceita viver em meio à sujeira, não se considere obrigado a me ajudar só porque é meu pai. Não há entre nós, guerreiros da revolução, lugar para civilizados, pacifistas ou ‘ETs’ Beijos!" (Brincalhona, ela me tratava como um estranho, perdido entre os homens.)
*
Na ausência de Vic, passeando pela América, passei a noite com Branca. Acordei com um telefonema: "Vá à rua Capitão Tide, 902, no Engenho. É uma reunião de terroristas, rapazes e moças. Vão sair aos pares, às 18h. Tua filha corre perigo.
Às 17h e 50 estava lá. Meia hora e não saiu ninguém. Tirava informações na vizinhança, quando fui agarrado por homens que só depois se identificaram.
"O que faz aqui?", indagou o chefe.
"Queria ver minha filha!", respondi.
Era o Dr. Seixas, um Delegado de Polícia, de 60 anos, ainda forte. A casa indicada no telefonema estava fechada. O delegado arrombou a porta da frente, convidando-me para entrar.
Talvez houvesse pistas. Não encontrou nada. "Bobagens!", disse.
"Também tenho uma filha metida nisso! - Valéria Seixas, ‘A comandante Val’ - conhece?", perguntou.
Sem lhe dar uma resposta direta, disse-lhe que minha filha mencionava aquele nome ainda nos tempos das lutas estudantis. Que o pai era um policial de prestígio, não foi surpresa. Sabia da presença na guerrilha de filhos de militares, policiais, empresários, um bom número deles em postos de comando.
"Conheço Juana! Gostaria de lhe falar sobre ela.", disse o Dr. Seixas, meio constrangido.
*
--- Há sempre uma gota d’água a nos levar para os caminhos sem volta. Sabe o que foi a gota d’água para tua filha? A morte de um cafajeste, neto de um figurão, pela qual foi condenada e fugiu.
--- Nunca soube disso. Juana me quer longe de sua vida.
--- Nossas filhas são duas irmãs. Já as tirei de muitos apuros. - falou o Dr. Seixas.
--- Ninguém desconfia de mim. A fama de truculento, reacionário, me protege.
Alguns exageram, atribuindo-me idéias próprias que não ousam expressar, idéias que assumo em parte: "Violência até os vinte anos resulta de afoiteza generosa, condenável, mas, digna de condescendência. Violência depois dos trinta, quer dizer persistência no erro, a exigir pronta repressão. Profissionais da revolução, pau neles, sem direito a queixas, como fazem com os de baixo, quando estão por cima."
*
Interessei-me pela morte do rapaz. "Vou lhe contar!", disse o delegado. --- Começou na campanha pela posse do Dr. Pousadas. Tua filha e um colega da Faculdade, se amaram à noite, sobre a relva, em pleno jardim da Praça Quinze. Não deu certo! O rapaz contava com mais uma virgem em seu currículo. --- Ficou decepcionado! Juana se fez mulher sem ajuda de ninguém. Não aceitava que homem algum, nem o próprio noivo, pudesse vangloriar-se de havê-la despojado de um detalhe anatômico e anacrônico, valioso apenas como instrumento de controle da sexualidade feminina pela sociedade machista.
Tempos depois, foi surpreendida em casa pelo cafajeste. Mal abriu a porta, ele já estava dentro, calculando dominá-la pela surpresa.
"Valentia comigo não boneca! O que era meu gato comeu! Mas vai ser bom assim mesmo!", disse, debochadamente.
--- Tua filha - prosseguiu Seixas - jamais cederia aos caprichos de um grosseirão daqueles.
Atracaram-se de pé, junto à janela. Ele empurrando-a para a cama, ela reagindo com violência. Um tranco forte o fez dobrar a coluna sobre o peitoril da sacada e despencar do quinto andar, batendo a cabeça no meio-fio, morrendo no outro dia.
*
O Dr. Seixas se abriu comigo. "O telefonema para a casa de Branca foi meu. A reunião era pra valer. Constava da pauta assuntos de extrema gravidade dos quais logo teremos notícias. Mas eu não iria arriscar a vida de nossas filhas. Pedi pelo telefone que fugissem. Mostrei que sabia das coisas. Saíram correndo... Ademais, eu queria te conhecer, Juana fala tanto de você.
Entrou em depressão, lastimando sua violência (a mando de terceiros, para preservar o lado sujo do statu quo), tão distante da violência dos jovens, de iniciativa deles, supostamente exercitada com a pureza de quem ainda não se corrompeu.
Estava acabrunhado e eu, a título de consolo, afirmei que a violência jamais consertará o mundo. Ela só pode começar, havendo desequilíbrio de forças, situação já de início, injusta. (Existindo paridade de poder, a violência fica de fora; difícil até ameaçar ou blefar.)
Ele me interpretou mal: "Será que eu não conheço minha filha? Será que você não conhece a filha que tem? O que fazem está certo! São como Joana D’Arc, guerreiras iguais a ela!"*
Seixas admirava a coragem dos jovens, enquanto eu me interessava por suas iniciativas culturais; queria saber - por exemplo - o que eram os "ajuntamentos".
Disse-me que eram agrupamentos limitados de novatos, recebendo dos veteranos, em reuniões informais, ensinamentos sobre coisas da vida que o ensino tradicional desdenha, coisas como manuseio de armas, falar em público, dança, câmbio e outras.
Falava-se muito de corrupção, desde suas formas odiosas - a extorsão, por exemplo, até os apadrinhamentos, eis que, bonita ou feia, ela exclui o mérito, frustrando qualquer esforço criativo, do qual necessita o homem para erguer-se da lama.
Os jovens estavam convencidos de que ela, por seus efeitos corrosivos, embora condescendentemente acolhida pelos "homens práticos", constitui-se no problema número um dos nossos dias, deteriorando a tal ponto as estruturas sociais, supostamente fundadas na virtude, que muitos duvidam possam elas sobreviverem.
Exercitada para proveito final dos grandes, a corrupção virou lei não escrita, de aplicação imediata, que se impõe até àqueles que fugiriam de seu fedor, se houvesse para onde ir. Tornou-se determinante principal do comportamento social e nós, inclinados a condenar vícios alheios, esquecendo os nossos, concorremos para que ela, sob suas muitas formas, se firme como realidade inamovível e como tal aceitável.
Estavam impressionados com a força do aparato cultural que sustenta a venalidade, tão eficiente que foi capaz de retratar o homem honesto como um peixe fora d’água, incapaz de roubar não por virtude, mas por medo; uma cultura tão poderosa que nos faz esquecer a essencial característica da corrupção, sua deslealdade intrínseca, tão feia que ninguém ousa defendê-la. (O corrupto é desleal; age por trás dos panos.)O Dr. Seixas tinha em mãos papéis rascunhados nessas reuniões, ali deixados displicentemente. Nada comprometedores! Eram opiniões, muitas vezes, ingênuas, sobre temas diversos.
Dava para perceber que eram incentivados a pensar e a sugerir coisas fora dos padrões atuais, embora sem cortar os vínculos com a realidade. Preconizavam - por exemplo - que o homem do povo, por meio de firme atuação cívica, se adiantasse aos governantes na solução de problemas que só existem para os de baixo, nunca para os de cima, que, ao contrário, muitas vezes, ganham com eles. Desconfiavam de todos os governantes, tidos por conservadores, não importa quão vanguardeiros tenham sido antes. (Conservador era para eles, todo aquele que assume o poder e que, a partir daí, passa a ter, como primeira preocupação, a de conservá-lo.)
*
Lembro-me daqueles rapazes e moças proclamando a toda hora, seu idealismo, apenas realizável, através de uma violência que só a boa vontade qualificaria de "filha da afoiteza generosa". Sempre me interessei pela opinião de pessoas que ainda não se corromperam, mesmo que seja por falta de oportunidade. Mas, continuo a desconfiar de quaisquer idealismos, aliás, continuo a desconfiar de tudo que demasiado se proclama. São disfarces da ambição de poder que só o tempo faz desaparecer.
Porém, diante de tanta safadeza, não me sentiria bem esfriando o entusiasmo daqueles jovens. Que sigam em frente! Que a vida lhes mostre o que minha amargura não consegue fazer. Eles cumprem o seu papel. É difícil viver sem máscaras. Eu, que faz muito tempo, me livrei delas, padeço agora de um cepticismo crescente, e, por sorte, me compenso com a presença de minha filha entre aqueles jovens, aos quais, uma sobretaxa de vida, permite desafiar a morte, por um sonho.
Juana, Valéria Seixas e tantos outros, surgem como lembranças persistentes, mesmo quando, longe de Taraga, cuido de minha insossa vidinha.
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Ao cair da noite em Rio das Praias, conversava com o Dr. Sintra sobre razão e inteligência, quando tive de enfrentar em minha casa, a agressividade de Alex, sempre de maus bofes.
"A inteligência - dizia eu - vem do berço, embora só se complete na razão graças à integração com outras inteligências. Sabemos de sua existência, sem poder explicá-la, eis que é anterior à razão, nosso livro de explicação. Impelidos pela força do ego, cotejamos as opiniões, nascidas, todas elas, da intuição, as quais, depuradas por comparação, vão se fundir num conhecimento uniforme que, aceito por convenção, manifesta-se através da linguagem, ensejando o intercâmbio de experiências, gerando novos conhecimentos."
*
"A intuição - prossegui - é pessoal. Obtida pelos sentidos, ela é incapaz de exteriorização. Repetida com regularidade, produz a opinião que, embora pessoal também, diferentemente da intuição, enseja exteriorização. Do meio das opiniões, selecionadas pelo critério majoritário, e por comparação, surgem as chamadas opiniões dominantes que se consubstanciam nas idéias, de cujo relacionamento nasce a razão, a qual nos enseja criar e recriar, recordar e prever. A recriação mental de fatos e coisas, habilita o homem a realizar "experiências imaginárias", enriquecendo seus conhecimentos, aumentando-lhe as possibilidades de dominar a natureza. As idéias são armas na luta pelos bens e elas próprias se transformam em bens dos quais nos apossamos como se apossássemos - por exemplo - de terras e casas; bens dos quais dificilmente abrimos mão. (Da combinação entre as idéias, promovida pela energia do ego, a serviço da vontade, procede a rotina do pensamento.)
*
"Toda ação modifica a estrutura das coisas, daí porque, a rigor, não se repete.", dizia eu, desalentado com a resistência das pessoas em falar de assuntos que se defendem de nossa natural curiosidade, protegidos pelas brumas do mistério inicial, mistério que permanentemente nos desafia, mesmo depois de atravessamos o que imaginávamos fosse a última porta. (A maioria foge desses temas obscuros.)
Necessitado de atenção, a indiferença planejada de Alex me incomodava. Sentado à minha frente, eu percebia através do olhar invejoso, sua mente preguiçosa a dizer-me: "Sai pretensioso que, de barriga cheia, fica aí filosofando..."
Tentando reatar o fio do pensamento, continuei: "Falávamos das possibilidades abertas ao conhecimento pela experiência. Ao contrário dos animais, o homem, graças às idéias, pode ter na cabeça, quantas vezes quiser, fatos e coisas, antes de tê-los na vida. Combinando memória e imaginação, pode ele acumular na mente toda sorte de experiências, possibilidade importantíssima, porque sem experiência o conhecimento cessa, inclusive, o conhecimento intuitivo.
Menosprezamos essa fonte que nos alimenta o intelecto, porque a consideramos o resultado tão só de nossas vivências, esquecidos da contribuição alheia para o desenvolvimento desse patrimônio empírico, do qual depende a intensidade de nossa vida iespiritual.
Se isolássemos totalmente um bebê, e, quando, já adulto, o libertássemos, ele estaria pronto para matar ou procriar, mas não teria um único pensamento para comunicar, nem mesmo através de gestos, sua mente estaria branca e sua vida intelectual não seria mais ativa do que a de uma lesma.
*
Alex vivia sempre de má vontade. Ao mínimo descuido meu, reagia mal humorado. Desatento, contra minha própria opinião, confundi inteligência e razão. Foi o bastante para que passasse a me depreciar, certo de que eu me rendera à sua posição: "Enfim, ‘seu’ Jonas! Inteligência e razão, as duas são a mesma coisa ou não? Até que enfim!", dizia, zombeteiro. (Distinguir entre as duas era para ele uma vã pretensão.)
Voltei à minha peroração: "Vida não há sem ação; a inatividade é morte. A cada um, coube uma vida e, para preservá-la, o apetite de viver, atendido pela ação, graças à qual podemos controlar o ambiente à nossa volta (nele incluído o homem).
Dominar às cegas é impossível. Para conhecer e pelo conhecimento se guiar, a natureza dotou o animal do apetite do saber (a curiosidade), atendido com diversificada intensidade pelos sentidos externos, coordenados pela inteligência, também um sentido interno, comparativamente, tão débil nos animais que parece não existir.
Apesar de praticamente inexistente, se comparado ao dos homens, tal sentido interno (a inteligência) enseja mesmo nos outros animais um embrionário trabalho de unificação das impressões obtidas do exterior, alcançando em espécies melhor aquinhoadas, níveis que habilitam o animal a fixar na cabeça, não só o esboço das coisas, como também as impressões, ainda que tênues, das relações entre elas, porém a um grau que não vai além de seguidas imitações que se transformam em hábitos muito aquém de nossa criatividade. (É o grau de inteligência que faz a diferença entre homens e animais, com todas as consequências.)*
A inteligência capacita os irracionais a também reconhecerem as coisas, reconhecimento, porém, no caso deles, condicionado à comparação de suas réplicas na cabeça com os originais em presença deles. Capacita-os igualmente a exercitarem - nos circos, por exemplo - habilidades que não vão além de hábitos por nós incutidos neles, que se consolidam neles, e se esgotam com eles, pois, nenhum animal é capaz de transmitir a seus iguais o que, na forma de hábito, recebeu do homem.
"Quem pretenda controlar o ambiente tem de agir.", eu disse. Ação exige energia que é dirigida pela natureza, se for um animal, pela razão se for um homem. A tendência é esta, embora, por culpa da disparidade de forças entre os homens, a lei do mais forte prevaleça, eis que, pressionada por esse desequilíbrio, a razão desvia-se de sua tendência universalista, retardando o progresso. O homem se vale das réplicas das coisas na cabeça para realizar experiências com elas relacionadas. Das comparações entre tais réplicas faz nascer modelos de coisas inexistentes, a que sua energia, impondo forma à matéria, transfigura em realidade, numa demonstração da humana criatividade. (A partir das velhas combinações surgem as novas, ou seja, pelo raciocínio, ele produz o que antes não existia - as invenções.)
*
"Através do conhecimento adquirido, o homem altera a natureza, para se defender das intempéries, dos outros animais e, principalmente, do outro homem, seu mais imprevisível inimigo, capaz das mesmas façanhas, das mesmas artimanhas.", afirmei. Mas, só esse conhecimento não lhe basta para dominar o ambiente, porque ao outro homem, a natureza concedeu iguais possibilidades, fazendo com que, no fim das contas, a vitória fique na dependência da força. "O semelhante - afirmava eu - é tão imprevisível quanto ele, e, tanto quanto ele, capaz de aumentar as vantagens, promovendo alianças, simulando fraquezas, atraiçoando. É, por excelência, mutante. Por isto, na luta contra seu igual, para não ficar atrás, o homem vale-se do conhecimento padrão, acrescido de sua pessoal contribuição. A disputa pelo domínio local, indispensável à sobrevivência, vira batalha de homens contra homens, pois, a crescente influência deles sobre o ambiente, deixa a natureza em segundo plano.
*
A participação de Vilaça esquentou as discussões, porque só eu e Alex a falar estava cansando. "Todo conhecimento vem da iniciativa de alguém (o conhecente); tem objetivo próprio - a coisa a ser conhecida - que necessita estar individualizada.", Vilaça afirmou. Mas como individualizar uma coisa se não sabemos por onde começar?! O conhecimento é que leva à individuação ou é pela individuação que ele começa?"
Vilaça acreditava na precedência da individuação. "As coisas existem, independentemente de que as conheçamos ou não. Estão aí, sob as nossas vistas! Conhecê-las é fazer com que tenham um sentido para nós. O primeiro passo está na individuação, pois, antes de apartar das outras coisas, aquela que pretendemos conhecer, não dá para saber nem de qual coisa vamos falar. Ademais o conhecimento avança por etapas tão próximas umas das outras que se tornam quase indiferenciadas."
Tudo começa pelo eu, pois, mesmo que em seu dia a dia, um homem se considere uma estrela de nenhuma grandeza, por dentro, ainda que entre névoas, ele sente que à sua volta gira tudo o mais. O eu confunde-se com o mundo. A individualização começa pela descoberta do outro que muito cedo acontece. (Já no ventre materno, nos desencontros com a mãe, o nascituro pressente o ‘outro’ - o mundo à sua volta.)"
*
Convidado a sair com um amigo, Vilaça nos deixou. Por mim, a discussão prosseguiria, mas estava constrangido, hesitante, falando por falar, como fazia o pastor Banes nos tempos de Águas Claras. A lembrança do homem que me abriu as portas do conhecimento reavivou em mim o horror à solidão, o medo de que me falte alguém com quem possa viver a alegria de uma prosa instrutiva que me leve, todos os dias a, por dentro, me superar.
"Por enquanto, o que existe entre nós, são ilhas de racionalidade ameaçadas por oceanos de persistente animalidade.", eu disse, já num outro dia. --- Preso ainda a uma forte herança animal, o homem necessita da força para organizar a vida em sociedade, mas, que seja uma força impessoal, isto é, força institucional que, antes de tudo, desestimule exagerados apetites particulares!
A principal instituição, o Estado, nasceu para disciplinar o uso das forças individuais em benefício da coletividade; nasceu para equilibrar a distribuição dos bens, pois a expectativa de uma reação do poder institucional, dotado de forças superiores às de cada um, desencoraja a violência a serviço dos indivíduos, sempre inclinados a avançar no que é de outros.
Porém, com o nascimento da instituição, nasceu também o interesse de se aproveitar dela, incentivado pela intimidade dos dirigentes com os mecanismos de seu controle. (Foram convertidas num meio de exploração da massa de inocentes pelos bem informados que as dirigem.)
A preocupação de dominar exige a posse de bens acima das necessidades de cada um, rareando-os para os demais, dividindo os homens em dominadores e dominados, cada vez mais distanciados. (O apetite regula o uso, não a posse.)
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"O aumento da produção, por si mesmo, não melhora a distribuição", disse eu, pois desde que foram criadas as instituições, a penúria artificial causada pela intencional má distribuição dos bens, transformou-se em garantia de dependência dos reais produtores aos manipuladores da produção.
Distorcendo a finalidade das instituições, seus dirigentes, tão desigualmente distribuem no interior delas o poder (do qual tudo depende), que os mais espertos ficam em condições de se apropriarem não só de bens gerados pela natureza, como de outros, artificialmente produzidos pelo semelhante caído em dependência, para a produção dos quais, os reais produtores, recebem apenas o necessário à renovação de suas energias.
Para dispor de estoques que lhe garantam o domínio sobre os demais; para lidar com bens que não sejam para consumo imediato, submetendo-os a contagens e recontagens, enfim, a toda sorte de manipulações (sem lhes prejudicar a conservação), o homem se vale de suas réplicas na cabeça, que, manipuladas conforme as circunstâncias, produzem as idéias, graças às quais, alguns podem preservar suas vantagens, tanto maiores, quanto maior for o desequilíbrio de forças a seu favor."
*
"A disputa pelos bens é inevitável!", continuei. "Do âmago das instituições brotam as facções, nascidas como tudo o mais, dos conflitos em torno deles, conflitos que incitam à ação, porque a vida resulta de movimentação da matéria, movimentação que entre os racionais é orientada pelas idéias. Graças ao espírito - descendência da matéria - o homem usa os bens materiais em função de suas necessidades físicas e também espirituais, estas, a rigor, insaciáveis." Sirva de exemplo, a ânsia de ter mais, quando já se tem demais.
Assim, o mundo espiritual, complexo e tormentoso, torna-se a maior fonte de conflitos entre racionais, tendo a força como elemento decisivo.
*
Certa vez Alex, malicioso, me perguntou: "Existe alguém mais razoável que o Dr. Sintra? Seu comportamento, sua vida inteira, não está a nos mostrar que nele o que há de racional veio do berço?!", ao que respondi: "Engano! A razão, caracterizada pela inclinação universal, é criação dos homens em sociedade, não surge com nenhum deles em particular, resulta da interação entre eles!"
--- Onde ouviu isso?
--- É o que eu penso!
--- Você nos disse uma vez, que um ser inteligente, criado entre chipanzés, que nunca tivesse encontrado alguém capaz de pensar, passaria a vida inteira igualmente sem pensar.
--- Foi mais ou menos o que eu disse. Devo ter afirmado que nenhum homem é capaz de pensar sem comparar o que lhe veio ao cérebro pelos sentidos, com o que, também pelos sentidos, chegou ao cérebro de outros homens. Isolado, o homem é apenas um racional em perspectiva. A razão não é uma dádiva dos céus. Ela decorre da vida em sociedade. Tampouco é estática; está em permanente elaboração, buscando atualização.
*
Minha casa era ponto de encontros. Frequentavam-na quase todos os dias, Alex, o Dr. Sintra e, por último, Vilaça . Naquela noite, o grupo se reuniu, mas logo se desfez. Vilaça foi à biblioteca, enquanto Alex decidia voltar à loja de artigos fotográficos para alguma providência de última hora.
O Dr. Sintra saiu com ele.
Sozinho, dialogando comigo mesmo, ocorreu-me que a realidade mais ou menos uniformemente captada pelos sentidos está dentro de nós sob a forma de imagens inscritas na memória como traços leves a serem gradualmente acentuados e individualmente exteriorizados, de início, como simples opiniões. Esses traços, repetidos e sobrepostos, consolidam-se em reflexos duradouros que se cristalizam nas idéias, modelos das coisas do mundo na memória e que, em sendo padronizados, se exteriorizam através de signos, principalmente, palavras, levando à troca de experiências e antecipações.*
Meus sentidos percebem a maçã envolta numa casca que em mim produz a impressão do "vermelho", impressão arquivada pela memória e que mesmo repetida e solidificada, ainda não passa de opinião. Outros homens, olhando também a maçã, acabam tendo cada um deles, igual impressão, e também a mesma opinião, que repetida, uniformemente, consolida-se na idéia do "vermelho" que vai substituir as opiniões isoladas, dando a cada um a medida do entendimento de todos sobre as coisas e as relações entre elas.
Não praticamos idéias desinteressadamente! Somos levados a pensar quando nos falta algo que na maioria das vezes é matéria. O cérebro descansa, quando o que em nós é matéria, já obteve a outra matéria da qual necessita para realizar as mudanças exigidas pela natureza, visando a transformar coisas, inclusive, nosso corpo, em novas coisas.
*
As idéias - realidades interiores - não são percebidas pelos sentidos externos. São porém, identificáveis e suscetíveis de manipulação, pois, do contrário, como poderiam, lá de seus recessos, atenderem às nossas convocações feitas através de seus signos usuais - as palavras?! Como poderiam se juntarem ou se excluírem, segundo nossas exigências?
Elas cumprem nossa vontade, instinto aperfeiçoado pela razão, um desejo aprimorado que se caracteriza como um salto a provocar a ruptura com toda anterioridade, gerando a diferença abissal entre o homem e os outros animais.
*
at/180603Órfão de mulheres, acordo ao meio-dia, sozinho. Nunca foi assim. Em San Miguel, para compensar a solidão ao lado de Vic, ia todas as tardes deitar com Branca. Que bom abrir os olhos e ter alguém ao alcance das mãos; roçar pele contra pele; sentir a tendência dos corpos para o ajuste de suas peculiaridades, que o desejo faz crescer em um para se acomodar no outro. (É assim que o amor acontece, pois, como esperar de duas metades que se buscam, senão que se completem?!)
Andava preocupado com minha prolongada apatia. "À luta Jonas! É preciso vencer os fantasmas!", eu me incitava.
Meia hora depois chegava ao apartamento de Santinha, sempre de prosa com a vizinha. O vento afasta as cortinas. Ela ressona de costas, nua sobre a cama. O sol queima-lhe as nádegas. Estou lúcido, os desejos arrefecidos. O ar entra pela janela e me areja os pulmões.
O primeiro encontro acabou faz uma hora. Sinto-me frustrado porque seu belo corpo já não me atrai com a força de antes. Três vezes me aproximo, temeroso de acordá-la, se é que dormia. Gostava de fingir o sono, estando acordada. Toco-lhe o corpo que estremece. Ela se espanta: "Outra vez querido?! Isto é que é saúde, ein!" e me expõe o ventre como se fosse para seu médico.
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Ainda sou de ir à fonte duas vezes num dia, três vezes por semana, embora nos últimos anos o vigor esteja arrefecendo. O cérebro continua guloso, mas a firmeza do instrumental já não é a mesma. Ainda assim, em dias de grande apetite, uma hora de descanso, uma parceira interessada e já estou tinindo.
Após o segundo encontro, duas horas se passaram. Santinha parecia dormitar. Examinando-lhe os olhos que se fecharam mal havia resvalado de seu corpo, compreendi que se insistisse, ela diria: "O que?! Mais uma?!" Talvez acrescentasse: "Brincadeira bem! Pode vir!"
Desisti, apesar da necessidade de exorcizar o demônio dos fracassos, pois, sem ajuda, ficaria de corpo mole, percebi logo. Não gostei do segundo ato, um arremedo de coito durante o qual fui um molenga, desde a irresoluta penetração inicial até a ejaculação de quase nada. Diante desses fracos desempenhos, tal e qual acontecia com os fracassos em outros campos, voltei a me sentir uma criatura anômala, estranha no físico e na alma, objeto de curiosidade e zombarias.
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Lembrei-me de Massuda no início de nossa fuga pela Europa. Contou-me que na ilha de Sompa, depois de espancado por meus captores, inclusive, ele, fui, por suspeita de fraturas no crânio, submetido a exames. Os americanos estavam à vista e os mais sensatos entre os japoneses já se acautelavam. Fizeram radiografias, recolheram sangue, impressões digitais e outras coisas, para compará-las com as do fuzileiro John Butler, cujas roupas e documentos eu usava. Não vi os resultados, mas, alguma coisa vazou. Meus dentes se revelaram extensões de outros ossos. Nunca foram trocados. Meu tipo sanguíneo e as impressões digitais eram diferentes dos padrões conhecidos. Meus cabelos crescem com exasperante lentidão, nunca passam de 2cm. Tais anomalias, embora impressionassem meus captores, nas ruas, passam despercebidas; são coisas à toa, comparadas com as deformações vistas a toda hora. (Grave é a predisposição para tomá-las como aberrações e sofrer.)
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Já havia presenciado vários homicídios, às vezes, por simples capricho. Depois das revelações de Massuda, passei a temer tanto os homens que me isolei de tudo, evitando estranhos, fugindo de autoridades, principalmente, dos médicos. (Temia que me retirassem as vísceras para exames, fazendo-me de cobaia.)
Possuo diferenças, é verdade, porém, elas não me incomodam. Quem não apreciaria ter a força que tenho, igual à de dois homens normais? Quem não se alegraria com olhos iguais aos meus, capazes de distinguir a 2km de distância, um boi de uma vaca? No entanto, para continuar desapercebido, procuro não contar vantagens e só falo de minhas extravagâncias, quando já não posso ocultá-las.
Juana herdou muito de mim, a força de uma leoa, olhos de águia, dentes que até hoje não sei se foram trocados. Ignoro o que transmiti a Saulo, embora falem muito de sua força e visão excepcionais.
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No dia seguinte, mais uma visita a Santinha que me recebeu de má vontade, desdenhando minha necessidade de auto-afirmação, encaminhada para a sexualidade. Estava ansiosa para ir no carro da vizinha ver a sorte numa advinha, a duas horas de distância. Acossada pela terceira vez, esqueceu as conveniências, irritada com meus queixumes, com minha insistência em provar que estava em forma. "Havia de lhe entortar o pinto, para brochar mesmo!", dizia ela, aos gritos. "Pensa que é leão? Duas vezes numa tarde e se queixa! Afinal tens mais de cinquenta, não?"
Mal as duas saíram, caí numa pasmaceira. Não conseguia mover braços nem pernas. Porém o cérebro atuava celeremente. "Acalma-te Jonas! Por que lamentar uma tarde durante a qual atingistes duas vezes o ápice do prazer?! Conta os anos de tua vida homem! As energias também se esvaem!"
Braços e pernas se moveram lentamente, depois, normalmente. Apalpei as coxas aliviado. Vesti-me em segundos e fui para casa, a noite caindo sobre Rio das Praias.
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Estava só no Clube dos Correspondentes, na ilha do Boitatá, quando Marlow pôs-se à mesa comigo. Era uma tarde luminosa, o sol tostando os corpos seminus estirados na grama que recobre toda a ilha. Tivemos, até então, um único encontro, em minha casa, num clima tenso que sua prosa fácil aliviou. Torcia para que esquecesse Massuda, o criminoso de guerra, e tratasse comigo de assuntos sobre os quais eu só conseguira falar com o pastor Banes, eis que sobre eles a maioria fala repetindo outros ou não fala.
Desde o início, percebemos afinidades. Não conseguíamos entender a feroz disputa que envolve os homens, promovida pelos ambiciosos, mas que termina envenenando os demais. Um dia quis saber como eu conseguia viver tão isolado das pessoas. "Sou um estranho em qualquer lugar! Prefiro refugiar-me em casa!", disse-lhe, explicando que sempre fui avesso ao convívio social, mas que em Rio das Praias, sem a companhia de pessoas como Banes, quase um pai, ou de Branca, a mulher amada, tornara-me um ermitão. Piorei depois que ele, questionando minha identidade, deixou-me tão inseguro, que passei a inventar histórias, numa espécie de fuga.
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Contei-lhe que no começo de minha vida em Taraga, lendo apressadamente sobre a questão social, antes de concluída a digestão, já havia tomado como realidade a utopia comunista, segundo a qual, no país dos Sovietes crescia um "Novo Homem", criatura iluminada, como jamais tinha havido outra.
Numa época em que Massuda parecia nunca ter existido, da memória, entre névoas, surgiam prisioneiros russos metidos numa história triste. Órfãos de pais caídos nas batalhas do "Outubro Vermelho", eles, que me tinham como um dos seus, ajudados pelo caos que dominava Berlin no final da guerra em 45, escaparam de um campo de prisioneiros, deixando-se arrastar para a servidão no "Trinidad Star". Meti na cabeça que era um daqueles exemplares do "Novo Homem", pervertidos pela guerra. Criado na Sibéria, ignorando minhas origens, delas não queria saber, tão empenhado estava em construir o paraíso com o qual sonhava a humanidade inteira.
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Embora apegado à nostalgia do "Novo Homem" eu me adaptava à realidade imediata, fazendo o que os grandes queriam que eu fizesse. Porém, perdido neste mundo, quantas vezes em Taraga, podia antever confusas manifestações do que mais tarde viria à tona. Da exaurida memória, Sompa, no Pacífico, surgia como o porto da esperança que salvou a vida de três marinheiros russos (eu entre eles), meninos de ignotas origens. Éramos sobreviventes de um barco soviético afundado a poucas milhas daquele pedaço de terra pelo qual lutavam americanos e japoneses. Só eu sobrevivi ao maremoto que um dia depois, inundou a caverna onde escondíamos. Eram lembranças tristes, porém, boas para alentar a vida de quem nem ao menos sabia de onde veio. Logo ficaram tão amargas que melhor seria esquecê-las.
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Antes que as revelações dos chefes comunistas em Moscou, desfigurassem a face do "Novo Homem" eu, conscientemente, já mudara de rumos, disposto a enfrentar a hostilidade daqueles para os quais só não é traidor quem a tudo diz amém. (Desde peso na consciência livrei-me logo e sem traumas.)
Hoje, nada tenho para dizer do "Novo Homem", senão que mais experiente e menos orgulhoso, desconfio de tudo que se desenvolva nas sombras; de tudo que venha da falaciosa emoção de um artista. Não renego os motivos que me puseram na trilha daquela criatura exemplar, porque quando me tomou pelas mãos, eu ignorava as artimanhas da luta pelo poder. Ninguém nasce adulto. Estava em busca de luz, sonhando mitigar as dores do mundo. Esperava que no rastro do "Novo Homem", sempre associado à pátria russa, eu pudesse beijar o chão onde nasci. E não teria dúvidas sobre a terra de onde vim, se tivesse reaprendido russo tão facilmente quanto o inglês e outras línguas mais. (É pena, porque de russo, não sei nem o quanto baste para gritar: "Minha Terra!")*
Falávamos de coisas amenas quando a tevê anunciou que um comando de mulheres havia explodido a ponte "Presidente Carranzas", única ligação rodo-ferroviária com a ilha Marona, celeiro da Capital. Queriam mostrar que a UPT-FA (Unidade Popular de Taraga - Forças Armadas) continuava ativa.
Horas antes, guerrilheiras encapuzadas, voltavam a invadir a tevê-N, para denunciar a má conduta de ex-companheiros, diante da ditadura. Acusando-os de abandonarem quem ainda combatia (referência ao "Batalhão das Rosas), a "Comandante Zada" condenava os aliados de ontem: "Entregaram suas armas! Não pensem que entregaremos as nossas! Delas haveremos de tirar fogo por muito tempo! Engana-se quem antecipa vitórias. Existe muito chão a nos separar do inimigo.
Perdem tempo aqueles que nos ameaçam com o fantasma de uma derrota fatal. Quem por uma idéia combate, não sofre derrotas. Se o corpo tomba, a alma sobe às estrelas para a iluminação de todos. Derrotado é quem troca a guerra pela paz, sem mudar de idéias; aquele que afora um corpo a se desfazer em cinzas, nada possui que seja digno da admiração dos pósteros."*
Estava saindo de casa quando o telefone tocou.
--- Simpson? Preciso te falar, sou eu Marlow!
--- Sobre o que Marlow?
--- Assunto urgente. Viu aqueles papéis?
--- Vi, mas não me lembro desse Massuda.
--- Não é só Massuda homem! Abriu os envelopes?
--- Ainda não! Estou sendo vigiado. Era verdade! Alex, o Dr. Sintra, até o Vilaça, desconfiavam de mim.
Sem saber porque, fazia tudo para esconder minhas ligações com Marlow que agora me falava regularmente pelo telefone ou em pessoa.
Dizia morar em Nova Iorque, vindo com frequência a Rio das Praias. Embora seu caráter reticente me intrigasse, ficamos amigos. A necessidade de ter alguém para conversar, fez-me esquecer que nem seu telefone eu sabia.
Receava que estivesse metido em alguma trapalhada. Contraditoriamente, esta possibilidade nos aproximou ainda mais. Estava ansioso para fugir do tédio que era minha vida.
--- Simpson! Preciso te encontrar! É urgente! - continuou ele.
--- Para falar de Massuda, não!
--- Esqueça Massuda! Abre aquele envelope que ficou na escrivaninha, na última gaveta!
Ignorando minhas intervenções, ele insistia em me ver no Tip Restaurant, na Litorânea Sul.
--- Por favor Marlow, no teu hotel!
--- Vamos ao Tip, é melhor, já deixei o hotel. Tenho de estar em San Miguel à noite, ainda que viaje num foguete.
--- Viaja para Taraga?
--- Sim, Taraga, falaremos disso.
--- Está bem! Às 14h junto ao chafariz.
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O material deixado por Marlow lembrava-me um processo de recuperação da memória, do qual me falou alguém, não sei quando e em que lugar, e que se resume na apresentação, mesmo caótica, de símbolos do passado, que funcionando como estímulos, suscitam no espírito, associações de idéias capazes de nos recordar coisas há muito tempo esquecidas. No envelope havia algo pessoal. O último número da "Boston Review", de Boston, trazia na capa a foto de uma jovem de cabelos esverdeados, lisos e curtos, olhos azuis e pele clara que o sol queimou até bronzear. Afirma estar com trinta anos (e é verdade), mas nem a dureza de sua vida atual, tirou-lhe a aparência de jovem, no máximo, vinte e cinco anos. A revista falava de Juana, minha filha. (Na capa uma frase que ela repetia sempre: "Não sofre quem sabe vencer o medo!)
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O interesse da "Boston Review" exalava suspeitas. A revista tratava-a com má vontade. Chegara a acusá-la de tantos desvios ideológicos, que ficava difícil incluí-la em qualquer dos segmentos existentes.
Sua defesa da violência contra bens materiais de pessoa certa, desde que provada a culpa, não integrava o programa de nenhum dos radicalismos conhecidos, todos eles, preocupados com a violência indiscriminada contra quaisquer pessoas, a mais generosa fonte de poder - causa principal da servidão humana..
A revista, inimiga da "violência dirigida", qualificando-a de isca para atrair pacifistas, lamentava que a própria Juana agora a desprezasse, decepcionada com toda violência.
Para a "Comandante Zada" que nunca foi um modelo de brandura, "...a violência tem sua própria lei, acima de todas as outras. É impossível acreditar em guerras sem massacres, sem estupros, coisas produzidas pela irresponsabilidade total, enfim pela vertigem do mal como compensação por tudo o que a civilização nos proíbe." (Assim a revista interpretava a Juana dos nossos dias.)
"Se a guerra não suscitasse a nostalgia da barbárie; se ela não legitimasse a crueldade que atrai os soldados, até como desafios, os dois lados debandariam, cansados de matanças bem comportadas.", escrevia a "Boston Review, como se repetisse a rude lutadora, antes tão presa ao derramamento de sangue.
A desilusão de Juana dava-nos esperanças de que ela e as companheiras encontrariam uma saída antes que o pior acontecesse, mas para a "Comandante Val", filha de Seixas, o pior veio antes.
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Depois de esperar uma hora por Marlow, toquei para o Tip Restaurant, por onde ele passou rapidamente só para me deixar um recado prometendo ligar à noite.
Quando voltava para casa, ouvi pelo rádio que a ministra do Interior, minha ex-mulher Vic, fora sequestrada por guerrilheiras comandadas pessoalmente por Juana, em meio a uma fuzilaria da qual ambas teriam saído feridas, correndo risco de vida.
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Quem por uma idéia combate,
não sofre derrotas. (A DESCOBERTA DA TERRA***Parte3)
at/210603