Prefácio
Faz um século que faleceu Johann Gottlieb Hatschbach, meu trisavô, pai do autor destas Memórias; cinqüenta anos faz que elas começaram a ser redigidas. Pareceu-me uma boa ocasião, em especial agora que os descendentes de Johann Gottlieb festejam em Curitiba o seu centenário de falecimento, para reeditar o presente texto e dá-lo a conhecer a ainda maior número de parentes e amigos.
Durante muito tempo as Memórias de Rodolpho Hatschbach existiram apenas em forma de um manuscrito sobre estreitas e compridas folhas de papel. O texto, exceto pela folha suplementar do final (a lápis), é escrito a tinta com uma letra bem característica. É curioso que os fatos que ele relata estão fartamente documentados — as memórias encontravam-se no mesmo baú que uma considerável coleção de notas fiscais, passagens de navio, correspondências, ...
Em 1981, resolvi transcrever as Memórias para facilitar sua leitura, procurando manter ao máximo o espírito do original e seu discurso peculiar. O presente texto representa uma revisão melhorada daquele. É bem verdade que a ortografia e a pontuação do original foram regularizadas, mas são bem poucas as palavras adicionadas ou suprimidas por motivos de coerência. Em alguns casos, a leitura incerta tornou necessário inserir um ponto de interrogação entre colchetes — [?] — após grafias duvidosas. Dividi o texto em seções e parágrafos, para melhor compreensão. As palavras alemãs do original foram mantidas nesse mesmo idioma, em itálico, com notas de rodapé; estas, aliás, restringem-se ao necessário.
Certamente o trabalho poderá ser melhorado, e talvez completado até; serão bem-vindas quaisquer informações que permitam fazê-lo.
Desejo ao leitor, parente ou não, momentos agradáveis durante a leitura destas Memórias. Que possam contribuir para uma apreciação mais correta, não só do autor e da sua família, mas também dos tempos em que ele viveu tão intensamente. É à cultura dos tempos e lugares onde se passa a estória (e História) que devemos várias colocações que a nós, hoje, soam como politicamente incorretas.
Finalmente, é aos seus "Filhos, e mais descendentes da nossa Família" que dedico o presente trabalho.
Ronald Kyrmse
e recordações da minha
Vida, desde a Infância,
começando a recordação
desde 1872; nascido
em 25 de Fevereiro 1868
Rodolpho Hatschbach,
comecei a escrever em
15 de Dezembro 1947,
dedicado a meus Filhos,
e mais descendentes da
nossa Família.
15/12/47, nessa data comecei a escrever as minhas memórias, durante a minha vida, o mais de que posso me recordar.
Eu nasci em 25 de fevereiro de 1868, na cidade de Gablonz a/N. [1] Naquele tempo pertencia à Áustria, e era a província da Boêmia alemã. Em 1872, depois da Guerra, meu falecido pai resolveu emigrar para N.-América, S. Francisco, e por engano veio à Sul-América, para a província de Sta. Catarina, ao porto Dona Francisca, hoje porto S. Francisco. Depois de resolvida a viagem definitiva, meu pai seguiu só num barco a vela, levando 90 dias para chegar no porto final, passando por muitos temporais; e até fome e sede passaram os passageiros.
Depois, as primeiras notícias e a chamada para Mamãe com os filhos. Éramos 4 meninos e duas meninas. Seguimos 6 meses depois da partida de Papai, e embarcamos no porto de Hamburgo, em outro barco a vela, para o nosso destino. A viagem correu como de costume naquele tempo, normal, até que nos pegou um grande temporal, que custou a vida de 3 marinheiros que, ao arriarem as velas num vendaval infernal, caíram no mar onde foram tragados pelas ondas. Depois dessa tragédia rebentou uma epidemia: a varíola, a bexiga preta. Eu fui vítima, e um irmãozinho morreu; teve seu enterro no mar. As comidas de bordo eram: carne salgada, batatas, como pão umas bolachas duras como pedra que só molhando podiam se comer, um café água choca. Afinal, com 65 dias de viagem chegamos ao nosso destino em Dona Francisca, onde Papai estava há muitos dias à nossa espera. Dali fomos transportados num bote até Joinville, onde fomos instalados numa casa que Papai tinha alugado. Papai era alfaiate, mas aventurou-se a vir a Curitiba no mesmo ano. Tivemos uma viagem de sacrifícios: toda a família, sem estradas, transportada em cargueiros. Levamos uma semana para chegarmos ao destino. Nossa primeira casa de morada em Curitiba foi na Praça da Ordem, pegado à igreja. Dali, em dezembro do mesmo ano, mudamos para a Rua Riachuelo, para uma casa do Sr. Manoel Bittencourt, hoje Casa Mugiatti. O Sr. Bittencourt chegou a ser compadre, batizando o Albino, que aí nasceu.
Como alfaiate, Papai tinha a freguesia
da alta, como o Presidente da Província e os deputados etc. Importava
casimiras da Áustria, as afamadas da cidade de Brünn (Boêmia
alemã).
Quando cheguei a completar 6 anos de idade, Papai me mandou para a escola. O Pastor Becker [2] dava aulas em alemão de manhã. O Professor Nivaldo Braga dava aulas em português à tarde. Assim fui crescendo até alcançar a idade de 13 anos, quando meu pai insistiu que eu aprendesse o ofício de alfaiate. Como não tinha eu vontade, entendeu de mandar-me embora, a outra cidade. Fui à Lapa, trabalhei com um alfaiate polaco, mas em 4 semanas voltei para casa. Então meu pai me deu uma surra daquelas, e me mandou para Morretes, com um alfaiate chamado Dechaud, russo alemão. Agüentei um mês, fugi de lá, e vim a pé até S. João. Pousei com um carroceiro chamado Guilherme Nack, que fazia transporte das mercadorias pela estrada da Graciosa. Como esse carroceiro estava doente, com a febre maleita, no dia seguinte eu tomei conta da carroça e animais, e guiei até Curitiba em 3 dias. O mais agradável era o pouso; fazíamos um grande fogo, cozinhávamos o feijão, arroz e charque, depois o café à tropeiro. Era uma vida divertida. O Sr. Guilherme Nack, mais tarde negociante em Palmeira, quando eu viajava já por conta própria, fazia-me recordar a minha audácia como guri de 13 anos, de tê-lo auxiliado naquela época.
De volta à casa dos pais,
outra surra dobrada. Aí fui ter com o meu cunhado Roberto Hauer,
negociante na Rua Mato Grosso, hoje Avenida 15 de Novembro. Empreguei-me
como caixeiro, em artigos de secos e molhados, fabricação
de vinagre e licores à Fritz Mack [?]. A firma começou a
fornecer às casernas militares, e oficiais de todas as tropas, e
com isso fez fortuna. Eu era mais tarde, quando já tinha bastante
prática, o encarregado de fazer as entregas nos quartéis,
dos fornecimentos alimentícios e das forragens para animais. Com
isso travei conhecimento com os oficiais. Muitos alferes daquele tempo
mais tarde pude visitar no Rio, quando eram generais.
Trabalhei por dois durante o carnaval. Quando chegou a quarta-feira de cinzas, não sei até hoje como, ao acordar-me fora parar na ilha Jurujuba, no hospital isolado dos doentes da febre amarela. 95% dos que eram transportados para lá não voltavam; eram enterrados numa cova muito grande, e era jogada cal por cima. Eu fui um dos 5% que se salvaram dessa peste infernal daqueles tempos. Depois de 8 dias tive baixa. Voltei para me apresentar aos meus empregadores muito fraco; quase não podia andar. A senhora do patrão era austríaca, patrícia. Levou-me ao aposento onde residiam, e levou-me a um santo, não me recordo mais se era Nossa Senhora ou outro, e havia velas acesas. Essa boa criatura tinha feito uma promessa para a minha salvação. Desde que deixei a casa, ela queimava velas dia e noite até a minha volta; e chorou de satisfação ao ser ouvida pela santa. O médico tinha-me recomendado voltar a Curitiba, mudança de clima. Estava sem recursos, sem roupa, tinham queimado tudo. Fraco como estava, lembrei-me de ir ao quartel em S. Cristóvão. Lá havia oficiais que tinham estado em Curitiba, quando meus conhecidos dos fornecimentos. De fato encontrei um tenente que era transferido de novo a Curitiba. Foi quem me facilitou a passagem de volta. Chegando em Curitiba, tive que descansar um mês, para recuperar as forças, e mais uma vez fui trabalhar com o cunhado Roberto.
Depois de um ano, o tio João,
meu irmão, que tinha aprendido a profissão de seleiro-lombilheiro,
com a idade de 19 anos, convidou-me para abrirmos uma oficina em pequena
escala, justamente na esquina da minha residência, onde é
hoje o negócio Nehls. Trabalhamos ali uma temporada, depois mudamos
para o arrabalde do Seminário, onde o Sr. Augusto Rossdeutscher
tinha um pequeno curtume. Aprendi, como tinha muita folga, a profissão,
e trabalhamos mais uma temporada juntos. O tio João gostava muito
de dormir pela manhã. Eu começava a trabalhar às 6
horas da manhã, e ele só levantava entre 8 e 9 horas. Éramos
fregueses de couros do curtume, e também pensionistas na bóia.
Todo dia a comida era picadinho de carne, feijão, arroz, às
vezes batatas. Um dia descobri que a carne para o picadinho de todos os
dias era tirada dos couros que vinham do matadouro, de que sempre ficava
um pouco. Desde esse dia, afastei-me da mesa especial, e fui ter ali perto,
na Cervejaria Batel, propriedade de Frederico Guilherme Schultze, como
pensionista, onde fui bem acolhido. Fiquei amarrado de mãos e pernas,
do que nunca pude me arrepender. Com a idade de 20 anos e 6 meses, tratei
casamento com a filha, Mathilde, e depois de nove meses as duas criançolas
foram ao matrimônio. Naquele tempo, o padre Alberto Gonçalves
foi quem nos casou. Uma boa esposa e mãe foi durante a sua vida,
e foi lamentável ter de deixar seus entes queridos antes do tempo
(e faço esta observação de entremeio porque agora
continua a nossa vida nova).
Como o meu sogro vivia atrasado em seus negócios, por sua própria culpa, perguntou-me se não queria arrendar a fábrica. Com boa proposta, aceitei, e comecei a trabalhar por conta própria. Naquele tempo, havia umas 10 fábricas neste ramo. Para fazer a venda nos negócios e nos bares, era necessário o patrão sair com uma carroça para a venda do produto. Ora, o preço naquele tempo era: cerveja simples, 1 dúzia 1$800, e a dupla, 3$600. Quando descarregava 2 dúzias de cerveja num freguês, era usual pagar uma a duas garrafas do tal líquido especial, e com isso ia o lucro, e também a saúde. Durante 6 meses estive dirigindo a fábrica; com tudo isso, tinha feito uma economia de 800$000, e resolvi com Mamãe seguir a S. Paulo para trabalhar. Chegados lá, resolvemos seguir até Campinas. Lá chegando, procuramos um hotel. Encontramos uma senhora de luto, e nos disse: — Voltem já a S. Paulo, aqui temos a epidemia de febre amarela, a bexiga preta. Aqui no hotel quase morreram todos. — Nós, de grande espanto, voltamos no trem do mesmo dia. Alugamos um quarto em S. Paulo, e tratei de conseguir emprego. Não encontrei logo, e como o dinheiro estava escasso resolvemos que a Mamãe voltaria a Curitiba. Levei-a a Santos e a fiz embarcar num vapor do Lloyd, ela em estado de gravidez. Era o mês de novembro. Eu voltei a S. Paulo e me empreguei num escritório como praticante. Trabalhei, fazendo economia para poder voltar a Curitiba. Em janeiro, voltei. Moramos com o sogro no arrabalde do Seminário, até que em 23 de março nasceu o primeiro filho, Albino. Sua parteira era uma cabocla. O parto foi muito feliz. Ao nascer, a parteira deu como primeira alimentação uma colherinha de café preto, para despertar.
Quando Albino tinha 3 meses, mudamo-nos para o Batel. Aluguei uma casa por 8$000 por mês. A mudança foi feita numa carroça de duas rodas. Mobília existente: cama de casal, 1 mesa, 2 cadeiras e um pouco de louças e panelas para cozinha. Comecei a trabalhar como lombilheiro. Lavrava caronas [?] para o Sr. Miguel Brescher, que tinha uma oficina onde é o Cruzeiro, residência hoje de Fritz Leitner. Miguel Brescher tornou-se nosso compadre, sendo padrinho de batismo do Albino.
Trabalhei assim uns 6 meses, até que a comadre brigou conosco. Ela tinha dado uns sapatinhos para o afilhado e pediu os sapatos de volta. Como tinha-se perdido um pé, devolvemos o outro para a digna comadre.
Nessa ocasião, o tio João
voltou de Ponta Grossa, aonde fora trabalhar uma temporada, e apareceu-me
uma oferta na vizinhança: uma casa, do Sr. Gomes Vidal, que hoje
pertence à família Bürgel. Aluguel: 20$000. Lá
começamos, tio João e eu, por uma oficina de lombilheiro,
e trabalhamos juntos até o começo do mês de março,
quando o Papai (Vovô) nos ofereceu a sua casa na Rua Riachuelo, onde
ele tinha tido a alfaiataria. Deixou de trabalhar; tinha comprado uma casa
na Rua Serrito. Para lá se mudou. Onde está hoje o Palácio
da Prefeitura, naquele tempo era o Mercado, e havia muito movimento de
tropas, com os caboclos, que traziam tudo quanto era mantimento. Resolvemos
mudar-nos, pagando a importância de 40$000 de aluguel por mês.
Pusemos uma oficina melhor e começamos a trabalhar de novo. Como
já tinha dito, tio João não gostava de levantar cedo
para o trabalho; tivemos várias rusgas, e ele resolveu mudar-se
para a frente do Mercado, onde é hoje a Papelaria Guimarães,
e lá estava à sua vontade, trabalhando no seu ofício.
As refeições tomava conosco. Aconteceu que eu lhe comprei
toda a sua produção, para colocar com a minha freguesia.
Eu já importava do R. Grande artigos de montaria, prataria e metais. Quem me vendeu a primeira fatura foi o Sr. Carlos Julio Becker de Porto Alegre; tornamo-nos bons amigos, e tivemos relações comerciais durante longos anos. Eu já estava em condições de vender por atacado, e mesmo aqui em Curitiba havia várias casas que eram minhas freguesas. O tio Albino tinha aprendido o ofício de mecânico na fábrica que naquele tempo era do Sr. Gottlieb Müller. Seu tempo de aprendizagem era de 3 anos, mas tinha acabado seu tempo; foi infeliz. Um dia, ao derreter ferro, teve uma queimadura numa perna, e não pôde trabalhar durante uns 3 meses. Foi quando o convidei para vir trabalhar comigo, aprendendo o ofício de seleiro, e também como caixeiro para a venda no balcão. Como havia naquele tempo muitos tropeiros que vinham ao mercado diariamente, tínhamos essa freguesia. Chegavam a comprar arreios e seus acessórios, em prataria etc. etc., a ponto de gastarem naquele tempo entre 300$000 - 500$000 e um conto de réis.
Em frente à minha casa havia o seleiro Carlos Gaertner, um hábil profissional. Fabricava entre outros selas para senhoras. Mas, como gostava da água de fogo, vivia grande parte do tempo nas vendas de bebidas, naquele tempo de Carlos Luhm e Irmãos. Era ali que se ajuntava a rapaziada da farra. Viviam a jogar os dados pela despesa das bebidas que tragavam. Quando vinha a freguesia dos caboclos o chefe não estava, e os seus ajudantes do ofício não podiam vender. Aproveitei a ocasião e lhe comprei toda a fabricação dos selins de senhora. Eu embolsava o lucro, e ele gastava na extravagância o que não podia. Resultado: com o tempo teve que fechar a casa e foi se empregar no Governo, na Escola de Artes e Ofícios.
Eu continuei a trabalhar e a malhar
enquanto o ferro estava quente. O tio Albino já tinha prática
da manipulação, e mandei dar-lhe lições de
Escrita Comercial com um tal João Boi Podlek [?], que nessa época
também era guarda-livros da casa. De ano em ano eu viajava para
o Rio Grande para fazer compras de arreios e acessórios para a montaria,
principalmente artigos de prataria. Na Praça Tiradentes, no prédio
de esquina em frente ao prédio dos Hauer, era a Cadeia. Havia presos
que trabalhavam em trançar rebenques, e os aparelhos de couro de
anta para cabeçadas, rédeas, rabichos, peitorais etc. Tinha
eu 4 pessoas que trabalhavam para mim, entre eles um de origem alemã,
Alberto Milke, que tinha 7 anos de cadeia. Mais tarde, quando terminou
seu tempo e teve liberdade, continuou a trabalhar. Morava além do
matadouro.
O cunhado Roberto já não tinha mais negócio nesse tempo, e morava na esquina da Av. Vicente Machado, onde hoje é o posto de gasolina do Sr. Kwasinski, que herdou aquela propriedade. Como não havia fornecedores para as tropas legais em campanha, e naquele tempo o Dr. Vicente Machado era Presidente do Estado, veio pedir ao cunhado Roberto para que fizesse o fornecimento às tropas. Ele respondeu que estava afastado dos negócios e não tinha auxílio. Então o Dr. V. Machado lembrou-se de que eu tinha trabalhado, quando solteiro, com ele. Então respondeu Roberto: — O Dr. fala com ele; se me auxiliar, eu me incumbo do fornecimento. — O Dr. veio, falou comigo, e eu aceitei. E começamos a fazer os fornecimentos. Eu era o encarregado de fazer o transporte nessas grandes carroças que eram requisitadas, entregar o que era necessário em mantimentos, e fazer um depósito de artigos à venda para as tropas. O lugar foi Tijucas, na divisa com S. Catarina. Eu requisitava gado para matança, e tudo o mais que era útil e necessário para os guerreiros. Nessa ocasião, convidei o meu sogro para me acompanhar e ajudar a tomar conta dos armazéns. Tudo corria muito bem, e eu tinha a possibilidade de ganhar bom dinheiro.
O primeiro pagamento que recebi no acampamento foram 55 contos. Vim a Curitiba montado, acompanhado de 12 praças, para entregar e fazer novas remessas de mercadorias. Levamos do meio-dia até a meia-noite viajando debaixo de chuva. Quando chegamos ao Batel, patrulhado por militares, legitimei-me com meus documentos, e fui acompanhado até o centro da cidade, ao quartel da Polícia, naquele prédio que hoje é dos Bombeiros. Deixei a minha mula na estrebaria, e vim engatinhando, à 1 hora da madrugada, até em casa. Bati bastante tempo à porta até ser atendido. Recolhi-me muito cansado e dormi logo, num sono pesado. Às 8 horas, levantei-me, tomei um banho, depois o café, e fui levar o dinheiro à casa do cunhado Roberto. Na minha oficina trabalhava-se com energia, para a entrega de mil barracas e outros apetrechos.
Depois de uns dias de descanso, prestes a preparar e carregar carroças com mantimentos etc. etc., veio a notícia de que Tijucas com suas tropas estava cercada pelos revolucionários, e houve grandes tiroteios. A coisa estava ficando crítica. Ficou resolvido seguirem tropas da Lapa, comandadas pelo Coronel Pimentel, e como as carroças carregadas já estavam em viagem tivemos que seguir. Neste caso, o cunhado Roberto resolveu, como quem dá um passeio, juntar-se às tropas em S. José dos Pinhais. Seguimos alugando um trole da Cocheira Boscardin. Mamãe não queria que eu fosse, mas não podia abandonar os companheiros que lá tinha deixado; e assim, ao encontro do reforço das tropas, seguimos para o destino.
No dia seguinte chegamos a Tijucas. Com o alarme do reforço, os revolucionários deram retirada. O comando deles era composto do Juca Tigre, de Gumercindo Saraiva e outros caudilhos, além de oficiais de várias tropas militares. Tivemos entrada franca, mas quando foi o dia seguinte estávamos de novo cercados; houve fortes tiroteios durante 6 dias, e eu com o cunhado Roberto entrincheirado. Tijucas tem uma praça grande, em cima a igreja. Eu servia os soldados com cachaça em copos grandes; quando estava servindo um soldado, um tiro de fuzil pegou o mesmo, e caiu morto. Daí por diante, não me arrisquei mais nessas aventuras. No nosso depósito fizemos trincheiras de sacos de arroz, açúcar, farinha e outros, para nossa garantia.
O comandante tinha ficado ferido, e assim outros, como houve também várias mortes. O Roberto estava ansioso por voltar. Como estava ficando a situação bastante crítica, e o comandante necessitava de novos reforços, mas não tinha comunicação, ficou então feito um plano para que nós, Roberto, meu sogro, mais 3 pessoas e eu, à noite batêssemos em retirada. Levaríamos pedidos por telegramas e outros documentos, contando da crítica situação, e pedindo urgência de reforços. Um velho caboclo serviu-nos de guia para a fuga pelos matos. E assim fizemos. Tudo ia muito bem, e já eram 9 horas da manhã, e já nos achávamos salvos, quando de repente ouvimos uns apitos, e não demorou para estarmos nas garras dos revolucionários. Quem fez a minha prisão foi um Capitão Walauer [?], da Guarda Nacional do Rio Grande do Sul. Tudo o que nos podia comprometer, como telegramas e outros documentos, por segurança tínhamos decorado, rasgado os mesmos e posto fogo.
Eu, por minha parte, tinha uma bolsa de viagem contendo faturas e 6 contos de réis em dinheiro. Pelo dito capitão fui revistado e aliviado de todos os valores, além de um relógio de ouro com corrente, com um medalhão que era uma onça, de grande valor. Por fim, queria me tirar as botas para eu ficar descalço. Implorei, e consegui por intromissão de outros, que me deixassem calçado. Com Roberto fizeram a mesma cousa. Depois de realizado esse drama, nós 2, como chefes da turma, fomos amarrados juntos num laço, este amarrado na cincha do cavalo. Dali nos levaram ao acampamento deles. Essa viagem levou mais ou menos umas 10 horas, passando por valas e rios, e tínhamos que acompanhar correndo muitas vezes, se não levar-nos-iam de arrasto (grande brutalidade). Roberto desmaiou várias vezes, implorava se eu não tinha um canivete; queria cortar as veias porque achava que não podia mais suportar as torturas. Mas eu ia sempre firme e com coragem. Os outros nossos companheiros presos iam escoltados soltos.
Noite alta, chegamos afinal ao acampamento, e fomos apresentados na barraca de Gumercindo Saraiva, que estava rodeado de vários oficiais do exército. Felizmente, alguns nossos conhecidos, dos tempos em que estavam destacados em Curitiba, nos reconheceram e se empenharam para sermos soltos. Assim foi-nos salva a vida; com certeza seríamos degolados. Fizeram cumprimentos ao Roberto, como fornecedor contínuo. Até na campanha já tinham apreendido várias carroças com víveres, e estavam em festa porque encontraram nas mercadorias vários petiscos: queijo, marmelada, conservas em lata, charutos, cigarros; em bebidas: vinho, cervejas, cachaça; e muitos outros artigos. Fomos divididos, para o pouso, em duas barracas. Uma velha cabocla teve dó de mim, e ali pela meia-noite veio até a barraca, e chamou-me: — Moço, eu lhe trago um chá de mate com biscoitos, para mecê matar a fome. — De fato, não tínhamos comido nada durante todo esse tempo, e ficou na memória a bondade da velha mulher. Nunca devemos desprezar ninguém, e dizer: não preciso do semelhante.
No dia seguinte fomos postos em liberdade, e continuavam os tiroteios. No terceiro dia os governistas, as tropas legais, tiveram que capitular, e nós entramos ao meio-dia no entrincheiramento [?] do lugar Tijucas. Na entrada, não me esqueço, havia um capitão da Guarda Nacional, Sr. Leprevost, que era morador do lugar. Foi ter de encontro com outro capitão da Guarda Nacional, morador também do lugar, numa pequena discussão (este fazia parte dos revolucionários). Sem mais nem menos, puxou seu revólver e matou na minha presença o Capitão Leprevost. Como médicos estavam ali os Drs. Georg Mayer Sênior e Brasilino Luz, que socorreram o mesmo, mas ao entrar no hospital de sangue expirou e estava morto.
Depois de mais um dia, o comandante tinha assinado a rendição por falta de munição e outros motivos. Tivemos licença de nos retirarmos e voltarmos a Curitiba. Grande parte voltou a pé; eu fui mais feliz. Deram-me uma mula arreada, e assim viajei com mais algumas pessoas. Chegando a Curitiba, pu-la na invernada do cunhado Roberto, no Portão, onde esse animal ficou uns 15 anos, e morreu de velho.
Cheguei em casa; tudo em Curitiba
estava alarmado: boatos e mais boatos. E eu voltei são, além
dos acontecimentos com a prisão, e os sofrimentos passados. Comecei
a trabalhar. Fazendo as contas mais tarde com o cunhado, tocaram-me 3:800$000,
uma bagatela considerando os grandes prejuízos com a apreensão
das carroças que caíram nas mãos dos revolucionários.
Mas ele foi indenizado pelos prejuízos e eu não. A honestidade
já começou a ser escassa, e tive que ficar calado. E assim
a sua fortuna foi crescendo. Eu, em todo caso, havia ganho com os fornecimentos
dos meus artigos uns tantos contos de réis. Daí por diante
fui trabalhando, e aumentando o estoque de mercadorias fabricadas em casa,
e das importadas do Rio Grande do Sul.
Nessa mesma ocasião, eu estava
hospedado em casa do Sr. Julio Becker, quando convidou-me para passar a
noite na Sociedade Lírica Germania. Numa 5ª-feira reuniam-se
para recreio; até lá fomos. Já havia uma mesa bem
comprida, com uns tantos cavalheiros. Fui apresentado a um por um, e não
é que fui dar com o tal Capitão Walauer, que me tinha saqueado
na Revolução, na minha retirada de Tijucas? Não pude
me conter, e disse que não me podia sentar a uma mesa, por encontrar
um bandido junto a eles. Apontei o tal capitão, e relatei tudo o
que acontecera com o tal sujeito. Pedi desculpas aos presentes e lhes disse
que amanhã havia de me encontrar com as autoridades para mandar
prendê-lo. Num momento ele se levantou da mesa e deu o fora. Um irmão
dele, Dr. Walauer, que goza de prestígio e é um bom médico,
também da casa do meu amigo J. Becker, foi me procurar depois de
uns dias, sabendo do caso, e me propôs indenizar-me pelos prejuízos
que me fizera seu próprio irmão. Não aceitei e lhe
disse que estava satisfeito de ter desmascarado o digno irmão. Foi
fatal para o meu Julio, mas ele me disse: — Deste uma lição
de mestre.
Quando saltei em terra, o tal Abraham
chegou-se a mim indagando de sua família, porque fazia tempo que
se tinha afastado. Eu olhei fixo para ele e lhe disse: — Não lhe
posso dar notícias de sua família, e lhe dou um conselho:
se me encontrar durante o dia mando prendê-lo, porque o Sr. é
um grande patife e um revolucionário e andam à sua procura.
— Quando cheguei a Pelotas, fui ter com um cunhado dele com quem eu negociava.
Ele me contou que o cunhado dele, Abraham, passara por ali, pedira dinheiro
e seguira apressadamente para Bagé. Fiquei quieto e não disse
que fora eu quem dera o susto nele. Outra paga pela malvadeza dele.
Chegou o ano de 1906. Já tinha aceito tio Albino como sócio, e fui fazer uma viagem à Alemanha, tratar de negócios de importação com a Casa A. Steffens, com que já tinha relações. Quando parti, tinha deixado a filha Adelaide adoentada, mas não gravemente. No dia em que embarquei no Rio, no transatlântico da HSA [4], recebi um telegrama a bordo, participando a morte da filha Adelaide. Fiquei bastante irritado. Não podia fazer nada: voltar com a passagem paga? Resolvi continuar a viagem, bastante constrangido.
Assim se passou o tempo até
chegarmos a Bremen. Foi receber-me o Sr. Gustavo Jester, procurador da
firma A. Steffens. Nossa chegada era às 2 horas da noite; a bagagem
ficou a bordo para ser entregue em Hamburgo. Fomos ao Bremer Rathauskeller,
depois de termos tomado quartos no hotel. Foi um jantar daqueles, regado
pelos bons vinhos do Reno. Enquanto estávamos na adega tudo ia muito
bem, mas quando chegamos ao ar livre não sei como foi: na manhã,
quando me acordei, vi o que se tinha passado comigo. Tinha vomitado tudo.
Com a cabeça ainda em revolução, toquei a campainha.
Chamei a camareira, pus 5 marcos na sua mão, e pedi que fizesse
uma faxina completa. Às 10 horas encontrei-me com o Sr. Jester:
tinha-lhe acontecido a mesma cousa. Um policial Constabler nos tinha
conduzido para o hotel num carro trole. Assim foi minha primeira viagem
à Alemanha, um grande porre que me incomodou vários dias
e me serviu de lição.
Antes da partida, começaram a vender todos os trastes da casa. Entre outros, Papai tinha um bilhete da Loteria Ipiranga, de S. Paulo; como tinham já por várias vezes prorrogado o prazo do sorteio, um amigo dele, vienense, Philipowski, tentou comprar o bilhete sabendo o número. De fato, tinha saído o sorteio naqueles dias em que Papai estava ocupado com outros afazeres. Vendeu o bilhete para o tal tratante, que sabia da lista que tinha vindo para a Casa do Sol, de um Sr. Barros, e esse bilhete era premiado com 10 contos, o que era bastante dinheiro naquela época.
Mamãe ainda fez ver a Papai que não vendesse o bilhete e o deixasse em mãos de uma filha. Ele respondeu que nunca fariam o sorteio, mas não venderia; o caso era que estava vendido para aquele ladrão. O interessante aí vem. Mamãe sonha á noite que dois gnomos lhe trouxeram muito dinheiro sobre a mesa. Ela conta e são 10 contos de réis. Contudo vem um outro, que tem um grande avental, passa a mão por cima da mesa e tira todo o dinheiro. Mamãe deu um grande grito e se acordou. Papai perguntou o que ela tinha. Ela contou o sonho e perguntou: — Será que vamos ser premiados? —, e Papai respondeu: — Sonhos são como Seifenblasen [7]. — E assim ficou calado e não contou que tinha se desfeito do bilhete.
Chegou a hora da partida, e seguimos numa diligência para o porto de Paranaguá (digo, Antonina), pela estrada da Graciosa. Como quis o acaso, não é que no meio da viagem encontramo-nos com o tal sujeito do bilhete de loteria, num trole puxado por 4 cavalos? Estava de volta a S. Paulo, buscar o dinheiro roubado ao Papai. Mamãe começou a chorar e a lamentar o acontecimento. Papai respondeu a Mamãe: — Se você continuar o lamento, na chegada ao porto me jogarei ao mar. — , e daí por diante houve sossego. Papai disse: — O destino marcou este dinheiro para não ser meu, e já me conformei com o caso. Mas o tal sujeito também não há de ser feliz com o roubo. — E assim de fato foi. O dinheiro acabou ligeiro, e o tal do homem morreu na valeta.
Em nossa chegada a Antonina, hospedamo-nos no hotel da Madame Roskamp, e no dia seguinte fomos, num grande bote a vela e remo, rumo a Paranaguá. Lá hospedamo-nos no hotel de Dona Anna Soares; ela era de origem alemã, muito carinhosa e atenciosa com seus hóspedes.
Embarcamos num vapor do Lloyd Brasileiro até Santos. Lá tomamos um vapor alemão e seguimos ao porto de Hamburgo. Para encurtar, quando chegamos à Áustria, à cidade de Gablonz a/N, onde nós tínhamos nascido, Papai logo comprou uma casa e começou a trabalhar no seu ofício. Mas não demorou muito tempo para começar a ficar descontente. Não encontrou mais o lugar assim como o tinha deixado. Seus companheiros estavam todos espalhados. A vida já estava diferente; começou o inverno rigoroso, e vieram os aborrecimentos. Estávamos em janeiro; Papai vendeu a casa, desta vez com lucro. Voltamos outra vez para o Affenland, e chegamos em Curitiba no mês de março. Nós, guris, tínhamos todos botas dessas bem pesadas, de inverno. Chegamos como imigrantes, como se fôssemos polacos; ficamos envergonhados e nunca mais usamos as botas, porque os guris daqui sempre debochavam de nós, chamando-nos de polacos, o que naquele tempo era um grande insulto.
Mudamo-nos de novo para a Rua Riachuelo,
e Papai comprou a casa que mais tarde lhe compramos, um sobradinho. Nesta
casa fiz o meu pecúlio, progredindo sempre.
Minhas viagens à Europa foram
a negócios, a recreio, e mesmo para tratar da saúde. Várias
vezes Mamãe me acompanhou nessas viagens. [8] Em 1899, tinha resolvido
passar uma temporada na Europa com a família. E assim fizemos. Chegamos
ao porto de Hamburgo e seguimos para a Áustria, para Gablonz a/N,
cidade de minha nascença. Foi onde a Elfrida nasceu. Ficamos uma
temporada aí. Albino levei a Hamburgo para os estudos, e lá
ficou cerca de 6 anos. Nós já estávamos de volta a
Curitiba, e o Albino voltou depois dos seus anos de estudo para logo mais
voltar a Hamburgo, para praticar no comércio na casa de nossas relações,
firma A. Steffens. Ficou como voluntário 2 anos. Terminado esse
tempo, voltou a Curitiba, começando a trabalhar conosco. Foi quem
mais pôde aproveitar a educação.
O curtume, com aquele colosso em
terrenos, prédios etc., custou com escritura 24:500$000, vinte e
quatro contos e 500.000 réis, e a Casa Favorita com o prédio
velho veio a custar 26 contos de réis, e o tio Albino sempre com
medo para esses negócios. A casa sobradinho da mesma rua foi vendida
por 60 contos, e nós a tínhamos comprado de Papai por 22
contos.
Aqui nesta casa nasceram Alice, Rudi,
Alfonso e Tito. Eu tinha feito esta casa porque na R. Riachuelo a casa
não tinha quintal, e não se podiam deixar as crianças
na rua. Aqui foi para o bem de todos. Quando mudamos para cá tínhamos
como crianças: Alzira, Elfrida, Albino e Linchen, que puderam em
conjunto gozar a natureza. Nossa casa era para aquele tempo um palacete,
e um dos primeiros chalés nesta rua. Tínhamos uns anões,
Heinzelmännchen
[10], que eu tinha trazido da Alemanha, e pusemos no jardim da frente;
eram a atração da criançada que com os pais, aos domingos,
passava pela frente da nossa casa para admirá-los. Eram os primeiros
que apareceram em Curitiba.
Viagem a S. Paulo etc. |
487$000
|
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Despesas em Santos |
82$500
|
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Idem, Rio de Janeiro |
80$000
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Passagens
Santos - Hamburgo
(3 passagens inteiras 2 ½ passagens 1 ¼ idem 6 pessoas) |
2:000$000
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Despesas a bordo |
360$500
|
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Total
3:010$000
|
Quanto custaria hoje?
Como eu já tinha estado em Amsterdam, no hotel cujo proprietário se chamava Emilio Nagel, correspondi-me com o mesmo de Hamburgo, avisando que seguiríamos em caravana, e esperava que nos fizesse um preço especial durante nossa estada ali. E de fato foi camarada conosco; passamos dias bem agradáveis até nosso embarque. Na véspera da partida, na última noite, o proprietário do hotel, Sr. Nagel, com sua senhora e um casal de filhos de maior idade ofereceu-nos uma surpresa em seus aposentos. Um concerto: a filha ao piano e o filho ao violino: artistas, alegria e canto. Foram servidos doces, vinho e champanhe. Assim, despedimo-nos na manhã seguinte, agradecendo as gentilezas, e por muitos dias, a bordo, falávamos dessa bela gente. Preciso ainda observar que, quando chegamos de Hamburgo a Amsterdam, no hotel, à tarde sentamo-nos à mesa das refeições. O cardápio era todo de primeira: o pão alvo, manteiga, queijo, presunto etc. Ficamos encantados porque fazia tempo que nos faltava esse alimento. Em Hamburgo, tocavam a cada pessoa 200 g de pão por dia, 90 g de gordura por semana, e assim por diante.
Durante a Guerra e nossa estada em Hamburgo, havia também ali uma família de Petrópolis chamada Alberto Schaefer e Senhora, e o filho Alberto. Tínhamos tido relações de amizade. Em 1915, o Brasil e Portugal tinham entrado na Guerra, e eles estavam com as relações cortadas, e não lhes vinha mais dinheiro. Estavam numa situação crítica, sem meios de vida. Perguntaram-me se não era possível lhes emprestar a quantia para 3 passagens até Portugal. Fui ter com o Sr. A. Steffens, contando da situação deles, e prontificou-se a pôr à disposição 1.200 M; e assim pude lhes servir para saírem desse aperto.
Em 1919 o filho, Sr. Alberto, foi a Hamburgo buscar a noiva para casar, e escreveu-me antes de sua partida, perguntando se queria mandar alguma coisa para Linchen. No Rio faziam fornecimento. Levou um caixão com 50 quilos de mantimentos, e roupas para Linchen e Sr. Jester. Entregou tudo, despachou para Dierdorf, e não me cobrou nada pelas despesas que teve, em gratidão por eu lhes ter servido num momento de aperto.
Nossa viagem a bordo, em 2ª
classe, custou já 5 vezes mais do que no Cap Verde para Hamburgo.
Em alto mar, uma Sra. Ignacia Paula França, com um filho doente
tuberculoso, que viajava de 1ª classe, soube que eu também
estava a bordo, por intermédio de um enfermeiro suíço
que os acompanhava. Mandou me chamar para poder falar comigo. Em poucos
dias faleceu o filho, e me implorou fazer o possível para o cadáver
ser embalsamado. Ela não queria que fosse enterrado no mar, mas
também não tinha recursos em dinheiro. Fui ter com o comandante
e o médico; concordaram em embalsamar, sendo o custo 1.200 ƒl.
Afinal, consegui pela metade do preço. E agora, arranjar o dinheiro.
Fui ter com minha caravana. Todos tinham dinheiro para as despesas extras.
Reuni tudo, e paguei o doutor de bordo. Na chegada ao Rio, Mamãe
e eu fomos comprar roupas e chapéu de luto para a senhora, e pedir
dinheiro para meu amigo João Soares, e restituir as importâncias
aos meus companheiros de viagem. Em Santos foi o desembarque. Chegamos
a Curitiba, e a mulher não se mexia para pagar. Levou meses para
liquidar, e ficou ainda aborrecida de eu ter pedido o que me devia. O enfermeiro,
que tinha uma economia de 10 mil francos, pô-la à disposição
para poderem voltar. Levou quase 2 anos aqui para receber. Também
se encontra gratidão desta espécie.
Chegando a Hamburgo, falei ao Sr. Steffens o fim da minha vinda, e ele me recomendou o seu médico da casa, Dr. Ochs [?]. Depois de ter-me examinado, me disse: nada de operação, e mandou-me para as águas termais de Karlsbad. Tinha levado o Albino em minha companhia. Lá fiquei me tratando um mês, enquanto Albino voltava a Hamburgo. Depois viajei: fui a Gablonz a/N visitar os parentes, principalmente o primo Adolph Richter e outros, fui à Suíça e outros lugares. Na volta a Viena, na minha partida de trem para Hamburgo, começou de novo a inflamação. Sofri horrivelmente até minha chegada em Hamburgo. Mandaram-me para o Marienkrankenhaus. Lá fiquei me tratando 15 dias, e me lembrei do médico Dr. Ochs, que era um verdadeiro animal, Heuochs [?].
Voltei sem fazer operação, e a bordo, na metade da viagem, outro acesso de inflamação. Não sei como pude suportar. Chegando a Curitiba, em casa, passou uma temporada sem inflamação, mas de tempos em tempos tornava o sofrimento. [14] Chegou o ano 1903, e resolvi fazer nova viagem a Hamburgo, dessa vez com a resolução de fazer a operação. Já havia nessa época um Professor Dr. Kümmel, especialista. O Rei da Inglaterra tinha mandado fazer semelhante operação, seguindo o Dr. Kümmel a chamado, como especialista, para assistir. Isso serviu de reclame. Daí veio minha resolução. Fi-lo ver a Mamãe; nessa época Alice tinha 6 meses de idade. Ela resolveu energicamente e me disse: — Eu te acompanho, não te deixo ir só como há 2 anos atrás. — Repliquei: — E a Alice? — Levo também. — Naquele tempo uma operação de apêndice era cousa do outro mundo. E assim foi; nessa época foi inaugurada uma linha italiana de navegação, para partir do porto de Paranaguá. No vapor Rei Humberto tomei passagens até Gênova.
Nessa ocasião foi em nossa companhia o filho do compadre Dr. Georg Mayer, também do mesmo nome, Georg, para estudar na Alemanha a Medicina. Na partida daqui a Paranaguá, tínhamos um carro especial da estrada de ferro, acompanhados pelo compadre, Dr. Westermann e Engenheiro Lange. Em Porto da Água hospedamo-nos no Hotel Modesto Johnscher, até a partida.
Tivemos uma viagem muito boa até Gênova, Alice é que dava bastante serviço. Em Gênova hospedamo-nos num hotel de conforto. Ficamos uns dias, e seguimos viagem até Roma, depois Milão, Zürich na Suíça, dali diretamente até Hamburgo. Em Lahr um médico, amigo do Dr. Mayer, esperou nossa passagem para receber o Georg, que nos deixou com lágrimas nos olhos. Alice foi muito impertinente durante a viagem de estrada de ferro. Afinal chegamos ao nosso destino. Hospedamo-nos no Hotel Rau, já meu conhecido, em frente à Estação Central (Glockengießerwall). No dia seguinte fui consultar o Prof. Kümmel, e me disse: — Convém fazer a operação breve. — Eu estava de acordo; ele telefonou ao Eppendorfer Krankenhaus para saber se tinham leito vago, e ficou resolvido eu entrar à tarde, para ser operado no dia seguinte. Voltei para casa, e disse a Mamãe: — Eu tenho que me apresentar à tarde. Levarei uma valise com o necessário para pernoitar, para lá fazerem um exame completo. — Não lhe disse que na manhã seguinte seria operado, porque ela tinha tanto receio. Lá no hospital, deixei o endereço de Mamãe. E de fato na manhã seguinte fui operado, rodeado de uma dúzia de médicos assistentes. Dali me levaram ao bangalô, ao leito, e telefonaram a Mamãe, dizendo que eu estava operado, e que passava bem, e que no dia seguinte podia me visitar. Assim eu evitei haver cenas, e ela podia estar tranqüila. No dia seguinte, na hora marcada, ela veio com Alice nos braços, e assim todos os dias seguintes. Levei 15 dias para me darem baixa. No quinto dia de operado, veio de manhã a Superiora, me propor se eu não queria aceitar um senhor também doente de apêndice, porque não havia leitos vagos. Ele traria o tal senhor, e se eu simpatizasse e estivesse de acordo, que lhe dissesse. Claro que dividi o meu quarto com o senhor, de nome Hertel, e ficamos bons amigos, e eu tinha bom companheiro e distração. Esse senhor ficou 51 dias no hospital. Hoje se faz essa operação e no terceiro dia já se tem baixa. Para convalescer fui para Melmo [?], perto de Karlsruhe: um parque com mato, muitas lagoas, ideal para passeios, pois é um bom Erholungsheim [15].
Voltei a Hamburgo, tratei de negócios,
fizemos mais algumas viagens e voltamos num vapor do Bremer Lloyd até
o Rio; de lá, num vapor da Costeira até Paranaguá.
A Vovó Schultze tinha ficado em casa com os outros filhos. Chegamos
a Curitiba com grande recepção e alegria. Assim terminou
a nossa viagem, e eu fiquei curado do mal.
Nessa mesma época, o Sr. José Hauer Sênior, com sua segunda esposa, foi de mudança para lá, por desgostos familiares, e tinha uma Villa Curityba no Nerotal. Em todas as minhas viagens sempre lhe fiz visitas, e ele um dia me contou toda a tragédia em Curitiba, com parte de seus filhos. Quando casou em segundas núpcias, os filhos acharam-se no direito de repelir o casamento. Um dia ele e a senhora foram assistir a uma missa na Catedral, e a filha dele, Anna Leitner, sentou-se atrás deles para arrancar um colar do pescoço da senhora. Nessa época a Empresa Força e Luz era dele, e havia lá um engenheiro chamado Hacker. Tinham construído uma chaminé nova, e convidaram-no para examiná-la até o fundamento por uma escadaria abaixo, mas ele devia seguir na frente. Ele compreendeu que havia uma ligação elétrica e seria fulminado ao descer. Ele usou comigo uma expressão que só eu podia compreender (Sie wollten mich Hamvultandieren [?] [16]). Hamvultando [?] assassinou um compadre dele chamado Blegi, funileiro na Rua Riachuelo, que lhe tinha emprestado 7 contos de réis. Chegou o tempo do vencimento, e pediu seu dinheiro. O H. chamou seu compadre à sua residência na Rua Desembargador Mota, em frente de onde mora o Sr. Alfonso Hauer. Recebeu-o com muita gentileza e mandou-o sentar-se à escrivaninha para passar o recibo. Enquanto isso, ele e um capanga dele mataram a cacete por detrás o Sr. Blegi. Preso o assassino, eu fui sorteado como jurado, e foi condenado a trinta anos. Continuou o Sr. Hauer: — A meus 3 filhos, Paulo, José, Bertholdo, eu entreguei-lhes a empresa elétrica, que naquela época dava de lucro tantos contos de réis como há dias por ano. Dei-lhes boa educação, deixei-os todos em boas condições, e acharam, parte deles, que ainda tinham direito de se meterem na minha vida particular. — Houve demandas entre eles, panfletos espalhados pelos advogados, escândalos e mais escândalos. Bastaram os aborrecimentos; ele vendeu todas as suas propriedades em Curitiba e veio embora para a Alemanha para nunca mais voltar.
O Sr. J. Hauer e senhora, além
de serem muito católicos, davam-se muito com o Sr. Pastor Becker
e família, de forma que Linchen foi muito obsequiada pelo Sr. José
Hauer e senhora durante sua estada em Wiesbaden.
Seguimos num vapor austro-americano cujo destino era Trieste; desembarcamos em Nápoles. Levei meu sobrinho Evaldo Hauer junto em nossa companhia, para aprender o ofício de relojoeiro na Alemanha.
A bordo, travamos conhecimento com vários passageiros, e todos tinham pena de Mamãe, mas felizmente resistiu bem a toda a travessia do oceano. Só o Evaldo nos deu vários desgostos a bordo. Aí havia até queixas para o comandante. Ele, com um espelho no sol ardente, aplicava o reflexo no rosto de senhoras e torcia as orelhas de pequenos guris, de forma que foi preciso repreendê-lo energicamente. O tratamento a bordo dessa companhia foi o pior de todas as minhas viagens.
À meia-noite chegamos em Nápoles, debaixo de chuva, e tivemos que desembarcar numa lancha. O porto de desembarque era afastado quase uns 4 quilômetros da cidade, sem autos para o trânsito, de forma que um italiano, napolitano, passageiro conhecido a bordo, foi a pé até a cidade buscar um auto. Chegamos no hotel às 2½ horas da madrugada, e a Mamãe suportando tudo. Na dia seguinte Mamãe insistiu para nós visitarmos Pompéia. Mesmo fazendo-a ver que ela cansaria, foi preciso fazer-lhe a vontade. Ajustei um cicerone, e seguimos de trem depois do almoço: uma hora de viagem. Apreciamos Pompéia; foi-nos declarado tudo pelo cicerone. Ali havia umas charretes puxadas por 2 animais, que faziam corridas até o Vesúvio. Pois Mamãe insistiu de novo nesse passeio, que levou umas 3 horas de ida e volta. Chegamos a Nápoles à noite, descansamos, e no dia seguinte, à tarde, visitamos os museus importantes. Vimos múmias em várias posições da tragédia de Pompéia, e muitas outras coisas importantes que não podem ficar todas na memória. O porto e a praia de Nápoles são em menor escala do que os do Rio de Janeiro.
Seguimos para Roma. Ficamos uns dias para descanso; visitamos e apreciamos tudo o que era recomendável: a Catedral de S. Pedro do Vaticano, com um terraço muito grande na frente com escadaria de pedra e mármore. Ali estão postados aleijados, mendigos de toda espécie, pedindo esmolas (plena miséria), e o contraste se encontra na igreja, riquíssima em pedras preciosas e trabalho em ouro. Que tristeza: miséria na frente e riqueza lá por dentro.
Seguimos para Milão: outro descanso. Visitamos o Campo Santo. Que arte e riquezas em monumentos de sepulturas, que não dá para descrever, só mesmo vendo.
Seguimos para Zürich na Suíça, viagem final, passando o Túnel de S. Gotardo, de muitos quilômetros, e na saída logo estávamos na divisa com a Suíça. Chegamos a Zürich e nos hospedamos num bom hotel (Weißer Hirsch). Como tinha recomendação de um médico, professor especialista, chamei-o pelo telefone. Logo atendeu, examinou bem, e mandou buscar uma ambulância para o transporte à casa de saúde chamada Paracelsus, em frente a um grande lago navegável. Quando tinha acabado de examiná-la, Mamãe desmaiou. Ele indagou como tinha suportado a viagem. Eu lhe contei os desejos de ela querer ver Pompéia, Roma etc., depois da chegada a Nápoles. Ele ficou admirado de como ela pôde resistir a tudo. Mas o interesse pela natureza, e de ver tanta cousa, desviou-lhe a atenção da doença. Eu lhe fazia todas as vontades; podiam bem ser as últimas.
Na casa de saúde, foi tratada com todo o carinho por 3 médicos e boas enfermeiras. Os médicos estavam com cisma de que fosse cancro do estômago. Felizmente foi negativo. E assim, com aquele trato bom, voltou a sua saúde. Todos, na casa de saúde, simpatizaram com o gênio que ela tinha; os médicos foram conscienciosos, e cobraram a tabela dos nacionais suíços. Eles têm para estrangeiros outra tabela.
Enquanto Mamãe estava na casa
de saúde, eu morava em uma pensão muito boa. Estávamos
em correspondência com o Frederico, que era noivo da Linchen. Veio
a Zürich fazer uma visita e se apresentar. Tínhamos combinado
que quando ele entrasse na estação de Zürich trouxesse
o envelope da minha carta na mão, para eu reconhecê-lo. Eu
estava na estação para recebê-lo; os passageiros vinham
saindo e ele também, com o envelope na mão na altura do peito.
Eu fingi que não o vi. Ele olhou à direita e à esquerda;
era de se dar risadas. Aí me cheguei a ele e me apresentei como
seu futuro sogro. Levei-o à minha pensão, e depois fomos
à casa de saúde, apresentar a Mamãe. Ele levou uma
corbelha de flores.
Voltamos a Santos, e no Balneário
José Menino tinha sido inaugurado o Park Hotel. Lá ficamos
até nossa volta a Curitiba. Eu tinha gasto nessa temporada 712$000.
Quanto custaria hoje?
Em 14 de junho chegamos a Amsterdam. Hospedei-me no hotel de propriedade do Sr. Nagel. Desde 1916 eu conhecia o hotel, quando a caravana voltou para o Brasil. Dali segui a Hamburgo. Nessa época o marco estava a 150 - 200 réis. Lá fiquei até o dia 29, quando segui para Dierdorf. Em 4/7 Linchen e Frederico me acompanharam num passeio de turismo pelo Reno, que durou uns tantos dias.
Em Köln fiz umas tantas compras, com a ajuda de Linchen: tudo presentes em roupas e outros objetos. Lembro-me do Manchester-Jagdanzug [26] que custou 720,00 M: a 200 réis, 360$000 [sic]. Durou até hoje, e está com o Rudi, que o ocupa para as suas caçadas, de forma que tem 26 anos de existência.
Em 20/7 estive no Jungborn am Harz, fazendo um tratamento de prisão de ventre e nervosismo. O proprietário era o Sr. Dr. Jungbluth. A vida era a natureza, e o nudismo vegetariano. Havia umas tantas casinhas para uma e duas pessoas, cada uma com um nome, desde o Rathaus [27] etc. Eu compartilhei uma com um senhor de Hamburgo. De manhã, às 6 horas, tocava-se alvorada; todos se levantavam, como num quartel, faziam suas necessidades e tomavam o banho ao ar livre, sem se enxugarem. Às 6½ horas era dado um sinal pelo corneteiro. Íamos ao campo do exercício, comandado pelo Sr. Dr. Jungbluth, que levava ½ hora. Depois seguíamos em Gänsemarsch [28] de volta. Fazíamos parada no Rathaus, e o Bürgermeister, prefeito nomeado pelos presentes, um senhor idoso, de barba branca e careca, nu e de cartola, fazia um discurso humorístico. Depois cantávamos Volkslieder [29]. Acabado isso, todos se recolhiam às suas residências. Vestiam-se de roupa Reformkleidung [30] e sandálias, para tomar as refeições em grandes mesas com mais ou menos 600 pessoas, num amplo salão. O menu era o seguinte: Schrotbrot [31], Käse [32] de várias qualidades, leite, frutas da época, nozes, castanhas etc. etc. Quando essa massa de gente trabalha com o Nußknacker [33], podem ter uma idéia do som que dava. Havia, durante a refeição, muita alegria e gargalhadas, e não se sabia muitas vezes por que tanta gargalhada. As senhoras tinham seu parque à parte, mas junto ao nosso, e havia também separação para as famílias. Durante o dia tomava-se banho de sol, ou na sombra, ou Lehmeingrabung [34], conforme a doença. Também havia uma terra preparada (Heilerde [35]). Misturando uma colher de sopa num copo d’água e tomando-a à noite, fazia um efeito purgativo de deixar os intestinos completamente limpos, e um bem-estar. Lá estive uma temporada, e saí de lá bem disposto. Tinha-me sido recomendado pelo Sr. Rodolpho Müller, já falecido.
[36] Em 9/8 segui mais uma vez para Dierdorf. De lá fizemos mais alguns bons passeios, como a Rengsdorf etc. etc.
Em 15/8 segui para Amsterdam para
embarcar no vapor Brabantia de volta até o Rio de Janeiro.
Dali segui num vapor nacional até Paranaguá, e finalmente
fui de trem até Curitiba. Assim se acabou minha viagem de 1921.
Alfonso ficou numa clínica-sanatório, de 12 de abril até 5 de maio. Nesse tempo, desaparecia um ou outro dia, de forma que prejudicava a sua cura. Eu segui viagem até Dierdorf em 13 de abril, e em 27/4, com Erhard [38], fomos pelo trem até Wetzlar, visitar os parentes de Ricardo [39]. Estivemos hospedados num hotel; as refeições tomávamos com os pais do Ricardo, e fizemos vários passeios pelos arredores etc. etc. Depois de 3 dias voltamos para Dierdorf, depois fui a Koblenz a/Rh e acompanhei, numa lua cheia, uma excursão num vapor de passageiros de luxo, que durou das 8 horas até 1 hora da madrugada. Houve banquete e dança a bordo, muita alegria, bom vinho, canto, abraços de gente que nunca se tinha visto na vida. De volta a Koblenz, à 1 hora da madrugada, fomos ainda a um restaurante que estava para fechar porque era Sperrstunde [40]. Convidamos o polícia (Constabler) para nos acompanhar, e com as portas fechadas prolongaram-se a festa e a alegria até às 3 horas. Eu estava hospedado no Hotel Kronprinz em Ehrenbreitstein, em frente a Koblenz, passando o Rio Reno. Todo o grupo me acompanhou até o hotel para a despedida, e enquanto me recolhia começaram a cantar. Tive que aparecer na janela. Enquanto isso, veio um Constabler e pediu silêncio: Ruhestörung [41].
Em 19/5/30 acompanhei uma viagem de excursão, via Suíça, à Itália. Parti de Hamburgo até Baden-Baden, muito bonita estação de águas termais. De lá segui para Basel, Suíça, onde se encontrou o grupo, que era composto de 38 pessoas. No dia seguinte, seguimos viagem até o Vierwaldstätter See e S. Gallen. A bordo de um vapor de passageiros, seguimos viagem via o grande lago até Flüelen. Eu tinha feito amizade com o guia, cicerone, que era o proprietário da empresa. Em todos os hotéis, eram-lhe ofertados bons petiscos e champanhe. Eu fui sempre convidado para participar das festas, que eram separadas dos outros viajantes. Em seguida chegamos a Milão, Roma, Veneza, Bolzano e Merano. Estas duas últimas cidades pertenciam antes da Guerra ao Tirol, Áustria. A senhorita Bianca, que estava naquela época em Roma, a meu convite acompanhou a excursão pelo resto da viagem a parte da Itália. Era naquele tempo noiva de Alfonso. De Merano seguimos para Innsbruck e München, e ali terminou a viagem da turma. De München segui pelo Brenner até Viena, Praga e Gablonz. Demorei-me alguns dias com os parentes, em casa do primo Adolph Richter. Fiz um churrasco à riograndense, que foi muito apreciado. Em seguida fui a Dresden. Lá havia uma Exposição Higiênica, muito interessante. Parti para Leipzig e Berlim, finalizando a viagem em Hamburgo.
Em 14 de março, em viagem
no Cap Arcona, na altura da ilha Fernando de Noronha, foi inaugurado
o Correio Aéreo. Recebemos ali a correspondência do avião,
o que era uma grande sensação para os passageiros; os cartões
ilustrados existem na minha coleção de cartões ilustrados.
Depois de poucos dias, o Sr. Soares me convidou para acompanhá-lo no seu auto para a cidade, e apresentou-me vários colegas comerciais do mesmo ramo. Dali por diante comecei a trabalhar. Vendi para várias firmas uns 3.000 pares de perneiras e outros tantos pelegos. Assim, voltamos em 16/5, por terra, via S. Paulo, onde ficamos mais uma semana, e seguimos pelo trem a Curitiba.
Eu tinha que embarcar para Buenos Aires, Argentina, fazer compras de pelegos e outros materiais, para os compromissos de venda que assumi no Rio. Segui depois de poucos dias para Paranaguá, tomar um vapor para Santos. A bordo, jogamos pôquer à noite. Perdi 75$000. No dia seguinte devíamos chegar cedo a Santos; houve um desarranjo nas máquinas, que nos atrasou umas 6 horas. Fui convidado novamente ao jogo. A sorte esteve do meu lado e ganhei 680$000 em duas horas; limpei os companheiros, e desistiram, o que achei muito bom. Chegamos a Santos à uma hora da tarde.
Em 7 de junho embarquei no vapor Pan-America (norte-americano) para Montevidéu. No camarote de luxo a passagem custou 610$000, e ainda sobrou dinheiro do jogo para extraordinários e gorjetas a bordo. Em 9/6, de manhã, chegamos a Montevidéu. Hospedei-me no hotel, pagando 8 pesos-ouro (a 9$000: 72$000 a diária), naquele tempo. A cidade é bonita, com uma praia balneária de luxo. Os argentinos vêm fazer suas temporadas, porque Buenos Aires não tem praia, só o Río de La Plata, sujo e amarelo. Tratei de alguns negócios e segui viagem, depois de 3 dias, num vapor noturno, que parte de Montevidéu às 8 horas da noite e chega às 7 horas da manhã a Buenos Aires. Havia telegrafado ao Sr. Augusto Steffens, mas não estava no porto. Ele morava no arrabalde Tigre, e só encontrou o telegrama no dia seguinte. Pelo agenciador fui ao hotel, que era de um judeu. Fui ao escritório de A. Steffens e me informaram de um bom hotel alemão; logo me mudei para lá. Era inverno, muito frio, e no hotel não havia estufas. Depois de mais 2 dias, mudei-me de novo para o Royal Hotel, na Calle Corrientes, que tinha aquecimento central. Senti-me bem; entrei em negociações para compra de pelegos e quebracho com a firma Irmãos Hermanos [sic]. Também estive em contato com os diretores Nued Soe [?] americanos.
O mercado de couros é uma coisa fantástica. Encontra-se tudo o que diz respeito a este ramo. Em poucos dias tinha realizado os meus negócios. Tive vários convites; a firma Hermanos ofereceu-me um banquete no terraço do maior prédio da cidade, na Calle Florida, com 30 andares. O restaurante tem um luxo extraordinário; a vista à noite é linda. Éramos 4 cavalheiros, e para cada um havia um garçom em libré: os melhores pratos do dia, vinhos, champanhe, licores, charutos etc. Custou essa festa alguns pesos. Houve outro convite, dos americanos, num restaurante de luxo, de forma que gozei à vontade. Outro jantar: na residência do Sr. A. Steffens, onde passei o domingo todo.
Há casas de café especiais,
que nem em S. Paulo ou no Rio se encontram iguais. Tudo tem o tom europeu.
Em 22/6 segui via trem para Libres, divisa com o Brasil. A noite toda viajamos;
em balsas, com o trem, pelo Rio Paraná, que é um colosso.
Chegamos às 4 horas de tarde em Libres. Dali seguimos para Uruguaiana,
atravessando em balsa o rio do mesmo nome [sic]. Pernoitei, e no
dia seguinte, de madrugada, segui de trem até S. Maria da Boca do
Monte. Chegamos às 8 horas da noite; pernoitei e no outro dia, às
8 horas, embarquei de novo para Porto Alegre. Chegamos ao fim da viagem
às 5 horas da tarde. Hospedei-me no Hotel Guahyba. Fiquei uns poucos
dias para visitar o meu amigo Carlos Julio Becker, que tem uma vivenda
esplêndida no arrabalde Tristeza, na praia da Lagoa dos Patos. Passei
uns dias em sua companhia, até a partida num vapor da Costeira.
O amigo C. J. Becker me ofereceu a passagem num camarote de luxo para mim
sozinho. Ele tinha muita estima por mim, um verdadeiro bom amigo.
Em 1903, segui de novo à Europa,
fazendo outra temporada na cidade em que nasci. Na minha volta, tio José
Richter resolveu conhecer