Notas sobre a ocorrência e distribuição de Eudocimus ruber (L., 1758) (Aves, Threskiornithidae) no Estado de São Paulo ©

    Celso Lago-Paiva

    Pós-graduação em Ecologia, Departamento de Zoologia, UNICAMP, Campinas, São Paulo
    Endereço atual para correspondência: Assessoria de Pesquisas, Centro de Memória UNICAMP – CMU, Caixa Postal 6023, Campinas, Estado de São Paulo, 13084-971, Brasil.
    celsolag@terra.com.br



    Key words: Eudocimus ruber; distribution; São Paulo State; estuarine system; Threskiornithidae.
        Eudocimus ruber; distribuição; Estado de São Paulo; sistema estuarino; Threskiornithidae.


    Abstract

      [Notes on the occurrence and distribution of Eudocimus ruber (L., 1758) (Aves, Threskiornithidae) for São Paulo State, Brazil]. Acta Biologica Leopoldensia 16(2):119-124, 1994.
          The only museum specimen of Eudocimus ruber (Aves, Threskiornithidae) known at present for the São Paulo State (SP), Southeastern Brazil, was collected at the mangroves of the estuarine system of São Vicente, central littoral of the State, on January 1st, 1961, and deposited in the ornithological collection (ESLQ) of the Zoology Department, ESALQ/USP, Piracicaba, SP, Brazil. The study of the historical evolution of the local biota and of the environmental alterations may provide guidelines for a management plan for the system.


    Resumo
        Notas sobre a ocorrência e distribuição de Eudocimus ruber (L., 1758) (Aves, Threskiornithidae) no Estado de São Paulo. Acta Biologica Leopoldensia 16(2):119-124, 1994.
          O único exemplar de museu de Eudocimus ruber (L., 1758) (Aves, Threskiornithidae) conhecido atualmente para o Estado de São Paulo, Brasil, foi coletado em 01 de janeiro de 1961 nos mangues do sistema estuarino de São Vicente, litoral central do Estado, e depositado na coleção ornitológica (ESLQ) do Departamento de Zoologia da ESALQ/USP, em Piracicaba, São Paulo. O estudo das alterações históricas da biota e dos ambientes pode fornecer subsídios para manejo do sistema.



    Apresentação

      O guará Eudocimus ruber (Linnaeus, 1758) (Aves, Threskiornithidae) tem sua distribuição original desde o Equador e Colômbia (incluindo Trinidad e parte das Antilhas), através de quase todo o litoral brasileiro, desde o Amapá até Santa Catarina (SICK, 1985). A espécie tem sido citada para o litoral do Estado de São Paulo, com base em observações pessoais de H. Staden em 1557 e do padre J. de Anchieta em 1560 (PINTO, 1979; SICK, 1985; MARCONDES-MACHADO et al., 1989), e deste século de J. G. Cruz Filho, E. F. Santos e W. Valdiviese (BOKERMANN e GUIX, 1987, 1990). Todas as observações referem-se ao litoral central do Estado (sistema estuarino com manguezais, nos municípios atuais de São Vicente, Cubatão e Santos; descrição do sistema e avaliação da biota em LUEDERWALDT, 1919), a Itanhaém (litoral central) e a Iguape, no litoral sul do Estado.

      Diversos grupos de E. ruber foram encontrados entre janeiro de 1989 e abril de 1993 no município de Cubatão, alimentando-se e nidificando no manguezal (MARCONDES-MACHADO e MONTEIRO FILHO, 1989, 1990; MARCONDES-MACHADO et al., 1989; ARGEL-DE-OLIVEIRA et al., 1993).

      VON IHERING (1898) menciona exemplar da costa do Estado de São Paulo, depositado no Museu Paulista (hoje, Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, MZUSP). VON IHERING e VON IHERING (1907) citam um exemplar da espécie do Estado de São Paulo, depositado no Museu Paulista. PINTO (1938) não lista exemplares da espécie para o Estado, mas em 1964 menciona sua ocorrência em São Vicente e Iguape, no litoral desse Estado, sem citar espécimes ou informantes, relatando não existirem exemplares no Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo. H. F. A. Camargo (com. pes., 25 nov. 1993) informou não haver na coleção seriada do MZUSP nenhum espécime de E. ruber desse Estado e sugeriu que o exemplar citado em 1898 e em 1907 tenha se perdido ou, sendo um exemplar montado, tenha sido descartado. SICK (1985) consigna a espécie para o Estado, também sem mencionar suas fontes.

      O único exemplar atualmente conhecido de E. ruber para o Estado de São Paulo está depositado na coleção ornitológica seriada (ESLQ) do Departamento de Zoologia da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, da Universidade de São Paulo, em Piracicaba, SP:
        BRASIL. São Paulo: Litoral Santos, um não sexado, 1 jan. 1961, Ozvaldo T. Mendes col. (ESLQ 007), adulto.

      As medidas não constavam da etiqueta e foram colhidas do exemplar pelo autor: cúlmen 132 mm, asa 243 mm, tarso 74 mm e cauda 83 mm. Nenhuma indicação sobre o sexo do exemplar pode ser obtida pelo exame da plumagem.

      O coletor O. T. Mendes informou (com. pess., 13 out. 1993) que a ave foi caçada no manguezal, em um canal próximo a São Vicente; havia no local um grupo de E. ruber (3 indivíduos), Ajaia ajaja (L., 1758) (Threskiornithidae, colhereiro, 2 indivíduos), Ardea cocoi L., 1766 (Ardeidae, baguari, poucos indivíduos, isolados) e Casmerodius albus (L., 1758) (Ardeidae, garça-branca-grande, diversos indivíduos agrupados); nenhum ninho de E. ruber foi observado na ocasião.

      Excetuando-se os materiais de E. ruber obtidos no Paraná por J. Natterer em 1820 (Rio Borrachudo, em Paranaguá, divulgados por A. von Pelzeln em 1867/1870) e no mesmo ano por A. de Saint-Hilaire na praia de Guaratuba (material relacionado pelo coletor em 1822) (PINTO, 1964, 1979; MATOS, 1980), não constam da literatura outros exemplares da espécie coletados ao sul do Maranhão (BRASIL. Maranhão: Primeira Cruz, 1 e 2 jul. 1906, Schwanda col., MZUSP 6668, 6669 e 6670; PINTO, 1938).

      WIED-NEUWIED (1989) em viagem entre 1815 e 1817, que incluiu muitos trechos de manguezal entre o Rio de Janeiro e Ilhéus (Bahia), mencionou não haver encontrado a espécie, o que sugere estar a população bastante deprimida na época, ou carecer de populações estáveis nesse trecho do litoral.

      KRONE (1910) relata informações fidedignas de que até na segunda metade do século XIX apareciam anualmente pequenos bandos de E. ruber no litoral de Iguape e até nas praias do Rio Ribeira de Iguape; porém nos 25 anos de sua permanência nessa zona Krone nunca observou essa espécie.

      LUEDERWALDT (1919) realizou entre 1910 e 1914 cerca de 50 dias de observações sobre os ambientes e as comunidades no complexo estuarino de Santos e não observou nem anotou observações alheias de E. ruber, embora houvesse coletado relatos da existência local de A. ajaja.

      Sugere-se que os aparentes ciclos de presença e ausência de E. ruber no complexo estuarino da região de São Vicente, além de serem devidos a hábitos de migração e colonização da espécie, possam ter refletido as pressões antrópicas então existentes. As pressões que afetam E. ruber e o sistema estuarino podem ser:
          caça, pesca e coleta de aves, ovos e produtos vegetais;
          desmatamentos e urbanização;
          perturbação por presença e atividades humanas;
          alterações nas populações de predadores;
          introdução de animais exóticos ao ambiente;
          assoreamento, retificação dos canais e alteração de seu fluxo;
          drenagem;
          poluição por combustíveis, pesticidas, esgotos e resíduos industriais e navais;
          eutrofização;
          poluição térmica industrial.

      Pode-se aventar um processo de tentativas descontínuas e episódicas de colonização do litoral do sudeste do Brasil por E. ruber com indivíduos provindos do norte. Os indivíduos coletados em 1961 podem ter pertencido a um desses grupos colonizadores. Os períodos em que as pressões antrópicas fossem especialmente limitantes resultariam no fracasso da colonização. A deriva genética e a endogamia em uma população muito pequena e isolada poderiam também ter sido limitantes. Marcondes-Machado (com. pes., 23 nov. 1993) informa que a presente colonização (1986-1993) aparenta ser bem sucedida, tendendo a gerar uma colônia estável nas presentes condições.

      As pesquisas sobre as comunidades nesse sistema ameaçado devem considerar e avaliar os riscos ambientes atuantes, relacionando-os com a estabilidade (status) das populações.

      O estudo do histórico das perturbações antrópicas nos quatro séculos e meio de interferência humana na região e de sua possível influência sobre a biota, podem fornecer subsídios para a elaboração de um plano de gerenciamento regional a longo prazo, visando resguardar os ambientes e suas comunidades.



      Agradecimentos

      O autor agradece aos Drs. Luiz G. E. Lordello e Carlos H. W. Flechtmann (Depto. Zool. ESALQ/USP, Piracicaba, SP) e aos funcionários desse Depto. Abilio Durrer e Vera Durrer por facultarem o acesso ao museu, facilitando a análise e reorganização da coleção ornitológica (ESLQ) pelo autor; a Oswaldo T. Mendes, que forneceu detalhes de sua coleta do indivíduo de Eudocimus ruber; ao Dr. Hélio F. A. Camargo, pelo exame da coleção do MZUSP; e aos Drs. Jacques Vielliard e Luiz O. Marcondes-Machado (Depto. de Zoologia, UNICAMP) pela revisão crítica inicial do manuscrito.



      Referências

      ARGEL-DE-OLIVEIRA, M. M.; LO, V. K.; DEVELEY, P.; BUZZETI, D. R. C.; MARCONDES-MACHADO, L. O. 1993. O status atual do guará (Eudocimus ruber) (Ciconiiformes, Threskiornithidae) no Estado de São Paulo, Sudeste do Brasil. Pelotas. Resumos III Congr. Brasil. Ornit., Soc. Brasil. Ornit., p. 64.

      BOKERMANN, W. C. A. e GUIX, J. C. C. 1987. Reaparecimento do guará, Eudocimus ruber no litoral de São Paulo. R. Janeiro. Anais II Enc. Nac. Anilhadores de Aves, Univ. Fed. R. Janeiro, pp. 206-207.

      BOKERMANN, W. C. A. e GUIX, J. C. 1990. Novas observações sobre a ocorrência do guará, Eudocimus ruber, no litoral paulista (Aves, Threskiornithidae). Pelotas. Anais VI Enc. Nac. Anilhadores de Aves, Univ. Catól. Pelotas, p. 72.

      KRONE, R. 1910. Notas ornithologicas (relativas á zona do Rio Ribeira de Iguape). Rev. Centro de Sciencias, Letras e Artes de Campinas (25):24-34.

      LUEDERWALDT, H. 1919. Os manguesaes de Santos. Rev. Mus. Paulista 11:309-408.

      MARCONDES-MACHADO, L. O.; ARGEL-DE-OLIVEIRA, M. M.; MONTEIRO-FILHO, E. L. A. 1989. Ocorrência do guará, Eudocimus ruber (Ciconiiformes, Threskiornithidae), no litoral de São Paulo. Brasília. Resumos V Enc. Nac. Anilhadores de Aves, pp. 12-13.

      MARCONDES-MACHADO, L. O.; MONTEIRO-FILHO, E. L. A. 1989. Nota sobre a presença dos guarás, Eudocimus ruber (Linné, 1758) (Threskiornithidae, Aves) no litoral de São Paulo. Alerta para sua proteção. Ciencia e Cultura 41(12):1213-1214.

      MARCONDES-MACHADO, L. O.; MONTEIRO-FILHO, E. L. A. 1990. The Scarlet Ibis Eudocimus ruber in southeastern Brazil. Bull. B. O. C. 110(3):123-126.

      MATOS, O. N. 1980. Saint-Hilaire e o Brasil. S. Paulo. Div. Arq. do Estado, 34 pp.

      PINTO, O. M. O. 1938. Catalogo das aves do Brasil, 1a. parte. Rev. Mus. Paulista 22:1-566.

      PINTO, O. M. O. 1964. Ornitologia Brasiliense. S. Paulo, Depto. Zool., Secr. Agric. Est. S. Paulo. 183 pp., il.

      PINTO, O. M. O. 1979. A ornitologia do Brasil através das idades. S. Paulo, s. ed. 117 pp. (Brasiliensia Documenta, 13).

      SICK, H. 1985. Ornitologia brasileira. Brasília, Ed. Univ. Brasília. 2 vol., 758 pp., il.

      VON IHERING, H. 1898. As aves do Estado de S. Paulo. Rev. Mus. Paulista 3:113-476.

      VON IHERING, H.; VON IHERING, R. 1907. Catalogos da fauna brasileira. Vol. I. As aves do Brazil. S. Paulo, Museu Paulista. 485 pp.

      WIED-NEUWIED, Príncipe de 1989. Viagem ao Brasil. Trad. E. S. Mendonça e F. P. Figueiredo. B. Horizonte, Itatiaia/S. Paulo, EDUSP, 539 pp., il., 2 ed. brasil. (1 ed. alemã, 1820/1821). (Reconquista do Brasil, Nova Série, 156).



      Referência bibliográfica desta página

      LAGO-PAIVA, Celso, 1997. Notas sobre a ocorrência e distribuição de Eudocimus ruber (L., 1758) (Aves, Threskiornithidae) no Estado de São Paulo. Disponível na Internet: http://www.oocities.org/RainForest/9468/guara.htm. 20 sep. 1997. Publicado originalmente em Acta Biologica Leopoldensia 16(2):119-124, 1994, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil.



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